Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3330/13.8TBPRD-J.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
CÔNJUGE DO DEVEDOR COMERCIANTE
PRESUNÇÃO DE COMERCIALIDADE
PROVEITO COMUM
SOLVÊNCIA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP201410063330/13.8TBPRD-J.P1
Data do Acordão: 10/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crédito que justifica a pretensão formulada pela credor no sentido de ser declarada a insolvência do devedor não necessita de estar incorporado em qualquer título executivo, pois embora o processo de insolvência seja um processo de execução universal, não se confunde com o processo executivo, nem o que é exigível para este é exigível para o outro.
II - Demonstrada a qualidade de comerciante do cônjuge do alegado devedor, a contração da dívida no exercício do comércio e um regime de bens do casamento diverso do da separação, terá este cônjuge que provar positivamente que a dívida não foi contraída em proveito comum do casal, porquanto esse proveito presume-se e, não afastada a presunção, a dívida comunica-se ao cônjuge do comerciante.
III - Ainda que o tribunal, no julgamento da insolvência, não esteja sujeito apenas aos factos alegados, cabe ao oponente demonstrar que se encontra em situação de solvência, ou seja, não apurada esta situação e reunidos os demais pressupostos, a insolvência deve ser decretada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Sumário (da responsabilidade do relator): 1 - O crédito que justifica a pretensão formulada pela credor no sentido de ser declarada a insolvência do devedor não necessita de estar incorporado em qualquer título executivo, pois embora o processo de insolvência seja um processo de execução universal, não se confunde com o processo executivo, nem o que é exigível para este é exigível para o outro. 2 – Demonstrada a qualidade de comerciante do cônjuge do alegado devedor, a contração da dívida no exercício do comércio e um regime de bens do casamento diverso do da separação, terá este cônjuge que provar positivamente que a dívida não foi contraída em proveito comum do casal, porquanto esse proveito presume-se e, não afastada a presunção, a dívida comunica-se ao cônjuge do comerciante. 3 – Ainda que o tribunal, no julgamento da insolvência, não esteja sujeito apenas aos factos alegados, cabe ao oponente demonstrar que se encontra em situação de solvência, ou seja, não apurada esta situação e reunidos os demais pressupostos, a insolvência deve ser decretada.

Processo 3330/13.8TBPRD-J.P1

Recorrente – B…
Recorrida – C…, Lda.

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Carlos Querido.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

1 - Relatório:
1.1 – O processo na 1.ª instância
C…, Lda. veio requerer, através do presente processo especial, a Insolvência de B… e, para tanto, alegou o que ora se sintetiza:
- É uma sociedade que se dedica ao fornecimento de bens e prestação de serviços de instalações elétricas, bombas submersíveis e alarmes e estabeleceu relações comerciais com o marido da requerida, para o exercício da atividade comercial deste, o que levou ao fornecimento, ao mesmo, de bens e serviços, mas que ele não pagou, encontrando-se por liquidar o montante de 9.768,85€.
- Interpelou por diversas vezes o marido da requerida, mas, não tendo havido pagamento, recorreu ao tribunal e, na ação 66939/12.0YIPRT, foi proferida sentença, em 12.07.2013 e já transitada, condenando o marido da requerida no pagamento daquele capital, e nos juros.
- O marido da requerida era empresário em nome individual e a requerida trabalhava com ele, participando ativamente na atividade comercial, além de serem casados entre si no regime de comunhão de adquiridos, pelo que a dívida é da responsabilidade de ambos, pois contraída pelo marido no exercício do comércio e em proveito comum do casal.
- O marido da requerida apresentou-se à Insolvência, e esta foi já declarada, estranhando-se a não apresentação conjunta, com o cônjuge, “a menos que pretendam de alguma forma que esta se eximisse das suas responsabilidades”, pois a dívida é da responsabilidade de ambos e, ao não se apresentar, a requerida viu acautelada a sua meação do património conjugal e eventualmente dos seus bens próprios, prejudicando os credores.
- Não são conhecidos rendimentos auferidos pela requerida ou qualquer atividade por si exclusivamente exercida, “pelo que o agregado familiar depende e subsiste à custa do rendimento do marido insolvente”.
- É notória a incapacidade da requerida para liquidar os débitos que a responsabilizam, e o seu património é insuficiente para fazer face ao passivo, e é manifesto o incumprimento generalizado das obrigações vencidas.
- Para efeitos do disposto no artigo 23, n.º 2 do CIRE, e porque não é possível à requerente obter dados concretos e atualizados, juntar documentos e prestar as informações pertinentes, como decorre do n.º 3 do mesmo preceito (o que requer), tal como também deve apresentar os elementos da sua contabilidade, bem como os documentos comprovativos da sua situação fiscal e perante a Segurança Social.
- O passivo da requerida tem-se avolumado, desde julho de 2011 e desde, pelo menos, a emissão da fatura não paga à requerente (31.01.2012) “os requeridos não têm cumprido com as suas obrigações perante a Requerente”. Assim, atento o incumprimento do dever de apresentação à insolvência, presume-se esta culposa. Além disso, em junho de 2012, a requerente e o marido tentaram proteger o património, ficcionando contratos de compra e venda com uma familiar, G…, tendo registado as alegadas aquisições, que, no entanto e entretanto, caducaram.

O requerente concretiza o pedido, acrescentando que, após declaração de insolvência da requerida, o processo deve ser apensado ao que corre termos pela insolvência do marido, “a fim de facilitar a liquidação do património dos devedores existente em comunhão (...) e ser aberto o incidente de qualificação da insolvência”.

Juntos os documentos de fls. 14 e ss., a requerida contestou (fls. 40 e ss). Em sede de questão prévia, alega que não é devedora do requerente de qualquer quantia, nem nunca foi interpelada; não foi condenada na sentença que condenou o seu marido, nem nessa ação foi invocada a comunicabilidade da dívida; o requerente já viu o seu crédito reconhecido e graduado na insolvência que corre termos no 3.º Juízo (3330/13.8TBPRD). Depois, exceciona a ilegitimidade da requerente, por esta não ser sua credora, defendendo que a ação nem sequer devia ter passado “da fieira do despacho liminar e ser aí liminarmente indeferida”, tanto mais que a requerente não cumpriu o que lhe era imposto pelo artigo 25 do CIRE (circunstâncias das quais é possível deduzir o incumprimento generalizado e a justificação da origem, natureza e montante do crédito).

No mais, a requerida entende que o requerimento de declaração de insolvência consubstancia “manifestamente um pedido infundado” e a requerente é responsável pelos danos causados. Com efeito, a requerente “tem perfeito conhecimento de que a requerida não é responsável pelas dívidas do seu marido” e recorreu a esta lide “com o intuito de pressionar a requerida a assumir a responsabilidade e onerar a sua meação no património comum”, sabendo também que a meação que responde pelas dívidas “já se encontra apreendida e salvaguardada”. A requerida invoca danos sofridos com este processo, conclui que a requerente agiu com dolo e também que litiga de má fé, ao deduzir pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar. E, no prosseguimento da sua contestação, diz que não se encontra em situação de insolvência, pois não é responsável pelas dívidas resultantes da atividade do marido e que a sua situação económica, correspondendo à diferença entre o passivo e o ativo traduz-se num saldo positivo de 49.152,33€. Acresce – refere – que, além de quinhoar nos créditos e débitos que relaciona, não tem qualquer dívida, seja “na mercearia ou tão pouco no talho onde faz as suas comprar semanais”. Em suma, acentua que “não existe cabimento na pretensão da requerente”. Diz, ainda, que aufere um salário mensal de 502,10€ e a quantia de 225,00€ de renda pela cessão da exploração de um estabelecimento comercial.

Acautelando a improcedência da sua oposição, a requerente requer que lhe seja concedido o benefício da exoneração do passivo restante e informa que requereu o benefício do apoio judiciário, comprometendo-se a comprovar em juízo a respetiva decisão ou a pagar a pertinente taxa de justiça, se indeferido o benefício. A requerida relaciona os “cinco” maiores credores, os três bancos identificados a fls. 52, in fine, e conclui nos termos que decorreram de tudo quanto alegou. Junta, também, os documentos de fls. 56 e ss.

No prosseguimento dos autos, foi proferida a sentença de fls. 116 e ss., que veio a declarar a insolvência da requerida.

1.2 – Do recurso
Inconformada, a requerida veio apelar. Pretende que seja revogada a sentença e “substituída por outra que, conhecendo da exceção dilatória insuprível da ilegitimidade da requerente, indefira o pedido de declaração de insolvência e absolva a requerida da instância, ou caso assim se não entenda, seja a requerida considerada solvente e, em consequência, absolvida do pedido” e formula, inicialmente, as conclusões de fls. 142/160, as quais, depois de despacho do Exmo. Desembargador de turno, vem a reduzir – ainda que escassamente – a fls. 173/180 e onde refere o que ora se sintetiza, omitindo-se as repetições manifestas:
1 - Os autos tiveram origem no pedido de declaração de insolvência formulado pela C…, Lda., que, para tanto alegou ser credora do marido da requerida, enquanto empresário em nome individual, da quantia de 9.768,85€, tendo sido condenado no seu pagamento por sentença proferida nos autos 66939/12.0YPRT. Alegou que o marido da requerente se apresentou à insolvência (3330/13.8TBPRD) e que são casados no regime de comunhão de adquiridos e, ainda, que a dívida foi contraída no exercício do comércio e no proveito comum do casal, razão pela qual é comunicável e da responsabilidade de ambos os cônjuges e acrescentando que a requerida se devia ter apresentado à insolvência conjuntamente com o marido, por igualmente se encontrar impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, não lhe sendo conhecidos rendimentos próprios.
2 – A requerida deduziu oposição, alegando não ser devedora da requerente, nem nunca ter sido interpelada para o pagamento de qualquer dívida, nem constar da sentença como ré, nem nesses autos, em momento algum, foi suscitada a comunicabilidade da dívida do seu marido.
3 – Por conseguinte, não sendo credora da requerida, a requerente não possuiu legitimidade ativa para requerer a declaração de insolvência.
4 – Assim, existe a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, que é de conhecimento oficioso e insuprível, e acarreta a absolvição da instância.
5 – Sem prescindir, refere ainda a requerida não lhe serem comunicáveis as dívidas que provocaram a apresentação à insolvência do seu marido, pois estas resultam do exercício da sua atividade enquanto empresário em nome individual, sendo que a recorrente possui rendimentos próprios e suficientes para o seu sustento.
6 – Por fim, refere que o seu ativo é superior ao passivo, sendo que os mútuos hipotecários de que é responsável só se venceram com a apresentação do seu marido à insolvência, e serão pagos com o produto da venda dos bens que os garantem.
7 – Pelo que não se encontra preenchido nenhum dos factos/índice previstos no artigo 20 do CIRE, consequentemente, não se encontra em situação de insolvência.
8 – Realizado o julgamento em 17.03.2014, foi proferida sentença de declaração de insolvência a 18.03.2014 (embora só notificada à recorrente a 28.03.2014).
9 – Da fundamentação da sentença, de que se discorda, consta que “a questão da ilegitimidade colocada pela requerida não configura, em abstrato, a falta de legitimidade processual, mas antes uma questão substantiva, que será resolvida a final. De facto, a questão de saber se a requerente é ou não credora relaciona-se com o mérito da causa (...) partes legítimas no processo de insolvência não são o credor e o devedor, mas sim quem alega ter sido constituída a seu favor uma obrigação e a pessoa que, segundo o requerente, se obrigou, legitimidade que, claramente, está assegurada nos autos”.
10 – Acresce que a requerida apenas se insurgiu contra a existência do crédito de que a requerente se arroga. Sem razão, porém. De facto, a dívida no montante de 9.768,85€, acrescida de juros à taxa comercial que em cada momento for devida, desde a data de citação do réu no processo n.º 66939/12.0YIPRT (...) foi por este contraída no exercício do comércio, sendo a requerida e marido casados no regime de comunhão de adquiridos”.
11 – Sendo que “tal basta para se presumir pela comunicabilidade da dívida, nos termos do disposto no artigo 1690.º, n.º 1, d) do Código Civil, devidamente conjugado com o artigo 15.º do Código Comercial”, pelo que “não foi pela requerida ilidida aquela presunção. Nem se diga que a comunicabilidade da dívida não pode agora ser invocada, pois que se o pode ser em processo executivo, nada obsta a que seja invocada em processo de insolvência que é, como se disse, um processo de execução universal”, pelo que “temos assim como assente o crédito da requerente sobre a requerida no montante de capital de 9.768,85€”.
12 – Após breve análise da situação de solvabilidade da requerida, conclui o tribunal que “revela impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações (al. b) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE)” e, em consequência, declara a “insolvência da requerida B…”.
13 – Da sentença consta (alínea c) dos factos provados que o “prédio urbano (...) inscrita na matriz sob o artigo 1679-…, com o valor patrimonial de 14.650€”. Contudo, da caderneta predial junta pela requerente (doc. 4) consta o valor patrimonial de 145.650,00€, pelo que tal diferença parece resultar de lapso manifesto, que corresponde a erro material, retificável nos termos dos artigos 249 do CC, 613, n.º 2 e 614 do CPC, pelo que se requer que se proceda à retificação da sentença, nos termos sobreditos, passando a constar da alínea c) dos factos provados o valor patrimonial de “145, 650€[4]”.
Impugnação da decisão da matéria de facto
14 – O artigo 1.º do CIRE refere que “o processo de insolvência é um processo de execução universal” sendo que, por sua vez, o artigo 17.º do CIRE prevê que “o processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código”. Por conseguinte, a análise da sentença em crise tem que ter por base as seguintes premissas: que as regras a aplicar ao processo de insolvência são as do processo executivo e que o título detido pela requerente é uma sentença que condena apenas o marido da requerida.
15 – Assim, prevê o n.º 1 do artigo 741 do CPC que “movida execução apenas contra um dos cônjuges, o exequente pode alegar fundamentadamente que a dívida, constante de título diverso de sentença, é comum” (anterior artigo 825, n.º 2 do antigo CPC) sendo que tem sido entendido a este respeito que, se o credor não invocar a comunicabilidade da dívida ao cônjuge na ação declarativa, já não pode vir invocá-la posteriormente na execução. Pelo que, “tratando-se de título judicial incumbe ao exequente, autor na ação declarativa, demandar o cônjuge do alegado devedor, quando se trate de dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges ou em que opere a comunicabilidade da dívida, a fim de contra o mesmo ter um título executivo. Não o fazendo, não pode demandá-lo na ação executiva, sob pena de ilegitimidade” (Joel Timóteo Ramos Pereira, in “Prontuário de Formulários e Trâmites”, vol. IV, Processo Executivo, 3.ª edição, Quid Juris).
16 – Assim, aplicando-se subsidiariamente as normas e princípios do processo executivo, e atento o exposto, no que concerne à impossibilidade de invocar em sede de execução (universal) a comunicabilidade ao cônjuge quando o título seja uma sentença, andou mal o tribunal ao pugnar pela legitimidade da requerente, dando por assente a existência do crédito em crise.
17 – O tribunal entendeu aplicar-se a jurisprudência relativa à legitimidade dos detentores de créditos litigiosos, mas, no caso, não estamos perante um crédito litigioso, tão pouco na acepção do artigo 579, n.º 3 do CC, atendendo a que a requerida não é devedora da requerente. Portanto, para que o fosse, a comunicabilidade teria de ter sido requerida na ação declarativa movida contra o seu marido, estando-lhe vedada a possibilidade de, em sede de processo de insolvência, execução universal, vir alegar que a dívida é comunicável e assim fundamentar a sua legitimidade.
18 – Desta forma, carece a requerente de legitimidade, tanto processual como substantiva, aferindo-se esta última de acordo com as regras da ação executiva (vide Ac. Da Relação do Porto de 13.03.2014, Proc. 219/13.4TBMGD.P1).
19 – Conclui-se, pois, que a requerida não consta do título (como devedora), pelo que tratando-se de um título judicial (sentença) estava impedida de mover ação executiva contra a recorrente, e bem assim, de requerer a sua declaração de insolvência. Na verdade, atenta a sua natureza executiva, o processo de insolvência não é o local adequado para decidir de uma questão cujo conhecimento do mérito não era possível por aplicação das regras do processo executivo (artigo 741, n.º 1 CPC ex vi artigo 17 CIRE), sendo que conferir legitimidade ao requerente em casos como o dos presentes autos seria permitir que este fizesse uma utilização abusiva do processo de insolvência (vide Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 3.12.2009, Proc. 3601/08.5TJCBR.C1).
20 – Assim sendo, a requerente não se encontra em posição creditícia capaz de ser compreendida e capaz de preencher o conceito do artigo 20 do CIRE, pelo que carece igualmente, por essa via, de legitimidade para a demanda e, por tudo o exposto, discorda-se do teor da sentença, supra transcrito.
21 – Pelo que, em face do teor dos referidos artigos 1.º e 17 do CIRE, 53, n.º 1 e 741, n.º 1 do CPC, e atendendo à exposição doutrinal e jurisprudencial realizada, dúvidas não restam que à requerente estava vedada a possibilidade de invocar, nesta sede, a comunicabilidade da dívida à requerida, pedido com o qual fundamenta a sua legitimidade (tanto processual como substantiva) para o pedido de declaração de insolvência. Por conseguinte, deveria o tribunal a quo ter decidido pela observância e procedência da invocada exceção dilatória da ilegitimidade ativa da requerente (artigo 577, al. e) CPC ex vi 17 CIRE) e, bem assim, pela absolvição da requerida da instância (artigo 576, n.º 2 CPC ex vi 17 CIRE).
18 – Consequentemente, deve a sentença ser revogada e substituída por outra que, conhecendo da exceção, indefira o pedido de declaração de insolvência e absolva a requerida da instância.
Da solvência da requerida
19 – Consta da sentença que “todos os imóveis registados a favor da requerida e marido estarem onerados com penhora ou hipotecas e ter sido apreendida a meação do marido da requerida no respetivo processo de insolvência”, sendo que “o valor da penhora e hipoteca sobre tais imóveis é substancialmente superior ao respetivo valor patrimonial”.
20 – No entanto, a meação da requerida do prédio rústico descrito na Conservatória de Registo Predial de Paredes sob o n.º 870 encontra-se livre de ónus e encargos (documento junto pela requerente com o n.º 4).
21 – Como referido, da sentença de que se recorre, consta que o valor patrimonial dos imóveis propriedade da requerida e do seu marido é inferior ao valor da penhora e hipotecas que sobre estes recaem. Contudo, o tribunal, ao formular este juízo, apenas considerou o valor patrimonial e o valor garantido pelas hipotecas, desconsiderando por completo o valor comercial dos imóveis e as quantias que efetivamente se encontram em dívida no âmbito dos empréstimos bancários e dos quais a recorrente fez prova através de certidão do relatório de avaliação de bens imóveis e da relação de créditos reconhecidos, extraída do processo de insolvência do seu marido.
22 – Pelo que, para efeitos de comparação entre o valor do ativo e o do passivo da requerida, os valores a ter em consideração devem ser os que se encontram nas alegações. Sendo que, em face desses valores (tanto o patrimonial como o comercial dos bens imóveis) conclui-se que andou mal o tribunal a quo na apreciação feita à situação de insolvência da requerida, porquanto o seu ativo é superior ao seu passivo.
23 – Acresce dizer que, não sendo a recorrente devedora da requerente do crédito que esta se arroga ter, andou mal o tribunal a quo ao avaliar e decidir da situação de insolvência da requerida, tendo como única “medida a capacidade que esta tem ou não para satisfazer o crédito da requerente.
24 – Consequentemente, caso o Tribunal não considere a verificação da exceção da ilegitimidade ativa da requerente, sempre deverá considerar a solvabilidade da requerida e, por conseguinte, a sua absolvição do pedido.
25 – Normas jurídicas violadas pelo julgador “a quo”: artigos 1.º, 17 e 20 do CIRE e artigos 53, n.º 1; 576, n.º 2; 577, al. e); 607, n.º 3 e 741, n.º 1 do CPC, todos ex vi artigo 17 do CIRE.

Não houve resposta ao recurso, o qual, após ter sido recebido e instruído foi remetido a esta Relação. Aqui, depois de convidada a recorrente a apresentar novas – e sintéticas – conclusões (que correspondem às supra transcritas) foi proferido novo despacho a solicitar à 1.ª instância a certidão da ata da audiência, a qual, uma vez remetida, se mostra junta a fls. 105 e ss. Novamente conclusos os autos (ainda em férias) e depois ao atual relator, considerou-se a natureza urgente dos autos e dispensaram-se os Vistos. Cumpre apreciar o mérito do recurso.

1.3 – Objeto do recurso
Como resulta claro das conclusões da apelante (e sem prejuízo de questões prévias como a retificação do invocado erro material e da alegada impugnação da matéria de facto) o objeto desta apelação consiste em saber se a decisão que declarou a insolvência da apelante deve ser revogada, seja porque (1.3.1) A requerente da insolvência não é parte legítima, quer processual, quer mesmo substantivamente, seja (1.3.2) porque a requerida/recorrente não se encontra numa situação de insolvabilidade.

2 – Fundamentação
2.1 – Fundamentação de facto
A sentença fundamentou a sua decisão no conjunto de factos (provados e não provados) que agora transcrevemos:
2.1.1 – Factos provados
1 – A requerente é uma sociedade comercial que se dedica ao fornecimento de bens e prestação de serviços de instalações elétricas, bombas submersíveis, alarmes, deteção de incêndio e portões automáticos.
2 – Por sentença já transitada, proferida no processo 66939/12.0YIPRT, que correu termos neste Juízo, junta a fls. 12/17 e cujo conteúdo se dá como reproduzido, foi D… condenado a pagar à requerente a quantia de 9.768,85€, acrescida de juros à taxa comercial que em cada momento for devida, desde a data de citação do réu até efetivo e integral pagamento.
3 – A requerida é casada com D… no regime de comunhão de adquiridos.
4 – O marido da requerida apresentou-se à insolvência no dia 22 de outubro de 2013, tendo dado origem ao processo 3330/13.8TBPRD, que corre termos no 3.º Juízo Cível do TJ de Paredes, tendo esta sido declarada.
5 – O marido da requerida era empresário em nome individual, tendo os materiais referidos na sentença aludida em 2 sido fornecidos para o exercício da sua atividade comercial.
6 – Estão registados a favor da requerida e marido os seguintes bens:
a - Prédio rústico com a área de 287m2, sito em …, …, Paredes, descrito na CRP de Paredes sob o n.º 870 e inscrito na matriz sob o art. 1010-…a, com o valor patrimonial de 20,70€, sobre o qual incide uma penhora para pagamento da quantia de 1.146,65€.
b – Prédio urbano destinado a comércio, sito no R/C Direito Traseiro da rua …, n.º .., …, Paredes, sob o n.º 1016-B, e inscrito na matriz sob o art. 1632-B-…, com o valor patrimonial de 55.631, 93€, sobre o qual incide uma hipoteca para garantia do montante máximo de 163.412,50€; e
c – Prédio urbano destinado a habitação unifamiliar do tipo T4, com logradouro, sito na rua …, n.º …, …, Paredes, descrito na CRP de Paredes sob o n.º 90, e inscrito na matriz sob o art. 1679-…, com o valor patrimonial de 14.650€[2], sobre o qual incide uma hipoteca para garantia do montante máximo de 163.412,50€.
7 – A meação do cônjuge da requerida encontra-se já apreendida no aludido processo de insolvência.
8 – A requerida aufere um salário mensal no valor de 502,10€.
2.1.2 – Factos não provados
1 – A requerida trabalhava juntamente com o marido e participava ativamente na atividade comercial, que era desenvolvida por ambos, designadamente, tratamento de encomendas, pagamentos e recebimentos.
2 – O passivo da requerida é constituído apenas por metade dos seguintes valores: a) Ao E…, SA – crédito à habitação de 80.500,00€ (garantido por hipoteca constituída sobre o imóvel identificado em c) do ponto 2.1.1/6.c); b) Ao E…, SA – crédito de financiamento de aquisição de imóvel de 40.800,00€ (garantido por hipoteca constituída sobre o prédio urbano identificado em 2.1.1/6.b); c) – Ao F…, SA, com um crédito de 30.850,30€.
3 – A requerida aufere mensalmente a quantia de 225,00€ de renda pela cessão de exploração de estabelecimento comercial de café, instalado no imóvel descrito na CRP de Paredes sob o n.º 1016-B.
4 – O prédio referido em 2.1.1/6.a tem o valor comercial de 19.000,00€.
5 – O prédio referido em 2.1.1/6.b tem o valor comercial de 52.000,00€.
6 – O prédio referido em 2.1.1/6.c tem o valor comercial de 206.000,00€.

2.2 – Aplicação do Direito
Em sede de questão prévia, e conhecendo do erro ou lapso material invocado pela apelante, resulta efetivamente dos autos, concretamente do certificado a fls. 24, que o imóvel sito no n.º … da rua …, e na sequência de avaliação fiscal, tem o valor patrimonial atual de “145.650,00€”. Por se tratar de manifesto lapso (omissão de um algarismo) e resultar documento, retifica-se a matéria de facto no ponto 6.c., e onde consta “14.650€” deve passar a ler-se “145.650,00€”.

Ainda como questão prévia que, em rigor, não passa de um esclarecimento, visando a melhor e completa definição do objeto do recurso: A recorrente, nas conclusões que transcrevemos, intitula diversas delas (concretamente os pontos XXIII/XXXVIII, fls. 176/179) como correspondendo a (citamos) “D – Impugnação da Decisão da matéria de facto”. Ora, lidas as mesmas, não vemos qualquer impugnação da matéria de facto e, ainda que por tal pudesse de algum modo ser interpretadas, o certo é que a recorrente não identifica os pontos de facto que pretende ver alterados ou os meios de prova que considera mal apreciados. É evidente, pelo que se refere e esclarece, que este recurso não abrange a matéria de facto.

Prosseguindo.

A sentença aqui em censura aborda com clareza bastante as duas questões relevantes e, agora em sede de reapreciação, se mantêm na discordância da requerida/apelante. Os fundamentos do decidido constam, aliás, e quase todos na transcrição que é feita em sede de conclusões do recurso.

No fundo, e em modo muito sintético, a sentença recorrida considera:
1 – A questão de saber se a requerente é ou não credora da requerida relaciona-se com o mérito da causa e não com a legitimidade “ad causam” e, neste último sentido, a requerente tem legitimidade.
2 – Mas também é credora (diríamos nós, numa perspetiva substantiva) porque está provada a dívida e a comunicabilidade, porquanto esta se presume e a presunção não foi ilidida pela ora apelante.
3 – A solvabilidade da requerida não ficou provada.

Cumpre apreciar.

O processo de insolvência – como decorre do artigo 1.º do CIRE (diploma de onde serão todos os preceitos citados sem outra referencia) – é um “processo de execução universal”, mas esta caracterização, bastamente usada, não deve esquecer que é mais, ou que é menos que isso, se com isso pretendermos dizer que corresponde necessariamente à execução de todos os bens do devedor insolvente. O processo de insolvência tem também um fim de recuperação, se estiver em causa uma empresa, e a própria liquidação integral do património insolvente pode não acontecer, seja porque desnecessário, seja porque inútil. Convém, por tudo (e desde logo com relevo para a aplicação subsidiária do processo civil executivo, que a apelante tanto realça) não esquecer a dimensão multifacetada do processo de insolvência, mesmo quando se tem presente que (assim o diz o preâmbulo do Decreto-Lei 53/2004) “o objetivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.

Qualquer pessoa, singular ou coletiva, pode ser objeto de um processo de insolvência e encontrar-se-á em “situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas” (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 3.º, n.º1).

Importa ter presente, ainda, que “No processo de insolvência (...) a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes” e que o “processo de insolvência regula-se pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições” do CIRE (artigos 12 e 17)[4].

1.3.1 – Da Legitimidade da requerente da insolvência: quem alega ser credor e quem efetivamente o é.
A dicotomia com que titulámos esta questão revela, assim o cremos, a diferença entre a legitimidade processual e a “legitimidade” substantiva.

Quanto à primeira, ultrapassada há muito a conceção de Alberto dos Reis, a legitimidade, na falta de indicação da lei em contrário, terá de aferir-se segundo a relação controvertida tal como é configurada pelo autor. No processo de insolvência não é diferente e, por isso, parte legítima, enquanto credor, é quem como tal se apresenta, isto é, quem, independentemente do mais, invoca um crédito perante o requerido. Se o não demonstra ou se vem a verificar-se que não estão preenchidos os requisitos para o decretamento da insolvência, aquele requerente não passa a ser parte ilegítima, apenas a sua pretensão falece.

Por isso, a decisão da 1.ª instância parece-nos clara e pertinente: “a questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido relaciona-se com o mérito da causa e não com a legitimidade “ad causam” para deduzir o pedido de insolvência”. O requerente, como qualquer autor, será parte legítima “sempre que a procedência da ação (previsivelmente) lhe venha a conferir (para si e não para outrem) uma vantagem ou utilidade” (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 68).
No sentido acabado de dizer, nada justifica a absolvição da requerida da instância e nada há a censurar à decisão recorrida.

No entanto, numa segunda perspectiva, ultrapassada a barreira processual propriamente dita, recoloca-se a questão da legitimidade, agora no seu sentido material, e a pergunta continua a ser “se a requerente é credora”? Dito de outro modo, se estiverem reunidos os demais requisitos para o decretamento da insolvência, se deve esta decretar-se justamente porque requerida por um credor.

A recorrente insurge-se contra a sentença, especialmente quando esta considera que a requerente é sua credora. Segue o raciocínio seguinte: o título executivo é uma sentença, na qual a requerente não foi condenada; à insolvência, enquanto processo de execução universal, aplicam-se as regras da execução; a requerente não pode executar a recorrente porque não invocou oportunamente a comunicabilidade da dívida; logo, não pode servir-se “abusivamente” do processo de insolvência para alcançar o fim que nem a na execução conseguiria.

O raciocínio da apelante, com todo o respeito, falece logo no seu primeiro pressuposto, ou seja, que a requerente tenha que invocar um título executivo para se dizer credora da apelante. Com efeito, uma coisa é a necessidade de um título para instaurar uma execução, outra é ser-se credor e poder requerer-se a falência do devedor. É que o credor, expressamente previsto no n.º 1 do artigo 20, não está condicionado à posse de um título contra o devedor, ele pode requerer a insolvência independentemente da natureza do seu crédito, da sua condicionalidade, litigiosidade[5] e até liquidez[6].

O que queremos dizer é que o credor, com vista a pedir a insolvência do devedor, pode alegar uma determinada dívida que, com essa simples alegação, não poderia executar, desde logo por insuficiência do título executivo. A insolvência não exige que o credor tenha título, ainda que lhe exija, ao contrário da execução, que alegue mais do que o seu crédito.

No caso presente, a requerente alegou que a dívida que o marido da recorrente contraiu, enquanto comerciante, também é uma dívida da requerida, também é da sua responsabilidade, justamente porque foi contraída no exercício do comércio e é de proveito comum do casal formado pelo contraente dela e pela apelante. A requerente, alegou que é credora da apelante porque o seu marido comerciante contraiu uma dívida que também é sua, não porque (nem isso podia alegar) a apelante conste ou deixe de constar no título executivo.

Mas a recorrente, ainda assim, contesta e defende que o credor que não pode executar abusa do direito de pedir a insolvência, quando justamente invoca uma dívida que, porque alegadamente incomunicável ao cônjuge, não se mostra titulada. Já vimos que são coisas diferentes e esse pretenso abuso não ocorre no caso presente. Com efeito (e entrando agora mais em concreto no mérito do pedido de declaração de insolvência) a requerida, perante o alegado pela requerente e provado (a natureza comercial da dívida, o exercício do comércio e a comunhão de adquiridos) não ilidiu a presunção de comercialidade. Em rigor, e se bem vemos, insistindo na questão processual traduzida na aplicação à insolvência do regime da execução, a requerida nem sequer alegou factos pertinentes ao afastamento daquela presunção, limitando-se a invocar a sua solvabilidade e, nessa sede, a existência de rendimentos próprios com que “faz face a todas as despesas inerentes à sua economia familiar e correntes” (artigo 69 da oposição).

Sucede que, depois dos esclarecimentos que, nesta matéria, foram introduzidos no Código Civil com o Decreto-Lei 496/77, de 25 de novembro, e como decorre da alínea d) do n.º 1 do artigo 1691 daquele diploma, “nos regimes que não o da separação de bens, o cônjuge não comerciante (ou do comerciante) está confrontado com uma dupla presunção, se quiser defender-se da sua responsabilidade (...). Em primeiro lugar, poderá ilidir a presunção de que a dívida comercial do cônjuge comerciante foi contraída no exercício do comércio (art. 15.º do C. Comercial). Feita a prova, excluída está a sua responsabilidade”, mas, “mesmo que não logre ilidir essa presunção, e se vier a apurar que a dívida foi contraída no exercício do comércio, poderá ainda ilidir a presunção implícita de que ela foi contraída em benefício do casal, provando que, pelo contrário, ela não foi contraída em proveito comum”. Dito de outro modo, “provado (ou presumido) que a obrigação assumida pelo cônjuge comerciante o foi no exercício do seu comércio, terá o interessado que demonstrar ou que não foi contraída em proveito comum do casal ou que o regime de bens dos cônjuges é o da separação”. Com efeito, “o credor não terá de provar que a dívida foi contraída no exercício do comércio, cabendo-lhe apenas provar que a dívida é comercial” (Cristina M. Araújo Dias, Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges – Problemas, Dúvidas e Sugestões, Coimbra Editora, 2009, págs. 433/435).

Pelo acabado de dizer, parece evidente – atentos os factos provados e os não provados ou sequer alegados – que a recorrente não afastou a presunção de comunicabilidade da dívida contraída pelo seu marido comerciante. Dito de outro modo, a recorrente é responsável pelo pagamento da mesma, ou seja, os seus bens, o seu património, respondem por esse mesmo crédito da requerente da insolvência.

Podemos concluir, por tudo, que, não estando em causa a legitimidade processual da requerente da insolvência, também não está em causa a sua posição de credor, nos termos consagrados no n.º 1 do artigo 20 do CITE e também que essa posição efetivamente resulta dos autos, ou seja, que, por efeito da comunicabilidade da dívida, a recorrente é responsável pelo pagamento daquele crédito do requerente.

Improcede, portanto, quanto a esta primeira questão, a apelação deduzida.

1.3.2 – A situação da requerida é de solvência, impeditiva do decretamento da insolvência?
Sem embargo do que se deixou dito a propósito dos poderes inquisitórios do tribunal, consagrados no artigo 12 (cf. Nota 5), “de qualquer modo, é sobre o devedor que recai o ónus de provar a sua solvência” (Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 4.ª edição, 2012, pág. 43), ou seja, se não ficar demonstrada uma situação de solvência, a insolvência deve ser decretada.

Nas suas conclusões, a apelante refere que, ao contrário do que considerou a 1.ª instância, a sua meação do prédio rústico descrito sob o n.º 870 encontra-se livre de ónus e encargos, e também que, igualmente em sentido diverso do que considerou o tribunal recorrido (pois só “considerou o valor patrimonial e o valor garantido pelas hipotecas, desconsiderando por completo o valor comercial dos imóveis e as quantias que efetivamente se encontram em dívida”), da comparação entre ativo e passivo, resulta que este é inferior àquele.

A propósito da comparação que a recorrente faz entre o seu ativo e o seu passivo, não podemos deixar de lembrar a fundamentação da decisão de facto, que transcrevemos numa das anteriores notas: a requerida não juntou qualquer documento no sentido de demonstrar não ser devedora da Fazenda Nacional ou nada dever à Segurança Social; desconhece-se se os valores comerciais dos imóveis (trazidos do processo de insolvência do marido da recorrente) foram ou não impugnados, e a requerida não demonstrou que a sua responsabilidade nos mútuos hipotecários seja apenas na proporção de metade.

Quanto a este último ponto, diga-se, desde já, que seria algo estranho que os bancos mutuantes houvessem desonerado a mutuária comum (a comproprietária) da sua responsabilidade integral pelo pagamento do mútuo, mas sempre se repete que era à oponente/requerida que cabia demonstrar a sua solvabilidade.

Sucede que, nas contas que apresenta no seu recurso (ponto 77 das alegações, para onde remete nas suas conclusões) a apelante considera o valor patrimonial dos imóveis pela totalidade (201.302,63€), o valor comercial – necessariamente – pelos mesmos moldes (230.200,00€) e também as dívidas globais (154.852,13€). Sucede que, nessa contas, a recorrente esquece duas realidades: a) na falência do seu marido, os créditos reclamados ascendem a mais de quatrocentos mil euros, e é bem de ver que, em relação a muitos deles, ou mesmo à generalidade, terão de valer as considerações que aqui foram feitas sobre a comunicabilidade da dívida ao cônjuge do comerciante; b) mesmo os mútuos que a requerente relaciona são também devidos por si na totalidade (154.852,13€), mas a sua meação só valeria metade (100.652,00€ ou 115.100,00€). Dizemos valeria pois é manifesto e do senso comum que nunca uma meação vale metade da totalidade do imóvel.

Dito de outro modo, a partir da apresentação à falência do seu marido e vencidos os créditos (artigo 91) que a ambos responsabilizam, a requerente poderá ter de responder por, pelo menos, 165.000 Euros (considerando a dívida aqui em causa) e a sua meação é indubitavelmente inferior a 115.000 Euros (não considerando eventuais outros créditos comunicáveis reconhecidos na insolvência do marido). No fundo, quando se apresenta à insolvência um dos mutuários (como sucedeu com o marido da recorrente, mas igualmente sucederia com um outro comproprietário) os bens onerados em consequência do mútuo baixam de valor, relativamente a quem não se apresentou, para menos de metade, e a dívida mantém-se.

Na sentença refere-se que o vencimento da requerida (502,10€ mensais) e o facto de ter registados a seu favor três imóveis não significa, de per si, que a mesma se encontre numa situação de solvabilidade.

Pelas razões que fomos dizendo, acompanhamos essa conclusão. Efetivamente, atendendo à depreciação resultante da separação de meações, à responsabilidade (que se não provou não ser integral) pelo pagamento dos mútuos hipotecários, ao crédito do requerente e à não prova sobre a existência de outras dívidas (desde logo, porque de fácil demonstração, dívidas fiscais ou à Segurança Social) concluímos não ter ficado demonstrada a solvabilidade da recorrente.

Por ser assim, também neste ponto improcede a apelação, a qual se apresenta, por isso, totalmente improcedente.

As custas do recurso - tendo a insolvência sido decretada e esse decretamento aqui mantido – são encargo da massa insolvente, atenta o disposto no artigo 304, irrelevando a pretensão do benefício do apoio judiciário, formulada pela apelante e – que se conheça – ainda não deferida.

3 – Decisão:
Por tudo quanto ficou dito, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a presente apelação e, em conformidade, confirma-se a decisão do tribunal da 1.ª instância, que decretou a insolvência da apelante B….

Custas pela massa insolvente.

Porto, 6.10.2014
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Carlos Querido.
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[1] Parece que aquele valor patrimonial estava propenso aos lapsos materiais: a requerente quer, obviamente, dizer (como, aliás, tinha dito antes) “145.650,00€”.
[2] Retificado – conforme decisão infra – para “145.650,00€”.
[3] Ainda que, como veremos mais adiante, a apelante não impugne a matéria de facto dada como provada (naturalmente, sem prejuízo da invocação do erro material que faz), parece-nos pertinente transcrever algumas passagens da fundamentação da sentença, no que respeita aos factos provados e não provados, porquanto, ao menos indiretamente, a mesma prende-se com as questões suscitadas no recurso. Nessa fundamentação refere-se, nomeadamente: “(...) as testemunhas H… e I…, ambos donos de obras, que contrataram o marido da requerida para ali fazer trabalhos de construção civil, referiram que a requerida exercia a atividade conjuntamente com o marido, mas reportando-se, respetivamente, ao ano de 2004 e 2003, sendo que no período que releva para os autos, desconheciam em absoluto com quem era exercida a atividade do marido da requerida. Quanto ao facto de o passivo da requerida ser apenas o por ela alegado, não foi junta qualquer prova documental (a qual se revela manifestamente simples de ser junta) que atestasse que junto dos bancos a dívida da requerida corresponde a metade do valor por ela alegado, bem como, que ateste a ausência de dívidas junto da fazenda Nacional ou da Segurança Social. Apenas as testemunhas J… e K…, sobrinho e filha da requerida, colocaram a requerida como estando muito bem de vida, não sendo o seu depoimento minimamente credível. De facto, revelaram falta de espontaneidade e isenção (...). Foram ainda claras as contradições no depoimento da filha, que reiterando a boa condição económica da mãe, lá foi dizendo que a certa altura pensaram vender a casa de morada de família a uma irmã da requerida, em face da crise que a família atravessava. Quanto ao rendimento emergente da cessão e de exploração, o contrato junto teve o seu terminus em 31.01.2013, pelo que, não tendo sido junto recibo de recebimento da quantia invocada, demonstrativa da prorrogação do prazo, a simples junção daquele documento não comprova o recebimento invocado. Finalmente, no que ao valor comercial dos bens registados a favor da requerida concerne, desconhece o tribunal se as avaliações constantes da certidão extraída do processo de insolvência do marido da requerida foram alvo de impugnação”.
[4] O primeiro preceito, se bem vemos, dilui o rigor da oneração probatória e impõe um poder/dever de averiguação oficiosa, quando necessária à prossecução do interesse público pressuposto neste processo especial, naturalmente sem que daí possa resultar uma limitação desnecessária do direito de defesa. A aplicação do CPC, por seu turno, acontecerá sempre que o “CIRE seja omisso em relação a determinada questão” e desde que essa questão “tenha de ser resolvida através de uma regra jurídica. Não é evidentemente necessário recorrer ao Código de Processo Civil quando a omissão de determinada matéria no CIRE seja propositada, com vista a simplificar o procedimento” (Ana Prata/Jorge Morais Carvalho/Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, págs. 38 e 52).
[5] Refere a recorrente, nas suas conclusões, que o seu crédito não é litigioso, porque “não existe”. Na perspectiva da requerida, no seu entendimento da questão, nem sequer há litígio quanto ao crédito, mas porque o litígio, se bem percebemos, se resolve logo a seu favor, o que, com todo o respeito, está longe de ser argumento bastante.
[6] Cf. Ana Prata/Jorge Morais Carvalho/Rui Simões, Código da Insolvência... cit., págs. 81/85, onde referem doutrina e jurisprudência (ainda que esta não seja unânime) no sentido apontado.