Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
552/15.0T8FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
Nº do Documento: RP20180924552/15.0T8FLG.P1
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 680-A, FLS 62-86)
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de mútuo supõe a verificação de dois elementos constitutivos: i) entrega de uma coisa fungível ou de determinada quantia em dinheiro; ii) obrigação de restituição da coisa ou dinheiro mutuado e a cargo do demandado, acrescida de eventual remuneração.
II - Para a procedência da acção fundada em contrato de mútuo (ainda que nulo por falta de forma) não basta ao credor a prova da entrega de determinada quantia em dinheiro, sendo mister ainda que o mesmo demonstre que o demandado estava obrigado a restituir a dita quantia nos termos acordados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 552/15.0T8FLG.P1 - Apelação
Origem: Porto Este – Juízo Local Cível de Amarante.
Relator: Des. Jorge Seabra
1º Adjunto Des. Maria de Fátima Andrade.
2º Adjunto Des. Fernanda Almeida
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Sumário:
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:

1. B..., C..., D... e E..., na qualidade de únicas e universais herdeiras de F..., falecido a 6.11.2012, propuseram a presente acção, sob a forma de processo comum, contra G..., pedindo, a final, a condenação desta última no pagamento da quantia de € 8.871,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde citação e até integral pagamento.
Como fundamento, invocaram que o aludido F... (marido da 1ª Autora e pai das restantes) emprestou à Ré, com obrigação de esta restituir, desde Março de 2011 e até meados de Fevereiro de 2012, várias quantias em dinheiro que totalizaram o montante de € 9.371,00, tendo sido acordado que a dita restituição deveria ocorrer até ao final do mês de Agosto de 2012.
Apesar disso, a Ré apenas restitui, por conta da quantia emprestada, a quantia de € 500,00 em Agosto de 2012.
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2. Citada a Ré veio esta contestar a pretensão deduzida, impugnando a factualidade alegada e invocando a ilegitimidade activa das AA.
Mais, ainda, requereu a condenação das mesmas a título de litigância de má-fé.
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3. Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, ali se julgando regular a instância e improcedente a excepção de ilegitimidade activa invocada pela Ré.
Foram fixados os factos assentes e definidos os temas de prova, que não mereceram reclamação.
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4. Procedeu-se a audiência de julgamento, sendo proferida sentença que julgou totalmente procedente a acção, sendo a Ré condenada no pagamento da quantia de € 8.871,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação (14.07.2015) e até integral pagamento.
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5. Inconformada, veio a Ré interpor recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo, oferecendo alegações e nelas deduzindo, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
1. Entende a recorrente que os factos dados como provados sob os pontos 4, 5 e 6 foram incorretamente julgados, pois que atendendo a toda a prova produzida, impunha-se resposta diferente no sentido de os dar como não provados.
2. Discordando totalmente da análise crítica da prova feita pelo Tribunal a quo, entende a recorrente que nenhuma prova, como veremos, foi feita da existência de um empréstimo, qual a sua finalidade e muito menos da estipulação de prazo para a restituição dos montantes, alegadamente emprestados.
3. De facto, no que diz respeito à apreciação da prova testemunhal, o tribunal a quo apenas credibilizou o depoimento das testemunhas da A., em detrimento das testemunhas da Ré, valorizando completamente as declarações de parte da A. e desvalorizando o depoimento de parte da Ré, quando ambas são interessadas na causa e no seu desfecho.
4. E quer na valorização do depoimento das testemunhas, como, e principalmente, das partes, o julgador tem o dever redobrado de rigor quando dá credibilidade a um depoimento em detrimento dum outro que julgará não ser tão credível. O julgador tem de fazer uma apreciação crítica descomprometida, que não dê aso a que possa ser posta em causa, o que não parece ser o caso dos presentes autos.
5. Na apreciação crítica da prova, o Tribunal deve aduzir argumentos que permitam com razoável segurança (sendo que nenhuma das testemunhas viu qualquer entrega de dinheiro do falecido marido da A. à Ré ou indicaram data de entrega dos montantes alegadamente emprestados, caso se admitisse que houve empréstimo, apenas sabendo o que, alegadamente, o falecido marido da A. lhes disse) credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir relevo, o que não sucedeu in casu, pois o Tribunal credibilizou o depoimento indireto, sem justificar devidamente o mesmo e a sua credibilização.6. De facto, a Ré negou qualquer empréstimo (corroborado pelas suas testemunhas); referiu que os 500€ que transferiu para a conta da empresa de reparação de automóveis de que o falecido marido da A. era proprietário serviram para pagar uma reparação de duas viaturas (corroborado pelas duas testemunhas H... e I... e confirmado pela A. quando confessa que o seu falecido marido era o mecânico da Ré).
7. Por outro lado, e numa versão completamente diferente, a A. e as testemunhas por si arroladas, referiram que o falecido F... lhes disse numa determinada altura que emprestava dinheiro à Ré (e aqui veremos todas as contradições das testemunhas na análise dos seus depoimentos); que nunca viram qualquer entrega; que nunca viram qualquer documento (sendo que a A. B... diz ter encontrado depois da morte do marido uma fotocópia de um apontamento junto como documento 7 à p.i., mas que nunca viu o marido apontar à sua frente, como veremos mais à frente no seu depoimento)
8. E milagrosamente surge um manuscrito, junto com a p.i. como documento 7, a que o Tribunal a quo faz referência na sentença, credibilizando-o, sendo que, tal documento, - que como o Tribunal refere é um mero apontamento -, não faz qualquer referência à Ré, não contém a sua assinatura, nem de qualquer outra pessoa; não constituindo qualquer confissão de dívida ou reconhecimento do que quer que seja, tratando-se apenas de um apontamento de alguém, aliás não se aferiu sequer quem era o seu autor nem prova disso foi feita, até porque se trata de uma mera fotocópia, desconhecendo-se se existe o original, mas que a A. refere ser do seu falecido marido, com os dizeres “empresteilhe”, e com determinadas datas, mas sem qualquer referência ao ano; e montantes que se desconhecem e ninguém referiu conhecer ou sequer saber quanto emprestou ao certo, por quantas vezes e em que valores; mas que, mesmo assim, o Tribunal o credibiliza, como se de uma prova documental inequívoca se tratasse, alicerçado em testemunhas de “ouvir dizer”.
9. Sendo que, não houve qualquer testemunha que indicasse ou sequer mencionasse uma possível data de pagamentos dos montantes alegadamente emprestados.
10. As testemunhas e as partes, de forma genérica, referiram o seguinte:
- Ré G..., negou o empréstimo da quantia de 9.371,00€; confessou a transferência de 500€, que fez em 10.08.2012, para conta da empresa de mecânica do falecido marido da A. para pagamento do conserto de duas viaturas; referiu desconhecer o documento 7 junto com a petição inicial, afirmando que não foi ela que o entregou à A. B...; negou ter dívidas no J... e no K...; negou ter cartões de crédito a pagar mensalmente; referiu que, na altura, tinha uma pequena costura de calçado em casa e que a A., D. B..., nunca falou com ela por causa dos alegados empréstimos.
- A testemunha L..., arrolada pela A., membro da Junta de Freguesia ..., juntamente com o falecido F... e com a testemunha M..., referiu: que conhece as AA., mãe e filhas, e que nunca tinha visto a Ré, só a viu no dia do julgamento; que conversava várias vezes com o Sr. F... no final das reuniões da Junta, sempre na presença da D. M... (igualmente testemunha) que também fazia parte da Junta, e que aquele lhes contou que a Ré lhe pedia varias vezes dinheiro emprestado; que ele nunca lhe disse o valor que emprestou, mas que às vezes falava em quantias pequenas; que ele falava, antes de falecer, que lhe devia de 9000€ a 10000€; que não sabia se a Ré pagou alguma coisa ao falecido antes deste falecer; que aquele lhe disse que emprestava dinheiro para dar alimentos aos filhos e como ele era bondoso emprestava; que não sabe se a Ré tinha dívidas no K... ou no J...; que nunca viu nenhum documento, e o que sabe é o que o falecido F... lhe dizia; que tem a ideia que ele lhe falou de uma transferência, mas já foi há muitos anos, mas não sabe mais nada, nem viu a transferência; que nunca viu o Sr. F... a entregar qualquer quantia à Ré; que tudo o que refere conhecer é de conversas que teve com o falecido marido da A., o Sr. F...; que sabe que o Sr. F... teve uma empresa de mecânica, uma oficina de mecânica, mas não sabe se era o mecânico da Ré.
- A testemunha M..., arrolada pela A., Secretária da Junta de Freguesia ... quando o falecido era Presidente da Junta de Freguesia, referiu: que conhece as AA, e apenas conhece a Ré de vista; que tinham reunião da junta às segundas-feiras, e no final de cada reunião, costumavam conversar um bocadinho da vida deles e que um dia, em que estavam a falar de um empréstimo que o Sr. F... fez para comprar umas maquinas para a empresa e que tinha uma prestação bastante elevada, aquele lhe disse que estava a ajudar a Ré, que lhe andava a emprestar dinheiro, porque a Sra. tinha vários créditos em certos bancos, tinha mais do que um cartão e ela não conseguia pagar tal empréstimo, e já ia em 10000€ ou perto disso; que o falecido F... lhe referiu que não tinha documento e que estavam a ver se o filho da Ré vinha de França para fazer um crédito para ele pagar o que lhe devia; que nunca viu qualquer documento; que não sabe se a Ré chegou a pagar alguma coisa; que não sabe ao certo as datas dos empréstimos; que não sabe se ele era o mecânico da Ré; que sobre este assunto aquela tinha sido a única conversa que tiveram e não sabe se ela lhe chegou a pagar; que não sabe se eram quantias pequenas ou elevadas, mas acha que seriam pequenas, porque ao que ele dizia eram para comprar também alimentos; que nunca viu o Sr. F... entregar qualquer quantia à Ré; que não sabe quantos empréstimos o Sr. F... fez à Ré.
- A testemunha N..., arrolada pela A., cunhado da A. e do falecido marido, referiu: que era familiar das AA. e que apenas conhece a Ré de vista; que teve conhecimento de que o Sr. F... emprestou varias vezes dinheiro à Ré, porque aquele lhe disse, nomeadamente, numa conversa tida em finais de 2011; que os empréstimos rondariam os 10000€; que sabia que a Sra. tinha uma viatura e que andava a reparar; que o Sr. F... lhe disse que tinha um papel e que o filho da Ré vinha de França e que ia ajudar a pagar; que a Ré e a filha tinham um corte e costura em casa; que o F... lhe referiu que chegou a emprestar 50€, porque até fome passavam; que após a morte do F..., procurou certos documentos e que não encontrou a folha que ele dizia que tinha com as contas das dívidas da Ré; que nunca viu qualquer documento de dívida; que o F... era uma pessoa organizada; que achava que a Sra. não podia contrair créditos bancários, mas não sabe se o Sr. F... emprestou por causa dos créditos; que o Sr. F... estava a montar uma oficina e não tinha muito dinheiro, até tinha pedido há uns anos atrás dinheiro a um colega, um montante avultado na altura; que não sabia se houve pagamento por parte da Ré, mas sabe que houve uma transferência; que não sabe se há algum documento da senhora a confessar-se devedora; que a A. B... lhe chegou a dizer que viu umas mensagens da Ré a pedir dinheiro ao Sr. F...; que nunca teve conversas com o Sr. F... e a A. B... em simultâneo; que não sabe para que é que lhe emprestou dinheiro, mas que ele lhe disse que às vezes lhe chegava a emprestar 50€; que ouviu falar de uma transferência, mas que não foi o F... que lhe referiu isso, nem viu qualquer documento de transferência; que a A. lhe disse que teria ido a casa da Ré e que o companheiro desta se prontificou a pagar a divida; que viu uma folha A4 com as contas do trolha e do serralheiro quando andava a procurar documentos, e que a documentação foi junta pelo irmão do Sr. F....
- A testemunha H..., filha da ré, arrolada por esta, referiu: que conheceu o Sr. F..., porque era ele que cuidava da casa onde moravam em S. O...; que não tem conhecimento de que o Sr. F... tenha emprestado dinheiro à sua mãe; que em 2011 e 2012, viviam com algumas dificuldades, mas trabalhavam todos e que o seu agregado familiar era composto por si, pelos seus pais e por dois meninos, seus primos, que foram entregues pelo Tribunal à Ré que os adotou; que em 2012, emprestou 200€ à Ré, sua mãe, para ajudar a pagar ao mecânico o conserto dos dois carros, e que o mecânico era o Sr. F...; que vivia com a sua mãe em 2011 e 2012 e que não tinha conhecimento que a A. fosse à sua casa para falar com a mãe; que naquela altura trabalhava na empresa da mãe e que esta nunca teve contas bancárias no K... e no J... e que nunca a Ré fez transferências no K...; que a sua mãe nunca pediu ajuda ao Sr. F... por causa dos meninos que adotou; que nunca viu documento escrito à mão em casa da mãe onde estivessem apontadas as quantias que o Sr. F... alegadamente entregava; que o irmão casou e pagou o seu próprio casamento, que está emigrado e que não tem intenção, para já, de voltar para Portugal.
- A testemunha I..., atual marido da ré, arrolado por esta, referiu: que conhecia o Sr. F... e o ex-marido da Ré de vista; que está casado com a Ré desde Junho de 2012; que nunca teve conhecimento de qualquer divida ou empréstimo; que a D. B..., A., terá ido a casa da Ré, na Lixa, e foi atendida por si e que ia com um papel já feito para ela reconhecer a divida, e que lhe disse que a mulher não iria assumir o que não devia; que houve duas transferências para a conta da oficina do Sr. F... para pagar 500€, uma de 300€ e outra de 200€ (emprestados pela filha da Ré), do conserto de duas viaturas, um opel vermelho da Ré e um golf dele.
- A A. B..., em declarações de parte, referiu de forma contraditória, comprometida, sempre a fugir às questões, percebendo-se claramente que faltou à verdade e que não sabia do que estava sequer a falar, aumentando e retirando conforme lhe convinha e sempre de forma enrolada para pensar no que iria dizer a seguir, bastando para tal a audição do seu depoimento: confirmou o constante da p.i. com várias contradições e discrepâncias que serão analisadas; que sabia que o marido andava a emprestar dinheiro; que a Ré e a filha ficaram de pagar e em Julho ou Agosto o marido abriu uma conta em nome da empresa, uma conta caucionada; que reconhece a transferência de 500€ antes do marido falecer, mas que não sabe se foi para pagar o conserto do carro, mas sabe que o marido abriu uma conta caucionada de propósito para a Ré; que sabe que a Ré levava o seu veículo à oficina do seu falecido marido; que foi várias vezes a casa da Ré; que não sabe para que eram os empréstimos a não ser o que o marido lhe dizia; que o número de telefone constante do documento 7, foi por ela apontado; que a Ré tinha um documento igual ao seu, que viu e pediu para tirar cópia e quando perguntada se a Ré tinha um duplicado desse documento? Referiu achar que sim; que antes do marido falecer nunca falou com a Ré; que não sabe se a conta caucionada aberta em nome da empresa do marido, também seria para receber pagamentos da empresa; que o marido não apontava os alegados empréstimos na sua presença.
11. Ora, como se constata, duas versões absolutamente diferentes, tendo o Tribunal dado credibilidade à das AA., sem qualquer justificação ou fundamentação convincente, como demonstraremos, versão esta cheia de incongruências e contradições que impunham decisão diversa.
12. Atendendo à prova produzida em audiência de julgamento, designadamente no que diz respeito à prova testemunhal e documental (que não existe, diga-se, no sentido de confirmar que houve um empréstimo (!)), poder-se-á dizer que a motivação e apreciação crítica proferida pelo tribunal a quo apresenta insuficiências, não tendo sido feita uma verdadeira apreciação crítica da prova produzida, o que desde logo enferma toda a motivação apresentada pelo Tribunal a quo e que deverá ser devidamente apreciada por este Tribunal.
13. Como supra se viu da transcrição integral das declarações da Ré este faz referencia a uma transferência para a conta de uma sociedade que se dedica à reparação de automóveis, que procedeu à reparação de duas viaturas da Ré, uma utilizada por si e outra pelo seu atual marido, perfeitamente justificável. Ou seja, o que resultou provado foi que a transferência de 500€ serviu para pagamento da reparação das viaturas e não para pagamento de parte de qualquer empréstimo feito pelo falecido marido da A. à Ré, caso contrário haveria uma transferência para uma conta pessoal daquele ou até uma entrega em dinheiro, e não para a conta da sua empresa. Efetivamente, a empresa do falecido F... nada emprestou à Ré, nem podia, até porque tratando-se de uma oficina de reparação de automóveis, não terá CAE para a concessão de empréstimos. E isso mesmo foi confirmado pelas testemunhas da Ré. A Ré refere que nunca pediu qualquer quantia emprestada ao Sr. F..., nem qualquer prova foi feita que pudesse contrariar a versão da Ré. Aliás, a única prova concludente e assertiva, seria sem dúvida a audição do falecido F..., infelizmente impossível, pois que, toda a demais prova é apenas prova de ouvir dizer, cuja valoração deve ser cuidadosa. A Ré refere que nunca teve contas ou cartões do K... ou J..., nem existe qualquer prova nos autos disso mesmo, sendo que, a mesma incumbia às AA. Referiu que nunca enviou qualquer mensagem ao Sr. F..., o que aliás é consonante com a falta de prova da sua existência. Assim, impunha-se dar como não provados os pontos 4, 5 e 6 dos provados.
14. A testemunha L..., cujas declarações estão supra transcritas na íntegra, um depoimento de ouvir dizer, em que a testemunha apenas relata, sem conhecimento directo dos factos, o que, alegadamente, o falecido marido da A. lhe transmitiu. Sem nunca ter visto ou assistido a qualquer pagamento, recebimento, transferência ou sequer visto documento de divida. Testemunha que diz que as conversas com o falecido, ocorriam no final das reuniões da Junta, e que aconteceram por diversas vezes, e sempre na presença dos três membros que a constituíam, ao passo que a testemunha seguinte (como veremos) refere que apenas falaram disto uma única vez no final de uma reunião da Junta. Pelo que, também por este depoimento, que não deve ser valorado e credibilizado como foi, se devem dar como não provados os pontos 4, 5 e 6.
15. Por sua vez a testemunha M..., mais um depoimento indireto, uma vez que nada presenciou, apenas sabendo o que o falecido F... lhe contou, referiu que sempre esteve presente nas reuniões e que falaram apenas uma vez sobre este assunto. Uma contradição relevante e importante, pelo que, caso a prova tivesse sido valorada e analisada criticamente, nunca poderiam estas testemunhas de depoimento indireto ser valoradas como foram. Também esta testemunha referiu que nunca viu qualquer documento relativo à alegada divida! Aliás, como veremos, nenhuma das testemunhas viu qualquer documento, que surge após a morte do falecido F..., uma mera fotocópia, nunca um original, que nem se sabe se existe ou não. Pelo que, até por aqui não existe qualquer prova de um alegado empréstimo. Esta testemunha de nada sabe, a nada assistiu, apenas sabe o que, alegadamente, o Sr. F... lhe contou, desconhecendo se houve pagamentos, transferências e se as ouve para que serviram, nunca viu qualquer documento, não sabendo precisar para que eram os alegados empréstimos e se seriam de quantias elevadas ou pequenas. Pelo que, também por aqui se impunha levar os pontos 4, 5 e 6 aos não provados.
16. A testemunha N..., mais um depoimento indireto, apenas sabe o que o cunhado lhe contou, desconhecendo para que serviu o dinheiro alegadamente emprestado, desconhecendo se a Ré procedeu ao pagamento ou não, apenas ouviu falar de uma transferência. Referiu que até ficou surpreendido com este alegado empréstimo, porque o F... não teria assim tanto dinheiro e até teria pedido dinheiro emprestado a um amigo comum. Que após o falecimento do F... terá andado a procurar um livro de actas do futebol, e durante essa procura nunca viu qualquer documento com referência a este alegado empréstimo. A testemunha refere claramente que depois do funeral não encontrou qualquer papel de divida. Não deixando margem para erro!!! Ora, estranha-se que o papel não apareça após o funeral, mas milagrosamente, aparece, 3 anos após. De facto, esta testemunha, cunhado da A. e do falecido marido, após a morte deste, referiu que procurou umas actas do clube de futebol local, e nessa procura, não encontrou qualquer documento manuscrito que mencionasse as alegadas dívidas da Ré. Porém, aparece em 2015, 3 anos após a sua morte, uma fotocópia de uma alegada divida. Mas a testemunha refere que encontrou uma fotocópia com as contas do trolha e do serralheiro que o F... devia! E não estaremos a falar do documento junto como numero 7 à p.i., parece-nos claramente uma hipótese muito possível e que o Tribunal nem sequer aflora da sua motivação.
Mas ao invés, sem qualquer referência à Ré ou qualquer assinatura desta, dá prevalência à tese da A. como se aquele documento nº 7 fosse de alegados empréstimos do seu falecido marido à Ré. Claramente que existem duas versões contrárias que o Tribunal, nem sequer por uma vez, analisa a possibilidade da versão apresentada pela Ré ser a verdade, mesmo não existindo qualquer prova de que seja a da A. a verdadeira. Ora, também por aqui e por tudo quanto infra se dirá, impunha-se dar como não provados os pontos 4, 5 e 6.
17. A testemunha H..., como se alcança do seu depoimento, referiu nada saber sobre os alegados empréstimos e que os 500€ transferidos para a conta da empresa do falecido marido da A., serviram para pagar a reparação de duas viaturas, sendo que, a própria testemunha emprestou os 200€ para completar os 500€. Mas o que a A. aproveitou para compor a sua tese sem fundamento, foi utilizar este pagamento e aproveitá-lo para dizer que se tratou de uma transferência por conta de um alegado empréstimo, para justificar uma alegada data de restituição dos montantes emprestados. Pelo que, se impunha dar como não provados os pontos 5 e 6 dos provados.
18. A testemunha I..., referiu nada saber sobre os alegados empréstimos e que os 500€ transferidos para a conta da empresa do falecido marido da A., serviram para pagar a reparação de duas viaturas, uma delas da testemunha, remetendo-se para as declarações da anterior testemunha. Referindo que a A. foi a sua casa uma única vez, daí a mesma conhecer a casa da Ré, e nunca falou com a Ré, o que vai de encontro ao depoimento de parte da desta. Pelo que, se impunha dar como não provados os pontos 5 e 6 dos provados.
19. A A. B..., ouvida em declarações de parte, prestou um depoimento totalmente incongruente e inconsistente. A A. usou o seu depoimento, ele todo guiado e orientado já com a ideia criada pelo Tribunal da sua veracidade, quando o mesmo é totalmente falso e sem qualquer veracidade, para convencer o Tribunal da veracidade da sua tese. Mas, Como vimos, a decisão proferida é desajustada e prejudica gravemente os direitos da Ré e na inversa, em face do erro na aplicação dos factos ao direito, proporciona grandes e injustificados benefícios às AA.
20. O Tribunal desvalorizou o depoimento das testemunhas arroladas pela Ré e o seu próprio depoimento, ignorando as suas razões de ciência e conhecimento pessoal, dando prioridade ao depoimento das testemunhas das AA., que como supra se viu, se trata de um depoimento completamente indireto e sem conhecimento de facto.
21. Efetivamente, a decisão tem por começar a obedecer ao artigo 5.º do CPC (relativo aos poderes de cognição do Tribunal) e como se evidencia dos autos, a sentença limitou-se a credibilizar testemunhas com conhecimento indireto, testemunhas de “ouvi dizer”, testemunhas de “ele contou-me”, dando igualmente credibilidade a uma mera fotocópia sem qualquer identificação da Ré, que, como bem referiu uma das testemunhas que aquando da busca de documentos encontrou a conta do serralheiro e do trolha, o que poderia muito bem ser o documento junto aos autos, uma vez que não há qualquer referencia à Ré, e é normal que os pagamentos aos serralheiro e ao trolha, atinjam os valores dele contantes e sejam pagamentos mensais.
22. Acresce que, a sentença de que se recorre tece juízos de valor e considerações nada abonatórias, ao referir “(…) salvo melhor juízo, quem passa por tribulações financeiras ao nível primário ao ponto de poder ficar sem um tecto não faz reparações no carro. (…)
23. Ora, nunca nenhuma das testemunhas referiu que a Ré poderia ficar sem teto; o narrado pelas testemunhas, apenas teve por base o que o falecido marido da A. lhes terá contado, desconhecendo-se até ao dia de hoje se seria verdade, nem se logrou provar que fosse; mas, isso sim, temos uma Ré a quem o Tribunal entrega dois menores à sua guarda, que os adotou, como algumas testemunhas referiram, e quando assim é, o agregado familiar em que os menores fica inserido é amplamente analisado pelos serviços competentes, nunca sendo o caso de entregar menores a quem possa até vir a perder o tecto; ademais, a Ré tinha um pequeno corte e costura, todo o seu agregado familiar trabalhava, mas nunca ninguém referiu que tivesse visto, ou a Ré lhes contou, que passassem fome, nem este e as suas testemunhas alguma vez o disseram.
24. O que as testemunhas das AA. foram referir, isso sim, é o que alegadamente lhes disse o falecido marido da A., e nenhuma soube precisar para que serviria efetivamente os alegados empréstimos, avançaram que poderia ser para pagar cartões, para rendas, para alimentação, ou seja, uma série de despesas, nenhuma delas confirmada ou provada, e teríamos alguém que por muito bondoso que fosse, não iria em menos de um ano, adiantar dinheiro a alguém que não conhece assim tão bem, nem familiar é, estando ele próprio a pagar uma prestação elevada de um empréstimo para comprar umas máquinas para a sua oficina, como referiu a testemunha M....
25. É uma versão completamente surreal, mas não dizer descabida.
26. E arranjar uma viatura Opel antiga, é anormal? Será que a Ré não tem direito a ter uma viatura, ainda que antiga, para poder transportar os menores, fazer as suas deslocações e gerir o seu dia a dia? E será tão anormal que uma viatura, aliás antiga, não necessite de reparação? Tudo considerações desnecessárias, nada abonatórias e que em nada poderão servir para formar convicção.
27. Impõe-se, pois, uma resposta diferente aos factos que supra se enunciaram, resposta essa no sentido supra exposto, dando-os como não provados.
28. E dando essa resposta aos factos que se impugnam, certamente a aplicação do direito e a decisão teriam sido bem diferentes, como se pretende.
29. Por outro lado, o dever de fundamentação, para o qual remete o texto constitucional (art. 208º da CRP), encontra-se clara e inequivocamente previsto nos arts. 154.º e 607.º, n.º 4 do CPC mesmo no tocante à matéria de facto, exigindo-se, por isso, do tribunal o acatamento de tal dever.
30. As normas jurídicas obrigam o juiz a uma análise crítica das provas produzidas e que especifique os fundamentos decisivos para a sua convicção e não meras conjeturas, depoimentos indiretos e inconsistentes, muito menos basear a sua convicção nas declarações de parte, que é parte intrinsecamente interessada no desfecho dos autos.
31. O Tribunal a quo ao alicerçar toda a sua decisão no documento de fls. 28 e 29, nos depoimentos das testemunhas arroladas pelas AA. e nas declarações de parte, que a nada assistiram e apenas referiram o que falecido F... lhes havia dito, erra de todo nas regras que devem seguir os Tribunais, visto que não é livre a decisão do tribunal, pois não lhe basta considerar meios de prova dúbios e que não conferem qualquer prova contundente para dar como provados determinados factos.
32. Mal andou o Tribunal, ao condenar a Ré a pagar a quantia de 8.871€, de um alegado empréstimo que não ficou minimamente provado que existiu, nem sequer de quando deveriam tais documentos ser devolvidos e por que forma.
33. A liberdade de apreciação da prova não é sinónimo de discricionariedade valorativa ou poder arbitrário ou incontrolável, mas antes um poder-dever, cujo exercício terá de ser justificado por via da motivação, que lamentavelmente é escassa. Assim, reafirma-se, que a decisão do Tribunal assente em testemunhos de ouvir dizer, em prova indireta e em declarações de parte que não são prova plena, devendo ser substituída por uma que permita uma convicção objetiva, demonstrável, motivada, controlável, capaz de se impor perante os destinatários, os quais poderão assim perceber as premissas das quais o julgador lançou mão para a construção da sua convicção, sem ficar com duvidas de que os factos aconteceram mesmo dessa forma.
34. Neste sentido, o tribunal violou o disposto no art. 607.º, n.º3 do CPC, não resultando da sentença quais os elementos fácticos considerados e muito menos o “exame crítico das provas que lhe cumpre conhecer”, não sendo assim possível apreender o itercognoscitivo e valorativo percorrido pelo julgador tal é redundante e abrupta a forma como conclui pela existência de um empréstimo, que ninguém conhece efetivamente, mas ouviram apenas dizer, e nem sequer alguém durante os depoimentos, ainda que indirectos, conseguiu avançar uma data para a devolução dos montantes emprestados.
35. Por outro lado e sem prescindir, e no que às declarações de parte respeita, como bem se escreveu no Acórdão Tribunal da Relação do Porto, datado de 15.09.2014 (proferido no processo 216/11.4TUBRG.P1, disponível in www.dgsi.pt), “(…) As declarações de parte [artigo 466º do novo CPC] – que divergem do depoimento de parte – devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação. Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos (…).”
36. Sem prescindir, e não menos importante, como é sabido, a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal (art.º 396.º do CC).
37. O Tribunal relatou as declarações da própria A., como se a mesma falasse uma verdade incontestável, e foi naturalmente no sentido expresso nos articulados por si apresentados, não passando despercebidas as discrepâncias e contradição supra elencadas, que fez um depoimento parcial e comprometido, com pormenores que sabia por ter ido a casa da Ré uma única vez, mas que depois usa para justificar mais idas, nomeadamente, usando expressões como “podem ir lá ver, para ver se falo a verdade”.
38. Ora, um empréstimo concretiza-se não só pela entrega do dinheiro (alegadamente in casu), como pela obrigação de o restituir, não havendo qualquer prova dessa obrigatoriedade, muito menos de uma data para o efeito, não se compreendendo como é que o Tribunal a quo deu como provado que:
“acordando que a restituição da soma por banda da R. deveria ocorrer até ao final do mês de Agosto de 2012” (ponto 5 dos provados). Mas quem acordou?
Quem referiu esse acordo? Não se sabe, nem se sabe como chegou lá o Tribunal. Não houve qualquer testemunha, nem sequer a própria A. que referisse que a data da alegada devolução seria até ao final do mês de Agosto.
Lidos e relidos os depoimentos, não há qualquer referência a tal data. Aliás, se assim fosse, tendo o falecido F... falecido em 06.11.2012, e se se desse como provado que a Ré teria de restituir tal montante até finais de Agosto (o que não se provou), porque não instauraria aquele falecido a presente ação(?).
39. Porque nunca houve qualquer empréstimo, mas toda a história foi bem pensada. Através de um manuscrito (mera fotocopia), sem qualquer assinatura da Ré, com valores diferentes e sem qualquer relação, sem discriminação do ano, mas apenas dias e meses, que poderiam constituir apontamentos das contas da mercearia, do serralheiro, do trolha, de dividas à empresa do falecido, de dividas próprias do falecido, e empréstimos do falecido a bancos, e aproveitando uma transferência para a conta da empresa de oficina que o falecido era proprietário, em Agosto, que como referiu a Ré e as duas testemunhas que arrolou era para pagamento do conserto de dois automóveis e diga-se que a haver empréstimo, que não se logrou provar, seria a titulo pessoal, do próprio falecido, e não da empresa deste, pelo que, nunca seria o dinheiro depositado numa conta da empresa, nem uma empresa abriria uma conta para ajudar alguém que nem sequer relação de parentesco tinha, como justificaria fiscalmente (?), caindo por terra, obviamente, a tese peregrina das AA., sendo a da Ré mais consistente e verdadeira, de tão rebuscado e surreal é a das AA..
40. Efetivamente, a quem competia a prova não só da entrega do dinheiro, como também da respetiva obrigação de restituição (art.º 342.º, n.º 1, do CC), seria às AA., que não o lograram provar, muito menos lograram provar a que titulo foi feito tal empréstimo. Contudo, e ainda que se considerasse provada a entrega do dinheiro – que não se provou, repete-se e apenas se adianta por mera hipótese académica, a presente ação sempre teria de improceder em virtude de não se ter apurado a causa da entrega, muito menos a alegada data de devolução dos montantes.
41. Ainda sem prescindir, as AA intentaram a presente ação na qualidade de herdeiras conhecidas do falecido F..., peticionando que fosse declarada a nulidade do mútuo e em consequência ser a Ré condenada a restituir às AA. a quantia de 8.871,00€; bem como ao pagamento de juros à taxa legal, desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.
42. Porém, e como vimos, para além de nenhuma prova existir de que tenha havido empréstimo, muito menos estipulação de prazo de entrega dos montantes alegadamente emprestados,
43. A verdade é que, alegando as AA. que o falecido F... teria aberto uma conta caucionada para ajudar a Ré,
44. Significa tal, que se houvesse empréstimo, a restituição dos montantes seria devido à sociedade do falecido marido e pai das AA. e não a este, e consequentemente não às AA.
45. Uma conta caucionada consiste num acordo entre um banco e uma empresa, onde o banco permite que o cliente tenha acesso a uma determinada quantia, mesmo sem saldo na conta, para que a empresa possa prevenir eventuais insuficiências de tesouraria a curto prazo.
46. Ora, referiu a A. que o marido teria aberto uma conta caucionada para ajudar a Ré.
47. Se já não fosse tal facto soar a redundante estranheza e surrealismo, para não lhe chamar outra coisa, afirmar que a Ré teria de proceder ao depósito das quantias alegadamente recebidas em tal conta, é absolutamente incongruente e falso. E mais, se o marido da A. abriu uma conta caucionada em Julho ou Agosto como a mesma refere no seu depoimento, veja-se o minuto 1:16:45 a 1:17:20 e 1:30:03 a 1:31:30 supra transcritos na íntegra, como poderia ter aberto tal conta para ajudar a Ré, se alegadamente lhe emprestou dinheiro de Março de 2011 a Fevereiro de 2012 (?).
48. Mas mais, a A. acabou por admitir que acha que a conta seria para isso, mas que não tinha a certeza, nas suas palavras referiu (aos minutos supra referidos): “Mas eu acho que não. Eu acho que essa conta foi mesmo só para ela, penso eu, eu acho que sim, porque depois quando eu tive que a fechar agora, ainda era os dez mil euros que o meu marido tinha, percebe, nós só tínhamos pago os juros.”
49. Contudo, como se sabe, as empresas, quando abrem uma conta caucionada pagam juros sobre os valores financiados através da conta caucionada, constituindo estas uma das formas de financiamento bancário com caráter de curto prazo.
50. Ora, quem tem negócio tem toda a lógica abrir uma conta destas, porém, para alegadamente ajudar um particular não fará qualquer sentido(!). Pagar juros para ajudar alguém com quem não se tem sequer afinidade, nem sequer é uma pessoa que se relacionasse habitualmente com a família, aliás, antes do falecimento do marido a A. disse que nunca faliu com a Ré, nem depois diga-se em abono da verdade, parece de todo uma tese peregrina.
51. Aliás, se a empresa do marido da A. pagava juros por tal conta, que razão haveria para emprestar dinheiro dessa forma à Ré, e os juros, foram contabilizados no dito documento (?).
52. Parece-nos evidente que caem por terra os argumentos utilizados pelas AA. A sua versão, além de impossível é desprovida de qualquer fundamento ou lógica, é surreal.
53. Este era o seu mecânico e em agosto de 2012, para pagamento da reparação de duas viaturas, foram-lhe depositados, na conta da empresa, 500€, usando as AA. tal data para justificar uma alegada entrega para abater à divida e assim conseguirem uma data de alegada restituição, sem a qual não haveria mútuo, seria um plano bem montado, não fossem as incongruências, falta de prova e surrealismo do mesmo.
54. E se tal prazo fosse verdadeiro, isto é, se a Ré tivesse mesmo de restituir montantes emprestados até Agosto de 2012, se o marido da A. apenas faleceu em Novembro de 2012, porque é que não foi este a instaurar a ação (?) ou sequer a mandar uma carta de interpelação (?) Estranho?! Adiantamos resposta: porque nada devia!
55. Parece-nos salvo o devido respeito, e como a testemunha N... deixou no ar, aquando da procura das actas do Clube de Futebol, encontrou um documento com as contas do serralheiro e do trolha, e estamos em crer que fosse o documento 7 a que a p.i. faz referência, e que pretendem imputar a um alegado débito da Ré, que nunca existiu, nem existe.
56. E a ser verdade a versão apresentada pelas AA. os montantes teriam sido emprestados pela sociedade de que o marido da A. era sócio gerente, só assim se justificaria a sociedade criar uma conta para o efeito e dar ordens para deposito nessa conta, fazendo com que as AA. sejam assim parte ilegítima na ação, na medida em que, teria de ser o gerente da sociedade em 2015 a intentar a presente ação, que não foi o caso.
57. Efetivamente, perante duas versões, deveria o Tribunal, na ausência de qualquer prova no sentido de confirmar a tese da A., absolver a Ré uma vez que seria contra quem teria de provar o que alegou que deveria ser a causa resolvida.
58. Pelo que, deverá este alto Tribunal alterar a resposta aos factos dados como provados sob os pontos 4, 5 e 6, devendo os mesmos ser dados como não provados e, consequentemente, revogar a sentença proferida e proferir outra que consagre o supra exposto, absolvendo a Ré.
59. Por outro lado, e como ficou exarado em II supra inexistiu qualquer contrato de mútuo.
60. A causa de pedir da ação consiste num alegado contrato de mútuo (empréstimo de dinheiro), nulo por falta de forma.
61. Na definição do art.º 1142.º do CC trata-se de um “contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.”
62. Trata-se de um contrato formal, sujeito a escritura pública ou documento particular autenticado se o mútuo for superior a €25.000,00 e documento assinado pelo mutuário se superior a €2.500,00 - (art.º 1143.º do CC).
63. Por força de tal contrato as coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega (art.º 1144.º do CC). são, pois, elementos constitutivos do contrato de mútuo: a) Entrega a outrem de dinheiro, ou outra coisa fungível; b) Obrigação, por parte do mutuário, de restituição do dinheiro, ou da coisa.
64. De acordo com as regras de distribuição do ónus da prova (art.º 342.º, n.º 1, do CC) é ao autor que compete a prova desses elementos, não só da entrega do dinheiro, como também da obrigação de restituição.
65. Havendo entrega, esta obrigação passa por demonstrar a que título se procedeu à transferência da coisa, no caso, do dinheiro.
66. In casu, para além de não se ter feito prova da entrega à Ré de dinheiro, como vimos supra e que por brevidade se remete, não ficou sequer provado a obrigação por parte do mutuário de restituir o dinheiro, nem sequer qual o motivo do alegado empréstimo, qual a causa do empréstimo.
67. No caso de se não demonstrar a causa dessa transferência, não se pode concluir pela existência do mútuo, ainda que nulo, por falta de forma, nem, sequer poderia o Tribunal lançar mão do enriquecimento sem causa, uma vez que não foi subsidiariamente invocada como causa de pedir, pelo que, improcederia também por aqui a ação.
68. E assim, porque a entrega do dinheiro (que não existiu repete-se) não faz presumir a obrigação de restituição, nem outra situação de inversão do ónus da prova se vislumbra (art.º 344.º do CC), era às AA. a quem cabia provar aqueles dois elementos integrantes do contrato de mútuo, constitutivos da causa de pedir.
69. Aliás, tem decidido o STJ, em situações similares, que é ao autor a quem compete o ónus da prova da celebração do contrato de mútuo invocado de restituição do capital.
70. E para provar tal celebração não basta estar assente o recebimento da quantia peticionada.
71. Exige-se a demonstração da causa dessa transferência patrimonial para que a sua restituição opere, nunca como consequência de eventual nulidade por falta de forma, o que, in casu, não sucedeu, não houve qualquer demonstração da causa desse empréstimo, nem resulta sequer dos factos dados como provados.
72. O Tribunal a quo, aquando da seleção dos factos dados como provados, não refere qual o motivo/causa do empréstimo em causa nos presentes autos.
73. Por outro lado, à falta de invocação de enriquecimento sem causa, a restituição não pode operar com base nesta (outra) causa de pedir, devendo improceder assim a ação.
74. Em suma, porque os factos provados não revelam a celebração de contrato de mútuo, nem de qualquer outro que determine a obrigação de restituição por falta de prova da causa ou fim que envolveu o empréstimo do falecido marido da A. para a Ré, prova que às AA. incumbia, há que ser julgada a acção improcedente.
75. Nenhuma das testemunhas inquiridas teve conhecimento directo sobre o empréstimo, mormente nenhuma tendo assistido a qualquer conversa entre o falecido marido da A. e a Ré a propósito do empréstimo, dos seus motivos ou data para a sua restituição.
76. As declarações de parte da A., por si requerido, não lograram sequer justificar a causa para o empréstimo, aliás, nunca assistiu a qualquer conversa entre o seu falecido marido e a Ré, nem logrou adiantar qual a data de restituição dos alegados montantes emprestados, nem para que serviram.
77. Inexistindo prova, sempre se resolverá a ação contra a parte a quem incumbe o ónus da prova dos factos, neste caso as AA., impondo-se a sua absolvição do pedido.
78. Mostram-se, assim, violados os artigos 5º, 154º e 607º do CPC, artigos 342º, 344º, 396º, 1142º, 1143º, 1144º do CC e artigo 208º da CRP.
Deste modo, revogando a douta sentença e proferindo outra que absolva a Ré do pedido formulado na petição inicial, farão V. Ex.as Venerandos Desembargadores a costumada JUSTIÇA!
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6. As Autoras contra-alegaram ao recurso interposto, pugnando pela sua improcedência.
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7. Foram cumpridos os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. arts. 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].

Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes em 1ª instância e ali apreciadas, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no sistema de recursos vigente na nossa lei adjectiva, não se destina à prolação de novas decisões judiciais, mas ao reexame ou à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1]
No seguimento desta orientação, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
a)- Do erro de valoração e ponderação dos meios prova produzidos nos autos quanto aos pontos de facto impugnados pela recorrente.
b)- Dos elementos constitutivos do contrato de mútuo invocado e da sua verificação (ou não) no caso dos autos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
A. Os factos considerados provados pelo tribunal de 1ª instância são os seguintes:
1- A Autora e cabeça de casal B... casou com F..., no regime da comunhão de adquiridos em 22 de Julho de 1995, em primeiras núpcias e sem convenção antenupcial.
2- Desse casamento nasceram três filhas, as autoras C..., solteira, maior, E..., solteira, maior e D..., menor.
3- O marido da A. B... faleceu no dia 06/11/2012, tendo como herdeiras conhecidas do falecido, a sua mulher B..., cabeça de casal, e as suas filhas, C..., D... e E..., todas autoras nestes autos.
4- O falecido F..., desde Março de 2011 e até meados de Fevereiro de 2012 foi entregando à Ré, e a pedido desta, a quantia global de € 9.371 euros.
5- Acordando que a restituição da soma por banda da R. deveria ocorrer até ao final do mês de Agosto de 2012.
6- Em 10 de Agosto de 2012, a Ré transferiu para a conta da empresa, da qual o falecido, F... era sócio-gerente, a quantia de € 500 euros por conta da soma entregue.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I.. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Como resulta da fixação do objecto do presente recurso [delimitado, como se referiu, pelas conclusões recursivas, salvo no que seja de conhecimento oficioso] a primeira questão que importa dirimir refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido, sendo que esta se constitui como essencial à decisão da causa e, em particular, à procedência da pretensão deduzida nos autos.
Em sede de impugnação da decisão de facto, como é consabido, a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com toda a precisão dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, dos concretos meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do Recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação.
Com efeito, como decorre do preceituado no n.º 1 do art. 640º, incumbe ao recorrente, em primeiro lugar, circunscrever o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considerados viciados por erro de julgamento, com indicação da decisão que a seu ver deveria ter sido proferida [als. a) e c) do n.º 1] e, em segundo lugar, fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa [al. b) do n.º 1].
De facto, se ao Tribunal é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da sua decisão em matéria de facto (art. 607º, n.º 4 do CPC), facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto o respectivo ónus de impugnação, ou seja o ónus de expor, em termos claros e suficientes, os argumentos que, extraídos da sua própria apreciação crítica dos meios de prova produzidos, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo Tribunal a quo.
Neste sentido, a impugnação da decisão de facto não se basta com a afirmação pelo recorrente da sua discordância face ao decidido, sustentada em referências imprecisas, genéricas ou descontextualizadas, ou a mera reprodução parcial de um outro segmento parcial e descontextualizado de algum ou alguns dos depoimentos, sendo certo que é o apelante que impugna a decisão da matéria de facto quem está em melhores condições para apontar, fundadamente, os eventuais erros de julgamento existentes ao nível da decisão de facto.
Na realidade, como refere Ana Luísa Geraldes [2] a prova de um facto não resulta, regra geral, de um só depoimento ou de parte dele, mas da conjugação de todos os meios de prova produzidos, através da sua análise global, devidamente ponderada, em termos críticos, segundo as regras da lógica, da experiência e das regras da ciência, eventualmente convocáveis no caso concreto.
Como assim, neste contexto de apreciação global e crítica da prova produzida, “mostra-se facilmente compreensível que se reclame da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorrectamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências da apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado.”
Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte à formulação da convicção do Tribunal (e que ficaram expressos na motivação da decisão), com recurso, se necessário, às restantes provas produzidas e registadas, apontando eventuais disparidades, contradições ou incorrecções que afectem a decisão recorrida.

É suposto «desconstruir» a convicção firmada pelo Tribunal recorrido – e que o mesmo deve espelhar na motivação da decisão de facto, através da exposição do fio condutor do raciocínio lógico-dedutivo que o conduziu a afirmar a demonstração ou não demonstração de determinada realidade factual -, apontando, em termos precisos e suficientes, os erros de valoração que lhe estão subjacentes, sendo certo que, como é pacífico, o objectivo do 2º grau de jurisdição na apreciação de facto não é a simples repetição do julgamento mas a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento.
De facto, segundo o que decorre do art. 662º, n.º 1 do actual CPC, «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
Como assim, e como é hoje indiscutido, através deste novo art. 662º, em contraponto com o art. 712º do CPC anterior, pretendeu-se realçar que, sem embargo da correcção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afectam a decisão de facto e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, sujeito às mesmas regras de direito probatório material que são aplicáveis em 1ª instância, os elementos de prova que se mostrem acessíveis imponham uma solução diversa da antes acolhida.
Portanto, afastada está a tese que a modificação da decisão de facto só pode ter lugar em casos de erro manifesto de apreciação dos meios probatórios ou, ainda, que a Relação, atentos os princípios da imediação e da oralidade, não pode contrariar o juízo formulado em 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação.
Sem prejuízo do relevo de tais princípios e sem escamotear que o Juiz em 1ª instância se encontra, por via do imediato contacto com a produção da prova, em particulares condições para efeito de julgamento da matéria de facto [condições que, por regra, não são repetíveis em sede de julgamento na Relação], dúvidas não existem que o pensamento legislativo consagrado no citado art. 662º, n.º 1 [e, ainda, no n.º 2 als. a) e b) do mesmo inciso] aponta no sentido de a Relação se assumir “ como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem (…), assistindo-lhe plena autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis. “ [3]
De todo o modo, isto é, sem prejuízo dos aludidos poderes da Relação, ao nível da reapreciação dos meios de prova produzidos em 1ª instância e formação da sua própria e autónoma convicção, a alteração da decisão de facto deve ser efectuada com segurança e rodeada da imprescindível prudência e cautela, centrando-se nas desconformidades encontradas entre a prova produzida em audiência, após a efectiva audição dos respectivos depoimentos, e os fundamentos indicados pelo julgador da 1ª instância e nos quais baseou as suas respostas, e que habilitem a Relação, em conjunto com outros elementos probatórios disponíveis, a concluir em sentido diverso, quanto aos concretos pontos de facto impugnados especificadamente pelo recorrente; Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida - que há-de ser reanalisada pela Relação mediante a audição dos respectivos registos fonográficos -, deverá prevalecer a decisão proferida em 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso, nessa parte. [4]
Quer isto dizer, como salienta Ana Luísa Geraldes, que na reapreciação da prova pela 2ª instância, não se procura obter uma nova (e diversa) convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência e da lógica, atendendo aos elementos probatórios que constam dos autos, e aferir, assim, nestes termos, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido – art. 640º, n.º 1 al. b), parte final, do CPC.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova testemunhal e das declarações de parte ou do depoimento de parte, este último na parte em que não constitua confissão, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação de prova, conforme decorre do disposto nos artigos 361º e 396º do Cód. Civil e artigos 466º, n.º 3 e 607º, n.º 5, do CPC.
No entanto, como é pacífico, prova livre não é prova arbitrária ou discricionária; prova livre “quer dizer prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas em perfeita conformidade, como é natural e compreensível, com as regras da experiência e as leis que regulam a actividade mental” (…), ou seja, segundo “as máximas de experiência e as regras da lógica” ou, ainda, nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, “as regras da experiência, da lógica e da experiência.” [5]
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjectiva (art. 607º, n.º 4 do CPC) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada, expondo o fio condutor que, em termos lógicos e segundo as regras da experiência, conduziu ao julgamento de determinado facto como demonstrado ou não demonstrado.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial, não só para efeitos de convencimento das partes e do eventual exercício do direito de impugnação da decisão de facto, mas, ainda, para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que o Tribunal ad quem vai controlar, por recurso às regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância, confrontando-a com a sua própria e autónoma convicção, formada também ela (a convicção do tribunal de recurso), à luz dos meios de prova produzidos, aferidos pelas mesmas regras da experiência e da lógica, aplicáveis no caso.
Por outro lado, ainda, importa dizê-lo, no contexto do julgamento da matéria de facto, seja ao nível da 1ª instância, seja ao nível da sua reapreciação no Tribunal de 2ª instância, a reconstrução histórica do material fáctico não persegue uma verdade absoluta ou uma certeza naturalística (própria de outros ramos das ciências), mas um grau de certeza empírica
e histórica, baseada num alto grau de probabilidade. Como refere Manuel de Andrade “a prova não é certeza lógica, mas tão-só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica).” [6]
Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora aferir se assiste razão à apelante no que tange à impugnação da matéria de facto, nos termos por ela defendidos.
A matéria posta em crise pela apelante – sustentando que a mesma deveria ter sido julgada como não provada - causa é a seguinte:
“4- O falecido F..., desde Março de 2011 e até meados de Fevereiro de 2012 foi entregando à Ré, e a pedido desta, a quantia global de € 9.371 euros.
5- Acordando que a restituição da soma por banda da R. deveria ocorrer até ao final do mês de Agosto de 2012.
6- Em 10 de Agosto de 2012, a Ré transferiu para a conta da empresa, da qual o falecido, F... era sócio-gerente, a quantia de € 500 euros por conta da soma entregue. “
Desde logo, é de referir que a impugnação quanto ao ponto 6 deve entender-se em termos hábeis, pois que a Ré confessou (vide assentada constante da acta de julgamento) que a 10.08.2012 transferiu para a conta da empresa (em nome individual), da qual o falecido F... era sócio-gerente, a quantia de € 500,00. A Ré dissente apenas quanto ao facto de esse pagamento ter sido “ por conta da soma entregue “, pois que, segundo o que afirma, essa quantia foi paga por conta do custo da reparação de dois veículos automóveis que foi levada a cabo pelo falecido F..., que era mecânico.
Assim, que ocorreu a dita transferência de € 500,00 em 10.08.2012 é ponto assente, discutindo-se apenas se o mesmo teve lugar como pagamento dos serviços de reparação – como invoca a Ré – ou como pagamento/restituição parcial da quantia mutuada – como invocam as Autoras.
Dito isto, como resulta da motivação da decisão de facto plasmada na sentença, a Srª Juiz a quo considerou provada a materialidade ora posta em crise relevando especialmente as declarações de parte da Autora, B..., os depoimentos prestados pelas testemunhas L..., M..., N..., assim como, ainda, o teor do documento a fls. 28/29 dos autos (meios de prova arrolados pelas Autoras), desconsiderando, por seu turno, o depoimento de parte da Ré (salvo na parte confessória já citada) e das testemunhas H... e I... (este dois últimos meios de prova arrolados pela Ré), ou seja, conferindo credibilidade aos citados depoimentos das testemunhas arroladas pelas Autoras e não conferindo credibilidade aos depoimentos das testemunhas arroladas pela Ré.
É contra este posicionamento que a apelante manifesta discordância, por dissentir da forma como o tribunal recorrido entendeu valorar o primeiro grupo de depoimentos em detrimento dos depoimentos produzidos pelas testemunhas por si arroladas e do seu próprio depoimento de parte, mormente dos depoimentos das testemunhas H... (sua filha, que confirmou que o pagamento em causa foi efectuado por conta da reparação de veículos que foi levada a cabo pelo falecido F..., negando a existência de qualquer pedido de empréstimo da parte de sua mãe junto do dito F...) e I... (companheiro da Ré à data dos alegados empréstimos e seu actual marido, que corroborou na íntegra a versão da testemunha H..., tal como o seu depoimento de parte, em que afastou, por completo, a existência de tal empréstimo e referindo que o pagamento em causa (de € 500,00) se refere ao custo com a reparação de dois veículos, levada a cabo pelo F....
Em suma, na leitura que a apelante faz dos citados meios de prova, não existe prova bastante e credível para ter como demonstrada a factualidade acima referida e constante dos ditos pontos 4, 5 e 6 do elenco da sentença proferida, que devia, pois, ter merecido uma resposta negativa do tribunal de 1ª instância.
Procedeu-se à audição integral do registo fonográfico dos depoimentos prestados no decurso da audiência final, verificando-se, na verdade, que em relação à matéria objecto de impugnação foram produzidos depoimentos de sinal absolutamente contrário.
Com efeito, as declarações de parte da Autora B... e os depoimentos das testemunhas L... (membro da Junta de Freguesia ... conjuntamente com o falecido F..., que terá confidenciado a existência dos empréstimos em causa), M... (secretária da mesma Junta de Freguesia e a quem terá sido confidenciado, na presença da testemunha L..., pelo falecido a existência dos empréstimos em causa) e N... (cunhado do falecido, a quem este terá também dado conta dos empréstimos efectuados à Ré) confirmaram a versão das Autoras quanto ao empréstimo em causa realizado pelo falecido F... à ora Ré e por força das dificuldades financeiras que esta atravessava à data, ao passo que as testemunhas H... (filha da Ré) e I... (companheiro da Ré e seu actual marido) negaram essa versão, antes invocando que esses empréstimos não existiram e que o pagamento de € 500,00 (em duas transferências bancárias de € 300,00 e € 200,00 para uma conta da sociedade de que o F... era sócio-gerente – documento a fls. 29 dos autos) se referia ao custo com a reparação de dois veículos automóveis, o que foi corroborado na íntegra pelo depoimento de parte da própria Ré.
Na presença dos descritos depoimentos e declarações, e no que tange ao sentido decisório sufragado a respeito dos factos ora sob escrutínio, o decisor de 1ª instância relevou, como já se deu nota, primordialmente as declarações de parte da Autora B..., compaginando-o com o documento de fls. 28 (apontamento onde o marido terá tomado nota dos valores que foi entregando à Ré) e os depoimentos prestados pelas testemunhas L..., M... e N..., atenta a consistência, coerência e plausibilidade da sua versão, à luz das regras da lógica e da experiência comum, desconsiderando, logicamente, em função da credibilidade que lhe mereceram os aludidos meios probatórios, os depoimentos – de sentido contrário – das testemunhas H... e I....
Neste particular, cumpre dizer à partida, não nos impressiona – ao contrário da apelante que faz repetida alusão ao longo das suas conclusões ao caracter indirecto dos depoimentos de tais testemunhas de “ouvir dizer” – que os depoimentos das testemunhas L..., M... e N... se refiram a factos de que não têm conhecimento directo (pois que não assistiram às entregas de dinheiro e não sabem, pois, o seu montante e as suas datas, sabendo tão-só o que lhes foi confidenciado pelo falecido F..., como reconheceram expressamente nos seus depoimentos prestado em audiência), sendo que temos como crível e razoável – à luz das regras da experiência e da lógica - que quem pede auxílio financeiro a outrem o faz com recato, sem assumir de forma visível e pública as suas necessidades, assim como quem empresta também o faça de forma recatada, privada, não contando pois com testemunhas directas dos factos, isto é, não é suposto que as testemunhas tenham presenciado as entregas em apreço, tanto mais que, além do que ficou dito, é normal que exista, pela própria natureza das coisas, uma relação de confiança significativa entre quem pede e quem empresta dinheiro.
Em nosso ver, de um ponto de vista de análise crítica da prova, impressiona mais que, além do apontamento das alegadas entregas de dinheiro, não exista nenhum outro documento (cheque, transferência bancária ou recibo assinado pela Ré) que comprove as deslocações patrimoniais em causa, sendo que, no mínimo, será temerário que alguém vá emprestando sucessivamente valores em dinheiro sem se munir de qualquer documento que as comprove de um forma segura e objectiva.
No entanto, é de ponderar – à luz do aludido apontamento - também que falamos de quantias que nunca foram iguais e de valores maioritariamente reduzidos (€ 20,00, € 40,00, € 80,00, € 200,00, € 195,00, € 420,00, € 670,00, nunca atingindo valor superior a € 870,00), o que torna crível, no contexto social em apreço (em que o Autor é mecânico e a Ré tem uma pequena empresa familiar de costura) e de confiança entre mutuante e mutuária (como é suposto existir para que alguém se dirija a outrem a pedir dinheiro emprestado para ocorrer a dificuldades financeiras pontuais), à luz das regras da experiência comum, que não existam os aludidos documentos, embora isso coloque, naturalmente, dificuldades em termos de prova de tal versão.
Por outro lado, ainda, é de referir que, tendo-se procedido nesta instância à audição integral dos depoimentos das testemunhas H... e I..., a percepção que se colhe desses depoimentos é que os mesmos não são totalmente seguros e convincentes, mostrando-se eivados de uma natural e legítima lealdade filial e conjugal, reafirmando a inexistência dos ditos empréstimos e invocando, para justificar as transferências dos valores de € 200,00 e € 300,00, o pagamento da reparação de dois veículos, embora, diga-se, não existam também quaisquer documentos que comprovem a titularidade de tais veículos ou, ainda, uma qualquer factura ou qualquer outro tipo de documento relativo aos alegados serviços de reparação efectuados pelo F... como mecânico e a pedido da Ré.
Por outro lado, ainda, e sendo certo que a apelante discorda da valoração das declarações de parte da Autora B..., como é consabido este meio de prova veio a obter expressa consagração no actual Código de Processo Civil, correspondendo a posição que a doutrina vinha já sustentando no domínio do anterior Código.
Com efeito, preceitua o artigo 466º do CPC que “as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo” (n.º 1), declarações que o “tribunal aprecia livremente (…), salvo se as mesmas constituírem confissão” (n.º 3), caso em que tais declarações de facto (confessórias) – reduzidas a escrito mediante assentada (artigo 463º do CPC) - farão prova plena contra o confitente (artigo 358º, n.º 1 do Cód. Civil).
É certo, como bem refere a apelante, que as declarações de parte devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado e prudência.
Não se pode olvidar que, como meio probatório são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na acção; Seria, de facto, de todo insensato que, sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.
Neste sentido, compreende-se que, tendencialmente as declarações das partes, sem qualquer corroboração de outra prova, qualquer que ela seja, não apresentem, ainda assim, e sempre num juízo de liberdade de apreciação pelo tribunal, a suficiência bastante à demonstração positiva do facto pretendido provar.
Não obstante, o certo é que são um meio de prova legalmente admissível e pertinentemente adequado à prova dos factos sobre as quais devem incidir, ou seja, os factos em que as partes tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo.
Todavia, enfatiza-se, tais declarações são apreciadas livremente pelo tribunal (artigo 466.º, n.º 3, do CPC) e, nessa apreciação, engloba-se a sua suficiência à demonstração do facto a provar.
Por conseguinte, a prova por declarações de parte deve ser livremente apreciada pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, na certeza de que a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias e que, neste enquadramento, a declaração de parte que é favorável e que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie, será, regra geral, insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir.
Em suma, como se refere em recente Acórdão desta Relação [7] “por decorrência do princípio da livre apreciação da prova, nada obstaculiza que das declarações da parte se extraiam elementos que contribuam para a prova de factos favoráveis ao próprio depoente ou para a contraprova de factos que lhe sejam desfavoráveis.
De facto, a credibilidade das declarações da parte, no segmento em que não integrem confissão, deve ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstractas pré-constituídas que, de forma automática, desvalorizem as declarações da parte apenas porque é parte. Isso mesmo é particularmente enfatizado por Elizabeth Fernandez que ressalta que «se as partes podem passar a declarar a seu pedido o que viram, ouviram, sentiram, cheiraram, tocaram, conversaram, disseram, em suma, o que testemunharam, e porque o testemunharam não faz qualquer sentido conferir a estas declarações proferidas por pessoas que materialmente são testemunhas só porque são partes, um valor diverso do daqueles factos que foram testemunhados por quem é material e formalmente testemunha.” [8]
Nesta perspectiva, nada impedirá, pois, que as declarações de parte possam servir para prova de determinada factualidade desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação, mas sobretudo quando essas declarações sejam corroboradas, em maior ou menor medida, por outros subsídios probatórios que hajam sido carreados para o processo.
Ora, no caso dos autos, estes subsídios probatórios existem, de forma clara, sejam eles os depoimentos das testemunhas L..., M... e N..., já antes analisados, seja, ainda, o aludido documento de fls. 28 e que se reporta às várias entregas efectuadas pelo falecido F... à Ré, sendo que, como já antes referimos, da conjugação crítica, à luz das regras de experiência e da lógica, resulta, em nosso ver, base probatória bastante e consistente, para a demonstração da factualidade ora em crise.
Como quer que seja, no caso em apreço, como deflui do confronto entre as explicitações oferecidas pelo Tribunal recorrido relativamente aos meios de prova considerados relevantes e a argumentação invocada na motivação recursiva pela apelante relativamente aos mesmos depoimentos não ocorrem divergências que mereçam especial realce, salvo a própria oposição entre as versões carreadas aos autos.
O que acontece, o que ressuma já da motivação da decisão recorrida, já da motivação do presente recurso, é, em termos essenciais, uma divergente valoração da prova produzida: tribunal recorrido e recorrente não divergem na leitura das provas, divergem é na respectiva valoração, conferindo o tribunal credibilidade aos meios probatórios aduzidos pelas Autoras e, logicamente, não atribuindo credibilidade aos meios probatórios de sinal contrário à convicção que para si emerge daqueles meios probatórios, ao passo que a apelante e Ré confere credibilidade aos meios probatórios por si aduzidos e, logicamente, em sentido oposto ao tribunal, descredibiliza os meios probatórios aduzidos pelas AA.
Todavia, os poderes de alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente (em termos de convicção autónoma) para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância e já não naqueles (como é o caso) em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, assumindo uma opção que justificou de forma que reputamos consonante com toda a prova produzida no âmbito do presente processo (como, aliás, procurámos deixar claro na análise acima realizada relativamente a cada um dos pontos de facto em que o apelante considera ter existido erro de julgamento), sendo certo que, contrariamente ao entendimento que preconiza a apelante, não é imperioso que duas versões contraditórias dos factos conduzam sistemática e necessariamente a uma dúvida inultrapassável no espírito do julgador.
Assim sucede relativamente à parte dos factos que a apelante considera erroneamente apreciados, porquanto na explicitação do iter formativo da sua convicção o julgador justificou a adopção de uma das teses em confronto, privilegiando, pela sua coerência e consistência, que não se nos apresenta posta em causa, a versão sustentada nas declarações de parte da Autora B... e nos depoimentos das testemunhas L..., M... e N..., sendo que a manifestação desse convencimento revela outrossim uma tomada de posição clara e inequívoca, aí se indicando, de forma que reputamos adequada e coerente, as razões que fundaram a sua convicção, sendo certo que o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, à luz das regras da experiência e da lógica, como é o caso dos autos.
Daí que não se vislumbre razão bastante para divergir do sentido decisório perfilhado pelo julgador de 1ª instância relativamente à factualidade em apreço, já que nenhuma argumentação consistente foi aportada aos autos no sentido de desconstruir a motivação tecida na decisão recorrida e, em particular, não resulta da prova produzida – de toda a prova e da sua conjugação – que a convicção revelada confronte as regras da experiência e da lógica.
Ora, para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação da “prudente e sã convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Com efeito, não obstante se garantir no actual sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que reapreciação não é um segundo julgamento e continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do artigo 607º, nº 5, do CPC, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…).”
Assim, apesar da distância entre esta Relação e as provas e o modo como conheceu de algumas delas – no tocante à prova pessoal, através da audição do respectivo registo fonográfico - não há motivo para concluir que o tribunal de que provém o recurso, ao decidir julgar provada a factualidade constante dos referidos pontos de facto n.ºs 4, 5 e 6 tenha incorrido – por violação das regras da ciência, da lógica ou da experiência – em qualquer error in iudicando, por erro na avaliação das provas.
Da reapreciação efectuada por este Tribunal, procedendo à reapreciação da matéria de facto impugnada, em busca da nossa própria convicção, considerada a prova em causa no seu conjunto, não há razões para nos afastarmos do entendimento tido na 1.ª instância, relativamente aos factos impugnados, pois que não se vislumbra qualquer desconformidade notória entre a dita prova e a respectiva decisão, em violação dos princípios que devem presidir à apreciação da prova, ou seja, critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto quanto à demonstração ou não de determinados factos.
Da análise crítica da prova indicada como fundamento da impugnação, bem como da restante prova, não pode ficar-se com a convicção indicada pela recorrente.
E é essa análise crítica e integrada dos depoimentos com os outros meios de prova que os juízes devem fazer, pois a sua actividade, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos, antes lhe incumbindo a sua apreciação crítica e livre.
A fundamentação da decisão de facto mostra-se criteriosa e tem pleno suporte na gravação da prova e nos demais elementos constantes dos autos, não existindo qualquer elemento que confirme, em termos objectivos e seguros, que não foi feita uma correcta análise do seu valor probatório, bem pelo contrário.
Dito doutro modo: apesar dos condicionalismos em que conheceu das provas – marcados pela ausência de imediação – a convicção autónoma que esta Relação delas extrai, coincide com a convicção da 1ª instância, pelo que, não há qualquer erro, na fixação dos factos materiais da causa, que deva corrigir-se.
Sendo assim, nenhuma alteração é de introduzir à factualidade julgada como provada sob os ditos pontos de facto, que se mantém.
*
IV.II. Do Contrato de Mútuo:
Improcedendo, nos termos expostos, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, logo resulta que é indiscutível o acerto da decisão recorrida quanto à decretada condenação da Ré no pedido pedido contra si formulado. Aliás, como se torna evidente do próprio teor das alegações e das conclusões recursivas, a própria apelante nada mais esgrime do que a alteração da factualidade julgada provada quanto à alegada existência de entrega das quantias em apreço e consequente obrigação de restituição a cargo da Ré, ciente, naturalmente, de que dessa alteração dependeria, em termos directos, a procedência do recurso e que, ao invés, improcedendo essa alteração – como antes se decretou – a consequência inelutável será a improcedência do recurso.
De todo o modo sempre se dirá o seguinte.
Conforme resulta do preceituado no art. 1142º do Cód. Civil o mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
O contrato de mútuo supõe, assim, enquanto contrato real quoad constitutionem [em que a atribuição patrimonial por parte do mutuante faz parte integrante e constitutiva do contrato, sem a qual o mesmo não se mostra perfeito], não apenas o mero consenso das partes ou a mera entrega de coisa fungível ou de dinheiro, mas, ainda, a obrigação da respectiva devolução da coisa ou reembolso do dinheiro emprestado, acrescida da eventual remuneração acordada. [9]
É, assim, indiscutido, a nosso ver, e conforme à posição maioritária da doutrina, que o contrato de mútuo para a sua conclusão e perfeição supõe dois elementos constitutivos, quais sejam:
i) a entrega de uma coisa fungível ou de dinheiro por parte do mutuante, sendo que sem essa entrega (datio rei) por parte do mutuante não será possível ter-se como existente o contrato de mútuo típico, mas quando muito uma promessa de mútuo [10];
ii) a obrigação de restituir outro tanto do mesmo género do que foi recebido, nomeadamente, quando está em causa o mútuo de dinheiro, a mesma quantia que foi entregue, acrescida de eventual remuneração. Esta última obrigação mostra-se essencial ao mútuo, quer ao mútuo oneroso, quer ao mútuo gratuito, destinando-se a reequilibrar a situação patrimonial das partes, colocando-as na situação em que se encontravam ao tempo da conclusão do negócio.
Esta obrigação corresponderá, assim, a uma obrigação pecuniária, quando tiver sido recebida uma quantia em dinheiro ou uma obrigação genérica no caso contrário, correspondendo sempre o género àquele da prestação recebida.
Dito isto, como é consabido, sobre o autor impende o ónus da prova dos elementos constitutivos do direito que invoca e que judicialmente pretende ver tutelado (artigo 342º, n.º 1 do Cód. Civil).
Sendo que, caso não cumpra tal ónus, ou mesmo em caso de dúvida, a questão é decidida contra si (artigos 342º e 346º do Cód. Civil e artigo 414º do CPC).
Nesta conformidade e face ao antes exposto não basta que o demandante, invocando como causa petendi da sua pretensão, um mútuo ou empréstimo, prove apenas a entrega de determinado montante pecuniário; Incumbe-lhe ainda demonstrar a obrigação de restituição a cargo do demandado, pois que só assim se perfecciona o contrato de mútuo que lhe serve de fundamento.
Se fizer prova destes dois elementos constitutivos a acção procede; se o não fizer, a acção tem de improceder.
Nesta perspectiva, a questão, suscitada pela apelante nas suas alegações, quanto ao facto de o empréstimo em causa ter sido efectuado pela sociedade de que o falecido F... era sócio-gerente (e ainda que não tenha essa asserção de facto qualquer correspondência ou arrimo na factualidade provada), nada tem que ver com a legitimidade processual, mas com o mérito da causa. Dito de outra forma, se existisse prova dessa realidade (a qual, também se diga, nunca foi invocada nos autos, nomeadamente pela Ré na sua contestação), a consequência não seria a absolvição da instância por ilegitimidade processual das demandantes/Autoras, mas a estrita improcedência da acção e a consequente absolvição do pedido da ora apelante.
Com efeito, como refere Manuel de Andrade, a legitimidade processual “traduz-se em ser o demandante (legitimação activa) o titular do direito e o demandado (legitimação passiva) o sujeito da obrigação, suposto que o direito e a obrigação na verdade existam.” [11]
Destarte, neste enquadramento, se o demandante demonstra a titularidade do direito e a correspectiva obrigação do demandado a acção procede; se não demonstra a titularidade do direito e logicamente a correspectiva obrigação a cargo do demandado, a questão já não contende com a legitimidade processual (antes firmada), mas com o próprio fundamento substantivo da pretensão, impondo-se o decretamento da improcedência da causa.
Mas retomando o raciocínio que antes vínhamos expondo, se apenas se prova a entrega de valores, pode esta ter como subjacentes outros fundamentos ou fitos e a que não corresponde qualquer obrigação de restituição a cargo do demandado, como seja, um animus donandi, um pagamento, a compensação, etc..
Neste sentido, como sustenta – bem – a apelante não basta ao demandante demonstrar a deslocação patrimonial, sendo ainda mister demonstrar que nos termos convencionados essa deslocação patrimonial tinha que ser revertida, isto é, que o demandado estava obrigado a restituir a quantia mutuada, acrescida da eventual remuneração pela disponibilidade do capital.
Em idêntico sentido refere-se no AC STJ de 19.02.2009 que “a falta de prova da celebração de um contrato de mútuo impede a condenação na restituição do capital com fundamento em nulidade por falta de forma, já que também tem de ser provado o título com que o dinheiro foi entregue ou passou a ser detido, ou seja, que, nos termos convencionados (título ou causa), esse dinheiro teria que ser restituído pela parte que o recebeu, pois que só assim, como se expôs, se pode ter por verificado um contrato de mútuo. [12]
Porém, se é assim, como temos por pacífico, no caso dos autos, à luz da factualidade provada e constante da sentença recorrida – e que antes se manteve -, as AA. fizeram prova cabal do mútuo invocado como causa de pedir, ou seja, fizeram prova não só da entrega das quantias mutuadas, mas, ainda, que essas quantias, nos termos convencionados entre o mutuante F... e a mutuária G..., teria que ser restituída/reembolsada por esta última àquele até Agosto de 2012 [pontos 4 e 5 da factualidade provada], obrigação que a Ré cumpriu apenas em parte e mediante a entrega da quantia de € 500,00.
Ora, sendo assim, ter-se-á de concluir que, ao contrário do que sustenta a apelante, se mostram reunidos e demonstrados pelas AA. os elementos constitutivos do contrato de mútuo, razão porque nada mais esgrimindo a Ré quanto ao mérito da sentença recorrida – e que nos cumpra conhecer oficiosamente -, seguro é também que a apelação não reúne condições para proceder, antes se impondo a confirmação da sentença proferida.
Improcede, pois, a apelação.
* *
V. DECISÃO:
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
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Custas pela Recorrente, pois que ficou vencida – art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC. -, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
* *
Porto, 24.09.2018
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Fernanda Almeida

(A redacção do presente Acórdão não segue as regras do novo Acordo Ortográfico).
__________________
[1] Vide, neste sentido, FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 147, A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de processo Civil”, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] ANA LUÍSA GERALDES, “Impugnação e Reapreciação da Decisão da Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Lebre de Freitas”, I volume, pág. 589 e seguintes, ou, ainda, no mesmo sentido, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 133.
[3] Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 232-233, F. AMÂNCIO FERREIRA, op. cit., pág. 213-221 ou, ainda, AC STJ de 18.05.2017, relatado por ANA LUÍSA GERALDES, disponível in www.dgsi.pt.
[4] A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 245.
[5] ALBERTO dos REIS, “CPC Anotado”, III volume, 4ª edição, 1985, pág. 245 e MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, 1995, pág. 236-239.
[6] MANUEL de ANDRADE, “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pág. 192; No mesmo sentido, vide, ainda, A. VARELA, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 435-436. Refere este último Professor: “A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.”
[7] AC RP de 21.02.2018, relator MIGUEL BALDAIA MORAIS (em que interviemos como 1ºJuiz Adjunto), ou, ainda, o Acórdão por nós relatado na apelação n.º 10471/16.8TBVNG.P1, que aqui seguimos de perto (este não publicado), AC RP 23.04.2018, relator ANA PAULA AMORIM e AC RP de 23.03.2015, relator JOSÉ EUSÉBIO de ALMEIDA, todos in www.dgsi.pt.
[8] ELIZABETH FERNANDEZ, “Nemo debet esse testis in propria causa? Sobre a (in)coerência do sistema processual a este propósito”, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, págs. 27 e seguintes. Sobre o tema, vide, ainda, em geral, ESTRELA CHABY, “O depoimento de parte em Processo Civil”, 2014, pág. 44-52, LUIS FILIPE PIRES de SOUSA, “As malquistas declarações de parte”, Julho de 2015, in Revista Julgar on lin//julgar.pt/mas-malquistas-declarações-de-parte/. e, ainda, J. LEBRE de FREITAS, “CPC Anotado”, 2º volume, 3ª edição (2018), pág. 307-310.
[9] Vide, por todos, neste sentido, L. MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações - Contratos em Especial”, III volume, 5ª edição, pág. 407, P. LIMA, A. VARELA, “Código Civil Anotado”, II volume, 3ª edição, pág. 680-682, I. GALVÃO TELLES, “Manual dos Contratos em Geral”, 4ª edição, pág. 463-467, ou, ainda, JOANA FARRAJOTA, “Código Civil Anotado”, Coord. ANA PRATA, 2017, pág. 1048-1049.
[10] Vide, distinguindo os contratos consensuais e os contratos reais, MANUEL de ANDRADE, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, II volume, 1987, pág. 51 e ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, 11ª edição”, pág. 284-285.
[11] MANUEL de ANDRADE, “Noções Elementares …”, cit., pág. 83.
[12] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 19.02.2009, relator MARIA dos PRAZERES PIZARRO BELEZA, AC STJ de 16.09.2008, relator NUNO CAMEIRA, ou, ainda, AC STJ de 13.03.2008, relator CARDOSO de ALBUQUERQUE, todos disponíveis in www.dgsi.pt