Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
342/16.3IDAVR-BB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: CRIMES TRIBUTÁRIOS
SUSPENSÃO DO PROCESSO PENAL
PRESSUPOSTOS
IMPUGNAÇÃO PESSOAL
Nº do Documento: RP20191120342/16.3IDAVR-BB.P1
Data do Acordão: 11/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Nos crimes tributários, são dois os pressupostos exigidos para suspensão do processo penal:
i) A existência de uma impugnação judicial ou oposição à execução fiscal; e
ii) A discussão nesses processos de uma concreta situação tributária de que dependa a qualificação jurídico-penal dos factos imputados ao impugnante ou opositor à execução.
II - A suspensão é possível em todos os crimes tributários, com excepção dos previstos nos art.ºs 90º e 91º.
III - A obrigatoriedade da suspensão é essencial pois o montante/valor da prestação tributária, da atribuição patrimonial, dos produtos objecto da infracção ou da vantagem patrimonial ilegítima é decisiva para a existência de um tipo de crime tributário (e respectiva qualificação em função desse mesmo valor).
IV - Sendo a impugnação estritamente pessoal, não pode ela beneficiar ou prejudicar terceiros sob pena de, assim não acontecendo, se poder vir a responsabilizar outrem pela prática de condutas alheias, o que, de todo em todo é proibido no âmbito do direito penal e respectivo processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 342/16.3IDAVR-BB.P1
Recurso Penal
Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 1

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
No processo comum supra identificado, após despacho de acusação proferido pelo Ministério Público, pela imputada prática de dois crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º e 104º, nº 2, alínea a) e nº 3, do RGIT, requereram os arguidos B…, C…, D… e E…, Lda, ao juiz de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira, que fosse ordenada a suspensão do processo, nos termos previstos no art. 47º, nº 1, do RGIT, invocando, para tanto, a pendência de duas impugnações judiciais no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, que aqui correm termos sob os números 375/19.8BEAVR e 376/19.6BEAVR.
Nesta sequência, foi proferido pela Sra. Juíza de Instrução Criminal o despacho datado de 13/6/2019, que consta de fls. 683/687 (e que aqui se dá por reproduzido).
Não se conformando com esta decisão, dela interpuseram recurso os arguidos, limitado ao segmento que – pronunciando-se sobre o requerimento de suspensão do processo pelos mesmos formulado, por estarem pendentes processos de impugnação judicial no TAF de Aveiro – determinou, ao abrigo do disposto no art. 47º, nº 1, do RGIT, a suspensão do processo, quanto aos recorrentes, “apenas relativamente aos factos e crime imputados relativamente aos quais os arguidos figuram como alegados utilizadores de faturação falsa e bem assim relativamente aos concretos períodos sujeitos a impugnação, excluindo os impostos referentes aos anos de 2010 e 2011, não sujeitos a impugnação”.
Pretendem os recorrentes que seja revogado o despacho impugnado e substituído por outro que suspenda a totalidade do processo. Baseia-se o recurso nos fundamentos descritos na respectiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem [1]:
“1. No despacho recorrido, atenta a unidade do processo, deveria ter sido ordenada a suspensão do todo o processo quanto aos Recorrentes.
2. Aliás, o que se impunha ao tribunal.
3. O despacho carece de fundamentação fáctica e legal, sendo totalmente discricionário.
4. Não há qualquer fundamento legal, nem tal consta do despacho, que justifique a suspensão apenas quanto aos factos relativos ao crime relacionado com a utilização das “facturas falsas”; e já não no que diz respeito à parte da emissão de facturas que vieram a ser utilizadas pela “F…, SA”.
5. Também nenhum fundamento legal existe que permita suspender apenas quanto aos anos de 2012 e 2013, quando os Arguidos/Recorrentes estão acusados de um só crime que em termos temporais diz respeito a alegados factos que vão desde 2010 a 2013.
6. Aliás, o despacho, de forma ilegal, subdivide o mesmo crime em dois, transformando uma acusação por um crime em dois.
7. O que poderá levar os Recorrentes a serem julgados pelos mesmos factos por duas vezes, colocando em causa o princípio do ne bis in idem.
8. O despacho também é ilegal porque procede à separação de processos sem qualquer fundamento legal.
9. O despacho retalha a acusação quanto aos Recorrentes, colocando em causa o princípio da unidade do processo, sem qualquer fundamento que o justifique.
10. Por fim, sem prescindir, se o tribunal suspendeu o processo no que diz respeito aos factos relativos às facturas emitidas pela Recorrente E… e utilizadas pela F…, Lda, a requerimento desta, impunha-se ao tribunal que essa suspensão abarcasse também os aqui recorrentes.
11. O art.° 47.° do RGIT visa acautelar a resolução de questão prejudicial que não cabe na competência material do tribunal penal, mas antes aos tribunais administrativos e fiscais, dando-se assim cumprimento e concretização ao art.° 212.°, n.° 3, da Constituição da República Portuguesa.
12. Sempre que no processo penal tributário exista questão fiscal prejudicial, nomeadamente questão “em que se discuta a situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados”, pendente nos tribunais administrativos e fiscais materialmente competentes para tal, o art.° 47.° do RGIT impõe, ao juiz da causa, a suspensão do processo até que essa questão esteja resolvida.
13. O art.° 47.° do RGIT aplica-se a todos os arguidos para os quais os factos em discussão nos processos de impugnação sejam questão prévia, da qual depende a situação tributária de cuja definição resulta a qualificação criminal.
14. Pelas razões expressas nas alegações, o processo deveria ter sido suspenso quanto aos Recorrentes, por aplicação do art.° 47.° do RGIT, uma vez que os factos que lhe são imputados ainda estão em discussão no Tribunal Administrativo e Fiscal.
15. A norma aplicada com a interpretação que lhe foi dada é inconstitucional por violar o direito a um processo justo e equitativo, violando as garantias de defesa do arguido, uma vez que os Recorrentes vêem a situação fiscal da qual depende a qualificação criminal ser decidida por um tribunal sem competências específicas para tal, havendo, pois, violação do art.° 20.° e do n.° 9 do artigo 32.°, ambos da CRP.
16. Sendo certo que há também violação da competência exclusiva dos tribunais fiscais, o que consubstancia inconstitucionalidade nos termos do n.° 3, do art.°212° da CRP.
17. E, por fim, o art ° 47 ° do RGIT, interpretado no sentido de que só se aplica á sociedade comercial impugnante e aos seus gerentes, mas já não à sociedade comercial emitente das facturas e aos seus gerentes, que com eles estão acusados em co-autoria material pela prática de dois crimes de fraude fiscal qualificada, viola o princípio da igualdade previsto no art.° 13.° da CRP, uma vez que leva a um tratamento desigual, de situações análogas que merecem o mesmo tratamento perante a lei.
18. lnconstitucionalidades estas que, desde já, vão invocadas.
Termos em que o despacho recorrido deve ser revogado, devendo ser substituído por decisão que mande suspender totalmente o processo, quanto aos Arguidos/Recorrentes, nos termos do art.° 47.° RGIT.”.
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O recurso foi admitido para subir de imediato, em separado dos autos principais, e com efeito devolutivo.
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O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª instância apresentou resposta, defendendo a manutenção do despacho recorrido, com os fundamentos constantes do respectivo articulado (e cujo teor aqui se dá por reproduzido), invocando, em síntese, o seguinte:
“A impugnação judicial tem um carácter individual e pessoal, pelo que apenas pode condicionar os efeitos da sua acção em relação a si mesmo, e não em relação a quem não é parte na impugnação, nem nela interveio.
Efectivamente, o caso julgado formado pela decisão proferida em processo tributário ocorre apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram (cfr. art°. 48° do RGIT), pelo que apenas se verifica em relação aos impugnantes perante os quais tal decisão faz caso julgado e não perante quaisquer outros eventuais interessados/arguidos que nesse processo não intervieram, que não ficam, por isso, abrangidos pelo caso julgado.”.
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Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual defendeu a improcedência do recurso, aderindo aos fundamentos contidos na resposta ao recurso apresentada pelo magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância e invocando, para além disso, quanto ao respectivo mérito, a existência de jurisprudência que suporta a decisão recorrida, para além da sua conformidade constitucional (nos termos que constam do respectivo articulado e cujo teor aqui se dá por reproduzido).
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Cumpriu-se o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, sem que tivesse sido apresentada resposta pelos recorrentes.
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Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art. 412.º, n.º 1 e 417º, nº 3, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art. 410º, nº 2 ou o art. 379º, nº 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
No presente caso, o objecto do recurso prende-se, fundamentalmente, com a questão de saber se no despacho proferido pela Exma. Sra. Juíza de Instrução Criminal (datado de 13/6/2019 e constante de fls. 683 e seguintes da presente certidão) foi observado o preceito contido no art. 47º, nº 1, do RGIT.
O despacho objecto de recurso tem o seguinte teor:
“No que se refere ao Reqto. de fls. 6123 e segs.:
Os arguidos E…, Lda., D…, B…, C…, G… e H… vieram invocar encontrarem-se pendentes dois processos de Impugnação Judicial que correm termos no TAF de Aveiro, com os nos. 375/19.8 BEAVR e 376/19.6 BEAVR, requerendo, assim, a suspensão dos presentes autos com tal fundamento.
As certidões das respectivas impugnações ao TAF constam de fls. 6126 e segs.
Estão em causa as impugnações judiciais que deram origem aos identificados processos, pendentes no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, os quais aí deram entrada em 18.04.2019, reportando-se aos seguintes períodos e impostos:
- 2012 e 2013 / IRC e
- 2012 e 2013 / IVA.
A Acusação imputa aos arguidos a prática, em co-autoria material e na formaconsumada, e em concurso real de infracções de:
- 1. Um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelos arts. 103.º e 104.º, n.º 2, als. a) e n.º 3 e art. 7.º do RGIT (NUIPC131/12.8IDAVR – F…, LDA) e
- 2. Um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelos arts. 103.º e 104.º, n.º 2, als. a) e n.º 3 e art.º 7.º do RGIT (NUIPC131/12.8IDAVR – E…, LDA).
Os factos imputados a estes arguidos encontram-se melhor descritos a fls. 324 e segs. e a fls. 458 e segs. da acusação.
Verifica-se que os períodos em causa na acusação reportam-se aos dos anos de 2010 e 2013, bem como aos seguintes impostos: IRC e IVA.
Tais factos encontram-se investigados no âmbito do apenso 131/12.4 IDAVR.
Dispõe o art. 47º, nº. 1 do RGIT que “Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças”.
Ora, constata-se que tendo por referência as concretas impugnações judiciais apresentadas supra aludidas e as questões que nas mesmas se discutem, a pendência das mesmas determina a Suspensão dos presentes autos, relativamente aos impugnantes, ao abrigo do preceituado no dispositivo legal citado, o que se determina, mas apenas relativamente aos factos e crime imputados relativamente aos quais os arguidos figuram como alegados utilizadores de facturação falsa e bem assim relativamente aos concretos períodos e impostos sujeitos a impugnação, excluindo os impostos referentes aos anos de 2010 e 2011, não sujeitos a impugnação.
A Suspensão ora determinada reporta-se, pois, aos pontos 981 ao 984 (sendo esta parte comum à parte a separação e a continuar em apreciação nestes autos), o ponto 984 A) e respectiva tabela, do ponto 984 B) e respectivas tabelas, no que se reporta aos anos de 2012 e 2013 (fls. 595 in fine a fls. 667), do ponto 984 C) e respectivas tabelas, no que se reporta aos anos de 2012 e 2013 (fls. 671 a fls. 674), bem como dos pontos 985 a 994, por referência aos anos supra mencionados, e excluindo os factos relativos à emissão de facturação falsa.
Assim sendo, determina-se a separação de processos relativamente a esta parte da factualidade relativa a estes arguidos, correspondente ao crime indicado sob o ponto 2) do dispositivo mas só relativamente aos anos de 2012 e 2013, organizando-se processo autónomo, o qual ficará suspenso como supra determinado, relativamente aos aludidos arguidos e aos factos em causa (enquanto utilizadores de facturação falsa), devendo os presentes autos prosseguir a sua normal tramitação, relativamente aos demais factos (quer quanto aos anos de 2010 e 2011, quer enquanto emitentes de facturação falsa), sendo que a factualidade vertida na acusação deverá permanecer intacta, dada a responsabilidade a apreciar futuramente relativamente aos emitentes de tais facturas.
A suspensão dos presentes autos quanto a estes arguidos deve ser determinada, até ao trânsito em julgado das Impugnações Judiciais supra identificadas.
Constata-se, também, que à data da prolação da Acusação - 23.11.2018 – ainda não se encontrava pendente a Impugnação, pelo que o processo autónomo a organizar em virtude da separação ora ordenada deverá permanecer na fase de Instrução.
Contudo, para que, de futuro, nenhuma dúvida se suscite, determina-se que, desde já, a Secção aponha uma nota informativa na Acusação alertando para a separação de processos relativamente a estes arguidos na concreta parte determinada supra (factos e crime), por força do preceituado no art. 47º do RGIT.
O processo a organizar deverá ser constituído, desde já, com certidão da acusação, do processo apenso 131/12.8IDAVR e seus anexos, do RAI e tramitação subsequente, determinando-se que o MºPº e a Defesa, caso entendam que tais autos a organizar sejam instruídos com outros elementos o refiram expressamente, no prazo de cinco dias.
Comunique aos referidos processos de impugnação judicial, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do art. 47.º do RGIT, solicitando ainda sejam os autos a organizar informados da decisão final que ali vier a ser proferida e, bem assim, do respectivo trânsito em julgado.
Notifique.”
Para melhor compreensão do respectivo conteúdo e sentido, o despacho que acabou de se reproduzir deve ser complementado com um despacho antecedente, formalmente inserto na mesma peça processual, no qual o tribunal a quo, apreciando pretensão idêntica formulada por outro arguido (I…), discorreu sobre a norma aplicável, interpretando-a em conformidade com decisões deste Tribunal da Relação do Porto, ali invocadas.
Assim, pronunciou-se o tribunal a quo sobre a questão de direito em apreço, nos moldes seguintes:
“Dispõe o art. 47.º, n.º 1 do RGIT que “Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças”.
Compulsados os presentes autos decorre que os processos supra identificados que correm termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto consistem, de facto, em impugnações judiciais intentadas pela sociedade “F…”.
O arguido encontra-se acusado não como representante legal desta sociedade, como melhor decorre do texto acusatório.
O arguido ora requerente I… não figura como impugnante, pelo que a suspensão dos autos a si não aproveita.
Veja-se, neste sentido o Acórdão da Relação do Porto, de 03.07.2013, disponível em www.dgsi.pt, nos termos do qual:
“I - Do art.º 47.º do RGIT resulta que, ocorrendo impugnação judicial de determinada situação tributária, o processo penal tributário suspende-se até ao trânsito em julgado, constituindo essa decisão caso julgado material no processo penal tributário;
II - Tal situação só faz sentido havendo repercussão de um processo no outro – causa prejudicial -, pelo que o objecto de ambos tem de ser o mesmo ou estar numa relação de dependência directa e necessária;
III - Sendo a impugnação estritamente pessoal, não pode ela beneficiar ou prejudicar terceiros sob pena de, assim não acontecendo, se poder vir a responsabilizar outrem pela prática de factos alheios, o que, de todo em todo, é proibido no âmbito do direito penal e respectivo processo”.
A impugnação judicial tem um carácter individual e pessoal, pelo que apenas pode condicionar os efeitos da sua acção em relação a si mesmo, e não em relação a quem não é parte na impugnação, nem nela interveio.
De facto, o caso julgado formado pela decisão proferida em processo tributário ocorre apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram (cfr. art. 48.º do RGIT), pelo que apenas se verifica em relação aos impugnantes, perante os quais tal decisão faz caso julgado e não perante quaisquer outros eventuais interessados/arguidos que nesse processo não intervieram, que não ficam, por isso, abrangidos pelo caso julgado.
De igual forma, no Acórdão do TR do Porto, de 06.06.2012, in www.dgsi.pt refere-se a este propósito que “O carácter individual da suspensão do processo ou prazo de investigação (que suspende de igual modo o prazo de prescrição) (art.º 21.º RGIT e 15o RJIFNA) parece também emergir do disposto no art.º 42.º RGIT e 43.º RJIFNA, ao impor a suspensão do prazo de conclusão dos actos de inquérito, enquanto não for proferida decisão sobre a situação tributária do investigado, sendo também esta investigação de carácter individual.
E por outro lado cremos como no Ac. da RP de 28/03/2012, processo 22/07.0IDAVR-A.P1, in www.dgsi.pt que: “A suspensão do processo penal fiscal (47.º/1 RGIT) em consequência de uma impugnação judicial só reveste caráter obrigatório se a mesma for absolutamente necessária para a decisão da questão prejudicada (crime fiscal ou tributário), de modo que se lhe apresente como um antecedente lógico-jurídico, com caráter autónomo e condicionante do conhecimento da questão principal” por só assim se encontrar legitimada, através da adequação e proporcionalidade, a restrição do direito do arguido à prescrição do procedimento criminal, pelo decurso do prazo previsto na lei penal”.
Não poderá, pois, o arguido beneficiar da suspensão do processo, nos termos do preceituado no art. 47.º do RGIT, pois que o que aí for apreciado e decidido não lhe aproveita, por não ser este impugnante em tais autos, como supra referido.
Assim, com tal fundamento, indefere-se o requerido.
Notifique.”.
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Os recorrentes, discordando do aludido despacho, suscitam diversas questões, que podem ser condensadas da seguinte forma:
1) suspensão apenas quanto aos anos de 2012 e 2013, quando a acusação abrange factos que vão desde 2010 a 2013, englobados num único crime;
2) suspensão do processo apenas quanto aos factos relativos ao crime relacionado com a utilização de facturas “falsas” e não também no que respeita à emissão de facturas “falsas” (posteriormente utilizadas pela sociedade “F…, Lda”);
3) a suspensão do processo relativamente aos factos respeitantes às facturas emitidas pela recorrente “E…” e utilizadas pela “F…”, decidida noutro segmento do mesmo despacho, deveria abranger os recorrentes;
4) a separação de processos determinada no despacho recorrido viola o princípio do ne bis idem;
5) inconstitucionalidade do artigo 47º, do RGIT, na interpretação que lhe é dada no despacho recorrido, seja porque viola o direito a um processo justo e equitativo e as garantias de defesa do arguido (artigos 20º, da CRP), seja porque viola a competência exclusiva dos tribunais fiscais (artigos 32º, nº 9, e 212º, nº 3, da CRP), seja ainda porque leva ao tratamento desigual de situações análogas que merecem o mesmo tratamento perante a lei (artigo 13º, da CRP).
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Estipula o artigo 47.º, n.º 1, do RGIT, na redacção dada pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro – norma que introduz uma restrição ao princípio da suficiência do processo penal, consagrado no art. 7º, nº 1, do CPP -, que “se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.”.
São, pois, dois os pressupostos exigidos para suspensão do processo penal: a existência de impugnação judicial ou de oposição à execução e a discussão nesses processos de uma concreta situação tributária de que dependa a qualificação jurídico-penal dos factos imputados ao impugnante ou opositor à execução.
Como ensinam Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos [2], «a referência exclusiva a processos de impugnação judicial e de oposição à execução fiscal e não também a quaisquer outros processos judiciais tributários indicia que se terão em vista neste art. 47º apenas os casos em que, para apreciar a existência de um crime tributário, pode ser necessário apreciar a legalidade da liquidação de um tributo (como pode suceder, por exemplo, no caso dos crimes de frustração de créditos, de fraude e de abuso de confiança, previstos nos arts. 88º, 103º e 105º do RGIT). Infere-se do regime previsto neste artigo que existe uma opção legislativa no sentido da primazia da jurisdição fiscal para apreciação de questões tributárias, o que tem plena justificação no carácter especializado das questões desta natureza, que está subjacente à atribuição constitucional da competência para o seu conhecimento a uma jurisdição especializada (art. 212º, n.º 3, da CRP) e não à jurisdição comum, em que se inserem os tribunais criminais.”.
A suspensão é possível em todos os crimes tributários, com excepção dos previstos nos arts. 90º e 91º, e a obrigatoriedade da suspensão é essencial, pois o montante/valor da prestação tributária, da atribuição patrimonial, dos produtos objecto da infracção ou da vantagem patrimonial ilegítima é decisiva para a existência de um tipo de crime tributário (e respectiva qualificação em função desse mesmo valor)[3].
Neste sentido, referiu Alfredo José de Sousa (in Infracções Fiscais (Não Aduaneiras), 3ª edição - anotada e actualizada -, 1998, pág. 218, ainda que em relação ao art. 50º, n.º 1, do Regime das Infracções Fiscais não Aduaneiras) que, «para além da impugnação judicial afigura-se-nos que só a oposição à execução fiscal que tenha por objecto o acto tributário definidor do montante do imposto que com o crime fiscal o arguido deixou de pagar deve suspender o processo penal fiscal (cfr. o art. 286º, n.º 1, g), do C. P. T.). Tal suspensão é possível em todos os crimes fiscais, excepto no de violação de segredo fiscal (art. 27º). A obrigatoriedade da suspensão do processo penal é fundamental, pois que o montante do imposto discutido na impugnação judicial ou na oposição à execução fiscal é decisivo quer para a definição da existência de fraude fiscal (alínea a) do n.º 3 do art. 23º), quer para a determinação da multa aplicável em alternativa à prisão (n.ºs 4 e 5 do art. 23º e n.ºs 1, 4 e 5 do art. 24º)».
Verifica-se, assim, que a decisão de suspensão do processo penal, em caso de impugnação judicial tributária ou oposição à execução, exige que se averigue se, na impugnação judicial ou na oposição à execução, está em causa matéria em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados.
É que, como vem sendo uniformemente reconhecido pela doutrina e jurisprudência [4], a suspensão do processo penal não é automática e só é obrigatória se a questão em discussão na impugnação judicial tributária se apresentar como uma verdadeira questão prejudicial naquele processo.
Nas palavras do acórdão desta Relação do Porto, datado de 23/1/2013 (e disponível em www.dgsi.pt), “A pendência de impugnação judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal não determina, ipso facto, a suspensão do processo penal tributário, sendo necessário que a questão nela suscitada seja prejudicial relativamente ao objecto deste processo.”. Ou, ainda, como se afirma no acórdão deste TRP, de 6/6/2012 (igualmente disponível em www.dgsi.pt), “só reveste carácter obrigatório se a mesma for absolutamente necessária para a decisão da questão prejudicada (saber se integra crime fiscal ou tributário), de modo que se lhe apresente como um antecedente lógico jurídico, com carácter autónomo e condicionante do conhecimento da questão principal.”.
Por sua vez, o artigo 95º, da LGT, confere ao interessado o direito de impugnar ou recorrer de todo o ato lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, sendo como tal considerados os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido (artigo 65º, da LGT), o que parece apontar para a natureza estritamente pessoal da impugnação dos actos tributários, que só nessa medida pode ser considerada no âmbito do processo penal.
Embora se reconheça a falta de unanimidade na jurisprudência a propósito desta matéria [5], na maioria das decisões proferidas por este Tribunal da Relação do Porto, que analisaram especificamente esta questão, concluiu-se que, sendo a impugnação estritamente pessoal, não pode beneficiar ou prejudicar terceiros, designadamente os arguidos (eventualmente comparticipantes) não impugnantes.
Referimo-nos aos acórdãos disponíveis em www.dgsi.pt e datados de 20/5/2009 (Relator: Desembargador Francisco Marcolino), de 5/1/2011 (Relator: Desembargador Ernesto Nascimento) e de 3/7/2013 (Relator: Desembargador José Carreto), sendo invocados, neste último – depois de se reconhecer que “a resposta não é unânime nem única” -, os seguintes argumentos para fundamentar a posição perfilhada:
“Temos seguido, e a ela é feita referência na motivação do recurso, a orientação de que a suspensão respeita apenas ao impugnante e ou apenas é extensiva aos arguidos directamente afectados com essa decisão. E vai nesse sentido, para além da possibilidade de no mesmo processo penal tributário ocorrerem diversas situações tributárias autónomas (envolvendo ou relativas a diferentes pessoas /sociedades, ou a diferentes impostos), o seguinte:
- O carácter individual e pessoal da acção judicial do impugnante, que apenas pode condicionar os efeitos da sua acção em relação a si mesmo, e não em relação a quem não é parte na impugnação, nem nela interveio, sendo esta uma característica intrínseca do efeito do caso julgado das decisões judiciais, que só produzem efeito, em regra, perante quem é parte na causa ou nela interveio;
E se da letra do artº 47ºRGIT (50º RJIFNA), poderia inferir-se o contrário, por se referir a todo “o processo penal fiscal”, o certo é que tal facto é desde logo contrariado pela referência ás “respectivas sentenças”, o que inculca desde logo a existência ou possibilidade de existência de diversos arguidos e diversas impugnações ou oposições (pois o uso do plural, para significar outra coisa era desnecessário), e por outro lado o artº 48º RGIT (e 51º RIJFNA) ao fixar os efeitos da decisão tributária, determina que “constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram” do qual resulta a limitação do caso julgado apenas ás questões nele decididas e nos seus precisos termos, o que só pode entender-se como referindo-se apenas aos impugnantes perante os quais faz caso julgado e não perante quaisquer outros eventuais interessados / arguidos que nesse processo não intervieram, que não ficam por isso abrangidos pelo caso julgado.
- O carácter individual da suspensão do processo ou prazo de investigação (que suspende de igual modo o prazo de prescrição (artº 21º RGIT e 15º RJIFNA) parece também emergir do disposto no artº 42º RGIT e 43º RJIFNA, ao impor a suspensão do prazo de conclusão dos actos de inquérito, enquanto não for proferida decisão sobre a situação tributária do investigado sendo também esta investigação de carácter individual.”.
Para além da natureza individual da impugnação e do carácter restrito (e, por isso, também pessoal) do efeito do caso julgado da sentença proferida em processo de impugnação judicial (ou análogo) [6], também a natureza estritamente individual da prescrição do procedimento criminal [7] indica ser esta a melhor solução do problema.
Se o artigo 47.º do RGIT - e a norma idêntica que a precedeu, contida no artigo 50.º do RJIFNA - por um lado, visa garantir a receita fiscal do Estado e, por outro, obstaculizar a que a dedução da impugnação possa favorecer o surgimento da prescrição do procedimento criminal, dúvidas, então, não subsistirão de que só poderá ser aplicável aos subscritores da impugnação e não a quaisquer outros que com eles possam ter tido uma ligação, ainda que incidental (como sejam os que lhes forneceram as facturas).
Ou seja, sendo a impugnação estritamente pessoal, não pode ela beneficiar ou prejudicar terceiros sob pena de, assim não acontecendo, se poder vir a responsabilizar outrem pela prática de factos alheios, o que, de todo em todo é proibido no âmbito do direito penal e respectivo processo [8].
Neste enquadramento – tendo presente o regime legal aplicável, do qual, como vimos, resulta que a suspensão do processo penal só opera relativamente às questões objecto da impugnação que se mostrem prejudiciais no processo penal e relativamente aos seus autores (na sequência da interpretação efectuada pela jurisprudência atrás mencionada e por nós perfilhada) – a primeira conclusão a extrair será a de que dúvidas não haverá quanto ao acerto da decisão, ao excluir da suspensão os efeitos derivados da impugnação judicial deduzida pela sociedade arguida (e comparticipante da recorrente) “F…, Lda”, em si mesmos considerados.
Isto porque, como vimos, a impugnação judicial deduzida pela sociedade “F…, Lda” não aproveita aos aqui recorrentes, dado o carácter pessoal do processo de impugnação, para além de que acresce o facto de inexistir qualquer situação de litispendência entre aquele processo de impugnação tributária e o processo penal em causa (desde logo porque versam matérias de diferente natureza e nem sequer há identidade de sujeitos, como justamente salienta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer).
Contudo, os recorrentes invocam igualmente o conteúdo das impugnações judiciais apresentadas pela sociedade recorrente E…, Lda, com o objectivo de obterem o efeito de suspensão total do presente processo penal tributário.
E, relativamente a esta pretensão, o tribunal a quo decidiu restringir a suspensão do processo penal ao crime de fraude fiscal que tem por base a utilização de facturas falsas, mas unicamente por referência aos factos ocorridos em 2012 e 2013 – com o argumento de que os factos relativos aos anos de 2010 e 2011 não constituíram objecto da impugnação judicial deduzida pela recorrente E…, Lda -, dele excluindo, ainda, o crime de fraude fiscal que tem por base a emissão de facturas falsas.
Analisado o conteúdo das impugnações judiciais deduzidas pela recorrente E…, Lda, verifica-se que a sociedade arguida, nestes processos, impugna as liquidações adicionais de IRC e de IVA relativas (unicamente) aos anos de 2012 e 2013, pondo em causa os resultados do procedimento de inspecção, invocando, para tanto, a veracidade das facturas desconsideradas pela Autoridade Tributária, por referência quer às facturas de compra, quer às facturas de venda, aduzindo que todas elas tiveram por base transacções reais, não se tratando, assim, de facturas falsas.
Deste modo, reconhecemos razão aos recorrentes quando invocam que os fundamentos da impugnação judicial abrangem não só as facturas (alegadamente falsas) utilizadas pela impugnante/recorrente E…, Lda, mas também as facturas por ela emitidas, resultando tal conclusão da análise do conteúdo das impugnações judiciais constantes da certidão remetida a este tribunal de recurso.
Excluída a hipótese de possibilidade de aproveitamento da impugnação judicial deduzida por terceiros, interessa-nos, neste momento, a delimitação do efeito das impugnações judiciais deduzidas pela recorrente E…, Lda ao nível do presente processo penal tributário.
Comecemos, para tanto, por delimitar o objecto do presente processo.
A acusação, imputando dois crimes de fraude fiscal qualificada aos recorrentes, concretiza a execução dos mencionados ilícitos típicos nos seguintes procedimentos:
A) Emissão de facturas pela recorrente E…, Lda para serem utilizadas pela sociedade “F…, Lda” (facturas falsas, por não corresponderem a qualquer transacção real entre estas sociedades – cfr. páginas 326, 328 e 459/460 do despacho de acusação);
B) Utilização de facturas (falsas) relativas a compras simuladas de apara broca, contabilizadas na escrita da recorrente E…, Lda (cfr. páginas 460/461 do despacho de acusação);
C) Emissão de facturas timbradas em nome da sociedade F…, Lda, emitidas para a sociedade E…, Lda, relativas a alegados serviços de transportes de apara de cortiça (cfr. página 462 do despacho de acusação).

No elenco das facturas contabilizadas pela sociedade “F…, Lda” constam doze facturas em que figura como entidade emitente a recorrente E…, Lda (cfr. fls. 503/504 do despacho de acusação), sendo certo que tais facturas – todas elas datadas do ano de 2013 - encontram-se abrangidas pelas impugnações judiciais deduzidas pela recorrente e que deram origem aos processos de impugnação judicial nº 375/19.8BEAVR e nº 376/19.6BEAVR, como se constata da análise das certidões constantes de fls. 6126 e seguintes e de fls. 6176 e seguintes, respectivamente.
Se bem entendemos os pressupostos da acusação, nesta o MP optou por aglutinar em dois crimes de fraude fiscal distintos os comportamentos em que a recorrente E…, Lda emitiu facturas (alegadamente falsas e subsequentemente utilizadas pela sociedade arguida “F…, Lda) [9] e utilizou facturas (alegadamente falsas e emitidas, entre outras entidades, pela mesma sociedade arguida “F…, Lda”), deduzindo-as na sua contabilidade (cfr. fls. 458/464 do despacho acusatório).
Ora, no despacho recorrido não se encontra explicitado o motivo pelo qual se restringiu o âmbito e eficácia da suspensão do processo penal tributário ao crime de fraude fiscal imputado à recorrente E…, Lda, na parte que se relaciona, unicamente, com a utilização por esta de facturas falsas, excluindo daqueles âmbito e eficácia da suspensão a emissão pela recorrente das facturas com as mesmas características.
E não se descortina, de facto, qualquer razão para efectuar esta restrição, a partir da análise dos elementos disponíveis nos autos, sendo certo que, como vimos, os fundamentos da impugnação judicial abrangem não só as facturas (alegadamente falsas) utilizadas pela impugnante/recorrente E…, Lda, mas também as facturas por ela emitidas e subsequentemente utilizadas pela sociedade “F…, Lda” (cfr., sobretudo, os pontos 48), 50), 51), 81) a 116) dos processos de impugnação 375/19.8BEAVR e 376/19.6BEAVR – liquidações adicionais de IRC e de IVA, relativas aos anos de 2012 e 2013 -, de cuja leitura resulta claramente evidenciada a impugnação deduzida pela recorrente direccionada à emissão das mencionadas facturas, subsequentemente utilizadas pela sociedade “F…, Lda” e por esta contabilizadas).
Afigura-se-nos, assim, existir razão aos recorrentes quanto a este segmento do recurso, impondo-se a suspensão do processo penal também quanto ao crime de fraude fiscal, na modalidade da emissão de facturas (falsas), subsequentemente utilizadas pela sociedade arguida “F…, Lda”.
Além disso, parece-nos legalmente inadmissível a cisão operada pelo tribunal a quo relativamente ao crime de utilização de facturas (falsas) pela recorrente E…, Lda e respectivos gerentes/representantes – crime este que a acusação configurou como uma unidade, reportado à totalidade do período temporal em apreço e materializado na execução plúrima e sucessiva dos diversos comportamentos ilícitos, ali descritos e susceptíveis de o integrar.
É verdade que a jurisprudência dos tribunais superiores que se debruça sobre esta matéria vem salientando a necessidade de organização de certidão para processo autónomo, quando está em causa uma suspensão parcelar do processo penal tributário [10].
Com efeito, dado que, como vimos, a impugnação judicial deduzida apenas por alguns dos arguidos não aproveita aos demais, não há qualquer dúvida quanto à conveniência da separação de processos, à luz do disposto no art. 30.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal.
É que, por um lado, a manutenção da unidade do processo poderia retardar excessivamente o julgamento, relativamente aos arguidos não impugnantes, pondo em causa os seus interesses, e, por outro, o retardamento do julgamento criaria o risco de prescrição do procedimento criminal relativamente a esses mesmos arguidos, pondo em causa a pretensão punitiva do Estado [11], uma vez que só relativamente aos impugnantes é que se suspende o prazo de prescrição (art. 120.º, n.º 1, alínea a), do C. Penal) [12].
Contudo, esta separação (formal) do processo não pode ser levada até ao limite, impondo-se a preservação da integridade e unidade intrínseca dos crimes em questão.
O tribunal a quo, argumentando que a impugnação judicial deduzida pela recorrente apenas visava as liquidações adicionais de IRC e IVA reportadas aos anos de 2012 e 2013, e procurando salvaguardar a coerência do pressuposto da prejudicialidade em que assenta a possibilidade de suspensão, acabou por desmembrar o crime único de fraude fiscal (na modalidade de utilização de facturas falsas) em dois, por referência a dois períodos temporais distintos: 2010 e 2011, período não abrangido pelo objecto da impugnação e, que por isso, ficaria a salvo do efeito da suspensão, prosseguindo o julgamento para apuramento dos factos relacionados com o crime de fraude fiscal executado naquele período temporal; 2012 e 2013, período especificamente abrangido pela suspensão e em relação ao qual se produziria a suspensão, determinando a separação de processos, nesta parte.
Decidindo desta forma, o tribunal a quo desarticulou o crime único de fraude fiscal (na modalidade de utilização de facturas falsas), subdividindo-o em dois, numa construção artificial que a nossa lei não consente [13], pondo em causa a estrutura acusatória do processo [14] e, eventualmente, criando ao tribunal de julgamento dificuldades e obstáculos desnecessários na articulação com o princípio da proibição do ne bis in idem.
Deste modo, e efectuando uma adequada ponderação dos interesses conflituantes, impõe-se a salvaguarda da consideração unitária do crime de fraude fiscal (na vertente da utilização de facturas falsas) imputado aos recorrentes [15], determinando a suspensão do processo penal tributário, no que aos recorrentes concerne, também quanto aos factos relativos ao período de 2010/2011.
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III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro, no qual se determine a suspensão do processo penal tributário, relativamente aos recorrentes, também quanto ao crime de fraude fiscal na modalidade de emissão de facturas (falsas) e, no que concerne ao crime de fraude fiscal na modalidade de utilização de facturas (falsas), por todo o período temporal em causa (2010, 2011, 2012 e 2013).
Sem custas do presente recurso.
Notifique.
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP)
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Porto, 20 de Novembro de 2019.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
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[1] Mantendo-se a ortografia original do texto.
[2] In “Regime Geral das Infracções Tributárias”, Anotado, 2008, págs. 403/404.
[3] Como elucidam Tolda Pinto e Reis Bravo, in “Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais”, Anotado, 2002, pág. 173.
[4] Sendo abundante a jurisprudência sobre esta matéria, cfr., a título exemplificativo, os acórdãos do TRL, de 15/1/2013 e de 22/1/2019; e os acórdãos deste TRP, de 6/6/2012, 1/2/2006, 28/3/2012, 31/10/2018 – todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[5] Existindo jurisprudência minoritária que defende que os efeitos da impugnação judicial são extensíveis aos arguidos não impugnantes, desde que se verifiquem, também quanto a eles, os pressupostos já analisados, o que poderá suceder em casos de conexão/comparticipação.
Neste sentido decidiu o acórdão do TRG, datado de 27/5/2019, invocado pelos recorrentes.
[6] Como é salientado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, tornando claro que o processo penal não se suspende relativamente a qualquer facto ou pessoa que não seja abrangida pela sentença proferida no processo de impugnação (cfr. Jorge Sousa e Simas Santos, in Regime Geral das Infrações Tributárias, Anotado, Áreas Editora, 2ª edição, 2003, pg. 363).
[7] Como é salientado no mencionado acórdão do TRP, de 5/1/2011, apesar de estarmos no domínio de um crime plurisubjectivo ou de comparticipação necessária, é inequívoco que a prescrição do procedimento criminal reveste, nitidamente, natureza individual.
[8] Expressamente neste sentido pronunciam-se os três arestos atrás citados.
[9] Como resulta de fls. 1143 do despacho de acusação, o comportamento ilícito dos recorrentes foi igualmente valorado na aferição do valor global da vantagem patrimonial ilegítima obtida pela sociedade arguida “F…, Lda” e respectivos gerentes.
[10] Como sucederá, e também neste caso sucede, quando a suspensão apenas se produz quanto a algum ou alguns dos intervenientes, devendo o processo penal tributário seguir os seus termos normais para o apuramento da responsabilidade criminal daqueles que por ela não são abrangidos.
[11] Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal – à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3ª edição, pág. 107), em anotação ao art. 30.º do CPP, que regula a separação dos processos, o “grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado inclui o da prescrição do procedimento criminal”.
[12] Por este motivo, logo que sejam intentadas as acções de impugnação judicial deve ser extraída certidão para prossecução do procedimento criminal contra os não impugnantes, como adverte o mencionado acórdão do TRP, de 5/1/2011.
[13] Já que a separação de processos faz cessar a conexão previamente operada e o ponto de partida para a interpretação das disposições legais sobre a competência por conexão assenta na constatação de que, nas hipóteses de conexão de processos, estão em causa objectos processuais distintos, situações da vida que podem constituir objecto de um processo autónomo que pode ser julgado em separado.
[14] A definição do objecto do processo pelo MP e consequente vinculação temática do tribunal.
[15] Ainda que tal implique uma amplificação dos efeitos normais da suspensão decorrente do processo de impugnação.