Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
566/18.9PAPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: AUTO DE NOTÍCIA
MEIO DE PROVA
FORÇA PROBATÓRIA
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
PRESENÇA DO ARGUIDO
REGRAS GERAIS
DEFESA
VERDADE MATERIAL
RECONHECIMENTO DE PESSOAS
Nº do Documento: RP20230118566/18.9PAPVZ.P1
Data do Acordão: 01/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I – O auto de notícia deixou de “fazer fé em juízo”, ou seja, deixou de lhe ser atribuída uma força probatória plena, mas daí não decorre que tenha perdido qualquer valor probatório, pois que o mesmo constitui um meio de prova, a valorar e apreciar pelo tribunal em conjugação com todos os outros ao seu dispor, quanto aos factos nele narrados e presenciados pela autoridade que o elaborou;
II - O nosso Código de Processo Penal tem como filosofia de base e princípio estruturante, ao nível do julgamento, a realização da audiência com a presença do arguido, sendo essa a regra geral anunciada no artigo 332º, nº 1, do CPP, e a ausência do mesmo a excepção;
III – A presença do arguido é, simultaneamente, uma possibilidade de defesa e um enorme contributo para a descoberta da verdade material, sobretudo em crimes em que o reconhecimento pelas vítimas dos agentes do crime é fundamental;
IV – Da aplicação do princípio “in dubio pro reo” não pode resultar uma decisão sobre os factos violadora das regras do raciocínio lógico-dedutivo e do senso comum.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 566/18.9PAPVZ.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto, P. Varzim - JL Criminal



Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


No Tribunal Judicial da Comarca do Porto, P. Varzim - JL Criminal, processo supra referido, foram julgados AA, BB, CC, tendo sido proferida Sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, o tribunal decide absolver: A) Julgar a acusação improcedente, por não provada, e em conformidade absolver os arguidos BB, AA e CC da prática de dois crimes de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º n.º 1 do C.Penal;
B) Sem custas”.
*
*
Desta Sentença recorreu o Mº Pº, formulando as seguintes conclusões:
“1. O objecto do presente recurso é a sentença proferida nestes autos a 07 de Junho de 2021 [constante de fls. 417 a 421 destes autos], quer na sua vertente de facto, quer, consequentemente, na sua vertente de direito.
2. Tal sentença labora em erro por três ordens de razões principais: porque está ferida dos vícios do erro notório na apreciação da prova e da insuficiência da matéria de facto para a decisão, e porque está igualmente ferida de erro de julgamento quanto à matéria de facto, de acordo com a previsão do art. 412º do Código de Processo Penal.
BB - Identificação e análise dos vícios da sentença previstos no art. 410º, nº 2, alíneas a), e c), do Código de Processo Penal
BB.1) – Do erro notório na apreciação da prova
3. De acordo com as regras da normalidade dos acontecimentos, a identificação dos suspeitos feita pelas vítimas poucas horas depois do crime de que foram alvo é, por norma, extremamente fidedigna precisamente porque a memória das vítimas está mais fresca.
4. Por conseguinte, se ressalta dos autos, como o próprio julgador reconhece, que as duas testemunhas/vítimas identificaram os indivíduos que observaram na polícia como três dos assaltantes que os abordaram e que estas testemunhas nada têm contra os arguidos - pois nem sequer os conheciam, ou deduziram nos autos qualquer pretensão de indemnização pelos danos sofridos - não se vislumbra qualquer razão para que haja dúvidas sobre a identificação dos visados. Ainda para mais quando há uma terceira testemunha – DD - que nem sequer participou na identificação policial presencial e que confirmou em Tribunal a identificação dos três arguidos como autores dos factos, designadamente no tocante ao arguido AA, por ter sido quem lhe subtraiu o telemóvel.
5. Como tal, a ideia que perpassa do exame da prova e selecção da matéria de facto feita pelo Tribunal recorrido é a de que houve arbitrariedade ou lapso pois, apesar das divergências assinaladas nos depoimentos das três testemunhas atrás referidas, o Tribunal considerou-os positivamente relativamente a factos integradores de dois crimes de roubo, embora apenas na perspectiva do facto em si mas excluindo a autoria apontada.
6. Assim sendo, é incompreensível e incongruente a conclusão do julgador no sentido de ter dúvidas quanto aos autores dos factos pois tal parte [ou seja a da identificação dos autores dos roubos] foi precisamente aquela em que os depoimentos das testemunhas se mostraram mais sólidos por totalmente convergentes quanto à identificação dos arguidos como autores dos factos.
7. É também contrário às regras da experiência comum rejeitar três versões dos factos coincidentes quanto à autoria de um assalto, apresentadas por três testemunhas distintas em julgamento com conhecimento directo dos factos, sem que relativamente a nenhuma delas se conheça qualquer animosidade contra qualquer um dos arguidos e sem que haja qualquer vantagem conhecida que qualquer uma delas retire da condenação de qualquer um deles e, ao invés, se valorize o silêncio dos arguidos como uma espécie de negação dos factos por forma a sedimentar uma dúvida quanto à autoria dos factos em crise.
8. Ora, seria demasiada coincidência que as testemunhas, poucas horas depois de terem sido assaltadas, viessem a identificar, como autores desse assalto, três suspeitos na esquadra da polícia cujos antecedentes criminais ou processos pendentes desconheciam (antecedentes esses que a polícia também desconhecia quando os interceptou), mas que tinham efectivamente os antecedentes atrás referidos por crimes idênticos ao que agora lhes era imputado. Mais estranha será essa coincidência quando, por sua vez, estes suspeitos identificados como autores dos factos tinham características semelhantes às dos verdadeiros assaltantes mas, pasme-se, afinal não eram os verdadeiros assaltantes! Eram, sim, infelizes vítimas da precipitação dos ofendidos e da polícia que estavam no lugar errado, à hora errada e com o dinheiro errado no bolso!
9. O Tribunal A Quo, contrariando todas as evidências e a verdade processual, aceita acriticamente como válida e eficaz uma explicação irrazoável para o ocorrido, isto é a confusão da identificação dos autores do roubo feita poucas horas depois do crime por duas das vítimas relativamente indivíduos em tudo semelhantes aos que os assaltaram, sem possuir nenhum elemento concreto onde se sustente essa confusão e com a agravante de haver uma terceira testemunha que confirma a identificação feita pelas primeiras sem que tivesse estado presente aquando do pretenso acontecimento alimentador do equívoco invocado pelo Tribunal A Quo.
10. Este olhar superficial e distorcido que a sentença lançou sobre a prova produzida consubstancia, na nossa opinião, um erro notório na apreciação da prova produzida, nos termos do disposto no art. 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal, por encerrar em si uma interpretação dos factos e da prova em apreço frontalmente atentatória das regras da lógica, da razão e da experiência comum.
11. A consequência que daqui deverá decorrer no caso vertente será a revogação integral da sentença proferida com a sua inerente substituição por outra sentença onde sejam contemplados como provados os factos indicados sob os pontos A), B) C), D), E) e F) da matéria não provada.
12. Consequentemente, deverão ser indicados como não provados o segmento do facto provado nº 2 na parte em que se diz não ter sido possível apurar a identidade dos indivíduos que constituíam o grupo de pessoas que abordou os ofendidos e decidiu roubá-los, e o segmento do facto provado nº 3 onde se refere ter sido subtraído, de forma não concretamente apurada, o telemóvel identificado nos autos ao ofendido DD, e uma quantia em dinheiro não concretamente apurada, ao ofendido EE.
BB.2) - Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
BB.2.1) - Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (1º momento)
13. A este propósito, e compulsado o exame crítico da prova vertida na sentença recorrida, verificamos estar em causa, na perspectiva e espírito do julgador, a dúvida na identificação do arguido AA feita em julgamento pela testemunha DD. Assim, e estando igualmente em consideração na mente do Tribunal a pretensa “contaminação” da identificação presencial dos três arguidos feita na polícia pelas testemunhas EE e FF, impunha-se, desde logo, a realização da diligência de identificação presencial em julgamento do arguido AA por parte do ofendido DD, até porque este último não estivera presente aquando da identificação presencial dos arguidos realizada na esquadra da polícia no dia dos factos.
14. Do mesmo modo, e face às dúvidas invocadas na sentença, também não podia o Tribunal recorrido ter deixado de diligenciar por, pelo menos, tentar assegurar a presença dos arguidos faltosos durante o julgamento, BB e CC, para serem nesta sede identificados pelas três testemunhas.
15. Todavia, nada foi feito pelo julgador a este propósito quando, perante as dúvidas por si assinaladas na sentença, a realização das diligências em causa eram idóneas a dissipá-las.
16. Sem prejuízo do que atrás referimos, resulta outrossim do depoimento das três testemunhas presenciais dos factos ouvidas em julgamento, EE, FF e DD, que, aquando da ocorrência dos factos, estes estavam acompanhados por mais colegas que também os presenciaram, que também viram os arguidos e que deles também foram vítimas embora não tenham apresentado queixa. As referidas testemunhas identificaram em concreto dois desses colegas como sendo GG e HH. Ademais, nenhum destes dois outros colegas também presentes no local se deslocou à esquadra da polícia para identificar os arguidos estando, por isso, livres da pretensa “contaminação” da identificação aventada pelo Tribunal A Quo.
17. Logo, perante este estado de coisas, e à luz da lógica de dúvida relacionada com a identificação dos arguidos decorrente da interpretação da prova empreendida pelo Tribunal recorrido (só por este último conhecida até à prolação da sentença), é evidente que se mostrava necessário à descoberta da verdade proceder às inquirições destas duas testemunhas presenciais. Ou, no mínimo, mostrava-se necessário encetar em julgamento uma tentativa de proceder a tais inquirições. Todavia, também neste particular o Tribunal A Quo nada fez preferindo, ao invés, escudar-se numa dúvida simplista, redutora e aparentemente dissipável.
18. Assim, não tendo o Tribunal recorrido ordenado a realização das anteditas diligências probatórias tendentes a demonstrar ou infirmar os factos vertidos na acusação relativamente aos quais o Tribunal afirmou na sentença ter dúvidas, torna-se evidente que o julgador rejeitou deliberadamente a possibilidade de esgotar a investigação do objecto do presente processo, assim como de se pronunciar com a profundidade necessária e possível sobre os factos que o compõem, rejeitando diligências de prova que, à luz do próprio raciocínio do Tribunal, se revelavam indispensáveis à descoberta da verdade.
19. No presente caso, a omissão investigatória em apreço constitui uma clara violação do princípio da investigação e descoberta da verdade material, aplicável na fase de julgamento por via do disposto no art. 340º, nº 1, do Código de Processo Penal, e impede o conhecimento de factos necessários à compreensão da decisão, do seu objecto e, bem assim, à impugnação do julgamento à mesma subjacente.
20. Nem se diga que caberia ao Ministério Público promover as supra destacadas diligências. Esta tese não faz quanto a nós qualquer sentido, ainda para mais no caso vertente. Isto porque: por um lado, o cumprimento do disposto no art. 340º do Código de Processo Penal, impõe-se também ao Tribunal que deverá actuar oficiosamente e não é apenas por impulso dos sujeitos processuais; por outro lado, e como é evidente, o Ministério Público entendeu que a prova produzida era suficiente para a comprovação da acusação, sendo certo que não poderia adivinhar que o Tribunal recorrido na sua sentença iria tecer as considerações ora sob destaque.
21. Dito isto, e perante a inquestionável omissão, no contexto definido nos autos pela sentença, de diligências probatórias indispensáveis à descoberta da verdade ora observada, é por isso quanto a nós manifesta a existência do vício presentemente sob análise, isto é da insuficiência da matéria de facto para a decisão, nos termos previstos no art. 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
BB.2.2) – Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (2º momento)
22. Percorrendo todo o conteúdo da factualidade dada como provada e não provada vertida na sentença sob recurso, verificamos não haver em nenhum destes dois segmentos qualquer menção a um facto fundamental alegado na acusação pública, sendo certo que não foi tão pouco justificada a sua ausência em qualquer um destes segmentos. Tal facto é o indicado no ponto 4.) da acusação pública.
23. Este facto revelava-se importante para o contexto da acusação não só pela circunstância de integrar o seu conteúdo específico para o preenchimento dos elementos do crime mas, também, pelo seu carácter parcialmente instrumental em ordem à demonstração da tese da acusação.
24. Porém, o Tribunal eliminou-o do objecto do processo e, ao fazê-lo, incorreu em dois erros incontornáveis: por um lado, numa flagrante e ilegítima supressão parcial do objecto do processo; por outro lado, na criação de um impedimento ou obstáculo ao cabal exercício do direito ao recurso, na sua vertente da impugnação ampla da matéria de facto, na medida em que quanto ao supra mencionado factos que não fez constar da matéria assente impossibilita o recorrente de efectuar uma correcta impugnação do mesmo, desde logo por não ser possível impugnar o que não existe na sentença! E, como tal, prejudica assim, em sede de recurso, a obtenção da prova de tal facto, o qual, como se disse, é relevante para demonstração dos crimes imputados aos arguidos.
25. Logo, não podemos admitir que a solução de direito encontrada pelo Tribunal A Quo para a resolução do caso vertente seja admissível porquanto a mesma é precedida duma amputação ilegítima e substancial da matéria factual que constitui o objecto do processo.
26. O Tribunal A Quo, ao ter incorrido em tal omissão, faz ver que o processo de formação da sua convicção foi, à luz das regras da razão, lógica e experiência comum, falacioso. E tanto assim foi que culminou com a exclusão da matéria de facto de elementos fácticos fundamentais que jamais poderiam ter sido afastados da sentença.
27. Estamos assim perante um caso manifesto de insuficiência da matéria de facto (provada e/ou não provada) para a decisão nos termos previstos no art. 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
28. Caso assim não se entenda, e uma vez que o Tribunal A Quo, ao excluir o sobredito facto do processo sem qualquer justificação ou referência a este respeito formulada na sentença não se pronunciou sobre matéria relativamente à qual estava obrigado a pronunciar-se, desde já invocamos, subsidiariamente, mais uma causa de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos previstos no art. 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
CC.) - Do erro de julgamento [apesar do vício invocado no ponto antecedente, procedemos desde já à impugnação ampla da matéria de facto pois, se o Tribunal superior a considerar válida e viável, evita a delonga da tramitação dos autos contribuindo para a celeridade na obtenção da decisão final]
CC.1) – Indicação, acompanhada da enunciação das provas que impõem decisão diversa da proferida, dos pontos da matéria de facto incorrectamente julgados como não provados pelo Tribunal A Quo (artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal – erro na apreciação da matéria de facto)
CC.1.1) - Dos factos incorrectamente julgados e sua impugnação
29. Neste capítulo, devemos desde logo enunciar que os factos indicados na matéria não provada sob as alíneas A), B) C), D), E) e F) foram incorrectamente julgados nesse sentido (isto é como não provados) pelo Tribunal recorrido, razão pela qual ora impugnamos a sua não prova e propugnamos a sua prova.
30. Quanto aos factos dados como provados entendemos terem sido incorrectamente julgados nesse sentido, embora apenas a título parcial, somente os factos 2.) e 3.) nos trechos supra destacados no segmento C.1.1.) desta motivação de recurso, razão pela qual impugnamos a prova de tais factos em tais partes.
CC.1.2) - Dos elementos e fundamentos que sustentam a prova dos factos nos termos por nós aqui propostos
31. Com efeito, a prova a que atrás fazemos referência para sustentar como provada a fixação da factualidade erradamente decidida como não provada na decisão sob recurso, consiste na apreciação crítica, conjugada e correlacionada dos elementos probatórios descritos no segmento C.1.2.) da motivação de recurso que antecede de acordo com a análise aí expendida que aqui damos por integralmente reproduzida [testemunhas identificadas + teor de fls. 3 a 18 + 57 a 72 + 84 a 86 + 97, 98 + 117 a 126 + 217 a 226 destes autos]. Em síntese refere-se aí que a prova dos factos objectivos dos crimes em apreço assentam nos depoimentos das testemunhas EE, FF e DD, todas elas com conhecimento presencial dos factos ocorridos, as quais descreveram os factos de modo consistente e convergente, em conformidade com a matéria por nós aqui indicada como provada, identificando cabalmente os três arguidos como seus autores e com reforço no facto de duas das testemunhas em causa terem logrado identificar os arguidos na esquadra da P.S.P. poucas horas depois dos crimes de que foram vítimas. No concernente à factualidade atinente ao elemento subjectivo dos crimes em apreço esta foi alcançada no caso vertente, naturalmente, por imposição lógica de raciocínio como resultado necessário, natural e racional, à luz das regras da experiência comum, da factualidade objectiva apurada em concatenação com o conteúdo específico de cada um dos meios de prova atrás elencados.
CC.1.3) - Da especificação do contributo da prova testemunhal supra indicada para a comprovação dos factos acima sinalizados sob os pontos A.) a F.) do segmento C.2.) da motivação de recurso que antece, o que se faz em obediência ao disposto no art. 412º, nrs. 3, alíneas b) e c), e 4, do Código de Processo Penal
32. Para os devidos efeitos, desde já consignamos que, nos termos do normativo atrás referido, indicamos na exposição que se segue as concretas passagens dos depoimentos/declarações em apreço nos quais se funda a presente impugnação da matéria de facto e solicitamos, desde já, a renovação da prova relativamente a tais depoimentos e documentos [fls. 3 a 18 + 57 a 72 + 84 a 86 + 97, 98 + 117 a 126 + 217 a 226 destes autos] referidos no ponto antecedente: CC.1.2.).
33. Nesta senda, reiteramos e damos aqui por integralmente reproduzidas, para os devidos efeitos, as especificações das necessárias passagens dos depoimentos prestados em julgamento pelas testemunhas EE, e FF e DD, as quais se encontram formuladas e identificadas no ponto C.2.1) [C.2.1.1) a C.2.1.5.)] da motivação de recurso que antecede quanto a cada um dos factos aí tratados e que consideramos deverem ser dados como provados nestes autos. Ponto este – C.2.1.) – que aqui damos por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
DD.) - Dos factos que deverão ser considerados globalmente provados como resultado da fundamentação vinda de expender
34. Em face de toda a argumentação que antecede, entendemos que a douta sentença recorrida deverá ser revogada, por errado julgamento da matéria de facto, e substituída por outra no âmbito da qual deverá então ser definitiva e globalmente dada como provada nestes autos a seguinte factualidade: pública, no cruzamento formado pela Av. ... e a Praça ..., na Póvoa de Varzim, conjuntamente com FF, a festejarem o S. Pedro.
II.) – Nessas circunstâncias, um grupo de pessoas constituído por, pelo menos, quatro elementos do sexo masculino, seguia apeado naquele local, e, agindo em comunhão de esforços e de meios, e com base num plano previamente elaborado, decidiu subtrair a DD e EE os bens e valores monetários que os mesmos tivessem na sua posse.
III.) – Os arguidos faziam parte do grupo atrás referido no ponto II.).
IV.) – Assim, foram os arguidos que rodearam os ofendidos DD e EE, impedindo-os de sair do local onde se encontravam. O arguido AA aproximou-se de DD, agarrou-o pelo ombro e, algum tempo depois de o largar, retirou-lhe o telemóvel identificado nos autos. O arguido CC retirou a carteira ao EE e revistou-o e apoderou-se de pelo menos € 200,00 que estavam no interior da referida carteira, após o que lhe devolveu a carteira.
V.) – Após os factos descritos, os arguidos ausentaram-se do local.
VI.) – Os arguidos agiram do modo descrito, em comunhão de esforços e de intenções, em execução de um plano previamente traçado, com o propósito de se apropriarem das quantias monetárias e bens que estivessem na posse dos ofendidos, tendo efectivamente se apoderado da quantia de € 200,00 e de um telemóvel de marca Samsung, modelo Galaxy J5, no valor de € 180,00, que não lhes pertenciam, recorrendo ao uso da força e de intimidação para melhor concretizarem os seus intentos, bem sabendo que agiam contra a vontade dos ofendidos.
VI.) – Sabiam também os arguidos que, rodeando os ofendidos, que se encontravam em menor número, e limitando-os nos seus movimentos, lhes causavam receio que atentassem contra as suas vidas ou integridade física, visando com tal comportamento perturbar o sentimento de segurança dos ofendidos e afectá-los na sua liberdade de decisão, concretizando, desse modo a subtracção.
VII.) – Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
VIII.) O arguido AA não tem antecedentes criminais.
IX.) - O arguido CC foi declarado contumaz no âmbito do Proc. n.º 321/18.6T9PAPVZ.
X.) O arguido tem os seguintes antecedentes criminais: a. No âmbito do Proc. n.º 2/14.0PBGMR, por sentença de 29/05/2015, transitada em julgado a 29/06/2015, foi o arguido condenado pela prática (a 02/01/2014) de dois crimes de roubo na concreta pena de seis meses de prisão, suspensa por um ano e sujeita a deveres de conduta, posteriormente revogada, tendo o arguido cumprido prisão efectiva, extinta a 04/04/2019; b. No âmbito do Proc. n.º 1165/15.2PBGMR, por sentença de 08/03/2019, transitada em julgado a 08/04/2019, foi o arguido condenado pela prática (a 26/10/2015) de um crime de roubo na concreta pena de dois anos e dois meses de prisão, suspensa por igual período.
XI.) O arguido BB encontra-se inscrito como trabalhador dependente da 19) A última remuneração conhecida do arguido data de Abril de 2021, no valor de 25,87.
XII.) O arguido tem os seguintes antecedentes criminais: a. No âmbito do Proc. n.º 1624/11.6PBGMR, por sentença de 02/06/2014, transitada em julgado a 02/07/2014, foi o arguido condenado pela prática (a 21/11/2011) de um crime de furto qualificado na concreta pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa por igual período, extinta pelo cumprimento a 02/10/2016; b. No âmbito do Proc. n.º 149/19.6gaeps, por sentença de 22/06/2020, transitada em julgado a 06/10/2020, foi o arguido condenado pela prática (a 05/03/2019) de um crime de consumo de estupefacientes na concreta pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 6,00.
EE.) - Das normas jurídicas violadas pelo Tribunal A Quo de acordo com a análise efectuada no presente recurso, dos erros que conduziram à sua violação e da correcta interpretação e aplicação das mesmas
35. O Tribunal recorrido, ao ter procedido a uma análise dos elementos probatórios e factos supra destacados de forma equívoca e contrária às regras da lógica, e ao ter daí extraído consequências erráticas ao nível dos factos dados como não provados, bem como da correspondente solução de direito encontrada, materializou uma errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 124º, 125º, 126º e 127º, todos do Código de Processo Penal, e no art. 210º, nº 1, do Código Penal.
36. A correcta interpretação e aplicação destas normas, no sentido por nós acima explicitado, impunha, a plena valoração das provas por nós enunciadas nos termos aqui expostos e, consequentemente, a fixação como provados de todos os factos por nós aqui colocados em evidência no segmento DD.) destas conclusões de recurso com a respectiva prolação de sentença condenatória, visando os três arguidos, pela prática dos dois crimes de roubo que lhes foram imputados na acusação pública.
FF.) - Da correcta subsunção dos factos ao direito e da determinação da medida da pena
37. Neste ponto, e olhando para os factos que consideramos globalmente provados nos termos por nós defendidos no segmento DD.) destas conclusões de recurso, afigura-se-nos não haver dúvidas de que os mesmos integram, em concreto, a prática, pelos arguidos, de dois crimes de ROUBO, previstos e punidos pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal, pelo que devem estes ser condenados em conformidade.
38. Consequentemente, à luz de todos os critérios e fundamentos apontados no segmento F.) da motivação de recurso que antecede, considerando a moldura penal do crime de roubo, bem como as exigências de prevenção geral e especial aqui emergentes e, nomeadamente, os antecedentes criminais de dois dos arguidos, o nosso parecer é o seguinte: -ao arguido AA deve ser aplicada uma pena de prisão não inferior a 8 meses, suspensa na sua execução, com regime de prova, por período não inferior a 1 ano e 10 meses; -ao arguido BB deve ser aplicada uma pena de prisão não inferior a 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução, com regime de prova, por período não inferior a 2 anos e 8 meses; -ao arguido CC deve ser aplicada uma pena de prisão efectiva não inferior a 1 ano e 10 meses.
GG.) - Da síntese dos pedidos contidos no presente recurso e do conhecimento em substituição por parte do Venerando Tribunal da Relação
39. Em face de todo o exposto, mesmo em caso de confirmação da existência dos vícios da sentença apontados nos segmentos B.1) e B.2) da motivação de recurso que antecede (e que aqui damos por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais), e dado que dos autos constam, a nosso ver, todos os elementos necessários ao proferimento de uma ajustada decisão sobre a matéria de facto, a finalidade principal e prevalecente do presente recurso prende-se com o seguinte pedido concreto:
40. GG.1 - Que o Venerando Tribunal da Relação, atendendo à dupla impugnação da matéria de facto por nós supra realizada – restrita e ampla - e aos erros na apreciação da prova destacados neste recurso, não só revogue a sentença proferida pelo Tribunal recorrido, mas também a substitua por outra decisão em sede da qual dê como provados todos os factos supra expostos nos exactos termos por nós explicitados no segmento DD.) desta conclusões de recurso e, consequentemente, aplique o direito em conformidade com a nossa proposta igualmente supra formulada, condenando os arguidos pela prática dos crimes em questão nas penas acima apontadas no segmento FF.) destas conclusões de recurso.
41. GG.2 - Caso assim não se entenda, mas concluindo-se pela existência dos supra referidos vícios da sentença apontados nos segmentos B.1) e B.2) da motivação de recurso que antecede, requer-se que o Venerando Tribunal da Relação ordene a revogação da sentença proferida, anule todo o julgamento e determine o consequente reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo a ser realizado por outro juiz, em ordem a garantir e assegurar o não comprometimento do julgador em face duma decisão anterior por ele proferida no mesmo processo sobre a mesma matéria [ou caso assim não se entenda, que a repetição do julgamento a ordenar seja apenas parcial nos termos em que o Venerando Tribunal da Relação entender restringir o âmbito da apreciação subsequente, procedendo-se á realização das diligências probatórias complementares indicadas no segmento B.2.1.) da motivação de recurso que antecede e aqui damos por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais].
42. GG.3 - Caso, para além da impugnação ampla da matéria de facto, improceda também a invocação dos vícios da sentença atrás destacados, requeremos, subsidiariamente, conforme assinalamos no segmento BB.2.2.) destas conclusões de recurso que o Venerando Tribunal da Relação declare a nulidade da sentença por nós invocada e ordene a baixa dos autos à 1ª Instância para a realização da sua reparação nos termos peticionados.”
*
O arguido AA respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência e concluindo:
“1- A mui douta sentença não se encontra enfermada de nenhum dos apontados vícios, nomeadamente de erro notório na apreciação da prova, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou sequer de erro de julgamento;
2- Deve manter-se como não provada a factualidade constantes nas alíneas
A), B), C), D), E) e F);
3- A douta decisão recorrida também não padece de incorreta interpretação
e aplicação das normas vertidas nos artigos 124º, 125º, 126º, 127º e 210º, Nº 1, do Código de Processo Penal”.
*
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela procedência do recurso.
*
*
Em resposta ao Parecer do Sr. Procurador-Geral Adjunto, o arguido AA manteve a improcedência do recurso.
*
Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor da Sentença recorrida:
Factos Provados
Resultam provados com relevância para a boa decisão da causa os seguintes factos:
1) No dia 28/06/2018, pelas 22h40, DD e EE encontravam-se na via pública, no cruzamento formado pela Av. ... e a Praça ..., na Póvoa de Varzim, conjuntamente com FF, a festejarem o S. Pedro;
2) Nessas circunstâncias, um grupo de pessoas constituído por, pelo menos, quatro elementos do sexo masculino, cuja identidade não foi possível apurar, seguia s apeado naquele local, e, agindo em comunhão de esforços e de meios, e com base num plano previamente elaborado, decidiu subtrair a DD e EE os bens e valores monetários que os mesmos tivessem na sua posse;
3) Assim, o referido grupo rodeou DD e EE, impedindo-os de sair do local onde se encontravam, tendo, de forma não concretamente apurada, se apoderado de um telemóvel de marca Samsung, modelo Galaxy J5, de cor dourada, no valor de cerca de 180,00 € (pertença de DD) e de quantia monetária não concretamente apurada;
4) Após os factos descritos, o referido grupo ausentou-se do local;
Mais se provou:
5) O arguido AA vive com a companheira, a filha de ambos (com um mês e meio), a mãe e uma irmã, em habitação social pela qual pagam cerca de 30,00€ de renda;
6) A companheira não trabalha, por ainda frequentar o ensino;
7) As necessidades básicas do agregado são assim asseguradas pelo Rendimento Social de Inserção atribuído à progenitora, no montante de 189,00€, ao qual é deduzida a verba relativa à renda de casa, recebendo 150,00€;
8) O agregado beneficia ainda de apoio em cabaz alimentar;
9) O arguido encontra-se a frequentar acção de formação na Associação “Sol do Ave”, com duração de 800 horas (sendo 500 horas de teoria e 300 horas de formação prática em contexto de trabalho), formação essa vocacionada para a problemática da integração da etnia cigana;
10) O arguido tem sido assíduo às aulas e revelado comportamento adequado;
11) Recebe bolsa de formação no valor de 250,00€;
12) O arguido deixou de acompanhar grupo de pares com comportamentos desviantes, referindo uma maior maturidade no presente e sobretudo tendo em conta a paternidade;
13) A imagem social do arguido é favorável;
14) O arguido tem o 4.º ano de escolaridade;
15) O arguido não tem antecedentes criminais;
16) O arguido CC foi declarado contumaz no âmbito do Proc. n.º 321/18.6T9PAPVZ;
17) O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:
a. No âmbito do Proc. n.º 2/14.0PBGMR, por sentença de 29/05/2015, transitada em julgado a 29/06/2015, foi o arguido condenado pela prática (a 02/01/2014) de dois crimes de roubo na concreta pena de seis meses de prisão, suspensa por um ano e sujeita a deveres de conduta, posteriormente revogada, tendo o arguido cumprido prisão efectiva, extinta a 04/04/2019;
b. No âmbito do Proc. n.º 1165/15.2PBGMR, por sentença de 08/03/2019, transitada em julgado a 08/04/2019, foi o arguido condenado pela prática (a 26/10/2015) de um crime de roubo na concreta pena de dois anos e dois meses de prisão, suspensa por igual período.
18) O arguido BB encontra-se inscrito como trabalhador dependente da empresa “O..., Lda.” desde Janeiro de 2021;
19) A última remuneração conhecida do arguido data de Abril de 2021, no valor de 25,87€;
20) O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:
a. No âmbito do Proc. n.º 1624/11.6PBGMR, por sentença de 02/06/2014, transitada em julgado a 02/07/2014, foi o arguido condenado pela prática (a 21/11/2011) de um crime de furto qualificado na concreta pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa por igual período, extinta pelo cumprimento a 02/10/2016;
b. No âmbito do Proc. n.º 149/19.6gaeps, por sentença de 22/06/2020, transitada em julgado a 06/10/2020, foi o arguido condenado pela prática (a 05/03/2019) de um crime de consumo de estupefacientes na concreta pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 6,00€.”
*
Factos não provados
“Não resultaram provados com relevância para a boa decisão da causa os seguintes factos:
A) Os arguidos faziam parte do grupo referido no ponto 2);
B) Assim, foram os arguidos que rodearam DD e EE, impedindo-os de sair do local onde se encontravam, e o arguido BB aproximou-se de DD, pelas costas, e agarrou-o por um ombro, enquanto o arguido AA lhe retirou o seu telemóvel, já mencionado no ponto 3) e o arguido CC revistou EE, retirando-lhe a carteira que o mesmo tinha no bolso das calças, e apoderou-se de 350,00€, após o que lhe devolveu a carteira;
C) Após os factos descritos, os arguidos ausentaram-se do local;
D) Os arguidos agiram do modo descrito, em comunhão de esforços e de intenções, em execução de um plano previamente traçado, com o propósito de se apropriarem das quantias monetárias e bens que estivessem na posse dos ofendidos, tendo efectivamente se apoderado da quantia de 350,00€ e de um telemóvel que não lhes pertencia, recorrendo ao uso da força e de intimidação para melhor concretizarem os seus intentos, bem sabendo que agiam contra a vontade dos ofendidos;
E) Sabiam também os arguidos que, rodeando os ofendidos, que se encontravam em menor número, e limitando-os nos seus movimentos, lhes causavam receio que atentassem contra as suas vidas ou integridade física, visando com tal comportamento perturbar o sentimento de segurança dos ofendidos e afectá-los na sua liberdade de decisão, concretizando, desse modo a subtracção;
F) Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta”.
*
Motivação da convicção do Tribunal
Para considerar os factos provados e não provados supra enumerados o Tribunal alicerçou a sua convicção no depoimento das testemunhas e nos documentos juntos aos autos, especificamente:
1) Auto de denúncia de fls. 3;
2) Aditamento de fls. 7;
3) Auto de apreensão de fls. 14;
4) Fotografias de fls. 66, 68, 72;
5) CRC’s dos arguidos;
6) Relatório social quanto ao arguido AA;
7) Pesquisas nas bases de dados quanto aos arguidos BB e CC.
A análise crítica da prova foi feita segundo o princípio da livre apreciação, nos precisos termos do art.º 127.º do C.P.Penal, i.e., segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador.
Apenas o arguido AA compareceu em audiência de julgamento, optando por não prestar declarações.
Foram ouvidas as três testemunhas presenciais dos factos alegadamente ocorridos – EE, FF e DD –, que tiveram um discurso confuso e contraditório entre si.
Efectivamente, a dinâmica de abordagem descrita pelas testemunhas EE e FF é frontalmente distinta daquela que a testemunha DD descreveu. A própria versão dos acontecimentos tal como explicada pela testemunha EE diverge em alguns pontos da versão da testemunha FF e, quanto às três testemunhas, diverge da própria acusação.
Assim, o Tribunal ficou sem perceber de forma clara e suficiente a forma como o telemóvel de DD e a quantia monetária que estava com EE lhes foram retiradas.
Somente a título de exemplo, veja-se que a testemunha DD diz claramente que um indivíduo de raça negra puxou a carteira (de tiracolo) das mãos de FF, quando as testemunhas EE e FF descrevem apenas um diálogo e o retirar da carteira (porta-moedas) a EE, ficando por saber onde estava essa carteira, já que as versões também são diferentes.
Por outro lado, a testemunha EE relatou acontecimentos que duram, no máximo, dez minutos, enquanto que a testemunha FF disse que o grupo que os abordou ficou com eles quarenta minutos.
As testemunhas nem quanto à quantia em dinheiro que foi subtraída se entenderam, dizendo cada uma quantia diferente.
Quanto à identidade das pessoas que os abordaram, as testemunhas DD e FF declararam, sem dúvidas, de que as pessoas que viram na esquadra nessa noite – ou seja, os três arguidos – eram três daquelas quatro pessoas que as tinham abordado.
Já DD não chegou a ver os arguidos na esquadra, apenas fotografias, tendo identificado por esse meio os arguidos.
Apesar destas identificações, o Tribunal ficou com sérias dúvidas quanto à imputação da autoria dos factos aos arguidos.
Vejamos.
Desde já se refira que a testemunha DD afirmou com toda a certeza que a pessoa que o abordou tinha a pele clara, quando o arguido AA não tem a pele clara, sendo claramente de etnia cigana. Quando perguntado sobre se a pessoa que o abordou pertencia, na sua visão, a alguma etnia, a testemunha disse que não.
A testemunha II, agente da PSP que procedeu à detenção dos arguidos, somente se lembrava que existia um grupo com uma pessoa de raça negra referenciado e que foi por isso que abordaram os arguidos (ou seja, por estarem na companhia de CC).
Por outro lado, em audiência de julgamento, as testemunhas EE e FF descreveram de forma completa os indivíduos que os abordaram, enumerando várias características diferenciadoras, desde o penteado até à idade.
Porém, no auto de notícia de fls. 3, consta que os denunciantes apenas sabiam que três indivíduos eram de etnia cigana e um de raça negra, que trazia um boné da Nike e um fato de treino da Fila.
Não se compreende como é que passados três anos as testemunhas se recordam melhor da aparência dos arguidos do que se recordavam momentos após o ocorrido.
A única explicação possível é que a memória das testemunhas foi influenciada pela visualização dos três arguidos na esquadra da PSP naquela mesma noite, substituindo a memória real que tinham da aparência dos indivíduos que os abordaram pela aparência dos arguidos.
Ademais, quando foram abordados pela PSP, os arguidos não tinham consigo o telemóvel de DD e não foi feita qualquer prova que a quantia monetária que o arguido BB detinha consigo era a mesma que havia sido retirada a EE e FF.
Por todo o exposto, o Tribunal ficou na dúvida quanto à identificação feita pelas testemunhas, dúvida que não foi ultrapassada e que coloca em causa a atribuição da autoria dos factos aos arguidos.
Assim, é patente a falta de prova suficiente para afirmar que os arguidos praticaram os factos constantes da acusação.
Em processo penal vigora o princípio in dúbio pro reo, pelo que face a uma dúvida inultrapassável quanto à autoria dos factos pelos arguidos, esta terá de ser considerada não provada.
As condições socioeconómicas do arguido AA foram relatadas pelo próprio e as condições socioeconómicas dos restantes arguidos resultam provadas das pesquisas feitas nas bases de dados.
Os antecedentes criminais (ou falta deles) resultam provados dos conteúdos dos CRC’s dos arguidos.”
*
*
Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o recorrente MºPº pretende suscitar as seguintes questões:
- Erro notório na apreciação da prova, insuficiência da matéria de facto para a decisão, impugnação da matéria de facto e nulidade da decisão proferida.
*
Em síntese, foi considerado provado que o DD e o EE, quando se encontravam numa via pública da Póvoa do Varzim, a festejar o S. Pedro, foram rodeados por “quatro elementos do sexo masculino, cuja identidade não foi possível apurar”, que os impediram de sair do local e se apoderaram de um telemóvel, pertença do DD, no valor de 180 € e quantia em dinheiro não apurada, tendo-se depois ausentado do local.
Não foi considerado provado que o AA, o BB e o CC fizessem parte desses “quatro elementos” e que tivessem sido eles “que rodearam DD e EE, impedindo-os de sair do local onde se encontravam, e o arguido BB se tivesse aproximado de DD, pelas costas, e agarrado-o por um ombro, enquanto o arguido AA lhe retirava o seu telemóvel, já mencionado no ponto 3) e o arguido CC revistado-o EE, retirando-lhe a carteira que o mesmo tinha no bolso das calças, e apoderou-se de 350,00€, após o que lha devolveu”.
Fundamentou o Julgador esta decisão considerando que “a dinâmica de abordagem descrita pelas testemunhas EE e FF é frontalmente distinta daquela que a testemunha DD descreveu. A própria versão dos acontecimentos tal como explicada pela testemunha EE diverge em alguns pontos da versão da testemunha FF e, quanto às três testemunhas, diverge da própria acusação”, pelo que “ficou sem perceber de forma clara e suficiente a forma como o telemóvel de DD e a quantia monetária que estava com EE lhes foram retiradas”.
Afirma ainda o Julgador não compreender “como é que passados três anos as testemunhas se recordam melhor da aparência dos arguidos do que se recordavam momentos após o ocorrido.
A única explicação possível é que a memória das testemunhas foi influenciada pela visualização dos três arguidos na esquadra da PSP naquela mesma noite, substituindo a memória real que tinham da aparência dos indivíduos que os abordaram pela aparência dos arguidos”.
Acrescenta que “quando foram abordados pela PSP, os arguidos não tinham consigo o telemóvel de DD e não foi feita qualquer prova que a quantia monetária que o arguido BB detinha consigo era a mesma que havia sido retirada a EE e FF”.
Conclui ser “patente a falta de prova suficiente para afirmar que os arguidos praticaram os factos constantes da acusação.
Justifica que em processo penal “vigora o princípio in dúbio pro reo, pelo que face a uma dúvida inultrapassável quanto à autoria dos factos pelos arguidos, esta terá de ser considerada não provada”.
*
No recurso começa-se por afirmar a existência de “erro notório na apreciação da prova e da insuficiência da matéria de facto para a decisão” e “de erro de julgamento quanto à matéria de facto, de acordo com a previsão do art. 412º do Código de Processo Penal”.
Pretende-se, assim, convocar simultaneamente a denominada revisão alargada da decisão sobre a matéria de facto, com base na análise da prova pericial, documental e oral produzida ou analisada em Audiência, e a revisão restrita dessa decisão, com base no seu próprio texto, para detecção dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP à luz das regras do raciocínio lógico-dedutivo e da experiência comum.
Porém, no respeitante à caracterizada revisão alargada, é ostensivo não se dar cabal cumprimento ao disposto no art. 412º nºs 3 e 4 do CPP, indicando-se as concretas provas que imporiam decisão diversa com indicação, no respeitante à prova oral, das concretas passagens em que se funda a impugnação.
Com efeito, apenas o que surge é a localização do local de gravação (v.g. “1ª passagem – entre os 00H:10M:42S e os 00H:11M:55S; -2ª passagem – entre os 00H:11M:55S e os 00H:13M:10S; 3ª passagem – entre os 00H:16M:00S e os 00H:16M:30S; 4ª passagem – entre os 00H:16M:45S e os 00H:17M:10S”, etc.), mas não a respectiva transcrição.
Não se mostrando, assim, efectuada uma válida impugnação da decisão sobre a matéria de facto, restringir-se-à este Tribunal à apreciação da existência dos alegados vícios, no âmbito da referenciada revisão restrita.
Fundamentando-se a existência de erro notório, refere-se que “o próprio julgador reconhece, que as duas testemunhas/vítimas identificaram os indivíduos que observaram na polícia como três dos assaltantes que os abordaram e que estas testemunhas nada têm contra os arguidos - pois nem sequer os conheciam, ou deduziram nos autos qualquer pretensão de indemnização pelos danos sofridos - não se vislumbra qualquer razão para que haja dúvidas sobre a identificação dos visados” e “há uma terceira testemunha – DD - que nem sequer participou na identificação policial presencial e que confirmou em Tribunal a identificação dos três arguidos como autores dos factos, designadamente no tocante ao arguido AA, por ter sido quem lhe subtraiu o telemóvel”.
Acrescenta-se que onde os depoimentos das vítimas se “mostraram mais sólidos por totalmente convergentes” foi precisamente quanto aos autores dos factos, sendo “incompreensível e incongruente” ter o Julgador considerado provados os factos integradores dos dois roubos, mas excluir a sua autoria.
Sob a epígrafe “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” alude-se à necessidade da “presença dos arguidos faltosos durante o julgamento, BB e CC, para serem nesta sede identificados pelas três testemunhas” e que o facto indicado no ponto 4 da acusação não é objecto de qualquer menção, nem nos factos provados nem nos não provados.
*
Brevitatis causa, o recorrente - pese embora alguma confusão conceptual - tem razão no fundamental: é manifesto, notório ter-se apreciado a prova de forma errada, o que impediu a produção da decisão ajustada ao caso, de acordo com a verdade histórica ou material.
Formulam-se na decisão raciocínios e conclusões sobre a prova produzida, contrários às regras do raciocínio lógico-dedutivo e da experiência comum.
Concretizando, procede-se à descrição dos factos integrantes do roubo pela forma acima sintetizada e não se considera provada a sua autoria pelos três arguidos porque “ficou sem perceber de forma clara e suficiente a forma como o telemóvel de DD e a quantia monetária que estava com EE lhes foram retiradas”.
Para além disto não servir para justificar a não prova da autoria, nem sequer se vislumbra o que ficou sem se perceber quanto ao modo como foram retirados os bens: como decorre daquilo que o próprio Julgador considerou provado, foram-no à força e sob ameaça como é próprio dos crimes de roubo.
Acerca da autoria, propriamente dita, desvaloriza o Julgador o depoimento das vítimas DD, EE e FF, com o argumento final de não compreender “como é que passados três anos as testemunhas se recordam melhor da aparência dos arguidos do que se recordavam momentos após o ocorrido.
E que “a única explicação possível é que a memória das testemunhas foi influenciada pela visualização dos três arguidos na esquadra da PSP naquela mesma noite, substituindo a memória real que tinham da aparência dos indivíduos que os abordaram pela aparência dos arguidos”.
Estamos aqui perante um ilogismo assaz rebuscado e, esse sim, dificilmente compreensível: como terão as vitimas substituído a sua “memória real” da aparência dos indivíduos que os roubaram pela aparência dos aqui arguidos (provavelmente, e com toda a lógica, seria mais fácil concluir que se tratavam dos mesmos).
Bastaria ir-se ao auto de denúncia e ao seu aditamento (e a esse respeito convém relembrar que o auto de notícia deixou de “fazer fé em juízo”, ou seja, deixou de lhe ser atribuída uma força probatória plena; porém, não decorre daí que o auto de notícia tenha perdido qualquer valor probatório; o mesmo constitui um meio de prova – a valorar e apreciar pelo Tribunal, em conjugação com todos os outros ao seu dispor –, quanto aos factos nele narrados e presenciados pela autoridade que o elaborou), e perceber-se-ia que a vítima EE procedeu à descrição dos autores do roubo (“o grupo era composto por três indivíduos de etnia cigana (desconhece mais dados), e um de raça negra, que tinha um chapéu de marca «NIKE», e trajava um fato de marca «FILA», de cor vermelho/branco. O mesmo reiterou que nunca os tinha visto, e é capaz de os reconhecer”).
E foi com base nessa descrição que as autoridades detiveram os arguidos, poucas horas depois em situação muito próxima do “quase flagrante delito” (“Face ao exposto, desloquei-me à avenida ..., nesta cidade. Momentos depois, e no meio da multidão que estava nos festejos de São Pedro, vislumbrei os 4 (quatro) suspeitos. De imediato foram interceptados, sendo conduzidos á 8 EIC, por uma viatura desta polícia”.
Após o que as vítimas procederam ao “reconhecimento cabal dos três indivíduos interceptados, não tendo qualquer dúvida que foram os autores do roubo que tinham sido vitimas”).
É lícito, perante isto, perguntar-se que dúvidas poderiam persistir quanto à autoria dos factos.
Mas se, ainda assim, dúvidas no espírito do Julgador restassem - e o recorrente faz referência a isso, embora o integre, erradamente, no conceito de insuficiência para a decisão de matéria de facto provada - o Julgador deveria ter interrompido a Audiência e ordenado a comparência de todos os arguidos para que as vítimas os reconhecessem, visto que não assegurou inicialmente essa presença.
Com efeito, e como consta da acta de Audiência, os arguidos BB e CC, notificados, faltaram à Audiência, não tomando o Julgador medidas para assegurar a sua comparência porque não se lhe afigurava “por ora, essencial para a boa decisão da causa a presença dos arguidos”.
A respeito desta prática tem de se relembrar o seguinte:
O nosso Código de Processo Penal tem - continua a ter, apesar das sucessivas e desencontradas alterações a que foi submetido - como filosofia de base e princípio estruturante, ao nível do Julgamento, a realização da Audiência com a presença do arguido, sendo essa a regra geral anunciada no art. 332º, nº 1, do CPP – “É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto…” – e a ausência do mesmo, a excepção.
Na lapidar frase de Teresa Beleza: “A presença do arguido pode ser vista como um importante factor de legitimação da Justiça Penal e da sua eficácia…Um arguido ausente é não só alguém que se não defende – é só uma parte do problema – mas também alguém que não aceita fazer publicamente face à Justiça que o questiona”.
Com efeito, a presença do arguido é, simultaneamente, uma possibilidade de defesa e um enorme contributo para a descoberta da verdade material, sobretudo em crimes da natureza do aqui em causa, em que o reconhecimento pelas vitimas dos agentes do crime é fundamental.
No entanto, e sobretudo depois da entrada em vigor do DL 320-C/2000, de 15/12, começou a gerar-se uma prática judiciária que foi aumentando gradualmente, levando a que uma parte significativa dos Julgamentos seja efectuada sem a presença do arguido, quase se deixando à vontade deste a sua comparência ou não (foi, aliás, esse aumento das situações de ausência do arguido que suscitou a critica, acima transcrita, de Teresa Beleza).
É patente neste caso as consequências que tal prática pode gerar.
Porém, no contexto do caso aqui sob análise, o erro não se circunscreve - tal como decorre do já exposto - à permissão de não comparência dos arguidos, nomeadamente à não tomada das medidas necessárias à sua comparência sob detenção.
Daí que se não trate de uma singela omissão de “diligências probatórias indispensáveis à descoberta da verdade” como o recorrente também - na sequência da confusão conceptual já aludida, mas que não retira validade ao recurso - acaba por referir (aliás, a omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade, tipificada no art.º 120, nº 2, al. d) do CPP, integra uma nulidade dependente de arguição, a ser invocada no decurso da sessão da Audiência em que foi cometida, tal como decorre do art. 120º, nº 3, al. a) do CPP).
O erro é mais grave e abrangente, culminando os ilogismos dos raciocínios formulados e a errada apreciação da prova a que se procedeu na assunção de um estado de dúvida inaceitável à luz das regras do raciocínio lógico-dedutivo e da experiência comum nesta área criminal.
Ora, da aplicação do princípio in dubio pro reo não pode resultar uma decisão sobre os factos violadora das regras do raciocínio lógico-dedutivo, e do senso comum.
Tal ocorrendo, está-se perante o vício da decisão sobre a matéria de facto de erro notório na apreciação da prova – art.º 410º, n.º 2, al. c), do CPP.
Na correcção desse vício deverá também ser sanada a omissão de pronúncia, de que o recorrente também se queixa, no respeitante ao facto descrito na acusação sob o n.º4 que não consta dos provados, nem dos não provados: “Os arguidos foram interceptados pelo OPC, aos 29 de Junho de 2018, pelas 00h05, na Av. ..., na Póvoa de Varzim, na posse da quantia de €105,00, que lhes foi apreendida”.
Perante os contornos deste caso – e, excepcionalmente, tal como decorre do art. 426.º, n.º1, do CPP, visto que a regra é a correcção do erro neste Tribunal, sempre que possível –, há que decretar o reenvio do processo para que em novo Julgamento se corrija o vício detectado.
Não se trata, porém, de um reenvio total, mas apenas parcial, envolvendo os pontos de facto considerados não provados – que, logicamente, a considerarem-se provados, terão de ser conjugados e encadeados com os já provados – e o supra transcrito facto n.º4 da acusação.
Embora não faça parte directa do objecto do recurso, mas como decorre do já relatado, o Julgador deverá assegurar a comparência de todos os arguidos no Julgamento.
Nestes termos, o recurso merece provimento.
*
Nos termos relatados, decide-se julgar procedente o recurso do Ministério Público e considerar verificado o vício – previsto no art. 410º, nº2, al. c) do CPP – de erro notório na apreciação da prova; em consequência, ordenar, nos termos do art. 426º, n.º 1, do CPP, o reenvio do processo para novo Julgamento, circunscrito à averiguação dos factos considerados não provados e ao facto descrito na acusação sob o n.º4, e subsequente proferimento da decisão de Direito.
*
Sem custas.
*
Porto, 18/01/2023

José Piedade
Horácio Correia Pinto
Moreira Ramos