Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
100/13.7TBVCD-O.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: PROCESSO CIVIL
INEXISTÊNCIA
INEFICÁCIA
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RP20200908100/13.7TBVCD-O.P1
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A sentença inexistente é aquela que não reúne o mínimo de requisitos essenciais (juiz, partes, decisão) para que possa ter a eficácia jurídica própria de uma decisão judicial, sendo, por isso, um acto material inidóneo para produzir efeitos jurídicos, designadamente por ter sido proferida por quem não está investido de poder jurisdicional ou então por ter sido pronunciada a favor ou contra quem não foi parte no processo
II - A sentença ineficaz é aquela que, entre outras situações, é proferida sobre objeto já coberto pelo caso julgado (625.º CPC), que não tenha sido excepcionado ou reconhecido no processo.
III - Tendo sido proferida decisão, com trânsito em julgado, no sentido de o despacho liminar no incidente de exoneração do passivo restante ter de aguardar o trânsito em julgado da decisão a proferir no apenso da reclamação de créditos, não podia o Tribunal recorrido ter proferido despacho liminar de exoneração do passivo sem que fosse proferida esta segunda decisão e o subsequente trânsito em julgado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 100/13.7TBVCD-O.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

Nos autos de insolvência de B… e mulher C… foi proferido despacho inicial quanto ao incidente de exoneração do passivo restante e nomeado como fiduciário o Ex.mo Sr. Administrador de Insolvência D…, mais tendo determinado que o rendimento disponível superior a dois salários mínimos que venham a auferir seja cedido ao Fiduciário.
Inconformados, apelaram os credores E…, Ld.ª, e F…, assim concluindo:
I - O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito, incidindo sobre a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância em 17-12-2019, com a ref. 410324354, no âmbito do processo n.º 100/13.7TBVCD, através da qual o Tribunal proferiu despacho inicial quanto ao incidente de exoneração do passivo restante e determinou que os Insolventes devem entregar ao fiduciário o rendimento disponível que seja superior a dois salários mínimos nacionais.

II - Os Apelantes não se podem conformar com a sentença recorrida, por entenderem que a mesma é nula e inexistente e, bem assim, por estarem verificados os pressupostos factuais e legais para que o pedido de exoneração do passivo restante fosse liminarmente indeferido, nos termos do art. 238.º, n.º 1, alíneas a), b), d), e) e g) do CIRE. Com efeito, diga-se, desde já, que apenas se fará justiça, como os Apelantes esperam, revogando-se a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância e sendo a mesma substituída por um acórdão que julgue procedente o presente recurso de Apelação, com as demais consequências legais.

III – Antes de entrarmos na análise das questões sobre as quais incide o recurso de Apelação, importa, por uma questão de simplicidade e celeridade processual, contextualizar os factos com relevância para a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, a saber:
• Nos presentes autos, B… e C… vieram requerer a sua declaração de insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante.
• Em 18-01-2013, foi proferida sentença de declaração de insolvência.
• Em 06-03-2013, o Sr. Administrador de Insolvência apresentou o relatório previsto no art. 155.º do CIRE, tendo precisado que em 28-01-2013 enviou carta registada para os Insolventes a solicitar o envio das declarações de rendimentos, bem como a indicação de bens, carta que foi recebida pelos destinatários, mas que até à data de apresentação do relatório ainda não tinha merecido qualquer resposta.
• Em 04-06-2013, o Sr. Administrador de Insolvência apresentou um requerimento, com a referência 1484005, a fls. 150, através do qual se pronunciava sobre o pedido de exoneração do passivo restante, e do qual constava o seguinte, em suma, o seguinte:
“5-Assim, verificou-se uma agravação artificial de passivos e uma injustificada oneração de activos, nos termos das próprias declarações dos Insolventes.
6- Na modesta opinião do signatário, tais factos constituem por si só elementos relevantes para efeitos da alínea e) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE”.
• Em 11-01-2013, o Tribunal de Primeira Instância proferiu o seguinte despacho, com a ref. 5574304: “Req. que antecede: Em face da posição ora manifestada pelo Sr. AI e uma vez que os factos que poderão conduzir ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante irão ser apurados no âmbito da decisão das impugnações à relação de créditos reconhecidos, relego a apreciação do incidente para momento posterior ao trânsito em julgado da decisão a proferir na reclamação de créditos. Notifique.”
• Em 12-03-2013, realizou-se a assembleia de credores, tendo sido submetido à apreciação/votação dos credores o pedido dos insolventes relativamente à exoneração do passivo restante e tendo resultado a oposição de todos os credores presentes, incluindo do Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional.
• Através dos requerimentos apresentados pelo Sr. Administrador de Insolvência em 01-02-2016 e 26-04-2016, com as referências 8698438 e 10080026 respetivamente, o Sr. Administrador de Insolvência precisou que apenas em 24-01-2014, cerca de dois anos após a declaração de insolvência, tomou conhecimento que, por contrato de arrendamento celebrado em 15-10-2012, os Insolventes deram de arrendamento à sociedade comercial G…, Unipessoal, Lda. o prédio rústico na CRP de Vila do Conde sob o n.º 933, e que, por contrato de arrendamento celebrado em 23-01-2012, os Insolventes deram de arrendamento a H… e I… o prédio urbano descrito na CRP de Vila do Conde sob o n.º 351.
• No requerimento de 01-02-2016, o Administrador de Insolvência precisou ainda que tomou conhecimento da alegada celebração de contratos de arrendamento incidentes sobre dois prédios integrantes da massa insolvente através dos respetivos arrendatários, e não através dos Insolventes, e cerca de dois anos após a declaração de insolvência. No mesmo requerimento, o Administrador de Insolvência precisou que:
“10) Os Insolventes não tinham comunicado a existência de tais contratos de arrendamento na petição inicial, tampouco, (posteriormente à data da declaração de insolvência) informaram o administrador de insolvência dos mesmos.
11) Assim, nos termos da informação já prestada a V. Excia., foram notificados os insolventes com o objetivo do esclarecimento cabal desta situação, bem como no sentido de devolução à massa insolvente da totalidade das rendas recebidas por estes, desde a data da declaração da insolvência.
12) Em resposta, vieram os insolventes declarar que:
-incide um ónus de arrendamento sobre o prédio descrito na CRPredial de Vila do Conde sob o n.º 351/…; -incide um ónus de arrendamento sobre o prédio descrito na CRPredial de Vila do Conde sob o n.º 933/….
-Não irão proceder à devolução à massa insolvente dos valores em causa, (de € 500,00 mensais),considerados indispensáveis ao seu sustento básico.
13) Assim, na modesta opinião do signatário, e tendo ainda presente que não foi proferido despacho inicial de cessão do rendimento disponível, houve apropriação por parte dos insolventes de valores que deveriam integrar a massa insolvente, facto que se deu conta para os fins tidos por convenientes por V. Excia. (...) Analisados os contratos de arrendamento, verifica-se que existe uma relação especial entre senhorios e arrendatários, havendo assim aproveitamento por pessoas especialmente relacionadas com os insolventes.”
• Em 17-08-2016, os Insolventes apresentaram um requerimento, com a ref. 11767315, reconhecendo que, após a declaração de insolvência, continuaram a receber as rendas devidas pelos contratos de arrendamento celebrados em 2012:
“1-A insolvência foi decretada em 18/01/2013, por douta sentença transitada em julgado.
2-De então para cá os insolventes vinham subsistindo com a reforma do insolvente marido, no valor mensal de € 496,00 e com as rendas que lhe estavam a ser pagas pelo arrendamento dos prédios inscritos na matriz sob os artigos 1523 e 1002, nos montantes mensais unitários de € 250,00 e global de € 500,00. 3-Sucede que os arrendatários passaram, a partir do pretérito mês de Abril, a pagar as rendas não aos senhorios mas, outrossim, a depositá-las à ordem da massa insolvente.
4-Pelo que os insolventes se viram privados deste rendimento, absolutamente imprescindível às suas subsistências. (...)”
• Após o requerimento dos Insolventes, a fls. 410, o Tribunal proferiu o seguinte despacho em 06-02-2017, com a ref. 378327381, através do qual, com relevo para a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, consignou o seguinte:
“Por outro lado, e quanto a fixar o valor indisponível e o valor a ceder, nos autos foi proferido despacho, já transitado, mediante o qual foi relegada a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante para momento posterior à decisão no apenso de reclamação de créditos, atenta a matéria ali alegada, designadamente acerca da simulação invocada, a envolver os insolventes (cfr. despacho de fls. 195).”
• Em 08-04-2017, o Sr. Administrador de Insolvência apresentou novo requerimento, com a ref. 14550678, através do qual renovou os factos por si alegados em requerimentos anteriores e reiterou expressamente que “os insolventes não colaboraram com o administrador de insolvência.”
• Em 04-04-2019, o Tribunal proferiu o seguinte despacho, com a ref. 405562546:
“Ainda não foi decidido o pedido de início do procedimento de exoneração do passivo restante. Tendo em vista essa decisão, sopesando o longo período de tempo decorrido, considerando a evolução processual, destarte a inexistência do incidente de qualificação da insolvência e o desfecho os apensos de resolução:
a) Notifique insolventes para juntarem em 10 dias CRC actualizado e condições actuais de natureza económica e social e composição do agregado, juntando os comprovativos que entendam convenientes;
b) Notificar Sr. AJ e credores para informarem qual a sua posição actual, sendo que se nada disserem em 10 dias se presume que concordam com o início do procedimento de exoneração.”
• Em 10-07-2019, com a ref. 23068018, os Apelantes apresentaram um requerimento, através do qual, e em suma, requeriam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, com os seguintes fundamentos:
“1) Os Insolventes atuaram sempre com má fé e dolo, prestando informações falsas e ocultando informações ao Tribunal e ao Sr. Administrador de Insolvência;
2) Os Insolventes ocultaram aos credores que tinham insolvido uma empresa, que tinha as suas instalações nos prédios que foram apreendidos para a Massa Insolvente;
3) Os Insolventes fizeram contratos de arrendamento falsos a terceiros (designadamente a uma empresa do seu filho, que substituiu a empresa que foi declarada insolvente e que tinha como sócios os insolventes), em claro prejuízo da massa insolvente e dos credores, por forma a impedirem que os prédios apreendidos e a vender tivessem maior valor no mercado;
4) Os Insolventes celebraram um contrato de arrendamento falso da casa onde residem a favor dos dois filhos, solteiros, que sempre viveram em comunhão de casa e de mesa com eles, de modo a desvalorizar o imóvel em causa;
5) Os Insolventes invocaram falsamente a inexistência de créditos na insolvência, por partes dos credores, ora Apelantes, quando tinham e têm pleno conhecimento da existência dos mesmos, e já o tinham reconhecido em sede de ação executiva, na respetiva reclamação de créditos (processo n.º 1022/11.1TBBCL-C).
6) Os Insolventes fizeram uma série de requerimentos apenas e só no sentido de obstaculizar à venda dos prédios apreendidos, inventando factos e tentando atrasar o processo, já para não falar do indecente comportamento aquando da prestação de declarações de parte em tribunal;
7) Os Insolventes incumpriram o prazo da sua apresentação à insolvência, pois bem sabiam que estavam preenchidas todas as condições para se apresentarem e não o fizeram apenas e só para prejudicar os credores e tentarem fazer ocultar/ desaparecer bens (alínea a) e d) do artigo 238 do CIRE); 8) Os Insolventes violaram, com dolo, os deveres de informação e colaboração com o Tribunal (Alínea g) do artigo 238.º do CIRE); 9) Os Insolventes nunca entregaram à massa insolvente o valor recebido a título de rendas, dos contratos simulados que celebraram nos termos supra referidos e que a esta pertencem”.
• Em 11-07-2019, o credor J…, S.A. apresentou um requerimento, com a referência 32969112, com o seguinte teor: “Conforme resulta da informação prestada pelo Sr. Administrador de Insolvência, nos termos do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, os Insolventes não cumpriram as obrigações que lhe foram impostas por lei, nomeadamente, prestaram informações falsas ao tribunal e ao Administrador de Insolvência, bem como inventaram factos falsos e ocultaram informação deles e dos bens de que eram proprietários, factos estes já devidamente informados aos presentes autos. Pelo exposto, requer-se ao douto Tribunal se digne a recusar a exoneração da devedora, ordenando a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 243.º do CIRE.”
• Em 17-07-2019, o credor K…, Limited apresentou um requerimento, com a ref. 33023715, através do qual se pronunciava pelo “indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, nos termos do artigo 238.º n.º 1 g) CIRE, porquanto ocorreu violação, com dolo, dos deveres de informação, apresentação e colaboração, por partes dos mesmos. “
• Em 18-07-2019, vieram os Insolventes apresentar um requerimento, com a ref. 23154792, peticionando, em suma, o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante.
• Por último, em 17-12-2019, o Tribunal de Primeira Instância proferiu sentença a admitir o prosseguimento dos autos para exoneração do passivo restante, o que não se pode consentir, pelo que, e nestes termos, se apresenta recurso de tal decisão.
IV- Desde logo, consideram os Apelantes que a sentença recorrida é nula, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea c), aqui aplicável por via do art. 17.º do CIRE.
V - Na sentença recorrida, o Tribunal de Primeira Instância considerou que “O Sr. Administrador de Insolvência, o Ministério Público em representação da Fazenda Nacional, assim como os demais credores não se pronunciaram, mas em face da cominação estabelecida na última parte do despacho proferida em 04-07-2019, deverá considerar-se que nada têm a opor ao início do procedimento de exoneração.” Contudo, salvo o devido respeito, atenta a contextualização dos factos supra expostos, facilmente se compreende que tanto o Sr. Administrador de Insolvência, como o Ministério Público se pronunciaram pelo indeferimento do pedido de exoneração de passivo restante dos Insolventes.
VI - Acontece que, o Tribunal de Primeira Instância ignorou os sucessivos requerimentos apresentados pelo Administrador de Insolvência, através dos quais o mesmo alegou factos que comprovam direta e indiretamente a falta de colaboração dos Insolventes e a prática de atos dilatórios e prejudiciais à Massa Insolvente e à satisfação dos credores. Veja-se, nesse sentido, o relatório previsto no art. 155.º do CIRE, com a ref. 1410252, o requerimento de 04-06-2013, com a ref. 1484005, o requerimento de 01-02-2016, com a ref. 8698438, o requerimento de 26-04-2016, com a ref. 10080026, e o requerimento de 08-04-2017, com a ref. 14550678. Mais acresce que também o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, se manifestou contra o pedido de exoneração do passivo restante na assembleia de credores realizada no dia 12-03-2013.
VII – Claro está que o Tribunal de Primeira Instância tinha de tomar em consideração a posição do Administrador de Insolvência e do Ministério Público aquando da elaboração da decisão a proferir. É certo que o processo em causa é bastante extenso e volumoso, contudo, tal facto não desonera o Tribunal do seu dever de se informar e de tomar conhecimento de todos os despachos e diligências judiciais anteriores, ainda que esse processo tenha passado pelas mãos de diversos magistrados, como é o caso. E mais. O facto de o Tribunal proferir novo despacho para que as partes se pronunciem novamente sobre alguma questão, não o desonera de tomar em consideração as pronúncias anteriores das partes que já se pronunciaram sobre tal questão em momento anterior, de forma válida e justificada, e no momento oportuno para o efeito. Assim sendo, tendo o Tribunal de Primeira Instância ignorado a posição das partes já manifestadas nos autos e tendo deixado de se pronunciar sobre questões por estas invocadas, sempre se tem de considerar que ocorre nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, pelo que, deve ser a mesma julgada nula, nos termos aqui invocados, com as demais consequências legais.
VIII- Se ainda assim se entender que não ocorre a nulidade supra invocada, o que não se consente, sempre se diga que ocorre violação do trânsito em julgado de uma decisão judicial tomada em momento anterior.
IX - Ora, em 11-06-2013, o Tribunal de Primeira Instância proferiu um despacho, com a ref. 5574304, através do qual consignava o seguinte:
“Em face da posição ora manifestada pelo Sr. AI e uma vez que os factos que poderão conduzir ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante irão ser apurados no âmbito da decisão das impugnações à relação de créditos reconhecidos, relego a apreciação do incidente para momento posterior ao trânsito em julgado da decisão a proferir na reclamação de créditos.” Posteriormente, em 06-02-2017, o Tribunal proferiu novo despacho, com a referência 37327381:
“Por outro lado, e quanto a fixar o valor indisponível e o valor a ceder, nos autos foi proferido despacho, já transitado, mediante o qual foi relegada a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante para momento posterior à decisão no apenso de reclamação de créditos, atenta a matéria ali alegada, designadamente acerca da simulação invocada, a envolver os insolventes (cfr. despacho de fls. 195).”
X - Acontece que, a decisão no apenso da reclamação de créditos (apenso B) ainda não transitou em julgado, pelo que, a nosso ver, o Tribunal não podia ainda proferir a sentença ora em crise. É que o Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão recentemente, tendo ordenado o prosseguimento dos autos para que o Tribunal de Primeira Instância profira nova sentença quanto ao mérito da ação, pois entendeu a Relação do Porto não estar verificada uma exceção dilatória que conduziu à absolvição da instância. Ainda assim, não se concordando com o Acórdão da Relação do Porto, foi interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça. Ou seja, ainda não há decisão definitiva no apenso B, nem a mesma transitou em julgado, o que significa que o Tribunal de Primeira Instância não podia ter proferido a sentença ora recorrida, sendo que, ao fazê-lo, ocorreu violação do trânsito em julgado de decisão judicial tomada em momento anterior, designadamente do despacho de 11-06-2013, o que torna a sentença recorrida inexistente juridicamente por violar o trânsito em julgado de decisão tomada anteriormente sobre essa mesma questão (artigo 628.º do CPC) e por, igualmente, ocorrer um claro caso de casos julgados contraditórios dentro do mesmo processo. (artigo 625.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
XI – Com efeito, atento o supra exposto, deve o Douto Tribunal da Relação do Porto considerar que a sentença, ora em crise, é juridicamente inexistente, devendo ser a mesma substituída por um acórdão que relegue a decisão sobre o pedido de exoneração do passivo restante para momento posterior ao trânsito em julgado da decisão a proferir no apenso da reclamação de créditos.
XII - Subsidiariamente, e caso se entenda que não se pode qualificar a sentença, em crise, como inexistente, o que não se consente, sempre deverá o douto Tribunal de Recurso julgar que é a mesma nula, nos termos do artigo 615.º do CPC, por excesso de pronúncia, com as demais consequências legais.
XIII - Sem prescindir, caso ainda assim não se entenda que a sentença recorrida é inexistente ou nula, prevalecendo e valendo sobre o despacho proferido no dia 11 de Junho de 2013, certo é que sempre deverá ser a mesma revogada, por falta de fundamento legal e factual, nos termos que infra melhor se consignam.
XIV - Conforme decorre dos presentes autos, os Insolventes recusaram-se a colaborar desde o pedido de declaração de insolvência, tendo omitido factos e prestado informações falsas ao Tribunal e ao Sr. Administrador de Insolvência. É isso que decorre manifestamente do relatório do Administrador de Insolvência, previsto no art. 155.º do CIRE, com a referência 1410252, e dos vários requerimentos apresentados pelo Sr. Administrador de Insolvência, datados de 04-06-2013, com a ref. 1484005, de 01-02-2016, com a ref. 8698438, de 26-04-2016, com a ref. 10080026, e de 08-04-2017, com a ref. 14550678.
XV - Mais acresce que, os Insolventes omitiram dolosamente ao Tribunal informações vitais ao normal desenrolar do processo de insolvência, designadamente que tinham celebrado dois contratos de arrendamento falsos/fictícios, sendo que em nenhum momento informaram o Sr. Administrador de Insolvência deste facto, que apenas tomou conhecimento de tais arrendamentos fictícios pelos arrendatários e cerca de dois anos após a declaração de insolvência.
E mais. Os Insolventes não só não comunicaram a existência de tais contratos de arrendamento, como continuaram a receber as rendas devidas pelos referidos contratos de arrendamento, num valor mensal de € 500,00, rendas que os mesmos referiram expressamente que nunca vão entregar.
XVI – Ademais, os Insolventes ocultaram igualmente que tinham insolvido uma empresa e que os falsos contratos de arrendamento foram celebrados com uma empresa do seu filho e com os seus filhos, relativamente à casa onde residem com os seus dois filhos solteiros, que sempre viveram em comunhão de casa e de mesa com eles. Tais contratos de arrendamento fictícios foram apenas celebrados com o único intuito de dificultarem a venda dos imóveis apreendidos a favor da massa insolvente e de conduzir à desvalorização do preço de venda dos referidos imóveis no mercado, em claro prejuízo da massa insolvente e dos credores.
XVII – Mais acresce que os Insolventes invocaram falsamente a inexistência de créditos na insolvência, por partes dos Apelantes E…, Lda, e F…, quando tinham e têm pleno conhecimento da existência dos mesmos, e já o tinham reconhecido em sede de reclamação de créditos, apensa à ação executiva, que correu termos no processo n.º 1022/11.1TBBCL-C.
XVIII - Ademais, os Insolventes apresentaram uma série de requerimentos dilatórios apenas e só com o sentido de obstaculizar à venda dos prédios apreendidos a favor da massa insolvente e de atrasar o normal decorrer do processo (vide requerimento de 04-04-2019, com a referência 32076561, requerimento apresentado pelos Insolventes com o único propósito de impedir/atrasar a realização da venda judicial designada para o dia 08 de Abril de 2019).
XIX – Mais acresce que, os Insolventes não se apresentaram à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da sua situação de insolvência, incumprindo o prazo para se apresentarem à insolvência, apesar de já há muito estarem cientes de que não tinham condições para cumprirem as suas obrigações, sendo que apenas não se apresentaram à insolvência em momento anterior para tentarem ocultar/ fazer desaparecer património.
XX – Mais se diga que não conseguem os Apelantes compreender como é que o Tribunal de Primeira Instância alcançou a conclusão de que: “não revelam os autos, conforme alegam os credores F… e E…, Lda. que os insolventes hajam transmitido informações falsas ao Tribunal e ao Sr. Administrador de Insolvência, inventado factos falsos, ocultado informação deles e dos bens que eram proprietários; que hajam celebrado contratos de arrendamento falsos a terceiros em prejuízo da massa, para impedir que os prédios a vender tivessem mais valor no mercado; celebrado contratos de arrendamento a favor dos filhos de modo, da casa onde residem, aos dois filhos, solteiros, que sempre viveram em comunhão de casa e mesa com eles de modo a desvalorizar o imóvel; e invocado falsamente a inexistência de créditos na insolvência.” É que, conforme supra se expôs, não foram apenas os credores E…, Lda. e F… que alegaram que os Insolventes transmitiram informações falsas e ocultaram factos ao Tribunal. Também o Sr. Administrador de Insolvência e outros credores o fizeram – J…, S.A. e K…, Limited - o que o Tribunal de Primeira Instância deveria ter tomado em consideração, e não ignorado como resulta da sentença recorrida, sendo certo que se o Tribunal tivesse lido os autos, com cuidado e detalhe, certamente não teria alcançado esta conclusão infundada, nem teria proferido a sentença, ora em crise, nos termos supra melhor expostos.
XXI - Quanto à invocação falsa pelos Insolventes da inexistência de créditos na insolvência, precise-se que ainda não foi proferida decisão final quanto à aludida reclamação de créditos (apenso B), pelo que também não podia o Tribunal de Primeira Instância considerar que “não revelam os autos que os Insolventes não tenham invocado falsamente a inexistência de créditos na insolvência.”
XXII – Os factos que aqui se chamaram à colação e que resultam dos elementos documentais constantes dos autos, tinham obrigatoriamente de ser considerados pelo Tribunal de Primeira Instância para efeitos de apreciação e tomada de decisão quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, o que in casu não aconteceu, em clara e manifesta violação do art. 238.º, n.º 1, alíneas a), e) e g) do CIRE.
XXIII – Ao ter sido proferida a sentença, ora em crise, negligenciando os factos supra expostos, ocorreu erro grosseiro do Tribunal de Primeira Instância na análise e apreciação dos factos, erro que terá ser conhecido pelo Tribunal de Recurso e que importará a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por um acórdão que julgue liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante.
XXIV - Sem prescindir, e apesar de, a nosso ver, ser evidente que deve ser revogada a sentença, ora em crise, vejamos o que em termos de direito o Código de Insolvência e Recuperação de Empresas estabelece a este respeito.
XXV – Estabelece o artigo 235.º do CIRE que se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. A libertação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida – nem podia ser – logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial. Neste contexto, o CIRE estabeleceu fundamentos que justificam, desde log, a não concessão liminar da possibilidade de exoneração do passivo restante, os quais se traduzem em comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram ou a agravaram.
XXVI - Assim sendo, nos termos do n.º 1 do art. 238.º do CIRE, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
XXVII – Entendem os Apelantes que in casu estão verificadas as alíneas a), b), d), e) e g) do n.º 1 do art. 238.º, sendo, por isso, incontestável que nunca poderia ter sido proferida a sentença recorrida. Com efeito, ao ter sido proferida a sentença, ora em crise, ocorreu erro grosseiro do Tribunal de Primeira Instância na aplicação do direito aos factos, em clara e manifesta violação dos artigos 237.º, alínea a), e 238.º, n.º 1, alíneas a), b), d), e) e g) do CIRE, erro que terá necessariamente de ser conhecido pelo Tribunal Superior, em sede de recurso, e importará a revogação da sentença e a sua substituição por um acórdão que julgue liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante, com as demais consequências legais.
XXVIII - Se ainda assim se entender que não deve ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante, o que não se consente, mas apenas se admite por mera hipótese académica, sempre se diga que, de todo o modo, nunca poderá o Tribunal fixar que os Insolventes devem entregar ao fiduciário o rendimento disponível que exceder dois salários mínimos nacionais.
XXIX - A exoneração do passivo restante é determinada pela necessidade de conferir aos devedores - pessoas singulares - uma oportunidade de começar de novo. Para tal, há a confrontação de dois interesses conflituantes:
1) a subsistência dos insolventes;
2) a finalidade primária do processo de insolvência que consiste no pagamento dos credores, à custa dos bens e dos rendimentos que deveriam ser canalizados para a massa insolvente.
XXX - Pensando no nosso caso em apreço, a questão que está aqui em causa, admitindo-se a manutenção do despacho liminar de exoneração do passivo restante, incide sobre a fixação pelo Tribunal de que os insolventes devem ceder ao Fiduciário o rendimento disponível que exceder dois salários mínimos nacionais X 14, o que, em bom rigor, é o mesmo que dizer que os Insolventes nunca terão de ceder qualquer quantia ao Fiduciário, em claro sacrifício dos credores, porquanto resulta dos autos que o Apelado marido aufere uma pensão por velhice no valor mensal de € 517,00 e que a Apelada mulher não aufere quaisquer rendimentos.
XXXI - Na fixação do mínimo necessário ao sustento digno do devedor, há que ter em conta o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, sendo que o Tribunal Constitucional assume o entendimento que a salvaguarda dessa existência é minimamente perfectibilizada com a atribuição do montante equivalente ao do salário mínimo nacional, o qual é suficiente para garantir o pagamento das despesas médias inerentes às necessidades básicas de alimentação, vestuário, calçado, saúde, bem como das relacionadas com a satisfação dos serviços domésticos (água, eletricidade e gás).
XXXII - Como sucede com a generalidade das famílias portuguesas, cabe aos insolventes adequar o seu nível de vida aos rendimentos efetivamente auferidos, fazendo as suas opções quanto às suas necessidades básicas e gerindo as receitas de acordo com critérios de utilidade e normalidade económica como sucede com qualquer outro interessado que receba o salário mínimo nacional.
XXXIII - Com efeito, ponderando o nosso caso em concreto, caso os Apelados não estivessem insolventes e houvesse lugar a penhoras de dinheiro ou de saldos bancários, aquilo quer era impenhorável correspondia ao valor global do salário mínimo nacional. Entendemos, por isso, que o critério imposto pelo n.º 5 do artigo 738.º do CPC também serve aqui de filtro aferidor do rendimento necessário a satisfazer uma existência condigna.
XXXIV - O instituto da exoneração do passivo restante não pode configurar um instrumento habilidosamente empregue unicamente com o objetivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas. Implica, igualmente, empenho e sacrifício do devedor, que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos.
XXXV - Com efeito, atento o exposto, entendem os Apelantes que o Tribunal tem de fixar que os Insolventes devem ceder ao Fiduciário o montante que exceder um salário mínimo nacional x 14 meses, montante que permitirá assegurar que o agregado familiar viva em condições de normalidade e subsistência e que permite, ainda que parcialmente, dar alguma satisfação ao instituto da exoneração do passivo restante e às legitimas expetativas dos credores. Por conseguinte, deve ser revogada a sentença e ser a mesma substituída por um acórdão que julgue que o rendimento disponível que os Insolventes devem ceder ao Fiduciário será no montante que exceder um salário mínimo nacional x 14 meses, o que aqui se requer, com as demais consequências legais.
XXXVI - Em suma, e atento o supra exposto, deve ser dada procedência ao presente recurso, e por via dele, ser revogada a sentença recorrida e ser a mesma substituída por um acórdão que reflita as alterações aqui peticionadas, com as demais consequências legais.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A SENTENÇA, ORA EM CRISE, NOS TERMOS SUPRA EXPOSTOS, COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL JUSTIÇA.

Contra-alegaram os insolventes, pugnando pela manutenção do decidido.

2. Fundamentos de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

a) os requerentes são casados entre si, sendo o respetivo agregado familiar apenas composto por ambos;
b) o requerente marido nasceu em 14.09.1948, está reformado, auferindo uma pensão por velhice, no valor mensal de € 517,30;
c) a requerente mulher nasceu em 23.07.1955, não auferindo quaisquer rendimentos;
d) a requerente mulher sofre de problemas de saúde, estando “muito limitada na marcha, necessita de apoio de canadianas e está impossibilitada para o exercício da profissão e várias manobras do quotidiano”;
e) os requerentes suportam despesas mensais com alimentação, saúde, higiene, vestuário transporte, telecomunicações, habitação, e outras habituais a uma vida normal em sociedade.

3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se na seguinte questão: inexistência do despacho recorrido por violação de caso julgado formado pela decisão de 11 de Junho de 2013, que relegou a prolação do despacho liminar no incidente de exoneração do passivo restante para momento posterior à decisão no apenso de reclamação de créditos.

Insurgem-se os apelantes contra o despacho inicial relativo ao incidente de exoneração do passivo restante que o fixou o rendimento indisponível em dois salários mínimos, por entenderem ocorrer violação de caso julgado, e, subsidiariamente, por estarem verificados os pressupostos para indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, previstos no artigo 238.º, n.º 1, alíneas a), b), d), e) e g) do CIRE.
São os seguintes os factos relevantes para a apreciação da questão da violação do caso julgado, considerados ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.º 4, ex vi artigo 663.º, n.º 2, CPC:
— Em 18 de Janeiro de 2013, foi proferida sentença de declaração de Insolvência de B… e C… e designado dia para realização da assembleia de credores e fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos.
— Em 04 de Junho de 2013, após notificação do Tribunal recorrido, o Sr. Administrador da insolvência apresentou um requerimento, através do qual se pronunciou sobre o pedido de exoneração do passivo restante, informando que foi notificado das impugnações apresentadas pelo credor L…, CRL, bem como pelos próprios insolventes:
— a L… impugnou o reconhecimento dos créditos dos credores E…, Lda. e F…, alegando que:
a) ambos os créditos são fictícios,
b) as confissões de dívida com hipoteca, em que se baseiam os créditos, são simuladas.
c) existem relações especiais familiares e de convívio entre os credores e insolventes.
— os insolventes pronunciarem-se relativamente ao crédito favor da E…, Ld.ª, no valor de € 85.000,00, não existe, pois o contrato de mútuo assinado foi completamente simulado e, como tal, é nulo e de nenhum efeito; e que o crédito reclamado por F…, no valor de € 100.000,00, reconheceram a existência duma dívida de apenas € 30.000,00, dado que os remanescentes € 70.000,00 se reportam a uma dívida da responsabilidade do genro, pelo que, quanto a este último valor, o contrato de mútuo foi simulado.
— Em 11 de Junho de 2013, foi proferido o seguinte despacho:
Req. que antecede: Em face da posição ora manifestada pelo Sr. AI e uma vez que os factos que poderão conduzir ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante irão ser apurados no âmbito da decisão das impugnações à relação de créditos reconhecidos, relego a apreciação do incidente para momento posterior ao trânsito em julgado da decisão a proferir na reclamação de créditos. Notifique.
— Em 06 de Fevereiro de 2017, foi proferido o seguinte despacho, na sequência de requerimento formulado pelos insolventes:
Por outro lado, e quanto a fixar o valor indisponível e o valor a ceder, nos autos foi proferido despacho, já transitado, mediante o qual foi relegada a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante para momento posterior à decisão no apenso de reclamação de créditos, atenta a matéria ali alegada, designadamente acerca da simulação invocada, a envolver os insolventes (cfr. despacho de fls. 195).
— Em 04 de Julho de 2019 foi proferido o seguinte despacho:
Ainda não foi decidido o pedido de início do procedimento de exoneração do passivo restante. Tendo em vista essa decisão, sopesando o longo período de tempo decorrido, considerando a evolução processual, destarte a inexistência do incidente de qualificação da insolvência e o desfecho os apensos de resolução:
a) Notifique insolventes para juntarem em 10 dias CRC actualizado e condições actuais de natureza económica e social e composição do agregado, juntando os comprovativos que entendam convenientes;
b) Notificar Sr. AJ e credores para informarem qual a sua posição actual, sendo que se nada disserem em 10 dias se presume que concordam com o início do procedimento de exoneração.
— Em 17 de Dezembro de 2019 foi proferida a sentença sob recurso.
— Ainda não foi proferida decisão, com trânsito em julgado, no apenso de reclamação de créditos.
Apreciando:
Com efeito, conforme decorre das decisões supra referidas, transitou em julgado a decisão de 11 de Junho de 2013, que relegou a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante para momento posterior ao trânsito em julgado da decisão no apenso de reclamação de créditos, por aí se discutiram questões com interesse para a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante.
Porém, a decisão no apenso de reclamação de créditos ainda não transitou em julgado, o que significa que a 1.ª instância não podia ter proferido a sentença ora recorrida.
Entendem, por isso, os apelantes que o despacho recorrido deve ser considerado juridicamente inexistente.
Embora a lei não contemple a figura da sentença inexistente, doutrina e jurisprudência reconhecem-na em certas circunstâncias.
Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, V, pg.114,
… a sentença inexistente é o acto que não reúne o mínimo de requisitos essenciais para que possa ter eficácia jurídica própria de uma sentença.
A sentença inexistente é um acto material, um acto inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com aparência de sentença, mas absolutamente insusceptível de vir a ter a eficácia jurídica da sentença.
A pg. 118, este autor identifica como requisitos mínimos três elementos constitutivos, cuja falta acarreta a inexistência da sentença: juiz, partes e decisão.
Como exemplos de decisão inexistente aponta, a pg. 113, um escrito sob a forma de sentença, destinada a resolver uma questão, elaborada por um governador civil, médico, um pároco, um barbeiro, salvo se intervierem como árbitro.
Paulo Cunha, Processo Comum de Declaração, vol. II, pgs. 354-5, apud Alberto dos Reis, op. cit., pg, 118, identifica como inexistente a sentença emitida opor quem não está investido de poder jurisdicional, sentença proferida a favor ou contra quem não foi parte no processo, sentença contraditória com outra proferida em primeiro lugar.
Relativamente a este último exemplo, Alberto dos Reis recorda a norma constante do artigo 675.º CPC então vigente, idêntica à do actual artigo 625.º, n.º 1: havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, aplicando-se o mesmo princípio, por força do n.º 2, à contradição existente entre duas decisões, que dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.
Norma, aliás, convocada pelos apelantes, embora, aqui, sem razão.
Com efeito, o despacho sob recurso não transitou em julgado, o que impede a aplicação daquele normativo.
Importa, assim, determinar qual a situação do despacho recorrido.
Obviamente que não se trata de inexistência jurídica, pois apresenta todos os requisitos de um despacho: foi proferido por um juiz em exercício de funções, estão presentes as partes e contém uma decisão, ainda que violadora de caso julgado.
Não se lhe aplicando a figura da inexistência, nem da nulidade por não se quadrar ao elenco taxativo das nulidades enunciadas no artigo 615.º CPC, sendo certo que não pode produzir efeitos por contrariar o caso julgado formado pela decisão, resta-nos a figura da ineficácia.
Como exemplo de ineficácia Lebre de Freitas, A acção declarativa comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 3.ª edição, pg. 329, indica a decisão proferida sobre objecto já coberto por caso julgado (artigo 625.º), não excepcionado ou não reconhecido no processo.
Ora, tendo sido proferida decisão, com trânsito em julgado, no sentido de o despacho liminar no incidente de exoneração do passivo restante ter de aguardar o trânsito em julgado da decisão a proferir no apenso da reclamação de créditos, não podia o Tribunal recorrido ter proferido o despacho recorrido.
Fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação procedente, declara-se a ineficácia do despacho recorrido, devendo a decisão liminar no incidente de exoneração do passivo restante aguardar o trânsito em julgado da sentença a proferir no apenso de reclamação de créditos.
Custas pela parte vencida a final.

Porto, 8 de Setembro de 2020
Márcia Portela
José Igreja Matos
Rui Moreira