Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3577/19.3T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: CASSAÇÃO DA CARTA DE CONDUÇÃO
PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
Nº do Documento: RP202105123577/19.3T8VFR.P1
Data do Acordão: 05/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O legislador no referido sistema de pontos procurou um regime adequado ao princípio da proporcionalidade e adequação à gravidade da infracção, sendo a subtracção de pontos efectuada em termos proporcionais à gravidade da infracção cometida, pelo que, tal não ofende o princípio da igualdade. O recorrente apresenta situações em que uma das infracções é uma contra-ordenação e quer compara-las com a situação dos autos em que estamos perante duas condenações de natureza criminal, pelo que, tratando-se de situações diversas e de gravidade diversa, não são comparáveis, nem a divergência de consequências viola o referido princípio da igualdade.
II - O direito de conduzir viaturas automóveis em vias públicas não é um direito inato e absoluto, e por isso, carece de regulamentação e só pode ser exercido por quem se encontra habilitado para o efeito. Trata-se de uma actividade que pode tornar-se perigosa para a segurança dos restantes utentes das estradas e por esse motivo, tem de ser sujeita a um, permanente e justificado, controlo das condições da sua manutenção.
III - A conservação do título de condução fica, pois, sujeita à adopção de um correcto comportamento rodoviário. A ANSR é a entidade competente para a emissão das licenças que habilitam ao exercício da condução e também para a fiscalização de que as condições para esse exercício se mantêm inalteradas.
IV -Verificando-se a perda de pontos o Presidente da ANSR actua sem qualquer discricionariedade na emissão da declaração de cassação, uma vez que tal perda operada em consequência das condenações sofridas, sinaliza o condutor em causa como detentor de um grau de perigosidade tal que o impede de continuar a exercer o direito a conduzir. Não se trata de perder um direito adquirido, porque tal direito nunca foi absoluto e incondicional, estando sujeito a condições e a controlo perpétuo.
Assim, não se verifica a violação do citado art. 30 nº4 da CRP.
V - Relativamente à violação do princípio do ne bis in idem também não se verifica com a declaração de cassação do título de condução. O que determina a cassação é a consequência da perda de pontos que emerge automaticamente das condenações sofridas pelo infractor e essa declaração não é, em si mesma, uma outra condenação. Não se trata de uma nova condenação pelos mesmos factos, mas do efeito do preenchimento de condições negativas, que assinalam o condutor em causa como perigoso para o exercício da condução. Não ocorre, pelo exposto, a violação do art.29 nº5 da CRP, nem se vislumbra que o sistema instituído no art. 148 do CE viole qualquer preceito ou princípio com consagração constitucional.
VI - A perda de pontos não é uma coima, nem uma sanção acessória, mas apenas um sinal decorrente da condenação sofrida de que o condutor se revela perigoso no exercício da condução, e por isso, não lhe é aplicável o citado art. 189 do CE, não tendo ocorrido qualquer prescrição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3577/19.3T8AVR.P1

1. Relatório
Na sequência de impugnação judicial da decisão proferida pelo Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, que determinara a cassação da carta de condução de B…, para o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2, foi em 11/01/2021 depositada sentença com o seguinte dispositivo:
«decido:
Julgar improcedente o presente recurso e, consequentemente, manter integralmente a decisão da autoridade administrativa que determinou a cassação da carta de condução n.º AV-…… do recorrente B….
Condenar o recorrente nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em duas unidades de conta – artigo 93.º, n.º 3 do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.»
Inconformado com tal decisão veio B…, interpor o presente recurso, alegando, em síntese, nas suas conclusões:
A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária determinou a cassação do título de condução n.º AV-……, pertence ao recorrente, por se encontrarem preenchidos os pressupostos do artigo 148 n.ºs 2 e 10 do Código da Estrada (CE).
O recorrente impugnou judicialmente a decisão administrativa.
O Tribunal a quo decidiu julgar o recurso contraordenacional apresentado por B… improcedente, mantendo a decisão da autoridade administrativa que determinou a cassação da carta de condução n.º AV-…….
Invoca nulidade da decisão administrativa por violação do direito de defesa – art. 50 do RGCO e 32 nº10 da CRP, já que apenas se remete para uma notificação enviada ao recorrente, que este nunca chegou a receber.
Invoca nulidade da decisão recorrida, já que da mesma não se vislumbra a enunciação de quaisquer factos dados como não provados.
Invoca inconstitucionalidade da norma contida no artigo 148 nº2 do C.E., porquanto, violadora do princípio ne bis in idem, com assento no artigo 29, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, matéria sobre a qual, em termos de apreciação crítica, a sentença recorrida é completamente omissa.
A sentença ora em crise resumiu as várias questões de direito suscitadas pelo recorrente à questão de saber qual a natureza da cassação da carta de condução prevista no artigo 148 do C.E., não fazendo, em nossa humilde opinião, uma consistente análise crítica às questões suscitadas na defesa, limitando-se apenas a reproduzir alguns Acórdãos.
Invoca os vícios de omissão de pronúncia, insuficiência da fundamentação, não enumeração dos factos não provados, falta de exame crítico das provas e como tal, em violação do disposto no artigo 374, n.º 2 e n.º 3 alínea b) do C.P.P., o que determina a sua total nulidade, nos termos do art. 379 n.º 1, alínea a) do mesmo diploma legal.
Invoca prescrição da sanção acessória de substração de seis pontos da carta de condução do Arguido no âmbito do processo-crime n.º 389/17.2GCVFR, no qual foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e cuja sentença que transitou em julgado no dia 18-12-2017, porquanto, sobre a referida data já decorreram dois anos, tendo, na perspectiva do recorrente prescrito em 18-12-2019 (cfr. artigo 189 do C.E.).
Suscita natureza jurídica da cassação do título de condução em consequência da subtração da totalidade dos pontos daquele título, designadamente, saber se se trata apenas de efeitos ou consequências da aplicação de uma sanção/pena, ou de uma verdadeira sanção acessória.
Suscita a questão de saber se a condenação em pena acessória de proibição de conduzir e a substração de pontos do titulo de condução, em circunstâncias, como as dos autos, constituirá violação ao princípio ne bis in idem, com assento no artigo 29 n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que: “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, e determina a inconstitucionalidade do artigo 148 n.º 2 do C.E.
Suscita também a questão de saber se da conjugação do disposto no artigo 148 n.º4 do C.E. com os artigos 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2016 de 30 de Maio, pretendeu o legislador excluir a situação dos autos das possibilidades previstas nas alíneas a) e b) do n.º 4 do referido artigo 148 do C.E., e que poderão constituir, nesse caso, violação do princípio de igualdade previsto no artigo 13 da CRP; ou, não tendo o legislador previsto tal situação, deverá ser tal conjugação normativa integrada analogicamente segundo as razões justificativas da sua regulamentação nos demais casos previstos.
Salienta o recorrente que a natureza jurídica do sistema de perda de pontos do título de condução, correspondente à diminuição do número de pontos ao condutor de forma automática e o averbamento no seu registo de condutor, enquanto atos administrativos, os quais, não se confundem, em nossa humilde opinião, com a consequência que a perda da totalidade dos pontos acarreta para o condutor, ou seja, a cassação do título de condução, constitui uma verdadeira sanção.
Entende o recorrente que a cassação do título de condução, na sequência da perda de todos os pontos, constitui uma verdadeira sanção acessória, por acarretar a perda de direitos a que alude o n.º 4 do artigo 30 da CRP.
Na verdade a referida cassação do título de condução acarreta imediatamente a inibição do arguido conduzir durante, pelo menos 2 anos, ao que acresce o período durante o qual terá de obter novo título de condução.
É subtraído o direito de conduzir que acresce, automaticamente, às sanções de inibição de conduzir em que foi condenado no âmbito dos processos-crime, e cujas penas e sanções acessórias foram extintas pelo cumprimento.
Conclui o recorrente que a cassação do titulo de condução na sequência da perda ou subtração de todos os pontos do condutor, estabelecida no artigo 148 n.º 3, alínea c) do Código da Estrada, por determinar a inibição de conduzir pelo prazo de 2 anos, a acrescer aos períodos de inibição de conduzir já cumpridos no âmbito dos dois processos de condenação pelo crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, constitui sanção acessória e viola o disposto nos artigos 29, n.º 5 e 30 n.º 4 da CRP.
Invoca a inconstitucionalidade material do artigo 148 n.º 4, alínea c) e n.º 10 do C.E., determinante da revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo.
A definição da natureza jurídica da cassação do título de condução na sequência da perda ou subtração de todos os pontos do condutor, está intrinsecamente relacionada com o instituto da prescrição, previsto no artigo 189 do C.E.
Caso se entenda que a subtração ou perda de pontos não é uma sanção acessória para efeitos de prescrição, então estamos perante um sistema que limita os direitos dos condutores de modo perpétuo, eterno e vitalício, o que viola o princípio da limitação das penas e medidas de segurança previsto no artigo 30 n.º1 da CRP.
Deste modo, não está a autoridade nacional de segurança rodoviária sujeita a qualquer prazo para decidir instaurar o processo autónomo para cassação do título de condução.
O que se afigura totalmente inadmissível num estado de direito democrático, porque cria ou potencia situações de desigualdade que não se coadunam com os princípios de igualdade e legalidade constitucionalmente consagradas.
A entender-se que não existe um prazo de prescrição quanto à ordenação da cassação do titulo de condução em consequência da perda ou subtração de todos os pontos do titulo de condução, nunca poderá um condutor, ter a segurança jurídica, de que cumprindo as condenações de que foi alvo, ainda que, as mesmas tenham transitado em julgado e sido declaradas extintas, não possa vir a ser novamente sancionado, independentemente de qualquer prazo, e inibido, novamente, e duplamente, de conduzir, durante, pelo menos, 2 anos.
A interpretação de que ao sistema de pontos em função de condenações não se aplica o regime da prescrição, por não corresponder tal sistema a uma coima ou sanção acessória, é violadora do princípio da limitação das penas e medidas de segurança previsto no artigo 30 n.º 1 da CRP, e bem assim, por potenciar e criar situações de desigualdade, viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13 da CRP.
E por não ter previsto o legislador, a possibilidade de perante uma primeira condenação por crime de condução sob influência do álcool, em que são subtraídos ao condutor 6 pontos do seu título, este ter a possibilidade, como noutras situações previstas, de adquirir pontos mediante a frequência de ações de formação de condução ou da submissão a prova teórica de exame de condução, está criada uma situação de desigualdade.
Relativamente ao disposto no n.º 4 do citado artigo 148 do C.E. o Tribunal a quo entendeu que, tal notificação apenas teria lugar após o trânsito em julgado a decisão condenatória, altura em que, o mesmo tinha já praticado o segundo crime, pelo que, deixaria de ter pertinência a realização de qualquer ação de formação.
Porém, entende o recorrente que só a condenação pela prática do segundo crime é que determinaria tal raciocínio e nunca apenas e tão só a sua prática, sob pena de violação dos direitos de defesa do arguido.
Entre o trânsito da primeira condenação e o da segunda, decorreram cerca de trinta dias e a notificação prevista no citado n.º 4 do artigo 148 do C.E. deverá ser efetuada até 5 dias úteis após o trânsito em julgado, in casu, entende o recorrente, da primeira condenação (cfr. artigo 9.º n.º 2 do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2016, de 30 de Maio).
Pelo que, tendo a primeira condenação transitado em julgado no dia 18-12-2017, a notificação a que se refere o n.º 4 do artigo 148 do C.E. deveria ter ocorrido até ao dia 23-12-2018, o que não sucedeu.
Um condutor que após a prática de duas contraordenações graves de condução sob a influência do álcool, e uma outra também grave de trânsito de veículos em sentido oposto ao estabelecido, fica com cinco pontos na sua carta de condução, e tem a possibilidade de frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, para recuperar pontos no seu título, sendo para tal notificado pela ANSR, nos termos do disposto no artigo 9.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2016, de 30 de maio.
E o recorrente, que apenas prevaricou uma única vez, tendo sido condenado no âmbito do processo n.º 389/17.2GCVFR pela prática de um crime de condução sob a influência do álcool numa pena acessória de inibição de conduzir, perdeu 6 pontos do seu título de condução, não tem a possibilidade de recuperar quaisquer pontos e muito menos de beneficiar de notificação para o efeito.
E, porque, sofreu uma segunda condenação criminal, onde foi sancionado com inibição de conduzir, perdeu todos os seus pontos, mas, já assim, não seria se tivesse apenas cometido uma contraordenação muito grave de condução sob o efeito do álcool, caso em que ficaria com 1 ponto e poderia beneficiar do regime estabelecido do referido Decreto Regulamentar.
O legislador criou uma situação de desigualdade injustificada entre os cidadãos e destinatários da norma, pois não existe qualquer ciência ou princípio que fundamente a distinção entre um condutor com 6 pontos no seu título, de outro com 5 pontos para que este tenha acesso obrigatoriamente, à ação de formação, e o outro não.
O facto de após a perda dos primeiros 6 pontos do seu titulo de condução, o recorrente não ter tido a possibilidade de obter recuperação de pontos, sendo para tal notificado pela ANSR, através da frequência de uma ação de formação de segurança rodoviária, constitui violação do principio da igualdade consagrado no artigo 13 n.º1 e 2 da C.R.P., por ficar sobeja e injustificadamente prejudicado num direito que a outros, em situações similares, é concedido.
Além de que, a previsão acolhida no artigo 148 n. º 4, alínea b) do C.E. é suscetível de integração da situação do aqui recorrente após a perda de pontos decorrente da inibição de conduzir em que foi condenado no âmbito do processo 411/17.2GCVFR, pois que, ter três ou menos pontos é enquadrável na hipótese de ter zero.
Daí que, é defensável, a aplicação ao recorrente do benefício do regime previsto do Decreto Regulamentar, em que, após o conhecimento da segunda condenação, uma vez que se verificam os pressupostos da alínea b) do n.º 4 do artigo 148 do C.E., podia o arguido ser notificado para, no prazo de 5 dias úteis após o trânsito em julgado da sentença, ocorrido em 12-01-2018, realizar a prova teórica do exame de condução, tendo em conta que ficou, alegadamente, com menos de 3 pontos.
E, só no acaso de o mesmo faltar àquela prova ou reprovar na mesma, é que se verificariam os pressupostos da cassação do título de condução do recorrente.
Conclui requerendo que na procedência do presente recurso sejam declaradas as invocadas nulidades, prescrição e inconstitucionalidades, com as consequências legais.
O recurso foi admitido por despacho proferido nos autos em 2/02/2021.
O MP em primeira instância respondeu ao recurso alegando que ao contrário do invocado pelo recorrente, todas e cada uma das motivações do seu recurso foram referidas e rebatidas na sentença ora posta em crise.
Entende que não assiste qualquer razão ao recorrente e pugna pela manutenção do decidido.
Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto emitiu parecer de concordância com a resposta do MP em primeira instância salientando o sentido do Acórdão do TRG 02.03.2008, in www.dgsi.pt, no sentido de que o legislador pretendeu, face aos dramáticos resultados das infracções estradais, endurecer ou tornar mais exigente o regime de sancionamento aplicável.
Pronuncia-se no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no art.417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta ao recurso.
2. Fundamentação
A – Circunstâncias com interesse para a decisão
Pelo seu interesse para a decisão a proferir passamos de seguida a transcrever a sentença recorrida:
«RELATÓRIO

No âmbito do processo de cassação n.º …/2019, da competência do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, foi determinada a cassação da carta de condução do recorrente B…, portador do cartão de cidadão n.º …….., divorciado, residente na …, .., …, Santa Maria da Feira.
Inconformado com tal decisão, o recorrente impugnou judicialmente a decisão proferida pela entidade administrativa, ao abrigo do artigo 59.º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27/10 (Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas), apresentando as conclusões constantes de folhas 39 a 45, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, em suma, requerendo a declaração da nulidade da notificação para apresentação de defesa e, consequentemente, a revogação da decisão proferida pela autoridade administrativa; a revogação de tal decisão por inconstitucionalidade das normas que a suportam, mormente o artigo 148.º, n.º 2, do Código da Estrada; ou, por preterição das formalidades essenciais previstas no artigo 148.º, n.º 4, alínea c); ou, em alternativa, a substituição da cassação por uma admoestação ou, em última instância, que seja ordenada a notificação do arguido para frequentar acção de formação de segurança rodoviária para recuperação dos pontos.
O Ministério Público e o recorrente declararam não se opor a que o presente recurso fosse decidido por mero despacho (cfr. folhas 3 e 59).
***
*
Questão prévia
Da falta da notificação a que alude o artigo 50.º do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas:
O recorrente veio invocar a ausência da sua notificação para exercer o seu direito de defesa, não obstante confirmar que a mesma consta dos autos (cfr. conclusão n.º 1 do requerimento de interposição de recurso).
O artigo 50.º do R.G.C.O.C. (aprovado pelo Decreto-lei nº 433/82, de 27 de Outubro) consagra o direito de audição e defesa do arguido, na fase administrativa do processo de contra-ordenação, determinando que não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre (“não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”), direito mutatis mutandis aplicável no processo administrativo de cassação, sem embargo (como infra melhor expenderemos), este processo não tenha por objecto a aplicação de qualquer sanção.
No que respeita ao modo como deverão ser efectuadas as notificações no âmbito de processo contra-ordenacional de natureza estradal, dispõe o artigo 176.º do Código da Estrada:
Artigo 176.º Notificações
1 - As notificações efectuam-se:
a) Por contacto pessoal com o notificando no lugar em que for encontrado;
b) Mediante carta registada com aviso de recepção expedida para o domicílio ou sede do notificando;
c) Mediante carta simples expedida para o domicílio ou sede do notificando.
2 - A notificação por contacto pessoal deve ser efectuada, sempre que possível, no acto de autuação, podendo ainda ser utilizada quando o notificando for encontrado pela entidade competente.
3 - Se não for possível, no acto de autuação, proceder nos termos do número anterior ou se estiver em causa qualquer outro acto, a notificação pode ser efectuada através de carta registada com aviso de recepção, expedida para o domicílio ou sede do notificando.
4 - Se, por qualquer motivo, a carta prevista no número anterior for devolvida à entidade remetente, a notificação é reenviada ao notificando, para o seu domicílio ou sede, através de carta simples.
5 - Nas infracções relativas ao exercício da condução ou às disposições que condicionem a admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, considera-se domicílio do notificando, para efeitos do disposto nos n.os 3 e 4:
a) O que consta do registo dos títulos de condução organizado pelas entidades competentes para a sua emissão, nos termos do presente diploma;
b) O do titular do documento de identificação do veículo, nos casos previstos na alínea b) do n.º 3 do artigo 135.º e nos n.os 2 e 5 do artigo 171.º
6 - Para as restantes infracções e para os mesmos efeitos, considera-se domicílio do notificando:
a) O que conste no registo organizado pela entidade competente para concessão de autorização, alvará, licença de actividade ou credencial; ou
b) O correspondente ao seu local de trabalho.
7 - A notificação por carta registada considera-se efectuada na data em que for assinado o aviso de recepção ou no terceiro dia útil após essa data, quando o aviso for assinado por pessoa diversa do arguido.
8 - Na notificação por carta simples, o funcionário da entidade competente lavra uma cota no processo com a indicação da data da expedição da carta e do domicílio para o qual foi enviada, considerando-se a notificação efectuada no quinto dia posterior à data indicada, cominação esta que deve constar do acto de notificação.
9 - Quando a infracção for da responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo, a notificação, no acto de autuação, pode fazer-se na pessoa do condutor.
10 - Sempre que o notificando se recusar a receber ou a assinar a notificação, o agente certifica a recusa, considerando-se efectuada a notificação. (sublinhado nosso).

Visto o legal enquadramento, no caso concreto, compulsados os autos, mormente a notificação constante de folhas 16 a 17 e o aviso de recepção de folhas 18, dúvidas não se suscitam quanto à regular notificação do recorrente, nos termos dos precitos legais aplicáveis, tendo-lhe sido fornecidos todos os elementos para que ficasse a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão.
Na verdade, por carta registada, com aviso de recepção, recebida por terceira pessoa, no domicílio do recorrente, no dia 15 de Abril de 2019 (note-se que o mesmo não comunicou qualquer alteração do seu domicílio e essa morada é a que consta também da sua notificação da decisão proferida a final pela autoridade administrativa, por contacto pessoal, através de o.p.c., em 4 de Agosto de 2019 – cfr. folhas 31 verso), foi lograda a sua notificação postal nos termos e para os efeitos dos citados incisos legais, comunicando-se-lhe todos os referidos elementos.
Tal notificação está junta aos autos e o recorrente não a impugnou.
Assim sendo, não se percebe sequer que omissão pretende o recorrente invocar, sendo totalmente falsa a pretensa preterição desta formalidade essencial, sendo certo que a existir desconhecimento do teor de tal notificação apenas ao recorrente é imputável ou a quem não entregou aquela correspondência ao recorrente (o que o mesmo nem sequer alega, nem tão pouco junta prova de tal pretensa falta de entrega).
Pelo exposto, improcede a arguição desta nulidade.
Fundamentação
Matéria de facto provada (com relevância para a decisão a proferir):
a). Por sentença proferida no dia 16 de Novembro de 2017, transitada em julgado no dia 18 de Dezembro de 2017, no âmbito do processo sumário n.º 389/17.2GCVFR, deste Juízo local criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 1, foi o recorrente condenado, entre o mais, na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de sete meses, pela prática, no dia 1 de Novembro de 2017, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
b). Por sentença proferida no dia 30 de Novembro de 2017, transitada em julgado no dia 12 Janeiro de 2018, no âmbito do processo sumário n.º 411/17.2GCVFR, deste Juízo local criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 1, foi o recorrente condenado, entre o mais, na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de oito meses, pela prática, no dia 19 de Novembro de 2017, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
Motivação:
Tais factos ficaram demonstrados pelo teor do registo individual do condutor, junto de folhas 4 a 5, e das cópias e comunicações extraídas dos processos n.º 389/17.2GCVFR e n.º 411/17.2GCVFR.
Resta dizer que se teve como absolutamente irrelevante para a decisão a proferir a matéria de facto vertida nas conclusões 34.ª a 43.ª do requerimento de impugnação, pelas razões que infra melhor se expenderão e, de resto, em consonância com o convite que se endereçou ao recorrente para que a decisão fosse decidida por mero despacho.
Do direito aplicável
Muito embora sejam várias as questões suscitadas pelo recorrente, a nosso ver, em bom rigor, elas reconduzem-se à questão de saber qual a natureza da cassação da carta de condução prevista no artigo 148.º do Código da Estrada.
E nesta matéria, é já maioritário o entendimento jurisprudencial de que tal cassação não tem qualquer natureza sancionatória mas decorre tão somente do controlo administrativo legalmente atribuído à ANSR das condições e requisitos que os condutores têm de reunir para o exercício da actividade de conduzir.
Por uma questão de facilidade de exposição e até de honestidade intelectual, principiaremos por reproduzir as considerações doutamente expendidas no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Maio de 2018 (consultado no sítio da DGSI), no qual se funda e a partir do qual se desenvolve a recente jurisprudência na matéria.
«(…) Sob a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, diz o art.º 148º, nº 1, do Código da Estrada que “A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.”
Ou seja, resulta claramente das normas citadas que é a prática de contraordenações graves ou muito graves que determina a perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução, a que alude o nº 4, al. c), do mesmo artigo. Por isso só também com o caráter definitivo da decisão condenatória ou o trânsito em julgado da sentença é que esse efeito de perda de pontos ocorre. Sendo bom de ver, portanto, que o efeito de perda de pontos, decorre diretamente da verificação, num plano jurídico-substantivo, de uma determinada contraordenação, isto é, da prática de um facto ilícito típico, censurável no qual se comine uma coima – art.º 1º do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo DL nº 433/82, de 27/10 – independentemente da coima concretamente aplicada ou do grau de culpa do respetivo condutor concretamente apurado.
Em perfeita harmonia com os preceitos citados, diz o nº 2 do mesmo artigo que a condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
Ou seja, mais uma vez, agora de uma forma implícita, a perda de pontos é consequência da prática de uma infração, com reflexos na condução estradal, agora de natureza penal. Daí também a perda de pontos ser maior do que relativamente às contraordenações graves e muito graves. Circunstância que na projeção futura que os efeitos de tais condenações possam vir a ter, numa eventual cassação da carta de condução, evidencia o respeito que na atribuição de perda de pontos se teve pelo princípio da proporcionalidade, e nomeadamente na relação que resulta estabelecida entre a quantidade e qualidade das infrações cometidas, enquanto fundamento possível daquela cassação. (…)
Ora, o sistema de pontos traduz apenas uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar em termos de perigosidade os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa habilitante ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular, reavaliação essa que poderá culminar com a aplicação de uma medida de segurança, mais precisamente com a decisão de cassação da respetiva carta de condução. Decisão esta que tem caráter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas e do decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, nomeadamente e também para efeitos de recuperação ou não de pontos, nos temos do disposto no art.º 121º-A e 148º, nºs 5 e 7, do CE. Visando assim tal sistema apenas registar e evidenciar, através de um registo central, com um sentido claramente pedagógico, de satisfação de necessidades de prevenção, fundamentalmente de ressocialização, os efeitos penais ou contraordenacionais das infrações cometidas, segundo a respetiva gravidade, tendo fundamentalmente em conta, não as sanções aplicadas, mas as próprias infrações, como vimos supra. Sendo que o efeito que possam ter para a determinação da cassação da carta, em virtude de uma eventual perda total de pontos, nos termos do art.º 148º, nº 4, al. c), do CE, é apenas o de facilitação do cálculo do número de infrações cometidas e da sua gravidade, sendo certo que um tal resultado nunca será à partida certo, porquanto o próprio decurso do tempo e a posterior conduta do condutor tornarão contingentes os efeitos que daquelas infrações possam materialmente resultar, designadamente para a tal eventual cassação da carta, já que é a própria lei a prever que aos 12 pontos de que dispõe cada condutor, poderão ainda acrescer mais três, até ao limite máximo de 15 pontos, sempre que no final de cada período de três anos não exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, ou ainda um ponto mais em cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
Quer dizer, o sistema de pontos tem um sentido essencialmente pedagógico, seja pela subtração de pontos efetuada proporcionalmente em função da gravidade de uma infração concretamente cometida, seja pela sua concessão, nos termos supra referidos, estimulando desse modo o condutor para comportamentos estradais de índole positiva, sendo que aquela subtração, e designadamente a que está diretamente em causa nos presentes autos, ocorre como efeito automático da infração cometida, sem que assuma, no entanto, em si, qualquer natureza sancionatória, sendo apenas reflexo ou um índice da gravidade da infração cometida e do relevo que esta possa ter no somatório de outras, tendo em vista aferir a dada altura a perigosidade do titular da licença de condução, em termos de saber se esta última se deve ou não manter, nos termos em que foi concedida pela administração. O sistema de pontos será assim também um sistema que permitirá à administração aferir se o titular da licença de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar dela. Inserir-se-á, portanto, tal desidrato, no âmbito dos poderes de administração do Estado. Aliás, tanto a atribuição da licença de condução, em função da qual a lei faz conceder ao respetivo titular os referidos 12 pontos, como a sua cassação, pela perda de todos os pontos, mas perda esta que tem materialmente subjacente a condenação ou a verificação prévia de infrações contraordenacionais ou penais, nos termos supra referidos, traduzem decisões de caráter administrativo: a primeira um ato administrativo permissivo de conteúdo positivo,[2] ou mais precisamente autorização permissiva expressa na licença ou carta de condução, ou habilitação, relativa a direito cujo exercício “pode importar em sacrifícios especiais para um quadro de interesses públicos que convém acautelar”, entendendo o legislador introduzir limitações no exercício da liberdade individual de modo a garantir em certas atividades um determinado padrão de competência técnica, fazendo-o através de atos que são pressuposto da atribuição daquela licença de condução]; enquanto que a segunda se traduz numa medida de segurança, também de caráter administrativo, que pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, relativamente a alguém que já havia obtido a concessão de autorização-habilitação para conduzir, mas cujas condutas, material e processualmente determinadas, com respeito pela estrutura acusatória do processo, assim como pelas garantias de defesa e controlo jurisdicional efetivos, vieram revelar a existência daquela inaptidão, e em respeito, portanto, das normas constitucionais, designadamente das invocadas pelo recorrente - art.ºs 2º, 18º, nº 2, 20º, nº 1, 29º, nº 1, 30º, nº 4, 32º, nºs 1, 4, 5 e 10, 202º, nº 2, e 219º, nº 1, da CRP. E sendo tais condutas o fundamento material da cassação que eventualmente venha a ser determinada e não propriamente a atribuição de pontos, sendo estes somente o índice ou uma tradução numérica daquela gravidade, ainda por cima de um modo que resulta ser proporcionado àquela gravidade, não vislumbramos onde possa estar a inconstitucionalidade das normas dos artºs 148º, nºs 1 e 2, 149º, nºs 1, al. c), e 2, do CE, 281º, nº 3, do Código de Processo Penal, bem como dos art.ºs 4º, nº 1, al. e), f), nº 3, al. e) e aa), 6º, nºs 2, 5 e 6 do DL nº 317/94. (…)».
E no desenvolvimento de tal aresto, no acórdão proferido pelo mesmo Tribunal da Relação do Porto, em 30 de Abril de 2019 (também consultado no sítio da DGSI), acrescenta-se:
«(…) A compatibilidade da sanção de inibição de conduzir e da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados com o princípio consignado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição foi já analisada em múltiplas ocasiões pelo Tribunal Constitucional (ver, entre muitos outros, os acórdãos n.ºs 522/1995, 202/2000 e 563/2003, in www.tribunalconstitucional.pt). A tese uniformemente seguida por esse Tribunal foi a de que não se verifica a automaticidade vedada por tal princípio se a aplicação dessas sanções depender de uma operação judicial de mediação que pondere em concreto a sua adequação e proporcionalidade.
Poderia, então, dizer-se que a cassação do título de condução decorrente do artigo 148.º do Código da Estrada não depende dessa operação de mediação judicial perante a situação concreta, uma vez que ela decorre da subtração de pontos que são consequência necessária de determinadas condenações.
Há que considerar, porém, outra vertente da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não diretamente relacionada com o regime do artigo 148.º do Código da Estrada, mas que, em nosso entender, a ele se poderá ajustar, pelas razões que indicaremos. Essa jurisprudência diz respeito à caducidade (que também não depende de uma operação de mediação judicial) da carta de condução provisória em caso de condenação na sanção acessória de inibição de conduzir, ou de condenação pela prática de crimes e contra-ordenações rodoviárias (hoje decorrente do artigo 130.º, n.º 3, a), do Código da Estrada).
Afirmou tal Tribunal no acórdão n. 461/2000 (in www.tribunalconstitucional.pt), em resposta à ideia de eventual incompatibilidade entre tal regime e o princípio consignado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição:
«(…) A resposta negativa impõe-se por duas razões fundamentais: o direito a conduzir decorre de uma licença, que no caso é apenas provisória, e que está dependente da verificação de um conjunto de condições de perícia e de comportamento psicológico; apenas existe um direito generalizado a obter uma licença se certas condições se verificarem, mas não existe, obviamente, um direito absoluto de conduzir fora desse condicionamento.
Por outro lado, prevê-se um período experimental e de licenciamento provisório, em que o condutor terá de confirmar as condições pessoais adequadas para lhe ser conferida uma licença definitiva.
A obtenção da carta ou licença de condução é, assim, um processo com várias fases, que exige o preenchimento de vários requisitos positivos e negativos, o que é justificado pelos potenciais riscos dessa actividade para bens jurídicos essenciais.
Com efeito, a lei apenas prevê que requisito da obtenção de licença definitiva seja a não instauração de procedimento por infracção de trânsito, tratando-se, portanto, de um verdadeiro requisito negativo da extinção do carácter provisório da licença. Por outro lado, ao determinar a caducidade da licença provisória, no caso da condenação em proibição de conduzir ou de inibição de conduzir, a lei apenas consagra um requisito negativo da obtenção da carta.
Assim sendo, não se verifica sequer um efeito sobre direitos adquiridos, mas apenas a valoração de uma pena relacionada com a condução automóvel nas condições de obtenção da licença de condução.
Ora, que a não condenação numa pena de inibição de conduzir possa ser um requisito de uma licença relacionada com a verificação de requisitos adequados para obter uma licença de condução é algo de natureza absolutamente diferente do efeito automático de uma condenação sobre direitos existentes anteriormente, pois, como se referiu, situa-se no plano da formulação dos requisitos para a obtenção de licença em que a condenação na pena pode ser reveladora da inexistência das condições necessárias à obtenção da licença. Por outro lado, não há qualquer não razoabilidade ou falta de proporcionalidade em prever que a não instauração de procedimento por infracção de trânsito seja condição de uma decisão de licenciamento definitivo ou que a caducidade de uma licença provisória se verifique quando haja uma condenação em inibição de conduzir.
Aliás, a ausência de possibilidade de não conversão da licença provisória em definitiva faria perder todo o sentido à existência de período provisório no processo de obtenção de carta ou da licença de condução – o qual constitui, materialmente, uma espécie de período probatório.
(…)»
Este entendimento foi reafirmado nos acórdãos nºs 574/2000, 45/2001 e 472/2007 (também acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt)
É certo que a situação em apreço difere da que nesses acórdãos é analisada. Não estamos, no caso ora em apreço, em que está em jogo a cassação de um título de condução por subtração de pontos decorrente de sucessivas condenações, perante um título provisório e perante requisitos negativos de atribuição do título definitivo. No entanto, o raciocínio subjacente à tese exposta pode ser aplicado ao caso em apreço pela razão seguinte.
Essa tese assenta na ideia de que a atribuição de licença de condução não é um direito absoluto e incondicional e que é legítimo que o legislador estabeleça requisitos positivos e negativos para a sua atribuição, entre eles o da ausência de condenações rodoviárias durante um período experimental. Não sendo o direito em causa incondicional, não pode dizer-se que estamos perante a perda de um direito adquirido (perda a que se reporta o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição) quando se retiram as consequências da verificação de uma sua condição negativa.
Ao estabelecer, um regime de carta “por pontos”, com a possibilidade de cassação da mesma em caso de subtração de pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contra-ordenações rodoviárias, o legislador estabelece mais uma condição negativa para a atribuição do título de condução. Também neste aspeto não estamos perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito. No fundo, com o sistema de “carta por pontos” nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao “bom comportamento rodoviário”. É como se o período experimental correspondente ao título de condução provisório se prolongasse continuamente (embora em termos diferentes dos desse período). Não estaremos, pois, perante a perda de um direito, mas perante a verificação de uma condição negativa a que o mesmo está, à partida e continuamente, sujeito.
Uma situação com alguma analogia com a que está em apreço foi analisada no acórdão do Tribunal Constitucional nº 25/2011 (também acessível in www.tribunalconstitucional.pt). Estava em causa, nesse caso, um regime que condiciona a atribuição da licença de guarda noturno à ausência de condenações pela prática de qualquer crime doloso O Tribunal considerou que se verificava violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, pela falta de conexão, em abstrato, dessa atividade com a prática de qualquer crime doloso, com o que estará ferido o princípio da proporcionalidade. Diferente seria se a condenação fosse relativa a um crime relacionado com essa atividade e, por si, revelador da falta de requisitos para a sua prática nos termos legalmente exigidos.
Como refere Damião da Cunha (in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2010, 686-687), «não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja estes direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violada um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstracto, como em concreto (…)»
Ora, no caso em apreço, o condicionamento da atribuição de licença de condução diz respeito, não à prática de qualquer crime ou infração, mas à prática sucessiva de crimes rodoviários ou contra-ordenações muito graves ou graves. Não se verifica, pois, alguma automaticidade contrária ao princípio da proporcionalidade.
Não se verifica, pois, alguma incompatibilidade entre o regime de cassação do título de condução decorrente do artigo 148.º do Código da Estrada e o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição. (…)».
Concluindo.
«(…) Na verdade, ao instituir o regime “por pontos”, com a possibilidade de cassação do título de condução em caso de subtração da totalidade dos pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contraordenações rodoviárias, o legislador estabeleceu mais uma condição negativa para a atribuição do título de condução.
Também nesta situação não estamos perante a perda de um direito adquirido, perda a que se reporta o art. 30º, n.º 4, da Constituição, mas sim a verificação de uma condição negativa a que o mesmo (que não é absoluto e incondicional) está à partida e continuamente sujeito.
Ao fim e ao cabo, com o sistema de “pontos” o título de condução nunca se pode considerar definitivamente adquirido, pois está permanentemente sujeito a uma condição negativa atinente ao bom comportamento rodoviário do condutor.
O direito a conduzir decorre da titularidade da respetiva licença, mas não existe um direito absoluto. Não estamos perante a perda definitiva da faculdade de conduzir. A cassação apenas determina que o recorrente perde a habilitação que detinha para conduzir e que durante dois anos fica impedido de obter novo título.
Na verdade, o condutor a quem a carta de condução foi cassada pode reaver a habilitação para conduzir, decorrido que seja o período de dois anos e depois de ser aprovado em nome exame de condução (cr. art. 148º, n.º 11, do Código da Estrada).
Acresce que, como se pode ler mencionado acórdão n.º 461/2000 do Tribunal Constitucional, «Mas, ainda numa certa conceção poderá entender-se que qualquer efeito automático de natureza penal sobre a licença provisória só poderia verificar-se se fosse igualmente automática a condenação em inibição de conduzir ou se a instauração do procedimento determinasse logo a caducidade da licença provisória. Todavia, nem resulta dos crimes de trânsito tal automaticidade, nem é essa questão que agora é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional. Com efeito, nessa conceção, se a condenação em inibição de conduzir depende de juízos de culpa sobre o facto, não decorre automaticamente do facto, ex vi lege, qualquer efeito para o licenciamento provisório.».
Ora, também em relação à situação em apreço, a cassação do título de condução decorre das próprias condenações anteriores e da consequente redução a zero dos pontos atribuídos ao condutor, o que significa que já está subjacente a essas condenações, tendo, pois, em conta a ponderação nelas levada a efeito.
Por outro lado, o facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um efeito que atinja os direitos civis, profissionais ou políticos, não implica necessariamente a violação de um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstrato, como em concreto.
Ora, a restrição de direitos decorrente da cassação do título de condução na sequência da perda da totalidade dos pontos atribuídos ao condutor, apresenta-se como necessária e proporcional à salvaguarda de outros direitos constitucionalmente garantidos, nomeadamente o direito à vida e/ou à integridade física dos demais condutores e utentes da estada (cf. arts. 24º, n.º 1, e 25º, n.º 1, da Constituição). Noutro prisma, encontra justificação no comportamento do condutor, revelador de uma perigosidade acrescida no exercício da condução.
Em suma, a medida de cassação do título de condução por perda da totalidade dos pontos, na medida em que é determinada em função da natureza, da gravidade e do número das infrações cometidas, com a consequente variação da quantidade de pontos a subtrair, e que não é indiferente ao período de tempo em que o condutor se mantém sem registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, propiciador da recuperação de novos pontos, respeita os princípios da proporcionalidade e também da necessidade, em função da maior perigosidade revelada pelo condutor. (…)» (acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 27 de Janeiro de 2020).
Revertendo então tais considerações ao objecto dos autos e às questões suscitadas.
Dispõe o artigo 148.º do Código da Estrada:
Artigo 148.º
Sistema de pontos e cassação do título de condução

1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.
2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtração a efetuar não pode ultrapassar os seis pontos, exceto quando esteja em causa condenação por contraordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtração de pontos se verifica em qualquer circunstância.
4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.
6 - Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contraordenações graves ou muito graves no registo de infrações é de dois anos para as contraordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.
7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
8 - A falta não justificada à ação de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.
9 - Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infrator.
10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.
12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.
13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.
Donde que, tendo ficado demonstrado que o recorrente sofreu duas condenações pela prática de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, no âmbito das quais foi, por duas vezes, sancionado com a pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, é inelutável que a subtracção é a prevista no n.º 2 do preceito legal supra transcrito, ou seja, de seis pontos por cada uma daquelas condenações criminais, pelo que se colocou o recorrente na situação que determina a cassação do seu título de condução.
Quanto à suscitada inconstitucionalidade de tal norma, retomamos o que nos transcritos arestos se deixou dito, para concluir que a decisão que determina a cassação da carta de condução mais não implica do que uma mera operação aritmética a efectuar pela autoridade administrativa, nada cumprindo apreciar que não seja a existência de duas condenações criminais anteriores, devidamente transitadas em julgado, que tenham importado a aplicação da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados e, por essa via, a perda de pontos que importa a cassação do título.
Efectivamente, é à ANSR que incumbe emitir as licenças administrativas que habilitam ao exercício da condução de veículos, tendo de averiguar se o candidato reúne todos os requisitos legais. De igual modo, será a esta Autoridade administrativa que incumbirá igualmente proferir o acto administrativo que declara que aquela pessoa deixou de reunir os pressupostos para a titularidade de tal licença e, consequentemente, determina a sua cassação. E nesta decisão, repita-se, a Autoridade administrativa nada mais aprecia que não seja a perda dos pontos determinada pelas anteriores condenações e, por via dessa perda, a perda daqueles requisitos para o exercício da condução.
Ora, a perda de pontos prevista no artigo 148.º, n.º 2, do Código da Estrada, é uma consequência automática do trânsito em julgado da decisão condenatória que aplica pena acessória de proibição de conduzir. E, de acordo com o n.º 4 do mesmo preceito, também a cassação do título de condução é consequência automática da perda da integralidade dos pontos.
Consequentemente, não é legalmente admissível qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto.
No caso, a perda sucessiva de seis pontos, mais seis pontos, decorreu de duas sucessivas decisões penais condenatórias, pela prática de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, sendo aplicada, em ambas as condenações, a pena acessória de proibição de conduzir, o que, inevitavelmente, determinou a subtracção de doze pontos.
A ponderação da factualidade atinente ao perfil moral e às condições pessoais do arguido, entre as quais a eventual necessidade da titularidade de carta de condução para o exercício da actividade profissional, foi necessariamente averiguada e devidamente ponderada naquelas decisões condenatórias, não tendo lugar na apreciação da decisão de cassação do título.
«(…) Porém, após o trânsito dessas decisões e o seu carácter definitivo, consumada a perda parcelar de pontos de cada uma dessas decisões, não pode agora a recorrente pretender discutir os seus termos, com ofensa do respectivo caso julgado ou do seu carácter definitivo (cfr.art.148º nºs1 e 2 do Cód. Estrada). Seria em cada um desses processos, onde se consumara a perda sucessiva e cumulativa de pontos que poderiam ser discutidas e apreciadas as invocadas circunstâncias concretas da defesa (os condicionamentos profissionais, económicos, familiares e até a relevância típica assim como a avaliação dos pressupostos de punição de cada uma dessas infracções criminais e de mera ordenação social), se bem que, nos dois processos em questão, as questões concretas agora suscitadas pela defesa nada poderia obviar ao efeito legal de perda de pontos: pois na suspensão provisória do processo ocorrera com a concordância da arguida, e no processo sumário a aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir, mesmo que suspensa, determinaria a perda de pontos. Uma vez consumada a perda de pontos, o efeito automático da cassação da carta prevista na alínea c) do nº4 do art.148º decorre do processo autónomo no nº10 deste preceito e nº4 do art.169º todos do CE, onde apenas haverá a ponderar a legalidade dos requisitos expressos nos arts.148 nºs1 e 2 do Cód.Estrada, sem necessidade de outra ponderação (…).
Sobre a constitucionalidade do nº2 do art.148º do CE não se vislumbra a colisão com a amplitude das normais constitucionais dos arts.27º nº2 da CRP, e art.202º da Lei Fundamental, tanto mais que, ambas as perdas de pontos ocorreram fruto de decisões judiciais, uma decorrente de condenação em juízo em processo sumário (com aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir); e a outra no decurso da suspensão provisória do processo, com a inerente apreciação concordante do juiz de instrução como factor de perda de pontos, assim estando salvaguardada a reserva do art.202 da Lei Fundamental na Administração da Justiça cometida aos Tribunais judiciais.
Sobre a invocada inconstitucionalidade do art.148º nºs4 alínea c) e nºs10 e 11 do Cód.Estrada, para além de não colidir com nenhum dos parâmetros do art.27º nº2 da CRP, igualmente não fere o disposto no art.202º da Lei Fundamental dado que, não obstante, a competência decisória do ente administrativo, encontra-se assegurada ao cidadão, a sindicabilidade pelos Tribunais comuns daquela decisão (com duplo grau de jurisdição), pese embora os curtos parâmetros da decisão em apreciação. Por outro lado, não pode deixar de se sublinhar que as decisões que implicam perda de pontos, no caso foram ambas processadas em Tribunal, e é em cada uma dessas perdas de pontos, que ocorre a perda de inaptidão, não tanto, na decretação da cassação da carta, que a final apenas apresenta a constatação da ausência de pontos no condutor. Daí que a consequência legal da cassação da carta, uma vez consumada a perda de pontos, é praticamente uma “chancela” administrativa, cuja competência do presidente da ANRS, inscreve-se não só no âmbito da desjudicialização, como nas competências do legislador em regular o âmbito dos delitos de mera ordenação social e suas consequências. (…)» (in acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Maio de 2019).
Prende-se ainda com a suscitada questão da automaticidade da decisão, a arguição de que a cassação de título de condução implica uma dupla condenação, com violação do princípio ne bis in idem, pois argumenta o recorrente que já havia sido condenado em penas de proibição de conduzir veículos automóveis.
Todavia, também aqui não lhe assiste razão.
«(…) O que está na origem da cassação não é uma ou outra das condenações, mas a sucessão de condenações. Do mesmo modo, não se verifica uma dupla condenação quando uma determinada pena é agravada pelo facto de haver sucessão de condenações (em caso de reincidência, por exemplo).
Estamos, por outro lado, como vimos atrás, não perante uma condenação suplementar, mas perante a verificação de uma condição negativa de atribuição do título de condução. (…)» (do já citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30 de Abril de 2019).
O recorrente invoca ainda, se bem se percebe, a nulidade da decisão, por preterição de formalidades essenciais, decorrente da falta de notificação nos termos e para os efeitos do previsto nas alíneas a) e b), do n.º 4 do artigo 148.º, do Código da Estrada, ou seja, para frequentar acção de formação de formação de segurança rodoviária, após a primeira condenação sofrida e para realizar exame teórico de condução, após a segunda condenação, e, apenas se o recorrente faltasse àquela acção de formação ou reprovasse naquele exame, poderia prosseguir-se para a cassação da sua carta de condução.
Ora, com todo o respeito, carece de qualquer sentido e fundamento o invocado.
Na realidade, quanto à obrigação de notificação do recorrente para este frequentar acção de formação de formação de segurança rodoviária, após a primeira condenação sofrida, note-se que tal notificação apenas teria lugar após o trânsito em julgado a decisão condenatória, altura, em que o mesmo tinha já praticado o segundo crime, pelo que, deixaria de ter pertinência a realização de qualquer acção de formação.

De igual modo, por via do trânsito em julgado da segunda decisão condenatória, o recorrente ficou sem quaisquer pontos, pelo que não teria lugar qualquer notificação para a realização de novo exame teórico de condução, a qual apenas se realiza no caso de ao condutor ainda quedarem três pontos, o que não acontecia no caso dos autos.
Por fim, pugna o recorrente pela substituição da cassação por uma admoestação.
Ora, também neste ponto particular, carece de qualquer fundamento o pretendido, não existindo qualquer base legal que sustente tal pretensão.
Efectivamente, para as situações de cassação, não existe sequer norma idêntica à do artigo 141.º, do Código da Estrada (e, dizemos nós, nem faria muito sentido, já que o que se trata aqui é da perda das condições de que dependem a atribuição e manutenção do título de condução, é da perda de idoneidade, a qual apenas poderá ser restabelecida com a passagem do tempo).
Por todo o exposto, improcede o recurso interposto, sendo de manter integralmente a decisão do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.»
B- Fundamentação de direito
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e pelas de conhecimento oficioso que o tribunal deva apreciar.
No caso concreto em análise elencam-se as seguintes questões suscitadas pelo recorrente:
1. Nulidade da decisão recorrida.
2. Inconstitucionalidade do art. 148 nº2, nº4 al.c) e nº10 do CE.
3. Prescrição.
Cumpre apreciar e decidir!

1. Da invocada nulidade da decisão recorrida
O recorrente invoca a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia e por falta de fundamentação, designadamente, por não conter a indicação dos factos não provados.
O dever de fundamentação tem consagração constitucional no art. 205 nº1 da CRP que especifica dever ser feita: “na forma prevista na lei.”
Concretizando o dever de fundamentação no que respeita aos requisitos da sentença dispõe o art. 374 nº2 do CPP:
«Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»
A explicitação de motivos e análise exigida pelos preceitos legais invocados, basta-se com uma exposição sumária, desde que seja perceptível.
No caso concreto em análise após a enumeração dos factos considerados assentes com relevância para a decisão a Srª Juiz que elaborou a sentença indicou na motivação da mesma:
«Tais factos ficaram demonstrados pelo teor do registo individual do condutor, junto de folhas 4 a 5, e das cópias e comunicações extraídas dos processos n.º 389/17.2GCVFR e n.º 411/17.2GCVFR.
Resta dizer que se teve como absolutamente irrelevante para a decisão a proferir a matéria de facto vertida nas conclusões 34.ª a 43.ª do requerimento de impugnação, pelas razões que infra melhor se expenderão e, de resto, em consonância com o convite que se endereçou ao recorrente para que a decisão fosse decidida por mero despacho.»
Resulta assim evidente que Tribunal não considerou relevantes para a decisão factos alegados pelo recorrente e por esse motivo decidiu por despacho dispensando a produção de prova, ao que o recorrente não se opôs.
Nestes termos e não existindo matéria de facto relevante para a decisão que não estivesse provada nada haveria a referir quanto a factos não provados motivo pelo qual não se verifica a mencionada nulidade.
O Tribunal a quo conheceu como questão prévia da alegada falta da notificação a que alude o artigo 50 do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas, pelo que, também não se verifica a nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto a esta matéria.
2. Da alegada inconstitucionalidade do art. 148 nº2, nº4 al.c) e nº10 do CE.
O citado artigo do Código da Estrada rege sobre o sistema de pontos e cassação do título de condução.
Considera o recorrente que tais normas do CE violam o art. 29 nº5, princípio do ne bis in idem, art. 30 nº4 e 13, principio da igualdade.
Desde já se consigna que o legislador no referido sistema de pontos procurou um regime adequado ao princípio da proporcionalidade e adequação à gravidade da infracção, sendo a subtracção de pontos efectuada em termos proporcionais à gravidade da infracção cometida, pelo que, tal não ofende o princípio da igualdade.
O recorrente apresenta situações em que uma das infracções é uma contra-ordenação e quer compara-las com a situação dos autos em que estamos perante duas condenações de natureza criminal, pelo que, tratando-se de situações diversas e de gravidade diversa, não são comparáveis, nem a divergência de consequências viola o referido princípio da igualdade.
Relativamente à limitação do exercício da condução que a cassação do título de condução implica diremos que a questão já foi, e a nosso ver bem, analisada na decisão recorrida.
Na verdade, o direito de conduzir viaturas automóveis em vias públicas não é um direito inato e absoluto, e por isso, carece de regulamentação e só pode ser exercido por quem se encontra habilitado para o efeito.
Trata-se de uma actividade que pode tornar-se perigosa para a segurança dos restantes utentes das estradas e por esse motivo, tem de ser sujeita a um, permanente e justificado, controlo das condições da sua manutenção.
A conservação do título de condução fica, pois, sujeita à adopção de um correcto comportamento rodoviário.
A ANSR é a entidade competente para a emissão das licenças que habilitam ao exercício da condução e também para a fiscalização de que as condições para esse exercício se mantêm inalteradas.
Verificando-se a perda de pontos o Presidente da ANSR actua sem qualquer discricionariedade na emissão da declaração de cassação, uma vez que tal perda operada em consequência das condenações sofridas, sinaliza o condutor em causa como detentor de um grau de perigosidade tal que o impede de continuar a exercer o direito a conduzir.
Não se trata de perder um direito adquirido, porque tal direito nunca foi absoluto e incondicional, estando sujeito a condições e a controlo perpétuo.
Assim, não se verifica a violação do citado art. 30 nº4 da CRP.
Relativamente à violação do princípio do ne bis in idem também não se verifica com a declaração de cassação do título de condução.
O que determina a cassação é a consequência da perda de pontos que emerge automaticamente das condenações sofridas pelo infractor e essa declaração não é, em si mesma, uma outra condenação.
Não se trata de uma nova condenação pelos mesmos factos, mas do efeito do preenchimento de condições negativas, que assinalam o condutor em causa como perigoso para o exercício da condução.
Não ocorre, pelo exposto, a violação do art.29 nº5 da CRP, nem se vislumbra que o sistema instituído no art. 148 do CE viole qualquer preceito ou princípio com consagração constitucional.
3. Da invocada prescrição
O recorrente invoca a prescrição da sanção acessória aplicada pela ANSR, da substração de 6 pontos na carta de condução, em virtude da condenação por si sofrida no âmbito do processo n.º 389/17.2GCVFR, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, cuja sentença transitou no dia 18 de Dezembro de 2017, pelo que, atendendo ao prazo de prescrição referido no artigo 189 do C.E. (de dois anos), a perda de pontos prescreveu, respectivamente, nos dias 18 de Dezembro de 2019.
Invoca o recorrente o art. 189 do CE que dispõe sob o título: Prescrição da coima e das sanções acessórias:
«As coimas e as sanções acessórias prescrevem no prazo de dois anos contados a partir do carácter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença.»
Porém, a perda de pontos não é uma coima, nem uma sanção acessória, mas apenas um sinal decorrente da condenação sofrida de que o condutor se revela perigoso no exercício da condução, e por isso, não lhe é aplicável o citado art. 189 do CE, não tendo ocorrido qualquer prescrição.
Nestes termos improcede também este argumento recursivo.
3. Decisão
Tudo visto e ponderado, acordam os Juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso interposto por B….
Custas, pelo decaimento do recurso, a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

Porto, 12/5/2021
Paula Guerreiro
Pedro Vaz Pato