Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2725/16.0T8VFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: VENDA EXECUTIVA
DEPÓSITO DO PREÇO
PRAZO PEREMPTÓRIO
JUSTO IMPEDIMENTO
Nº do Documento: RP201907012725/16.0T8VFR-A.P1
Data do Acordão: 07/01/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 699, FLS 149-155)
Área Temática: .
Sumário: I - O prazo de quinze dias fixado no nº 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil, para o proponente proceder ao depósito do preço na venda executiva, assume natureza de prazo legal perentório e improrrogável, cujo decurso tem as consequências assinaladas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 825º do mesmo diploma legal.
II - Esse depósito poderá ser efectuado fora desse prazo, mas só no caso de “justo impedimento”.
III - A parte interessada não pode beneficiar da excecionalidade do conceito de “justo impedimento” quando tenha havido da sua parte negligência, culpa ou imprevidência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2725/16.0T8VFR-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Santa Maria da Feira – Juízo Local Cível, Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

B… intentou a presente ação especial de divisão de coisa comum contra C…, alegando que ambos são comproprietários, na proporção de metade para cada um, de um prédio urbano, constituído por casa de três pisos, para habitação, situado na Rua …, nº …, freguesia …, concelho de Santa Maria da Feira, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1821 e cujo solo está descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº 847.
Acrescenta que o identificado prédio não é suscetível de ser dividido em substância e não pretende permanecer na indivisão.
Citada a ré, apresentou contestação na qual aceita que o prédio é indivisível em substância, afirmando igualmente não pretender continuar vinculada à compropriedade.
Declarada a indivisibilidade em substância do ajuizado prédio, foi designada conferência de interessados na qual não se alcançou acordo sobre a adjudicação. Foi então agendado o dia 18 de Setembro de 2018 para abertura de propostas em carta fechada, apresentando o requerente proposta no valor de €207.100,00, enquanto a requerida apresentou proposta no valor de €207.377,57, tendo cada um deles junto cheque visado, como caução, no montante correspondente a 5% do valor base.
Aceite a proposta apresentada pela requerida foi esta notificada “para, no prazo de quinze dias, proceder ao pagamento do valor remanescente e eventual pagamento das obrigações fiscais associadas”.
Em 27 de Setembro de 2018 a requerida apresentou requerimento com o seguinte teor: “requer a rectificação do lapso na identificação do prédio objecto de venda, passando a constar do auto de abertura de propostas que o prédio vendido é um prédio urbano.
Requer-se ainda seja ordenada a emissão de certidão narrativa onde conste que o prédio urbano descrito na matriz sob o nº 1821, e cujo solo se encontra descrito na CRP de Santa Maria da Feira sob o nº 847, é um bem titulado em compropriedade pelas partes processuais, respectivamente, na proporção de 50%, tendo o mesmo sido adquirido, em sede de venda judicial, mediante proposta em carta fechada, ocorrida no dia 18 de Setembro de 2018, pela requerida C…, pelo preço de €207.377,57 (duzentos e sete mil trezentos e setenta e sete euros e cinquenta e sete cêntimos.
Mais se requer, seja concedida a prorrogação do prazo por 20 dias para apresentação de prova da liquidação dos impostos devidos pela compra e pagamento do preço remanescente”.
Notificada a parte contrária pronunciou-se no sentido de “ser proferido despacho a julgar incumprida a obrigação de depósito do restante do preço e o cumprimento das obrigações fiscais, e bem assim, ao abrigo do art. 825º, nº 1 al. a) do Novo Código de Processo Civil, seja determinado que a venda fique sem efeito e em consequência aceite a proposta de valor imediatamente inferior por si apresentada, ordenando-se a respectiva notificação para proceder ao depósito integral do preço e comprovando o cumprimento das obrigações fiscais, no prazo de quinze dias, adjudicando-lhe de seguida a aquisição do imóvel, seguindo-se os termos do art. 827º CPC”.
O referido requerimento foi objecto de despacho, em 17 de outubro de 2018, no qual se determinou:
. a rectificação do lapso de escrita constante do auto de abertura de propostas, por forma a que onde aí se lê “prédio rústico” deve passar a ler-se “prédio urbano”;
. a emissão de “certidão em conformidade com a situação constante dos autos”.
Já no que tange ao pedido de prorrogação de prazo para cumprimento das obrigações fiscais e depósito do remanescente do preço, nesse despacho deixou-se consignado, na parte que ora releva, o seguinte: «[s]e podemos considerar desculpáveis as dificuldades com que alegadamente a requerida se deparou junto da Autoridade Tributária para o cumprimento das obrigações fiscais, podendo o Tribunal, de harmonia com o princípio da cooperação, remover eventuais dificuldades pela mesma criadas (cfr. art. 7º, nºs 1 e 4, do Novo Código de Processo Civil), já o mesmo não ocorre com a pretendida prorrogação do prazo para proceder ao depósito do preço em falta pela pretensa dificuldade de obtenção de crédito bancário, facto que nem sequer está documentado nos autos.
Com efeito, como decorre da análise dos autos, uma vez iniciada uma ação para divisão de coisa comum em 31 de agosto de 2016, e sendo citada a requerida em 13 de Setembro desse mesmo ano, a mesma estava em perfeitas condições de prever que, se não viesse a ocorrer acordo na conferência de interessados a respeito da pessoa a quem ficaria adjudicado o imóvel indiviso, teria de haver venda.
Aliás, tal situação ficou perfeitamente evidente na conferência de interessados realizada no dia 10 de julho de 2017, onde, face à ausência de acordo sobre a adjudicação, se determinou, ao abrigo do disposto no art. 929º, nº 2, parte final do Novo Código de Processo Civil, a realização da venda do imóvel indiviso, com a advertência de que os consortes podiam concorrer à mesma. Pelo que, qualquer das partes interessadas estava em condições de prever que, se porventura quisesse concorrer à venda, teria de conseguir os meios económicos indispensáveis, ou pelo menos de os ter assegurado no momento em que o processo atingisse essa fase do processo.
Ora, a abertura de propostas em carta fechada realizou-se no dia 18 de Setembro de 2018, ou seja, volvido mais de um ano do despacho que determinou o prosseguimento destes autos para venda do imóvel em apreço, tendo ambos os consortes apresentado as respectivas propostas, tendo sido aceite a proposta da requerida por ser a mais elevada.
Deste modo, atento o hiato temporal decorrido e sendo da requerida a proposta vencedora, não pode esta invocar que era imprevisível ter à sua disposição esse montante para o depositar no prazo de quinze dias após a abertura das propostas, pois quando apresentou tal proposta teria necessariamente de estar ciente de que reunia as condições económicas exigíveis para depositar o preço no prazo legalmente concedido, assegurando em devido tempo a eventualidade de lhe ser concedido crédito bancário.
Por outro lado, os eventuais entraves ao cumprimento das obrigações fiscais que lhe terão sido impostas pela Autoridade Tributária – e que não resultam comprovadas nos autos – não obstavam a que a requerida efectuasse no prazo legal o depósito do preço em falta na secretaria.
Pelo exposto, inexistindo fundamento legal para a prorrogação de um prazo que se mostra peremptório e porque não se verifica uma situação de justo impedimento, indefere-se a pretendida prorrogação do prazo para o depósito do preço.
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Compulsando os autos veio, ainda, o requerente manifestar-se no sentido da venda ficar sem efeito, sendo aceite a sua oferta que ficou aquém da apresentada pela requerida.
Observado o contraditório, vejamos as consequências decorrentes da falta de depósito do preço, a que se reportam as alíneas a) a c) do art. 825º do Novo Código de Processo Civil (…).
Atento o exposto, mostrando-se observado o princípio do direito ao contraditório e à luz do preceituado no art. 825º, nº 1 al. a), do Novo Código de Processo Civil, determino que a venda fique sem efeito e consequentemente aceito a proposta de valor imediatamente inferior, que foi apresentada pelo requerente no valor de € 207.100,00, perdendo a requerida o valor da caução por si constituída.
Nesta conformidade, notifique o requerente para, no prazo de quinze dias, proceder ao depósito do preço e ao cumprimento das inerentes obrigações tributárias».
Não se conformando com o assim decidido, veio a requerida interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
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O autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, a única questão solvenda traduz-se em apurar se, no caso em apreço, ocorreu alguma situação passível de consubstanciar justo impedimento para não proceder ao pagamento do preço em falta no prazo legal de quinze dias após a aceitação da proposta que apresentou.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A factualidade a atender para efeito da decisão do objecto do presente recurso é a que dimana do antecedente relatório.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

No presente processo, depois de se afirmar a indivisibilidade em substância do ajuizado imóvel (pertencente a ambas as partes na proporção de metade para cada uma delas) e perante a inexistência de acordo sobre a sua adjudicação, foi agendada data para a respectiva venda através de propostas em carta fechada.
Nessa diligência cada uma das partes apresentou uma proposta, vindo a ser aceite a que foi oferecida pela requerida e ora apelante, por ser a de maior valor.
Notificada que foi para, em 15 dias, depositar a parte do preço em falta, certo é que não o fez, vindo a requerer a prorrogação desse prazo, o que, no entanto, não foi admitido pelo juiz a quo por considerar inexistir fundamento legal para tal, tendo, em consequência, determinado que a venda ficasse sem efeito.
A apelante rebela-se contra esse ato decisório sustentando, fundamentalmente, que, in casu, se verificou uma situação de justo impedimento legitimadora do pagamento do remanescente do preço já para além do prazo que dispunha para o efeito.
Quid juris?
Como emerge da concatenação do nº 2 do art. 824º com o proémio do nº 1 do art. 825º, o aludido prazo de quinze dias fixado no primeiro dos referidos normativos assume inequivocamente natureza de prazo legal perentório e improrrogável[2], cujo decurso tem as consequências assinaladas nas diversas alíneas do segundo normativo citado, entre as quais se conta, no que ao caso releva, a que foi decretada pelo decisor de 1ª instância – “ficar a venda sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, perdendo o proponente o valor da caução”.
Isto posto, cumpre agora avançar para a resolução da essencial questão que consubstancia objecto do presente recurso, qual seja determinar se ocorreu uma situação passível de constituir justo impedimento da prática do ato (pagamento da “parte do preço em falta”) dentro do prazo legalmente estabelecido para o efeito.
Dispõe, a este propósito, o n.º 1 do art. 140.º que “[c]onsidera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do ato”.
O atual conceito de “justo impedimento” assim configurado é bastante mais vasto do que o contido na anterior redação do correspondente artigo antes da reforma operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12.
Na verdade, como é consabido, antes da referida reforma definia-se no n.º 1 do art. 146.º “justo impedimento” como o “evento normalmente imprevisível, estranho à vontade da parte, que a impossibilite de praticar o ato, por si ou por mandatário”.
Daí que face a tal definição a doutrina e jurisprudência foram-se inclinando no sentido de restringir a respetiva previsão legal àquelas hipóteses em que, nas palavras de RODRIGUES BASTOS[3], “a pessoa que devia praticar o ato foi colocada na impossibilidade absoluta de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto, independente da sua vontade, e que um cuidado e diligência normais não fariam prever”.
Com a aludida Reforma do CPC e no que tange ao regime legal do “justo impedimento” pode ler-se no preâmbulo do citado DL que “… flexibiliza-se a definição conceitual de «justo impedimento», em termos de permitir a uma jurisprudência criativa uma elaboração, densificação e concretização, centradas essencialmente na ideia da culpa, que se afaste da excessiva rigidificação que muitas decisões, proferidas com base na definição constante da lei em vigor, inquestionavelmente revelam (…)”.
Segundo sustentam LEBRE DE FREITAS et alii[4], nesta sede e à luz do novo conceito “… basta para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto obstaculizador da prática do ato não seja imputável à parte ou ao mandatário, por ter tido culpa na sua produção. Tal não obsta à possibilidade de a parte ou o mandatário ter tido participação na ocorrência, desde que, nos termos gerais, tal não envolva um juízo de censurabilidade (…).
Passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário (ou a um auxiliar deste, nos termos do nº 1 do art. 800º do Cód. Civil). Um evento previsível pode agora excluir a imputabilidade do atraso ou da omissão. Mas, tal como na responsabilidade civil contratual, a culpa não tem de ser provada, cabendo à parte que não praticou o ato alegar e provar a sua falta de culpa, isto é, a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo (art. 799º, nº 1 do Cód. Civil): embora não esteja em causa o cumprimento de deveres, mas a observância de ónus processuais, a distribuição do ónus da prova põe-se nos mesmos termos (…)”.
E, como mais à frente referem os citados autores, em “… consequência da alteração do n.º 1, certos casos-tipo que os tribunais frequentemente não consideravam como justo impedimento terão agora ponderação diversa, [podendo] dizer-se que os atrasos e omissões decorrentes de negligência simples ou grosseira do mandatário ou de seus subordinados (…) continuarão a não constituir justo impedimento”.
Finalmente, na senda do também sustentado por ABRANTES GERALDES[5], e reportando-se ao art. 146.º do pretérito CPC (cuja redação é em tudo idêntica à atual), defende LOPES DO REGO[6] que o “… n.º 1 pretende operar alguma flexibilização no conceito de «justo impedimento», colocando no cerne da figura a inexistência de um nexo de imputação subjetiva à parte ou ao seu representante do facto que causa a ultrapassagem do prazo perentório.
O que deverá relevar decisivamente para a verificação do «justo impedimento» – mais do que a cabal demonstração da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do ato – é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário no excedimento ou ultrapassagem do prazo perentório, a qual deverá naturalmente ser valorada em consonância com o critério geral estabelecido no n.º 2 do art. 487.º do C. Civil, e sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das causas (…)”.
Assim, em face da redação atualmente em vigor dada ao preceito em crise e ponderados os ensinamentos supra colhidos temos que considerar como “justo impedimento” o “evento” ou o acontecimento obstativo à prática atempada do ato desde que esse “evento” não seja “imputável à parte ou aos seus representantes ou mandatários”.
Nessa medida, nos termos do nº 1 do art. 140.º, o instituto do “justo impedimento” passou a abranger não só os casos de evento normalmente imprevisível, estranho à vontade da parte, mas também todo e qualquer evento que obste à prática atempada do ato não imputável à parte, nem aos seus representantes ou mandatários.
Significa isto, portanto, que como requisito basilar do justo impedimento está a não imputação do evento à parte ou aos seus representantes ou mandatários não podendo consistir em factos que constituam conduta culposa ou negligente da própria parte ou do seu mandatário, imputando-se a este as condutas de auxiliares a quem tenha encarregado de determinados atos.
Por conseguinte, não integrará o conceito de justo impedimento o evento que determinou ou esteve na origem da não apresentação tempestiva em tribunal do documento ou da prática de qualquer outro ato processualmente relevante cuja ocorrência ficou a dever-se à falta de diligência que na circunstância era exigível da parte, respetivo mandatário ou funcionários encarregues da prática do ato[7].
De tudo isto resulta que um evento previsível pode agora excluir a imputabilidade do atraso ou da omissão. Contudo, a parte interessada não pode beneficiar da excecionalidade do conceito de “justo impedimento” quando tenha havido da sua parte negligência, culpa ou imprevidência, pois, se o evento era suscetível de previsão e ela se não acautelou contra a possibilidade da sua verificação sibi imputet.
Dito isto, vejamos o caso em apreciação nos autos.
Como a apelante naturalmente não pode desconhecer, quando é apresentada uma proposta de aquisição, o proponente terá de ter consciência das consequências legais que para si resultarão da eventual aceitação da mesma. Dessas, resulta, desde logo, a obrigação de depositar o preço no aludido prazo de quinze dias, sendo que o seu cumprimento é, assim, condição (rectius, uma das condições) para que a venda executiva seja plenamente eficaz.
A este propósito, vem sendo discutido na doutrina pátria qual o momento em que a venda se aperfeiçoa, produzindo os seus efeitos.
LEBRE DE FREITAS[8] entende que a venda executiva produz os seus efeitos com o depósito do preço efectuado segundo os termos do disposto no referido art. 824º, nº 2, sendo esse depósito elemento constitutivo da mesma.
Para REMÉDIO MARQUES[9] o legislador parecer ter querido autonomizar dois momentos: o da conclusão do contrato e o da aquisição da propriedade. Por isso, o contrato estaria concluído com a aceitação da melhor proposta, mas a propriedade só se transmitiria verificada a condição de depósito do preço e satisfação das obrigações integrais, pois só nesse momento é lavrado o despacho de adjudicação do bem ao comprador e emitido o título de transmissão.
Por seu turno, ROMANO MARTINEZ[10] sustenta que a propriedade não se transfere com a aceitação da proposta, pois, se a propriedade se tivesse já transferido o não pagamento do preço não poderia implicar uma falta de produção de efeitos. Entende que a transferência se dá na data do título de adjudicação e, na sua falta, na data do título ou instrumento de venda.
Já RUI PINTO[11] advoga que o depósito do preço é (a par da satisfação das obrigações fiscais) um pressuposto da venda executiva: um dos vários atos sequenciais que concorre para que se possa proceder à transmissão do direito. Mas não é ainda a condição imediata dessa transmissão, sendo que os efeitos da venda executiva se dão com a emissão do título de transmissão.
A apelante, acolhendo a argumentação expendida por estes últimos autores, defende que as obrigações legais de depósito do preço remanescente e o cumprimento das obrigações fiscais pela compra são cumulativas e indissociáveis, pelo que registando-se situação impeditiva de satisfação de alguma dessas obrigações por facto que não lhe seja imputável, esse impedimento “comunicar-se-á” ao cumprimento da outra obrigação.
Nesse pressuposto, preconiza que em virtude de se ter registado lapso de escrita no auto de abertura de propostas (dado que aí se indicava que o ajuizado prédio era rústico, quando, na verdade, é um prédio urbano) e de se verificar uma errónea identificação e descrição desse prédio na matriz (posto que aí indevidamente consta que o prédio é bem comum do casal, quando se trata antes de um bem em compropriedade, na proporção de 50% para cada um dos consortes), tais factos motivaram (segundo alega, embora não o demonstre, mormente através de suporte documental que o ateste) que a Autoridade Tributária não pudesse emitir as guias para pagamento dos impostos inerentes, o que somente se revelou viável depois de se ter operado a rectificação das apontadas situações. Na decorrência dessa realidade sustenta que a mesma constituirá justo impedimento para o efeito de lhe ser permitido o pagamento do remanescente do preço fora do prazo legalmente estipulado para o efeito.
Não lhe assiste, contudo, razão.
Na verdade, apesar de se tratar de obrigações cumulativas (mormente para permitir a emissão do título de transmissão – cfr. art. 827º), não são, contudo, obrigações de cumprimento simultâneo, fixando a lei prazos distintos para o pagamento do preço (art. 824º, nº 2) e para a satisfação das obrigações fiscais inerentes à transmissão (cfr., art. 36º, nº 3 do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões e art. 44º do Código do Imposto do Selo, aprovados pelo DL nº 287/2003, de 12.11).
Acresce que a lei adjectiva somente liga as consequências prevista no art. 825º ao não pagamento do preço no prazo estabelecido no nº 2 do art. 824º, não sendo - ao invés do que defende a apelante - tais consequências aplicáveis ao não cumprimento das obrigações tributárias, dado que o inadimplemento destas somente terá como efeito, no processo de venda, a não emissão do título de transmissão – cfr. art. 827º.
Consequentemente a alegada (mas não comprovada) inviabilidade de a apelante proceder ao pagamento dos impostos inerentes à ajuizada venda, não obstaculizaria que tivesse procedido, autonomamente, ao pagamento do preço que ainda tinha de liquidar dentro do respectivo prazo legal (perentório e improrrogável), não podendo, pois, falar-se com propriedade na existência de qualquer situação de justo impedimento (no sentido supra definido) que a legitimasse a realizar esse pagamento para além desse prazo.
O ato decisório em crise não é, assim, merecedor da censura que lhe é direccionada pela apelante, improcedendo, nessa medida, todas as conclusões recursivas.
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V- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a despacho recorrido.
Custas do recurso a cargo da apelante (art. 527º, nºs 1 e 2).

Porto, 1.07.2019
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 17.12.2002 (processo nº 02A3991), acórdão desta Relação de 14.06.2005 (processo nº 0522595) e acórdão da Relação de Coimbra de 11.11.2003 (processo nº 2703/03), acessíveis em www.dgsi.pt.
[3] In Notas ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 321.
[4] In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, págs. 276 e seguinte.
[5] In Temas da Reforma do Processo Civil, 2ª edição, págs. 86 e seguinte.
[6] In Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, págs. 154 e 155.
[7] Cfr., neste sentido, LEBRE DE FREITAS, ob. citada, pág. 463; acórdão da Relação do Porto de 6.1.85, BMJ nº 351, pág. 463, acórdãos da Relação do Porto de 18.03.2002 (processo 0151803) e da Relação de Coimbra de 31.10.2006 (processo nº 3706/05.4YRCBR), ambos disponíveis no sítio www.dgsi.pt e bem assim acórdãos do STA de 6.05.1998 (processo n.º 039726), de 03.12.1998 (processo n.º 036820) e de 28.05.2002 (processo n.º 047445), disponíveis em www.dgsi.pt/jsta.
[8] In A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª edição, pág. 383.
[9] In Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto, Almedina, 2000, pág. 404.
[10] Venda executiva. Alguns aspectos das alterações introduzidas na nova versão do CPC, in Aspetos do Novo Processo Civil, pág. 337.
[11] In A ação executiva, AAFDL, 2018, pág. 913.