Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1413/21.0T8VLG-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FALTA DE PAGAMENTO DAS RENDAS
TÍTULO EXECUTIVO
INDEMNIZAÇÃO PELA MORA
REQUISITOS DO DEVER DE COMUNICAÇÃO
Nº do Documento: RP202205041413/21.0T8VLG-D.P1
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O título executivo a que se reporta o art. 14º-A do NRAU tem natureza complexa, sendo integrado pelo contrato de arrendamento e pela comunicação ao devedor (arrendatário ou fiador).
II - O título executivo do dito art. 14º-A do NRAU confere ao exequente suporte para a realização coactiva do valor inerente às rendas “em dobro”, rectius, “indemnização” pela mora na restituição do locado, a que se refere o artigo 1045º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, a par das “rendas” singulares igualmente em dívida.
III - Não obstante, tem de constar da comunicação feita que serão peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, em ordem a que tais valores estejam abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos.
IV - Por sua vez, o conhecimento imediato do mérito no despacho saneador só é legítimo se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes segundo as soluções plausíveis da questão de direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2022:1413/21.0T8VLG-D.P1


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
S..., com sede na Avenida ... Lisboa instaurou execução ordinária para pagamento de quantia certa contra os arrendatários AA e BB e contra o fiador CC, com base no disposto no artigo 14º-A, do Novo Regime do Arrendamento Urbano/NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27/02, na redacção conferida pela Lei n.º 13/2019, de 12/02, onde fixou a quantia exequenda na quantia global de € 20.438,25, assim discriminada:
i) €1.200,00, referente às rendas vencidas e não pagas;
ii) €19.200,00, a título de indemnização pelo atraso da restituição do Locado;
iii) €38,25, referente à liquidação da taxa de justiça devida pela entrada da presente acção judicial.
Consta do requerimento executivo:
“1. O Exequente é legítimo proprietário da fração autónoma designada pelas letras “AG”, correspondente ao 4.º Piso, com entrada pelo n.º ... da Rua ... Gondomar, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em Gondomar, freguesia ... (...), ... e ... e concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o n.º ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., conforme resulta do Doc. n.º 1 que aqui se junta e tem por integralmente reproduzido.
2. Em 1 de Março de 2014, o Exequente e os Executados - Arrendatários - celebraram um contrato de arrendamento habitacional, mediante o qual o Exequente deu de arrendamento aos Executados e estes tomaram de arrendamento o prédio urbano para habitação melhor identificado no artigo 1.º, conforme resulta do Doc. n.º 2 que aqui se junta e tem por integralmente reproduzido.
3. O contrato de arrendamento para habitação foi celebrado pelo prazo de 5 (cinco) anos, com início no dia 1 de Março de 2014 e termo em 28 de Fevereiro de 2019, renovável por períodos de 1 (um) ano (cf. Doc. n.º 2, Cláusula 2., n.º 1).
4. A renda mensal contratada teve o valor inicial de 300,00€ (trezentos euros), que se
vencia no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeita (cfr. Doc. n.º 2. Cláusula 4., n.º1.)
5. Porém, os Executados não efetuaram o pagamento:
• Das rendas referentes aos meses de Maio, Julho, Setembro e Outubro de 2016, no montante de global de 1.200,00€ (setecentos e cinquenta euros) - €300,00 x 4 meses.
6. Por meio de carta registada com aviso de recepção remetida a 21 de Setembro de 2016 para a morada convencionada pelas partes - a morada do imóvel objecto do contrato – na Cláusula 10., do Doc.1, - o Exequente procedeu à resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas, interpelando ainda os Executados Arrendatários para estes efetuarem o pagamento das quantias que mantinha em dívida, a título de rendas vencidas e não pagas e, caso se verifique, da indemnização por mora na restituição do imóvel, Doc. 3 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
7. Ambas as comunicações não foram recebidas pelos Executados Arrendatários, tendo sido devolvidas por os destinatários não terem procedido ao seu levantamento no prazo previsto no regulamento dos serviços postais, porém, considera-se que a mencionada comunicação foi regularmente efectuada no dia da sua devolução, nos termos do artigo 10.º, n.º 1 al. a) e n.º 2 al. b) do NRAU, na redação conferida pela Lei n.º Lei n.º 79/2014, de 19/12, constituindo Requerimento Executivo entregue por via electrónica na data e hora indicadas junto da assinatura electrónica do subscritor, aposta nos termos previstos na Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto.
8. Do mesmo modo, por meio de carta registada com aviso de recepção remetida a 06 Maio de 2020, o Exequente comunicou ao Executado Fiador que havia procedido à resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas, interpelando este para efetuar o pagamento das quantias em dívida, a título de rendas vencidas e não pagas e a título de indemnização pelo atraso na entrega do Locado, Doc. 4 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
9. Comunicação recebida por pessoa diferente do Executado Fiador a 07 de Maio de 2020, cf. Doc. 4.
10. Pelo facto facto de ter sido recepcionado por uma pessoa diferente do Executado Fiador, o Exequente procedeu a nova comunicação por meio de carta registada com aviso de recepção remetida a 04 Junho de 2020, cf. Doc. 4.
11. Tendo o aviso de receção sido novamente assinado por pessoa diferente do destinatário, considera-se a comunicação recebida no 10.º dia posterior ao do seu envio, cfr. Doc. 4.
12. No decorrer do prazo atribuído aos Executados para que estas procedessem ao fim da mora (n.º 3 do artigo 1084º do Código Civil), estes não efetuaram qualquer pagamento, nem o seu recebimento foi recusado pelo Exequente.
13. Considerando-se o presente contrato de arrendamento habitacional resolvido a 02.09.2016.
14. Apesar do contrato de arrendamento ter sido resolvido a 30.09.2016, o Locado só foi restituído ao Exequente a 02.07.2019.
15. O Arrendatário tem como obrigação restituir o Locado ao Senhorio logo que finde o contrato, caso assim não proceda deverá pagar a título de indemnização um montantes corresponde à renda.
16. Caso o Arrendatário não proceda à restituição do Locado ao Senhorio e cumulativamente entre em mora no pagamento da indemnização, esta devera ser elevada ao dobro, nos termos do artigo 1045.º do C.C..
17. Em razão da não pronta restituição do Locado ao Senhorio os Executados deverão indemnizar este no montante de 19.200,00€ (trinta e sete mil e cem euros) - (300,00€ renda x 32 meses) x 2.
18. Pelo exposto, na presente data, os Executados devem ao Exequente a quantia global de 20.438,25€ (vinte mil quatrocentos e trinta e oito euros e vinte e cinco cêntimos), assim melhor discriminada:
i) 1.200,00€ (setecentos e cinquenta euros), referente às rendas vencidas e não pagas;
ii) 19.200,00€ (trinta e sete mil e cem euros), a título de indemnização pelo atraso da
restituição do Locado;
iii) 38,25€ (trinta e oito euros e vinte e cinco cêntimos), referente à liquidação da taxa de justiça devida pela entrada da presente ação judicial.
19. Atento o disposto no artigo 14.º-A do NRAU: “O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário.” .
20. Os Executados Fiadores são responsáveis pelo pagamento dos valores em dívida nos mesmos termos dos Executados Arrendatários, tendo também sido interpelado pelo Exequente por comunicação com o conteúdo supra-mencionado - cfr. Doc. 4 que ora se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais - cfr. neste sentido, por todos Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22/10/2015, Proc. 4156-13.4TBALM-B.L1-8, in www.dgsi.pt..
21. Conforme os n.ºs 8.1. e 8.2. da Cláusula Oitava do contrato de arrendamento, melhor identificado no artigo 2, “8.1. - O Fiador obriga-se, na qualidade de obrigado principal e solidariamente com o Arrendatário, renunciando ao beneficio da excussão prévia, a procede ao pagamento ao Senhorio de qualquer importância que sejam devidas pelo Arrendatário a título da celebração, execução ou cessação do presente contrato, suas renovações e aditamentos, incluindo indemnizações e por não cumprimento e, bem assim, declara que a fiança que acaba de prestar subsistirá ainda que haja alteração de renda fixada no arrendamento.
8.2. - A fiança vigorará pelo período inicial de duração do contrato e subsequentes renovações.”.
22. A dívida é certa, líquida e exigível, pelo que se requer a V. Exa. se digne admitir a
presente execução, proferindo despacho liminar e ordenando o prosseguimento dos autos, ao
abrigo do disposto nos artigos 726.º e seguintes do C.P.C.
23. Devendo ainda os Executados serem condenados no pagamento de juros à taxa de 5% ao ano sobre a quantia em dívida, desde a data de trânsito em julgado da sentença até integral e efetivo pagamento, conforme o n.º 4 do art.º 829.º-A do Código Civil.”
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Por apenso aos referidos autos de execução, veio o executado AA deduzir oposição à execução mediante embargos onde concluiu pedindo que a oposição seja julgada procedente, absolvendo-se o executado/oponente de ser condenado a satisfazer o pagamento das quantias que se reclamam na execução.
Alegou, em síntese, ter denunciado o contrato em 30 de Abril de 2016, com efeitos para o dia um do mês de agosto do mesmo ano, tendo entregue a chave em meados do referido mês, aceitando que se mostre, apenas, em falta o pagamento da renda do mês de Maio.
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Recebidos os embargos, o exequente apresentou contestação.
Alegou, em síntese, que resolveu o contrato por falta de pagamento das rendas dos meses de Maio, Julho, Setembro e Outubro de 2016, resolução que operou em 30 de Setembro de 2016, em virtude da carta de denúncia do contrato de arrendamento datada de 30 de Abril de 2016 não vir acompanhada das chaves do bem imóvel.
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Foi proferido despacho saneador, tendo a Sr.ª Juiz a quo julgado, desde logo, extinta a execução relativamente à quantia de €9.600,00 por entender que a exequente não dispõe de título nessa parte (€19.200,00:2), determinando, no demais, o prosseguindo dos autos de embargos para julgamento.
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Não se conformando com o segmento da referida decisão, veio o recorrente S... interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

I. Na comunicação/interpelação remetida ao Executado, o Recorrente para além peticionar o pagamento das rendas vencidas e não pagas relativas aos meses de Maio, Julho, Setembro e Outubro de 2016, no montante global e 1.200,00€ (mil e duzentos euros), declara que caso o imóvel não seja restituído tempestivamente após a resolução do contrato iria exigir o pagamento da indemnização, nos termos do 1045.º do C.C.

II. Sendo o montante da indemnização legalmente fixado, ou seja, a indemnização encontra-se liquida pela própria Lei, contendo a comunicação/interpelação todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes que permaneceriam em débito em caso de incumprimento da restituição do imóvel após resolução do contrato.

III. Por outro lado, não resta dúvidas que os montantes peticionados a título de indemnização por não restituição do locado (art.º 1045º, n.º2 do CC), encontrando-se abrangidos pelos limites definidos pelo título executivos constituído pelo 14.º-A do NRAU, não extravasando o seu âmbito de aplicação e preenchendo os factores que determinam a sua exigibilidade.

IV. Mais, nos termos decisórios do despacho saneador verifica-se a aplicação mista e no seu todo mais complexa do artigo 1045.º do CC, apesar de dar como exigíveis as indemnizações por mora na restituição do imóvel (1045.º n.º 2 do CC), legalmente fixada em dobro do valor da renda, restringe o montante da indemnização ao valor em singelo da renda (1045.º n.º 1 do CC), verificando-se a aplicação enviusada da norma, restringindo o legalmente estipulado e determinado na Lei substantiva em caso de verificação do incumprimento do facto que determina a verificação da mora na restituição do imóvel, o qual se deu por comprovado verificado que está que a execução prossegue quanto a metade da indemnização “€9.600,00 (€19.200,00:2)”.

V. Não se antevendo razoabilidade em dar como devidos 32 (trinta e dois) meses a título de indemnização por mora na restituição do imóvel, contudo, e a contrário do plasmado por Lei substantiva, aplicar a essa indemnização o valor em singelo, como se o facto jurídico que é a restituição do imóvel ainda tivesse por ocorrer, em arrepio à norma.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pelo recorrente, bem como das questões que são de conhecimento oficioso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso prendem-se com saber:
- Se o artigo 14º-A do NRAU abrange a indemnização a que se refere o artigo 1045º do Código Civil;
- Se se encontram reunidos os pressupostos para apreciação do mérito parcial dos embargos em sede de despacho saneador.

3. Conhecendo do mérito do recurso
Decorre do disposto no artigo 14º-A do NRAU, sob a epígrafe “Título para pagamento de rendas, encargos ou despesas” que: «O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário».
Por sua vez, dispõe o artigo 1045º do Código Civil, com a epígrafe de “Indemnização pelo atraso na restituição da coisa” que:
«1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.»
Importa ainda ter presente que, nos termos do disposto no artigo 703º, al. d) do Código de Processo Civil «à execução (…) podem servir de base (…) os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva».
Como é sabido, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva (artigo 10º, n.º 5 do Código de Processo Civil).
Ora, de entre as espécies de títulos executivos taxativamente previstos na lei adjectiva, figuram os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva (artigo 703º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil).
Ora, o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário (artigo 14º-A, n.º 1 do NRAU).
Ademais, o contrato de arrendamento, quando acompanhado da comunicação ao senhorio do valor em dívida, prevista no n.º 3 do artigo 22º-C do regime jurídico das obras em prédios arrendados, aprovado pelo DL n.º 157/2006, de 08.8, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente à compensação pela execução de obras pelo arrendatário em substituição do senhorio (n.º 2).
De resto, constituindo-se o locatário em mora, o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a 20 % do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento (artigo 1041º, n.º 1 do Código Civil).
Além disso, se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida (artigo 1045º, n.º 1 do Código Civil, sob a epígrafe “indemnização pelo atraso na restituição da coisa”). Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro (n.º 2).
Como é sabido, é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo seguinte (artigo 1083º, n.º 3 do Código Civil).
Temos presente que a interpretação jurídica tem por objecto descobrir, de entre os sentidos possíveis da lei, o seu sentido prevalente ou decisivo - cfr. José Oliveira Ascensão, in “O Direito, Introdução e Teoria Geral”, 11.ª edição, revista, Livª Almedina, 2001, a págs. 392..
A apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal.
Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica - cfr. Karl Larenz, in “Metodologia da Ciência do Direito”, 3.ª edição, tradução, a págs. 439-489; Baptista Machado, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, a págs. 175-192; Francesco Ferrara, in “Interpretação e Aplicação das Leis”, tradução de Manuel Andrade, 3.ª edição, 1978, a págs. 138 e segs.
Ora, em matéria de interpretação das leis, o artigo 9º do Código Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender essa tarefa, começando por estabelecer que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (nº 1); o enunciado linguístico da lei é, assim, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (nº 2); além disso, «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (nº 3).
Dito isto, importa referir que na nossa jurisprudência não tem sido pacífico o entendimento sobre a primeira questão em apreciação, pois que já tem sido entendido que o título abrange as rendas vincendas mas não a indemnização devida, reportando-se o citado artigo 14º-A do NRAU, apenas às rendas e encargos. - cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.10.2011, proferido no processo nº 8436/09.5TBVNG-A.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp
Não é esse, contudo, o nosso entendimento.
Isto porque entendemos que a expressão “renda” foi empregue no referenciado artigo 14º-A do NRAU com o sentido que abrange a indemnização prevista no artigo 1045º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, na medida em que o desiderato legal que faculta a cobrança executiva de verdadeiras “rendas” ao abrigo desse normativo é precisamente idêntico ao desiderato legal que justifica a cobrança de indemnizações que são sucedâneo de verdadeiras rendas.
Com efeito, «Com o NRAU quis-se alargar a eficácia executiva conferida a actos promovidos pelos senhorios, precisamente para evitar o recurso a acções declarativas, sendo contrário à evidente intenção legal de desjudicialização dos litígios e cobranças inerentes a assuntos de arrendamento apenas conferir título executivo para cobrança de verdadeiras rendas, obrigando o senhorio a instaurar acção declarativa como passo necessário – possivelmente instrumental de segunda execução – para cobrar aquelas indemnizações, as quais não passam de sucedâneo – legal e económico – de verdadeiras rendas.» - cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.03.2012, proferido no processo nº 5644/11.2TBMAI-A.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp,
O que tudo serve para dizer que afigura-se-nos de que o título executivo ajuizado comportava a realização cativa da “indemnização” ex vi do artigo 1045º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, interpretação esta que encontra no texto da norma aplicável o mínimo de correspondência verbal.
Assim, perante o apontado quadro normativo, afigura-se-nos que o apelante tem razão nesta parte, pois, atendendo à amplitude da previsão do artigo 14º-A, n.º 1, do NRAU (rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário) e ao conteúdo das comunicações da exequente à executada (arrendatário), não vemos como não incluir, no título compósito dado à execução, todos os valores que aquela poderá exigir atento o circunstancialismo ligado ao incumprimento do contrato de arrendamento e à sua resolução, bem como à mora na entrega do prédio arrendado (sequente àquela resolução), com as consequências decorrentes dos factos discriminadas nas ditas comunicações - e dos concretos (e simples) factores de cálculo e parcelas aí referidos - e do regime jurídico aplicável.
De resto, as importâncias em causa estão abrangidas pelo título executivo, sem que seja imprescindível a prévia liquidação (nas comunicações efectuadas ao arrendatário e ao fiador), computação/liquidação (das quantias que se vençam posteriormente, até à restituição do imóvel arrendado) que poderá ter lugar no requerimento de execução, por se estar perante mero cálculo aritmético.
Tal entendimento é, aliás, secundado nos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.02.2014, proferido no processo 182/13.1TBCTB-A.C1 e de 04.05.2019, proferido no processo 7285/18.4T8CBR-B.C1, ambos publicados na base de dados da www.dgsi.pt.
Assim, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.02.2014, proferido no processo 182/13.1TBCTB-A.C1, salienta-se que a comunicação do senhorio, por um lado, define o pressuposto da liquidação e realiza esta e, por outro lado, visa também enquadrar a reacção do arrendatário, por exemplo para cessar a mora e impedir a resolução, possibilitando, inclusive, a liquidação aritmética das (iguais) prestações vincendas, quer no momento do requerimento executivo, quer mais à frente na execução, obtida que seja nessa altura a restituição do locado. Consequentemente, o valor admitido na execução não é apenas o valor contado no momento da comunicação, podendo incluir o decurso do tempo como factor do valor a cobrar a final; resolvido o contrato de arrendamento, a solução assenta na consideração da “manutenção de uma relação de facto que justifica os pagamentos referidos”, sendo que o preceituado no art.º 1045º, n.º 2, do CC justifica quer a advertência feita pelos exequentes (aquando da comunicação da resolução do contrato) quer a indemnização liquidada (pela própria lei), apresentando certeza e segurança - partindo da comunicação, não há qualquer novidade ou surpresa na execução, operando, apenas, o momento da entrega do bem arrendado (ulterior à comunicação) e fazendo valer os respectivos factores de cálculo.
Já no acórdão da mesma Relação datado de 04.05.2019, proferido no processo 7285/18.4T8CBR-B.C1 - esclarecendo a própria decisão recorrida a natureza complexa ou compósita do título constituído pelo contrato de arrendamento escrito e o documento comprovativo da comunicação ao devedor do montante em dívida e que a exigência de comunicação ao arrendatário (na forma prevista no art.º 9º, n.º 7 do NRAU) tem em vista “obrigar o exequente a proceder a uma espécie de liquidação aritmética extrajudicial prévia dos montantes em dívida” - salienta-se que, numa «tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal», e no respeito pelos princípios contidos no art.º 9º do CC, o sentido prevalente a dar à “indemnização” ex vi do art.º 1045º, n.º s 1 e 2 do CC corresponde ou integra a categoria das “rendas” a que alude o art.º 14º-A do NRAU, porquanto a expressão “renda” foi empregue no art.º 14º-A do NRAU com sentido que abrange a “indemnização” prevista no art.º 1045º, n.ºs 1 e 2 do CC, na medida em que o desiderato legal que faculta a cobrança executiva de verdadeiras “rendas” ao abrigo desse normativo é precisamente idêntico ao que justifica a cobrança de “indemnizações” que são sucedâneo de verdadeiras rendas - uma “renda em dobro”, devida a título de “indemnização”, mas que nem por isso deixa de corresponder a uma “renda” e a dever ser considerada enquanto tal -, concluindo-se, depois, que o título executivo ajuizado comportava a realização coativa da “indemnização” ´ex vi` do art.º 1045º, n.ºs 1 e 2 do CC (pela mora na restituição do imóvel arrendado/mora no cumprimento da obrigação de restituir), interpretação que encontra no texto da norma aplicável o mínimo de correspondência verbal.
Perfilha-se assim o entendimento de que o texto da lei, conjugado com os demais elementos/critérios de interpretação (em particular, o teleológico, numa juridicamente correcta ponderação de interesses socialmente afirmados e socialmente conflituantes, no contexto do ordenamento jurídico vigente e da realidade social e económica), não afasta que se inclua a quantia eventualmente devida pela mora na entrega do prédio arrendado (in casu, atraso na restituição da fracção arrendada) - em razão duma possível equiparação entre as rendas em sentido estrito e os montantes devidos pelo uso indevido do locado (artigo 1045º do Código Civil), exigida, também, pela ratio legis, no contacto entre a lei e a vida real -, não se justificando que tal indemnização seja, necessariamente, determinada em acção declarativa ou decorra doutro título que não aquele previsto na mencionada norma do NRAU (cf. artigo 703º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil ). - cf., ainda, de entre vários, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 22.3.2012, proferido no processo 5644/11.2TBMAI-A.P1, da Relação de Lisboa de 18.01.2018, proferido no processo 10087-16.9T8LRS-B.L1-6 e de 21.02.2019, proferido no processo 3855/17.6T8OER-A.L1-2, publicados na base de dados da www.dgsi.pt.
O que tudo serve para dizer que se nos afigura que o título executivo ajuizado comportava a realização coactiva da “indemnização” ex vi do artigo 1045º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, interpretação esta que encontra no texto da norma aplicável o mínimo de correspondência verbal.
De referir, ainda, que, como já se viu, o artigo 14º-A do NRAU é claro na afirmação de que constitui título executivo para a execução para pagamento de rendas, o contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, sendo certo que, no caso vertente, constava da comunicação feita (aos arrendatários e fiador) que seriam peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, donde, estão tais valores abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos.
Logo, o título executivo dos autos conferia ao Exequente suporte para a realização coactiva do valor inerente às rendas “em dobro”, rectius, “indemnização” pela mora na restituição do locado, a que se refere o artigo 1045º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, a par das “rendas” singulares igualmente em dívida.
Procede, assim e nesta parte, a argumentação sustentada pelo Exequente e ora recorrente, pois que o normativo aplicável, na sua interpretação dogmática, consente e permite a interpretação pretendida.
No entanto, uma coisa é ter título executivo, outra coisa distinta é ter o direito, sendo certo que, nesta parte, a factualidade alegada para o efeito é controvertida.
Com efeito, atenta a factualidade controvertida vertida nos articulados apresentados pelas partes não se encontravam reunidos os pressupostos para a prolação de despacho saneador sentença, ainda que parcial.
Tais factos, designadamente os factos alegados relativos aos termos em que ocorreu a denúncia do contrato de arrendamento pelo embargante, bem como à data em que foi entregue as chaves do imóvel e, ainda, aos termos em que ocorreu a resolução do contrato de arrendamento pelo embargado, por se encontrarem controvertidos deverão merecer a enunciação de um ou mais temas da prova atinentes aos mesmos e a outros que o Tribunal a quo considere relevantes.
Como é sabido, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 595º, do Código de Processo Civil, o despacho saneador destina-se a “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória”.
Tal acontecerá (i) quando toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documentos, (ii) quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, e (iii) quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental.
Além disso, entende-se que o conhecimento do mérito da causa, total ou parcialmente, só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não tendo em vista apenas a partilhada pelo juiz da causa.
Assim, a exemplo do que sucedia no anterior artigo 511º, do Código de Processo Civil, o juiz, ao identificar o objecto do litígio e ao fixar os temas da prova (artigo 596º do Código de Processo Civil), deve (continuar a) seleccionar para a matéria de facto (para os temas da prova), aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.
Nesta conformidade, “(…) o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final” - cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 2.07.2013, publicado em www.dgsi.pt.
Na verdade, “(…) quando o juiz coloca a si próprio a questão de saber se tem, efectivamente, condições para conhecer do mérito da causa, no despacho saneador, o mais frequente é ser duvidoso o sentido da resposta. Quer dizer, poucos serão os processos em que, na fase intermédia, o juiz pode, claramente, concluir que todos os factos alegados estão provados ou não provados (…) Por outro lado, esta dificuldade é agravada pela perspectiva de a questão de direito poder ter mais do que uma solução, implicando que o relevo dos referidos factos (ainda que controvertidos) varie em função desta ou daquela solução jurídica(…)” - cf. Paulo Pimenta, in “Processo Civil Declarativo”, págs. 256/7.
Assim, por uma questão de cautela, e para esse efeito, o Juiz deverá usar um critério objectivo, isto é, tomando como referência indicadores que não se cinjam à sua própria convicção acerca da solução jurídica do problema - cf. Paulo Pimenta, in “Processo Civil Declarativo”, págs. 257; cfr. Lebre de Freitas, in “A acção declarativa comum à luz do Código de Processo Civil de 2013”, pág. 186.
Ora, no caso vertente, conforme resulta do exposto, entende-se que existem factos alegados pelo embargante que, podendo conduzir à procedência parcial ou total das suas pretensões, ainda se mostram controvertidos, designadamente os factos alegados relativos aos termos em que ocorreu a denúncia do contrato, bem como à data em que foi entregue as chaves do imóvel e, ainda, aos termos em que ocorreu a resolução do contrato.
Nesta conformidade, afigura-se-nos que, tendo em conta o exposto, o Tribunal Recorrido não podia, desde já, proferir a decisão aqui posta em crise.
Conclui-se, pois, que os presentes autos devem prosseguir os seus ulteriores termos processuais, completando-se o despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova (os já mencionados que contendem com a matéria de facto já referida e ainda os que o Tribunal recorrido entender ser pertinente formular), sendo de admitir que, produzindo-se prova sobre essa factualidade, seja proferida uma decisão conscienciosa da questão de mérito.
Assim, procedendo a apelação, deve ser revogada o referido despacho, com a consequência de, em 1ª Instância, dever retomar-se a fase de saneamento do processo, substituindo-se a decisão aqui revogada por decisão que atenda àquela matéria de facto que se considerou relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito, à luz das posições assumidas nos articulados e do regime dos artigos 597º, 595º e 596º do Código de Processo Civil.
Impõe-se, por isso, revogar a decisão impugnada, que deve ser substituída por outra que dê obediência ao acima exposto.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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4. Decisão
Nos termos supra expostos, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação, e, em consequência, revogar a decisão recorrida, decisão que deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos ulteriores termos processuais, retomando a fase do saneamento do processo, completando-se o despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova de forma a que se dê obediência ao acima exposto.
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As custas da apelação são a cargo da parte vencida a final.
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Notifique.

Porto, 04 de Maio de 2022
Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
Isabel Silva
João Venade

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinatura electrónica e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)