Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
199/17.7GCOAZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
Nº do Documento: RP20180321199/17.7GCOAZ-A.P1
Data do Acordão: 03/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º753, FLS.169-172)
Área Temática: .
Sumário: É justificada a tomada de declarações para memória futura a vítima de violência domestica que se encontra retida no domicílio comum e impedida de se deslocar – artº 33º1 Lei 112/2009 de 16/9, artº 26º da Lei 93/99 de 14/7 e 271º CPP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 199/17.7GCOAZ.P1 – 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1. Por despacho de 12/01/2018, proferido no Processo n.º 199/17.7GCOAZ, que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira, J2, Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, por se considerar que não existia, por ora, fundamento para produzir antecipadamente o depoimento testemunhal promovido pelo Ministério Público (declarações para memória futura), foi indeferida a respetiva promoção.
1. 2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“1. Nos presentes autos foi apresentada denúncia dando conta que B…, nascido a ../../1941, sofreu um AVC há sete anos, tendo frequentado clínica de reabilitação até maio de 2017, altura em que voltou para casa porque a esposa pretendia prestar-lhe todos os cuidados que necessitava.
2. A denunciada mantém o marido permanentemente deitado na cama, não deixando o idoso, apesar de este se conseguir mover pelos seus próprios meios, levantar-se ou mover-se, não permitindo igualmente que as técnicas de saúde que tratam da sua higiene o desloquem, exigindo que esteja sempre deitado na cama.
3. Quando confrontada com esta exigência a denunciada grita, puxa os cabelos e responde “ele é meu”.
4. Perante esta denúncia, por se entender que os factos relatados seriam suscetíveis de integrar a prática do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e nº 2, do Código Penal, foi requerida a tomada de declarações para memória futura da aqui vítima, o que foi judicialmente indeferido.
5. No caso de crimes de natureza pública, como sucede com o crime de violência doméstica, o Ministério Público pode tomar notícia da existência de crime por conhecimento próprio, por intermédio dos OPC ou por denúncia de terceiro que deles tenha conhecimento. Foi o que aconteceu neste caso: a denúncia que deu origem ao inquérito foi apresentada por terceira pessoa, a neta do arguido, que relatou os factos de que tomou conhecimento e que, por causarem sofrimento ao avô, denunciou para que sejam tomadas medidas que obstem à sua continuação.
6. Na notícia do crime, todos os intervenientes estão identificados, incluindo denunciante e testemunhas indicadas, apenas solicitando aquela que não seja comunicada a sua identidade aos intervenientes.
7. Ou seja, nada nos autos, nem sequer esta circunstância nos leva a, num primeiro juízo, entender a denúncia como infundada ou falsa, não podendo do mero pedido de confidencialidade da identidade ser retirados factos que permitam fundar um juízo que afaste a credibilidade da denúncia, tanto que parece-nos compreensível – sem curar da sua exequibilidade - que, tratando-se de relações familiares próximas, pretenda a denunciante que sejam tomadas medidas quanto à situação do avô, evitando represálias ou conflitos no seio das relações com os restantes familiares.
8. O ato de se forçar uma pessoa, capaz de se deslocar pelos seus meios ou com auxílio de terceiros, a permanecer permanentemente deitada numa cama, sem qualquer justificação, pelo menos desde maio de 2017, com as inerentes lesões físicas que uma tal conduta pode determinar (úlceras de pressão, alterações no funcionamento de órgãos como o intestino por ausência de movimento, com possíveis obstruções intestinais, deterioração das articulações, atrofia muscular, etc…), causando sofrimento a essa pessoa é um trato cruel, é subjugar outrem à sua vontade injustificada, é mau trato e
9. existe conhecimento e vontade da denunciada em agir desse modo. De facto, como aí se refere foi confrontada com a desnecessidade de que o marido estivesse permanentemente na cama e a ofendida, mesmo sabendo que o lesa na sua saúde, continua a exigir aquele comportamento com a única justificação de que “ele é meu”, como se de seu objeto se tratasse.
10. A vítima, como se refere, chora muito, podendo concluir-se que lhe causa sofrimento.
11. Entendemos existirem indícios da prática de crime de violência doméstica e embora se concorde com a afirmação constante da decisão em recurso de que podemos estar perante uma obsessão da denunciada para com a vítima, trata-se de uma obsessão que lhe causa sofrimento, que a lesa de modo grave e que integra um crime e que por isso têm de ser tomadas medidas que visem impedir que continue a agir deste modo.
12. Do supra exposto decorre também que o objeto do processo já se encontra definido, não sendo o facto de ainda serem desconhecidas algumas circunstâncias da atuação, obstáculo à realização das declarações para memória futura onde serão esclarecidos aqueles factos e se poderá ter conhecimento de outros.
13. A este propósito, o acórdão da Relação de Lisboa de 09.11.2016, relatado pelo Desembargador Conceição Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt e onde se pode ler “a verdade é que a finalidade das "declarações para memória futura" tal como previstas no art.º 271º, do CPP, é a de preservar, para memória futura, aquelas declarações que interessarão para fases posteriores do processo, não constituindo por si, um ato de investigação. O que está em causa acima de tudo é a proteção da vítima pela especial situação em que se encontra, importando tão só aferir da conjugação dos pressupostos legais (…)”.
14. Efetivamente não decorre da lei, a obrigatoriedade, nestas situações, de tomada de declarações para memória futura. Porém, não podemos deixar de crer que a circunstância de se ter previsto a realização de tal diligência, para além das situações previstas no artigo 271.º do Código de Processo Penal, revela a intenção do legislador de que pudesse tal meio ser usado para evitar a revitimização da vítima, tal como se pretende com as outras medidas previstas naquela lei, quando as suas especiais circunstâncias e interesse o justifiquem.
15. Tal intenção é ainda reforçada no facto de o legislador, no artigo 21.º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015 de 04 de 09, prever como direitos das vítimas especialmente vulneráveis (como será aqui o caso, não só em virtude da idade do ofendido, mas como da sua situação de saúde), a adoção das medidas de proteção previstas no seu n.º 2: incluindo as declarações para memória futura.
16. Na presente situação, consideramos que existe aqui necessidade de ser ouvida a vítima. Trata-se do elemento de prova fulcral do processo de violência doméstica, parecendo-nos inconcebível que num processo desta natureza não se proceda à sua audição.
17. Efetivamente, sendo os atos praticados em casa, onde apenas reside a denunciada e a vítima, apenas esta poderá esclarecer em toda a sua completude quais os atos que sobre si são praticados, pelo que tal diligência parece-nos não só primordial, mas a primeira a ser realizada, não só porque as capacidades de memória se encontram mais apuradas quanto mais próximo em termos temporais estiver o relato do acontecimento, principalmente quando, como na presente situação, estamos perante uma vítima com 76 anos de idade, que sofreu um AVC do qual ainda recupera, não sendo de afastar a hipótese de que o seu estado de saúde se agrave de forma súbita, imprevista e grave, impossibilitando a sua audição se for relegada para o termo das investigações ou para uma eventual data de julgamento.
18. Acresce que, a audição das pessoas que vão lidando com a vítima diariamente apenas poderá ajudar no esclarecimento de uma parte da realidade daquela vítima podendo mesmo o seu depoimento acabar por se resumir àquilo que ouviram esta dizer, caindo assim na previsão do artigo 129.º do Código de Processo Penal, ou seja, trata-se de diligências que protelariam a audição da vítima para apenas se concluir da necessidade da sua audição.
19. Por todo o exposto, não podemos concordar com a decisão recorrida quando afirma que as declarações para memória futura seriam um ato inútil, tanto mais que, ainda que assim não se entendesse, não é do facto de o processo não prosseguir para julgamento que as declarações para memória futura seriam um ato inútil. De facto, trata-se de declarações que podem vir a ser usadas em julgamento, mas que não são produzidas para que possam ser exclusivamente usadas para esse efeito (é o que decorre do texto “a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”, como se pode ler naquele artigo 33.º da Lei 112/2009).”
1.3. O recurso foi admitido pelo despacho de fls. 105.
1.4. A Mma. Juiz, manteve o despacho recorrido, nos seguintes termos:
Nos termos do art.º 414º/4 do Código de Processo Penal, não divisando razões para alterar o sentido da decisão recorrida, sem prejuízo de outra e melhor decisão do Venerando Tribunal da Relação, mantém-se a mesma.
1.5. A Sra. Procuradora-Geral-Adjunta, neste Tribunal, emitiu parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida.
1.6. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo Ministério Público e os poderes de cognição deste Tribunal, importa fundamentalmente apreciar e decidir se o disposto no art.º 33° da Lei nº 112/2009, de 16/09, ao estabelecer um regime próprio, no tocante à determinação da prestação de declarações para memória futura de vítimas de violência doméstica, é ou não aplicável ao caso dos autos, e dado ademais a pretensão de obtenção de tais declarações, por parte do Ministério Público, ter como fundamento uma denúncia apresentada pela neta da denunciada e da suposta vítima, a qual solicitou reserva de identidade em todas as fases processuais.
2. FUNDAMENTAÇÃO
Dispõe o art.º 33º, nº 1, da lei nº 112/2009, de 16/09, sob a epígrafe “Declarações para memória futura”, que “O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.”
Por seu turno, diz o art.º 16º, nº 2, do mesmo diploma que “As autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.”
Por sua vez, a Lei de Proteção de Testemunhas (Lei n.º 93/99, de 14 de julho), prevê medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n.º 1 do art.º 1º - cf. art.º 1º, nº 3, do mesmo diploma. Dizendo o art.º 26º, nº 1, que “quando num determinado ato processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal ato decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.” Acrescentando no nº 2 que a “a especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.”
Por outro lado, nos termos do diploma citado, “durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime” - nº 1 do art.º 28º. E, “Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.”
Ora, a factualidade carreada aos autos, em relação à qual se suscita necessariamente o dever de investigação e apuramento da verdade material – princípio da legalidade da atuação do Ministério Público na investigação penal –, constante do denominado “auto de violência doméstica” de fls. 4 e ss., resulta que pessoa concretamente identificada, familiar da vítima, declarou que esta, num contexto familiar muito restrito – agregado familiar constituído apenas pela vítima e pelo seu cônjuge – sofreu um AVC há 7 anos e, após ter estado numa clínica de reabilitação, voltou a casa, afirmando a denunciante que a sua avó “dá as refeições e medicação ao seu avô, estando ele sempre deitado; Não deixa, as técnicas da C… que tratam da higiene do idoso, levarem-no para o sofá, obrigando-o a estar sempre deitado na cama; Quando confrontada com esta situação do seu avô começa a gritar, puxar os cabelos, dizendo (…) ‘ele é meu’”. E ainda que “o seu avô chora muito, que se encontra diminuído na mobilidade, mas não está inválido, conseguindo mover-se pelos seus próprios meios, sendo impedido pela sua avó.”
Em aditamento, constante de fls. 7, foi ainda referido que, “por lapso, não foi mencionado no auto que a suspeita não deixa o seu marido estar sozinho com ninguém, querendo estar sempre presente nas visitas feitas ao mesmo. Dos filhos dos intervenientes que são 5, apenas 1 de nome D… (…) continua a frequentar a casa dos idosos.”
Ora, a factualidade acima descrita permite, no âmbito das respetivas possibilidades, sustentar a existência de uma suspeita fundada de que sobre a vítima identificada, possa estar a ser praticado um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, nº 1, al. a), e nº 2, do CP, que carece objetivamente de ser investigado, seja no sentido de serem apurados os contornos ou a efetiva e cabal dimensão objetiva dos respetivos factos, como também da forma como os mesmos poderão ser subjetivamente imputados à suspeita, neste caso para efeitos de verificação do preenchimento ou não do respetivo tipo subjetivo do ilícito. Em qualquer caso, a inquirição da vítima, do ponto de vista de quem investiga o crime, e dadas as circunstâncias supra referidas, nomeadamente decorrerem os factos no domicílio comum, no qual, essencialmente, têm presença existencial efetiva apenas a vítima e o suspeito agressor, mostra-se devidamente justificada. Sendo irrelevante, até porque à partida compreensível, que a denúncia tenha partido de alguém que, sendo familiar, e assumindo embora a sua identidade no processo, tenha pedido que esta não seja conhecida, precisamente com fundamento nos laços de parentesco que tem com as pessoas envolvidas.
Por outro lado, são evidentes os sinais, ao nível da idade e da saúde, que conferem à apontada vítima a sua qualidade de vítima especialmente vulnerável, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 67º-A, nº 1, al. b), do CPP, e do art.º 28º da Lei nº 93/99, isto é, para que, em reforço da possibilidade fundada de prestação de declarações para memória futura, que já resultaria do disposto no art.º 33º, nº 1, da lei nº 112/2009, de 16/09, acima citado, seja tomado à vítima depoimento ou declarações, o mais brevemente possível, e de forma a evitar-se a repetição da audição dela como testemunha, com alcance que a este conceito é dado pelo art.º 2º, al. a), da Lei nº 93/99. Fazendo por isso todo o sentido que, à luz daquele preceito, também seja requerido o registo de tal depoimento ou declarações, nos termos do disposto artigo 271.º do Código de Processo Penal, tal como fez o Ministério Público nos presentes autos.
Razão por que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que se determine a prestação de declarações para memória futura, nos termos requeridos pelo Ministério Público.
3. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que se determine a prestação de declarações para memória futura, nos termos requeridos pelo Ministério Público.
Sem custas
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Porto, 21 de março de 2018
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão