Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2528/15.9T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO FACULTATIVO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
CONDENAÇÃO ULTRA VEL PETITUM
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RP201801112528/15.9T8PRD.P1
Data do Acordão: 01/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 119, FLS 124-139)
Área Temática: .
Sumário: I - Ainda que o contrato de seguro facultativo o não preveja, a privação do uso de veículo pode ser objeto de indemnização a favor do segurado quando a seguradora viole culposamente relevantes deveres acessórios de conduta ligados à boa fé na execução do contrato de seguro, assim contribuindo para a verificação daquele dano.
II - Age em violação de deveres acessórios de conduta, a justificar a atribuição de indemnização pela privação do uso do veículo, a seguradora que, depois de ter assumido inequivocamente perante o segurado a atribuição de indemnização e sua quantificação por perda total do veículo seguro, vem, cerca de três semanas depois, sem justificação adequada e violando deveres de informação, comunicar à segurada que não a vai indemnizar, como se nunca tivesse assumido tal responsabilidade e negando posteriormente a sua assunção.
III - Os limites da condenação contidos no artigo 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, devem ser entendidos como referidos ao valor do pedido global e não às parcelas em que aquele valor se desdobra, quando o efeito jurídico se apresenta como indemnização decorrente de um único facto ilícito, traduzindo-se o total do pedido na soma dos valores de várias parcelas, que correspondem, cada uma delas, a certa espécie ou classe de danos, componentes ou integrantes do direito cuja tutela é jurisdicionalmente solicitada.
IV - Sob pena de nulidade, o tribunal não pode condenar o réu em quantia superior à do pedido (no caso, duas vezes retificado).
V - A litigância de má fé não se confunde com a improcedência da pretensão deduzida, já que aquilo que está em causa neste instituto jurídico não é o facto de a parte ter ou não direito à pretensão que deduz, mas sim um determinado comportamento processual que, correspondendo a um incumprimento doloso ou gravemente negligente dos deveres de cooperação e de boa fé processual, a que as partes estão submetidas por força dos art.ºs 7º, 8º e 9º do Código de Processo Civil, é censurável e reprovável por atentar contra o respeito pelos Tribunais e prejudicar a ação da justiça.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2528/15.9T8PRD.P1 (apelação)
Comarca do Porto Este - Inst. Local Cível de Paredes

Relator Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.[1]
B..., solteira, residente na Avenida ..., s/n, em ..., instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum, contra C..., SA, com o NIPC ......... e sede na Avenida ..., nº ., ..º andar, Lisboa, alegando, essencialmente, que no dia 18 de junho de 2015, quando o seu veículo ligeiro estava a ser conduzido por D... numa via pública, surgiram um odor e um ruído estranhos no interior do mesmo a que se seguiu um incêndio que se alastrou por todo o automóvel, causando danos no valor de € 16.892,75.
A R. responsabilizou-se pelos danos causados pelo incêndio, mas, por ser o custo da reparação superior ao valor do capital seguro (€ 14.886.40), iria o ressarcimento dos danos ser feito em dinheiro por “perda total” do veículo, tendo, para tal, apresentado como valor de ressarcimento a quantia de € 14.195,67, resultante do cálculo feito com dedução ao valor do capital seguro dos valores do carro depois do sinistro (salvado) e da franquia acordada no contrato de seguro, respetivamente, € 400,00 e € 290,73.Posteriormente, a R. recusou a indemnização por não aceitar a forma como o acidente se deu.
O veículo está imobilizado desde o dia 18 de junho de 2015 (data do acidente), sendo imprescindível para as deslocações da A. e de seu irmão, privação esta que estima em € 25,00 por dia, atendendo ao preço diário do aluguer de um automóvel ligeiro, de gama inferior ao seu, o que perfaz, até 31 de outubro de 2015, a quantia de 3.375,00. Acresce a quantia de € 5,00 por cada dia de depósito do veículo na oficina E..., Lda., em Vila Real.
Acrescenta que, dado o contrato de seguro celebrado entre ela e a R., assiste-lhe o direito de exigir dela a quantia peticionada de € 18.370,67 (pela perda total do veículo segurado e pela privação do uso da mesma) e, bem assim, os juros moratórios contados desde 18 de junho de 2015, até integral e efetivo pagamento.
Termina com o seguinte pedido[2]:
«Nestes termos, e nos melhores de direito, deve a presente acção ser julgada provada e procedente e, em consequência, ser a R. condenada a pagar à A., a título de danos patrimoniais, a quantia de € 17.970,67 pela perda total do veículo segurado e pela privação de uso do mesmo veículo, apurado até 30 de Outubro de 2015, actualizada esta última em sede de sentença final, quantias estas a que devem ser acrescidos juros legais desde 18 de Junho de 2015, data do acidente, até integral e efectivo pagamento, bem como, condenada no que se vier a apurar pelo depósito do veículo sinistrado, em custas de parte e procuradoria condigna.» (sic)
Citada, a R. contestou a ação, alegando designadamente que não foram identificados vestígios que permitam estabelecer uma relação direta entre o incêndio e algum sistema do veículo, nem se detetou qualquer indício de falha elétrica acidental que pudesse ter originado o incêndio, mais invocando a cláusula 4ª, al. b), das Condições Gerais, referente às Coberturas Facultativas do Seguro Automóvel, pelo que impugnou grande parte da matéria de facto alegada pela A., concluindo pela improcedência da ação.
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Teve lugar a audiência prévia, onde se retificou o pedido da ação, proferiu saneador tabelar, se definiu o objeto do processo e os temas de prova, se admitiram as provas e se designou data para a realização da audiência final.
Após vicissitudes várias, concluiu-se audiência de julgamento, a que se seguiu a prolação da sentença, com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Pelo exposto, julga-se a acção totalmente procedente e, em consequência, condena-se a R. a pagar à A. as seguintes quantias:
a) € 14.188,68 (catorze mil cento e oitenta e oito euros e oitenta cêntimos) a título de danos causados ao veículo da A., acrescida de juros de mora à taxa legal desde 15/07/2015 até efectivo e integral pagamento;
b) € 10.000,00 (dez mil euros) pela privação do uso do veículo, acrescida de juros de mora à taxa legal desde o trânsito em julgado da sentença até efectivo e integral pagamento.
Custas a cargo da R. (cfr. artigo 527º nºs. 1 e 2 do CPC).»
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Inconformada, recorreu a R., de apelação, em matéria de Direito, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1 – Entende a ré, que a sentença proferida no Tribunal “a quo” enferma de erros que precisam de ser corrigidos.
2 – Relativamente à indemnização do dano patrimonial decorrente da privação do uso, entende a ré (ora recorrente) que ela inexiste no caso concreto dos presentes autos.
3 – O contrato de seguro vale nos precisos termos em que foi celebrado (de acordo com as coberturas facultativas que expressamente foram contratadas e que constam mencionadas na respectiva apólice).
4 – A autora apenas contratou as coberturas facultativas descritas nas condições particulares que figuram no contrato de seguro titulado pela apólice 34/....... que está nos autos.
5 – No caso concreto dos presentes autos foi contratada a cobertura facultativa para o risco pelo incêndio, raio ou explosão do veículo automóvel com a matrícula ..-EU-.. pelo valor de € 14.886,40, deduzindo o valor da franquia de € 290,73 e deduzindo também o valor que for atribuído ao veículo no caso de sinistro.
6 – Esta cobertura não abrange, por não ter sido contratada, a condição especial correspondente às despesas ou indemnização resultantes da privação de uso do veículo seguro.
7 – A própria Lei determina a exclusão da privação do uso – nomeadamente, os números 2 e 3 do artigo 130º do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril.
8 – Ao abrigo do contrato de seguro de danos próprios, a ré não tem de restituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 552º do Código Civil), pois apenas está obrigada a entregar à beneficiária (autora) o montante do dano decorrente do sinistro, que está limitado ao capital contratado.
9 – Contrariamente ao decidido na douta sentença recorrida, o valor a entregar à autora seria, no caso concreto dos presentes autos, de € 14.195,67 [correspondente à quantia de € 14.886,40 (capital seguro contratado) menos a quantia de € 290,73 (valor da franquia) e menos € 400,00 (valor do salvado)].
10 – Impõe-se, assim, a correcção na douta sentença recorrida do valor do dano patrimonial causado ao veículo com a matrícula ..-EU-.., por forma a que ele deixe de ser € 14.188,68 e passe a ser de € 14.195,67.
11 – Tendo a autora indicado que a quantia € 17.963,68 (cfr., audiência prévia) era o valor do seu pedido, a douta sentença viola o disposto no artigo 609º, nº 1 do Código de Processo Civil.
12 – A condenação fixada na douta sentença recorrida (€ 24.188,68) é cerca de 35% superior ao valor do pedido.
13 – Deve ser eliminada a verba indemnizatória da douta sentença recorrida de € 10.000,00, porque – além do mais acima referido – a própria Lei determina a exclusão desta verba indemnizatória (cfr., números 2 e 3 do artigo 130º do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril).
14 – Tendo em conta a matéria de facto provada e não provada, bem como a matéria de Direito, deve ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra em que a condenação da ré não poderá ser superior à quantia de € 17.963,68.» (sic)
Entende assim a recorrente que deve ser proferido acórdão que revogue a sentença e condene a R. apelante em quantia não superior a € 17.963,68.
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A A. ofereceu contra-alegações, onde defende:
1. Como recurso subordinado, a condenação da R. como litigante de má fé, caso o seu recurso seja julgado procedente, ao abrigo do art.º 633º do Código de Processo Civil.
2. Violação do princípio da boa fé e de um dever acessório de prestação por parte da recorrente, ao negar a atribuição da indemnização depois de ter assumido a responsabilidade pelas consequências danosas do acidente, sendo responsável pelos danos decorrentes da privação do uso do veículo pela proprietária. Se a Recorrida tivesse recebido o valor (que esta aceitou em sede de pré-contencioso), teria dinheiro para alugar ou comprar um veículo para as suas deslocações diárias para o trabalho.
Concluiu que a sentença recorrida deve ser confirmada, “ressarcindo-se assim o lesado pelas consequências da privação do uso do veículo de forma equitativa e proporcional, ou caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese se admite, deve o mesmo ser condenado em má-fé” (sic).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação da R., acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido, delas retirando as devidas consequências, e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil[3]).
Há que apreciar ainda o recurso subordinado da R, relativo à litigância de má fé da A.

Em sede de apelação, somos chamados a decidir os seguintes temas:
1. O contrato de seguro facultativo e o direito a indemnização por privação do uso do veículo sinistrado.
2. Violação do princípio da proibição da condenação ultra vel petitum.

Quanto ao recurso subordinado, apresentado pela A.:
1. Condenação da R. como litigante de má fé.
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III.
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na 1ª instância:
A) No dia 18 de Junho de 2015, cerca das 15 horas, na saída da auto-estrada número 4 (A4) de .../..., ocorreu um acidente no qual foi interveniente o veículo ligeiro ALFA ROMEO, de matrícula ..-EU-.., propriedade da ora A., que resultou de incêndio;
B) No momento do acidente, o veículo estava a ser conduzido por D..., portador do cartão de cidadão número ............ e residente na Rua ..., nº .., ....-... ...;
C) De imediato foi contactado o número de emergência para que fosse enviado uma viatura de bombeiros para extinguir o fogo, tendo sido enviado para o local 11 elementos da corporação de Bombeiros Voluntários ..., auxiliados por 3 viaturas;
D) Foi também chamada a Guarda Nacional Republicana (GNR) que se apresentou no local do acidente quando o incêndio já estava a ser combatido pelos bombeiros, tendo, depois, elaborado o Auto de Ocorrência nº .../2015, aditado em 17 de Julho de 2015 com a alteração da matrícula que por lapso tinha sido indicada de forma errada pelo agente encarregue de elaborar o auto de ocorrência, nos termos constantes de fls. 16 e 17 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;
E) O incêndio foi dado por circunscrito às 15h32 horas do dia 18/06/2015;
F) Junto ao veículo, ardeu também, devido a tal ocorrência, cerca de 50 metros quadrados de mato da berma da estrada, tendo já sido ressarcido o respectivo proprietário – Brisa – Autoestradas de Portugal, SA.;
G) Contactada a companhia de seguros, aqui R., esta procedeu ao envio de reboque para levantamento e transporte da viatura sinistrada;
H) Seguidamente o veículo foi levantado pelo reboque, enviado pela R., e transportado até à oficina E... em Vila Real, onde foi deixado, conforme guia de transporte nº ..... que se encontra junta a fls. 18 dos autos e que se dá por integralmente reproduzida;
I) No dia seguinte, dia 19 de junho de 2015, foi preenchida a participação do sinistro e enviada à R. para ressarcimento dos danos provocados pelo incêndio, nos termos constantes de fls. 19 e 20 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;
J) Os danos causados no veículo da A. foram orçamentados pela peritagem efetuada pela entidade designada pela R., no valor de € 16.892,75;
K) Em carta datada de dia 14 de Julho de 2015, a R. comunicou à A. que se iria responsabilizar pelos danos causados pelo incêndio, nos termos constantes de fls. 21 e 22 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;
L) Nessa mesma missiva, a R. informa a A. de que, atendendo ao facto de o valor da reparação (€ 16.892,75), apurado em sede de peritagem por aquela ordenada, ser superior ao capital seguro pela apólice (€ 14.886.40), iria o ressarcimento dos danos ser feito em dinheiro por “perda total” do veículo;
M) A R. apresentou como valor a ser ressarcido a quantia de € 14.195,67, resultante do cálculo feito deduzindo os valores do carro depois do sinistro (salvado) e da franquia acordada no contrato de seguro ao valor do capital seguro, ou seja, aos € 14.886.40, valor do capital seguro, subtraiu € 290.73, valor da franquia, e € 400, valor do salvado;
N) Respeitando as instruções dadas pela seguradora R., a A. enviou a documentação exigida por aquela na mesma carta, mais concretamente no verso;
O) No final do mês de agosto de 2015, porém, e sem que nada o fizesse prever, a A. recebeu nova comunicação da R., datada de 31 de agosto de 2015, informando-a que não iria proceder a qualquer indemnização à A. pela perda total do veículo, pelo facto de o sinistro não ter ocorrido “nos moldes participados”, nos termos constantes de fls. 23 dos autos e que se dá por integralmente reproduzida;
P) A A. contestou esta última comunicação em carta datada de 02 de Setembro de 2015, procurando obter mais esclarecimentos sobre estes “moldes não coincidentes” entre a versão da A. e a “realidade dos factos” e questionando sobre a contradição entre as duas missivas enviadas pela R., nos termos constantes de fls. 24 dos autos e que se dá por integralmente reproduzida;
Q) A A. recebeu uma terceira comunicação da R., datada de 10 de Setembro de 2015, em que simplesmente lhe era dito que a R. mantinha a sua posição em relação à recusa da responsabilidade, sem mais esclarecimentos, e que apenas teria sido remetida à A. uma única carta, carta essa de escusa de responsabilidade, mostrando a R. desconhecer o envio da primeira missiva e respectivo conteúdo, nos termos constantes de fls. 25 dos autos e que se dá por integralmente reproduzida;
R) À data do sinistro, a responsabilidade civil pela circulação do veículo estava já transferida para a seguradora C..., SA, aqui demandada, através do contrato de seguro titulado pela apólice nº 34/......., nos termos constantes de fls. 49 a 126 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;
S) Nos termos da referida apólice a seguradora R. é responsável, perante a A., pelo ressarcimento desta, a título de danos próprios, pelo incêndio, raio e explosão do automóvel ..-EU-.. pelo valor de € 14.886.40, atento o valor da franquia de € 290.73, a deduzir ao valor atribuído ao veículo no momento da celebração do contrato de seguro;
T) D... (condutor do ..-EU-..) escreveu na participação do acidente (DAAA) o seguinte: “circulava na A4 sentido Porto Vila Real encontrei um odor esquisito no carro saí da A4 no nó de ... o veículo começou a arder”, nos termos constantes de fls. 19 e 20 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;
U) D... (condutor do ..-EU-..) escreveu no documento escrito entregue ao averiguador da R. o seguinte: “Quando circulava no sentido Porto Vila Real na zona ... sai fumo da ventilação do AC e deixou de funcionar o frio deitando fumo e calor do mesmos saido então em ... para verificar o mesmo que se tava passar Quando parou o carro incendiouce”, nos termos constantes de fls. 47 dos autos e que se dá por integralmente reproduzida;

Factos demonstrados por produção de prova:
V) O veículo seguia na A4, sentido Porto – Vila Real, quando surgiu um odor a plástico queimado que rapidamente se instalou no interior do automóvel, bem como fumo que saía do tablier;
W) O condutor saiu da auto-estrada na saída ..../...;
X) Como o cheiro se intensificava e a quantidade de fumo aumentava e se acumulava dentro do automóvel, o condutor foi obrigado a imobilizar o veículo, do lado direito da faixa de rodagem;
Y) Depois, o tablier ficou em chamas, que em pouco tempo se alastraram por todo o automóvel;
Z) Em consequência do acidente descrito, resultaram danos materiais no veículo da A.;
AA) O veículo encontrava-se bem conservado e apto a circular; BB) Ficando, no entanto, imobilizado desde 18 de Junho de 2015;
CC) Tratava-se de um veículo imprescindível para deslocações da A., entre as localidades de ..., onde exerce a profissão de F..., e ...;
DD) A A. emprestou o veículo a D... para transportar a sua mãe ao Porto que necessitava de cuidados médicos, vindo já este de regresso para entregar o veículo à A.;
EE) O compartimento do motor – situado na zona frontal da carroceria e imediatamente a seguir ao habitáculo – apresentava-se preservado, tendo ficado apenas ligeiramente afectado pelo calor do incêndio nos materiais plásticos localizados no topo do compartimento e apenas na zona mais próxima do habitáculo;
FF) O sistema de injecção de combustível também se encontrava preservado e sem afectação decorrente do incêndio;
GG) O turbocompressor, tal como todos os outros órgãos mecânicos e periféricos do motor, encontravam-se preservados;
HH) O compressor do sistema de ar condicionado localiza-se na zona frente esquerda do compartimento do motor e encontrava-se preservado e sem afectação directa pelo incêndio;
II) O alternador localiza-se na zona frente esquerda do compartimento do motor – sendo accionado pela mesma correia trapezoidal – também não apresentava (tal como todos os órgãos mecânicos e periféricos do motor – incluindo o motor de arranque) – qualquer dano em consequência do incêndio;
JJ) A bateria que alimenta o circuito de 12v encontra-se na zona lateral esquerda do compartimento do motor e encontrava-se preservada, sem afectação directa pelo incêndio, tal como os terminais de cablagem de alimentação do circuito eléctrico do veículo;
KK) Consta do relatório pericial junto a fls. 230 e ss. dos autos que o incêndio teve o seu início na parte direita frontal da viatura, com base no facto de que nesta zona todos os materiais plásticos fundiram por completo e escorreram para o chão da viatura. A fusão destes componentes plásticos foi completa e apenas o cobre das cablagens não fundiu, o que revela que as temperaturas não foram além dos 500ºC, temperatura de fusão do cobre; a justificação para que tenha sido do lado direito assenta no facto de ser nesta zona que estão todos os componentes fundidos e escorridos para o chão, ao invés da zona esquerda do veículo que, pese embora, apresente sinais também de fusão dos materiais e depósito no chão, mas em muito menor quantidade, nomeadamente a caixa de fusíveis encontra-se, embora parcialmente fundida (derretida), ainda no seu local; isto revela que a parte direita esteve sujeita a maiores temperaturas e durante mais tempo;
LL) No relatório pericial, o perito conclui que “Dos elementos analisados e após “descascar” todo o material depositado no chão dos elementos fundidos, consegui obter o ventilador da chauffage completamente fundido (ver Fig. 10). Tudo indica que terá sido neste componente que se terá dado o início do incêndio, pois: - os componentes eléctricos do motor eléctrico do ventilador são propícios a sobre – aquecimento e/ou curto-circuitos; - o Autor declarou que saiu fumo pelas grelhas de ventilação; - Foi precisamente neste local que havia maior quantidade de material fundido e escorrido.

A 1ª instância deu como não provada a seguinte matéria:[5]
1) O condutor não conseguiu detectar a proveniência do odor indicado em V) dos factos provados;
2) No mesmo momento, começou a escutar um ruído estranho proveniente da chauffage;
3) O veículo tinha as janelas abertas;
4) O condutor parou o veículo a cerca de 200 metros após a saída da portagem, logo a seguir a um cruzamento, sentido Portagem – localidade de ..., sentido Norte – Sul;
5) De imediato saiu da viatura;
6) A A. residiu com o namorado em ... até Outubro de 2015;
7) Desde o dia do acidente que o veículo se encontra depositado na oficina E..., Lda, em Vila Real;
8) Tal depósito está sujeito ao pagamento de uma quantia que não será inferior a € 5 diários;
9) A R. mandou efectuar uma averiguação criteriosa (especialmente dirigida a todos os sistemas que condicionam o circuito eléctrico do veículo e a todos os sistemas ou componentes que pudessem potenciar a ocorrência do incêndio), no sentido de apurar-se a existência de alguma anomalia nos diferentes sistemas do ..-EU-.., que pudessem pôr em causa o bom funcionamento deste veículo e, desta forma, poder encontrar-se a causa da ocorrência do sinistro em apreço nos presentes autos;
10) Constatou-se nessa averiguação, que apenas o interior do habitáculo estava afectado directamente pelo incêndio e que toda a sua parte mecânica e que a metade inferior da carroceria monobloco estavam perfeitamente preservadas;
11) A afectação indicada em EE) dos factos provados foi consequência da passagem de algum fumo e de calor pela zona das condutas de ventilação;
12) Não se apurou fuga de combustível ou anomalia nas tubagens do sistema de injecção de combustível;
13) O sistema de escape, tal como toda a zona envolvente (zona inferior da carroceria incluída), também se encontrava preservada e sem afectação pelo incêndio e sem indícios de sobreaquecimento em qualquer um dos seus componentes e sem vestígios da presença de óleo ou combustível;
14) O depósito de combustível encontra-se na zona inferior traseira da plataforma da viatura – zona que não foi afectada directamente pelo incêndio;
15) Relativamente ao chassis, constatou-se que a zona inferior do veículo, o sistema de transmissão, a suspensão, a travagem e o escape e todos os demais componentes são constituídos em aço e alumínio e não foram afectados directamente pelo;
16) A viatura estava equipada com um módulo de fusíveis no habitáculo, junto à coluna da direcção – na zona em frente ao lugar do condutor – com a finalidade de proteger o circuito eléctrico de correntes inadequadas;
17) A intensidade do incêndio no habitáculo afectou apenas desde o exterior este componente (módulo de fusíveis) e as suas cablagens eléctricas, apresentando-se afectado directamente pelo incêndio, mas com um grau de afectação / combustão muito menor do que, por exemplo, os assentos dianteiros – sendo que a afectação destes foi claramente desde o seu exterior;
18) A zona de início de incêndio em simultâneo nos dois assentos dianteiros é visível nas marcas do metal do tejadilho;
19) E essa zona de início de incêndio ocorreu em simultâneo e nos dois assentos dianteiros, com recurso a uma fonte térmica em que a carga térmica libertada e o grau de combustão apresentado só pode ter sido efectuado com recurso a acelerantes de combustão;
20) É o que resulta das marcas do tejadilho – zona por cima dos assentos dianteiros – e da ausência de aderência de fumo e de fuligem nos vidros laterais da viatura (ausência essa só possível num incêndio de início súbito e de elevada carga térmica);
21) A origem do incêndio – carga térmica verificada no interior do veículo – não está relacionada com qualquer anomalia no sistema de AC, nem com o sistema de refrigeração do veículo.
*
*
IV.
Ab initio est ordiendum.
Da apelação
1. O contrato de seguro facultativo e o direito a indemnização por privação do uso do veículo sinistrado
A sentença recorrida relevou o facto de a R., após uma primeira resposta positiva, de 14.7.2015, de que vai conceder à A. indemnização pelo sinistro, por carta de 31.8.2015 a ter informado de que não vai pagar-lhe qualquer indemnização, em virtude do sinistro não ter ocorrido nos moldes participados.
Escreveu-se ali: «Tinha a R. o dever contratual de diligenciar pelo pagamento da indemnização à A. em moldes que lhe permitissem a esta adquirir outro veículo, com brevidade, o que consubstancia um dever acessório do contrato celebrado entre as partes, pelo que “estamos perante a violação de um dever de lealdade, que obrigava as partes a se absterem de comportamentos que pudessem falsear o objectivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações consignado” (…)
Não o tendo feito, violou a R. um dever acessório da prestação, que, se cumprido, possibilitaria à A. o recurso a um veículo novo, resultante do princípio da boa fé (cfr. artigo 762º do CCivil), pelo que é a R. responsável pelos danos causados à A. face a tal violação, decorrentes da privação do uso do veículo.
(…)
Conjugando os aspectos referidos, desde logo a circunstância de o período temporal da privação do uso do veículo ser de dois anos, sem que, porém, se tenha demonstrado qualquer outra circunstância atinente às consequências decorrentes desta privação, bem como o valor do veículo à data do sinistro, o Tribunal julga equitativo fixar a indemnização a atribuir ao lesado pela privação do uso do veículo no montante total peticionado de € 10.000,00 (cfr. artigos 483º nº 1 e 566º nºs. 1 e 3 do CCivil).».
Nos fundamentos da apelação, a R. argumenta que “o contrato de seguro vale nos precisos termos em que foi celebrado (de acordo com as coberturas facultativas que expressamente foram contratadas e que constam mencionadas na respectiva apólice)” e que “apenas contratou as coberturas facultativas descritas nas condições particulares que figuram no contrato de seguro titulado pela apólice 34/.......”, junta aos autos. Acrescenta que esta cobertura não abrange, por não ter sido contratada, a condição especial correspondente às despesas ou indemnização resultantes da privação de uso do veículo seguro.
Quid Juris?
À data do sinistro, a responsabilidade civil pela circulação do veículo estava transferida para a seguradora C..., S.A., aqui demandada, através do contrato de seguro titulado pela apólice n° 34/......., nos termos constantes de fls. 49 a 126 dos autos. Neste âmbito contratual, fora da cobertura do seguro obrigatório, a R., mediante o pagamento do respetivo prémio, assumiu a responsabilidade, perante a A., pelo ressarcimento dela, a título de danos próprio no veículo seguro, por incêndio, raio e explosão, até ao valor de € 14.886.40, com uma franquia de € 290,73.
No art.º 2º das Coberturas Facultativas previstas nas Condições Gerais do Contrato, constam como tal, entre outras:
(…)
- Choque, Colisão ou Capotamento;
- Incêndio, Queda de Raio ou Explosão;
- Furto ou Roubo;
- Quebra de Vidros;
- Fenómenos da Natureza;
-Atos Maliciosos;
- Valor em novo em caso de Perda Total;
- Perda Total;
- Acidentes Pessoais;
(…)”.
Todas estas coberturas têm desenvolvimento regulamentar nas condições especiais previstas no contrato, sendo ali evidente a sua autonomia relativa, designadamente entre a cobertura por “incêndio, queda de raio ou explosão” (ponto 3.) e a cobertura por “perda total” (ponto 9.), sendo que esta, mais abrangente, cobre o “choque, colisão ou capotamento”, o “incêndio, queda de raio ou explosão” e ainda o “furto ou roubo”.
Na apólice em causa, não foi contratada a privação do uso do veículo, nem sequer a “perda total”, no que aqui pode relevar, a garantia do risco de “incêndio, raio e explosão”.
O contrato consubstancia um acordo vinculativo, assente, em teoria, sobre duas ou mais declarações de vontade – oferta/proposta, de um lado; aceitação, do outro – contrapostas, mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma composição unitária de interesses, implicando que essas declarações de vontade sejam confluentes e exequíveis.
O preceito basilar que serve de trave mestra da teoria dos contratos é o da liberdade contratual, que consiste na faculdade que as partes têm, dentro dos limites da lei, de fixar, de acordo com a vontade dos contraentes, o seu conteúdo, celebrarem negócios diferentes dos prescritos no Código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (modificando os tipos legais ou misturando no mesmo contrato regras de dois ou mais tipos) – art.º 405º, n.º 1, do Código Civil.
A definição de um contrato como pertencendo a determinado tipo contratual, necessária para determinar qual o regime jurídico aplicável, é uma operação lógica subsequente à interpretação das declarações de vontade das partes e dela dependente.
O contrato de seguro é “o contrato aleatório por via do qual uma das partes (o segurador) se obriga, mediante o recebimento de um prémio, a suportar um risco, liquidando o sinistro que venha a ocorrer”[6] As partes, ao celebrarem o contrato, assumem que em consequência de circunstâncias fortuitas, uma delas possa ganhar e outra possa perder, não podendo estas reagir contra o desequilíbrio patrimonial do contrato (ao contrário do que sucede nos contratos cumulativos), porquanto “os negócios aleatórios são negócios de risco (…), e o risco desse desequilíbrio é voluntária e conscientemente assumido, como próprio do contrato”[7]
Não havendo dúvida alguma relativamente à existência e validade do contrato de seguro celebrado entre A. e R., poderiam suscitar-se dúvidas quanto à cobertura do seguro facultativo relativamente à privação do uso do veículo por parte da A. após o sinistro.
O contrato vincula as partes no seu cumprimento integral nos termos em que nele se regularam os respetivos interesses e em respeito das normas legais imperativas.
É hoje pacificamente aceite que a privação do uso de veículo é um dano autónomo.
As partes não contrataram a assunção de responsabilidade da seguradora pela privação do uso do veículo seguro, sendo que esta garantia também não está coberta pelo seguro obrigatório (destinado apenas a assegurar o pagamento a terceiros de indemnização por danos causados por veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal (nº 1 do art.º 4º do DL 291/2007). Só no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, o dano da privação do uso seria indemnizável, ao abrigo do disposto nos art.ºs 562º e seg.s do Código Civil. Nestes casos, os terceiros lesados têm direito não só à indemnização pelo prejuízo causado (danos emergentes), como aos benefícios que deixaram de obter por causa da lesão sofrida (lucros cessantes).
Por se situar fora da cobertura contratada, e não tendo o segurado pagado os prémios correspondentes a uma cobertura de privação do uso do veículo que o contrato podia prever (e não previu), em princípio, seria injusto e violaria o contrato, a reparação desse dano.
De acordo com o nº 2 do art.º 130º da LCT[8], no seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado. Nestes casos, o regime supletivo é o da não cobertura. Esta solução foi aplicada pelo legislador, sob o nº 3 imediato, ao valor da privação do uso do bem, como dali resulta expressamente, sendo-lhe extensível, por analogia, o regime previsto no n.° 3 do art.º 131° na medida em que as partes hajam ex ante convencionado o valor dos lucros cessantes ou da privação de uso do bem atendíveis.[9]
Portanto, por esta via, não assiste à A. direito à reparação do dano da privação do uso do veículo sinistrado, como defende a seguradora.
Não obstante, o fundamento da sentença, posto em crise no recurso da R., segue outro caminho para atribuir a indemnização. Sustenta-se ali, com base na descrição da forma como a seguradora se relacionou com a demandante depois do sinistro, designadamente assumindo a responsabilidade, para depois a rejeitar, que deve responder pela reparação daquele dano com base na violação de deveres acessórios de conduta relativos ao contrato de seguro.
Relativamente ao atraso injustificado do segurador no pagamento da indemnização garantida pela cobertura do risco, necessária para compra de outro veículo, a jurisprudência desenvolveu três correntes, como se segue:[10]
- A que defende que estando em causa uma obrigação pecuniária, e porque se trata de responsabilidade contratual, a indemnização pela mora corresponde aos juros legais, salvo convenção em contrário, pelo que em caso de mora do devedor na realização da prestação indemnizatória, não há lugar à indemnização de outros danos, nomeadamente, o dano da privação do uso do bem, a não ser que o credor prove que a mora lhe causou dano superior aos juros mas quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco.
- A que entende que a indemnização é devida, por a mesma ser um corolário lógico da contraprestação inerente ao risco assumido pelo segurador, pois de outro modo ficaria esvaziada de conteúdo a contraprestação do segurador nestes casos ou, pelo menos, a respetiva correspetividade das prestações mostrar-se-ia desequilibrada, em prejuízo do tomador do seguro;
- Finalmente, a terceira corrente, seguida na sentença recorrida, que fundamenta a ressarcibilidade destes danos com base na violação de um dever secundário ou acessório da obrigação. O inexplicável atraso no andamento do processo de pagamento da indemnização ao segurado, traduz-se, para os seguidores desta posição, na violação de um dever acessório da prestação, que não resultando do contrato de seguro, resulta do princípio da boa fé, consubstanciado na violação de um dever de diligência e lealdade. Assim, o segurador que venha a incorrer em responsabilidade contratual, por esta via, está obrigado a indemnizar o dano que resultou para a contraparte, o segurado.
Pois bem… estamos também com esta terceira posição.
Verificado o sinistro, o segurado ou o tomador, consoante a concreta situação ocorrida, tem o dever, ex bona fide, de minorar os danos ou de evitar a sua propagação (art.º 762º, nº 2, do Código Civil).[11] A A. participou a ocorrência logo no dia seguinte.
A R. estava obrigada a solucionar a questão tão depressa quanto possível e com a diligência devida.
No seguro automóvel obrigatório, por exemplo, há normas específicas que impõem à seguradora especial diligência e prontidão na regularização dos sinistros nos termos dos art.ºs 31º e seg.s da Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, de que destacamos a obrigação de um primeiro contacto com o segurado, o tomador ou o terceiro lesado, no prazo de dois dias úteis sobre a comunicação do sinistro, a conclusão das peritagens no prazo de oito dias úteis seguintes ao fim daquele prazo de dois dias e a comunicação da assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo daquele mesmo prazo de dois dias, informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento eletrónico (art.º 36º, nº 1, al.s a) e e), daquela lei).
Porém, os prazos previstos no dito art.º 36º suspendem-se nas situações em que a empresa de seguros se encontre a levar a cabo uma investigação por suspeita fundamentada de fraude (nº 8 do mesmo artigo).
Não obstantes se tratar aqui de um seguro facultativo, não estando em causa o interesse de terceiros, a celeridade e a colaboração honesta e leal na resolução do sinistro, que se impõem entre a seguradora e o tomador, o segurado ou o beneficiário, são deveres que se justificam também neste tipo de contrato por só assim se poderem tomar as medidas necessárias a minorar os prejuízos e a cumprir adequadamente os fins contratuais. Quanto mais depressa se encontre uma solução justa para o caso, tanto melhor.
É, pois, com este fito que as partes devem colaborar na regularização dos acidentes, de preferência de forma amigável, devendo ele estar presente nos contactos que, no caso, depois do sinistro, se estabeleceram entre a A. lesada e a R. seguradora.
Citando Almeida Costa[12], refere-se no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.9.2009[13] que, “numa compreensão globalizante da situação jurídica creditícia, apontam-se, ao lado dos deveres de prestação --- tanto deveres principais de prestação, como deveres secundários ---, os deveres laterais (…), além de direitos potestativos, sujeições, ónus jurídicos, expectativas, etc. Todos os referidos elementos se coligam em atenção a uma identidade de fim e constituem o conteúdo de uma relação de carácter unitário e funcional: a relação complexa em sentido amplo ou, nos contratos, relação contratual”.
Cita-se ali também Carneiro da Frada[14] por alertar para o facto de o contrato convocar “uma ordem normativa”, que o envolve, sujeitando os contraentes aos ditames da regra da boa fé por todo o seu período de vida e daí que, “ao lado dos deveres de prestar --- sejam eles principais de prestação ou acessórios da prestação principal ---, floresce na relação obrigacional complexa, um leque mais ou menos amplo de deveres que disciplinam o desenrolar da relação contratual, que podem designar-se deveres laterais ou simples deveres de conduta”.
E escreveu-se também naquele aresto que “estes deveres laterais, para usar a terminologia de Esser, ou acessórios, como prefere chamar-lhes Pedro Pais de Vasconcelos[15] (“o mais característico destes deveres não é a lateralidade em relação ao contrato, mas a acessoriedade em relação aos deveres principais dele emergentes”), não estão orientados para o interesse no cumprimento do dever principal da prestação, antes se caracterizam “por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”. Seguem a realização do iter do contrato que se caracterizam por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes.[16]
Ainda segundo Carneiro da Frada, estes deveres laterais “não estão virados, pura e simplesmente, para o cumprimento do dever de prestar, antes visam a salvaguarda de outros interesses que devam, razoavelmente, ser tidos em conta pelas partes no decurso da sua relação” e “exprimem, na formulação de Larenz, a necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adoptar o comportamento que se espera de um parceiro negocial honesto e leal, e costumam fundamentar-se no princípio da boa fé”.[17]
Estas obrigações ditas laterais, como nota Menezes Cordeiro[18], surgem-nos como o resultado do comprometimento das partes e ligadas ao cumprimento das obrigações principais, com estas coenvolvidas, e, portanto, merecedoras da tutela do Direito, podendo surgir, assim, como tendo estado na base de todo o desenvolvimento negocial, quiçá determinando-o.
Diz-se ainda o referido acórdão de 8.9.2009 que Pedro Pais de Vasconcelos classifica estes deveres (acessórios, como prefere chamar-lhes) em deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade.
Em relação aos primeiros, diz-nos que eles “vinculam as partes a evitar a ocorrência de danos, pessoais ou patrimoniais, para qualquer uma delas, no quadro da execução do contrato”, certo que “em caso de desrespeito dão lugar a responsabilidade civil por violação positiva do contrato”.
Trata-se de deveres de adoção de determinados comportamentos impostos pela boa fé, em vista do fim do contrato (artºs 239º e 762º do Código Civil), dada a relação de confiança que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as circunstâncias concretas da situação. “Caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos dos danos concomitantes” e, citando Larenz, “identificam-se com os deveres de adoptar o comportamento que se pode esperar entre contraentes honrados e leais”[19].
Escreve Pinto Monteiro[20] que “estes deveres acessórios, distintos dos deveres principais de prestação, são, no entanto, “essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra”; e Antunes Varela[21] adverte para o facto de a violação destes deveres poder dar azo não só à resolução do contrato, mas também obrigar à indemnização dos danos causados à outra parte.
Resulta das disposições conjugadas dos artigos 102º e 104º da LCS que a obrigação do segurador se vence trinta dias após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, que, como sabemos, poderá variar em conformidade com a maior ou menor complexidade das averiguações necessárias para esse efeito.
Voltemos aos factos.
Se só por si uma conduta contraditória pode não ser reveladora de deslealdade, violadora de qualquer outro dever acessório de conduta contratual da parte que nela incorre, e até pode ser razoavelmente explicada e justificada, afastando qualquer responsabilidade que daí possa emergir. Casos há em que se revela ofensiva da boa fé que deve orientar a relação contratual.
Decorreu um período de cerca de três semanas sobre a participação do acidente para que a R. remetesse uma comunicação escrita à A. relacionada com o contrato de seguro e a responsabilidade emergente. Fê-lo para transmitir à segurada que assumia o dever contratual de pagamento da indemnização pelos danos resultantes do incêndio, tenho inclusivamente quantificado o valor da reparação e prestado informações complementares relativas ao modo como o recebimento daquele valor se iria tornar efetivo.
Sem que a A. o pudesse prever --- quando contava receber a indemnização ---, cerca de mês e meio depois, recebeu a segurada nova comunicação da R. a informar que não iria pagar qualquer indemnização, por ter concluído, finda a instrução do seu processo, que o acidente não ocorrera nos moldes participados.
Desde já importa reter o seguinte:
- A R. assumira a indemnização na carta de 14 de julho sem qualquer reserva ou condição. Dispôs-se a pagá-la assumindo a responsabilidade emergente da apólice, tendo-se bastado com a avaliação do dano. Nada fazia prever que o processo que abriu teria seguimento; pelo contrário, os termos da carta deixam a ideia segura de que estava findo. Só assim se compreende a assunção da responsabilidade com liquidação da indemnização. Por isso, não era exigível que a A. contasse com uma decisão a A. posterior e diferente sobre aquele assunto essencial.
- A carta de 31 de agosto não satisfaz os deveres de informação a que a seguradora estava adstrita para com a tomadora do seguro. Tendo reconhecido ali que enviou a carta de 14 de julho e referenciando nela que terminou a instrução, não poderia então deixar de ter explicado o motivo do envio da primeira carta, com assunção da responsabilidade, quando a instrução ainda não tinha atingido o seu termo. Sempre teria que explicar também, fundadamente, os motivos da mudança de posição sobre a resolução do litígio, mais concretamente, o que levou a R. a deixar de acreditar na explicação dada na participação do sinistro. Se, entretanto, obteve o resultado de uma qualquer averiguação pericial sobre o assunto, deveria ter juntado o respetivo relatório à carta ou, pelo menos, dar conta da sua realização com possibilidade da A. solicitar o relatório ou consultá-lo nas instalações da R. O dever de informação da R. à parte contratual mais débil é, no caso, reforçado em função da informação pré-existente de que assume a responsabilidade pelos danos dentro da garantia de cobertura prevista.
- Se, depois de ter assumido a responsabilidade, suspeitou de fraude, deveria tê-lo mencionado na carta, com indicação dos elementos essenciais em que se baseou;
- Logo na comunicação de 31 de agosto, quando se impunha que justificasse uma conduta anterior face à posição ali tomada, pressupôs a carta 14 de julho sem reconhecer o sentido inequívoco que aquela tinha.
- Pior ainda…, após um pedido, por escrito, da A. à R., para explicação da dita contradição em que incorrera, a última, em vez de a explicar, respondeu em carta de 10 de setembro seguinte que apenas foi remetida à A. a carta de 31 de agosto, como se a carta de 14 de julho nunca tivesse existido, omitindo assim a prévia assunção da responsabilidade e o reconhecimento da existência dessa carta na carta de 31 de agosto. Mais uma vez, apesar de se referir ali a uma perícia técnica, não enviou o respetivo relatório, nem depois dessa data. Apenas efetuou a sua junção a em sede de audiência final quando se suscitou a questão da litigância de má fé.
A conduta da R. perante a A., para além de contraditória, não foi correta e leal. Não adotou o comportamento que se pode esperar entre contraentes honrados e honestos. Confrontada com o pedido de esclarecimento da situação, insistiu no engano em vez de esclarecer a contradição em que, manifestamente, incorrera em prejuízo da A. E, tendo já reconhecido e assumido a sua responsabilidade, a R., sem explicação aceitável, deu azo a que se tivesse prolongado no tempo a privação do uso do veículo, tanto por ter ardido e se encontrar numa situação de perda total como por não ter pagado a indemnização a que a A. tinha direito e que lhe permitiria adquirir um outro veículo para o lugar daquele; prejuízos que podem exceder o dano da simples mora no cumprimento da obrigação pecuniária relativa à indemnização pelo dano coberto pelo seguro.
Por tudo, não obstante a cobertura da privação de uso não se encontrar especialmente contemplada no contrato, assiste à A., neste caso concreto, o direito de ser indemnizada por ter suportado esse relevante prejuízo, em consequência da R. não ter cumprido, como devia, os deveres acessórios de informação e esclarecimento relativos, depois de ter assumido a responsabilidade pela reparação dos danos e de, contraditoriamente, a ter negado, em violação do dever de boa fé contratual.
O tribunal recorrido fixou a indemnização pela privação do uso do veículo na quantia de € 10.000,00 e, não tendo sido a sua quantificação posta em causa na apelação, não está esta Relação autorizada a alterá-la no contexto da avaliação do dano.
*
2. Violação do princípio da proibição da condenação ultra vel petitum
Passa a recorrente a alegar que, tendo a A. indicado a quantia de € 17.963,68 como valor do seu pedido, a sentença, ao condenar a R. na quantia de € 24.188,68, viola o disposto no art.º 609º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Como resulta do relatório deste acórdão, a A. deduziu o pedido pelo valor total de € 21.745,67.
Na audiência prévia, a A. requereu a retificação do pedido formulado na petição inicial, ao abrigo do art.º 146º do Código de Processo Civil, o que foi deferido pelo tribunal, com a concordância da R., consignando-se que o pedido tem o valor total de € 17.970,67, que inclui o valor da indemnização pela perda total do veículo e o valor da indemnização também pedida pela privação do seu uso.
Na audiência final, foi pedida nova retificação da petição inicial, tendo sido deferida, para:
a) A alegação de que “os danos foram orçamentados em € 16.892,75, sendo o valor seguro de € 14.886,40, deduzido o valor do salvado, de € 400,00, e da franquia acordada, de € 297,72”;
b) Uma nova retificação do pedido da ação para que, onde na audiência prévia, se passou a ler € 17.970, 67, se passasse a considerar € 17.963,68.

A sentença condenou depois a R. nos seguintes termos:
«Pelo exposto, julga-se a acção totalmente procedente e, em consequência, condena-se a R. a pagar à A. as seguintes quantias:
a) € 14.188,68 (catorze mil cento e oitenta e oito euros e oitenta cêntimos) a título de danos causados ao veículo da A., acrescida de juros de mora à taxa legal desde 15/07/2015 até efectivo e integral pagamento;
b) € 10.000,00 (dez mil euros) pela privação do uso do veículo, acrescida de juros de mora à taxa legal desde o trânsito em julgado da sentença até efectivo e integral pagamento.
Custas a cargo da R. (cfr. artigo 527º nºs. 1 e 2 do CPC).»
Ao condenar a R. na quantia total de € 24.188,68, a sentença ultrapassou em € 6.225,00 o valor do pedido (retificado).
O art.º 609º, nº 1, do Código de Processo Civil, estabelece que «a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir».
Em matéria de pedido o juiz não pode, por regra, sobrepor-se à vontade das partes[23]. É a própria substância da relação controvertida que está em causa.
Enquanto conclusão lógica do alegado na petição e manifestação da tutela jurídica que o autor pretende alcançar com a demanda, é de grande importância o modo como o pedido se mostra formulado, por o juiz não dever deixar de proferir decisão que se contenha nos estritos limites em que foi delineado pelo autor.
Ensina Alberto dos Reis[24] que o princípio do dispositivo é, substancialmente, a projeção, no campo processual, daquela autonomia privada que, dentro dos limites marcados pela lei, encontra a sua afirmação mais enérgica na figura tradicional do direito subjetivo. Deverá ser coerentemente mantido no processo civil como expressão irrefragável do poder, atribuído aos particulares, de dispor da sua esfera jurídica própria.
A não coincidência da decisão com os petita partium determina a nulidade da sentença (art.º 615º, nº 1, al. e), do Código de Processo Civil).
Por um lado, através do pedido, as partes delimitam o thema decidendum da ação, indicam a providência requerida, não tendo o juiz que cuidar de saber se à situação real conviria ou não providência diversa. Por outro lado, a sentença não deve ultrapassar o limite do pedido, não podendo o juiz, como diz a lei, condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
Manifestamente, sendo o pedido de expressão exclusivamente pecuniária, de € 17.963,68, a condenação pelo valor de € 24.188,68, ultrapassa aquele montante, pelo que, nessa parte, há nulidade da decisão, devendo a condenação ficar reduzida ao valor do pedido (€ 17.963,68), sendo € 14.188,68 a título de danos causados ao veículo da A., acrescido de juros de mora, à taxa legal, e € 3.775,00, pela privação do uso do veículo, também acrescido dos respetivos juros de moral legais.
Por relevar o valor total do pedido e não cada pedido parcelar, podendo o tribunal atribuir indemnizações parcelares superiores ao valor por cada uma delas pretendido, contanto que não ultrapasse o valor total dos pedidos, nada obsta a que a quantia indemnizatória fixada pela privação do uso do veículo ultrapasse o montante por ela peticionado, de € 3.375, 00. Na verdade, os limites da condenação contidos no artigo 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, devem ser entendidos como referidos ao valor do pedido global e não às parcelas em que aquele valor se desdobra, quando o efeito jurídico se apresenta como indemnização decorrente de um único facto ilícito, traduzindo-se o total do pedido na soma dos valores de várias parcelas, que correspondem, cada uma delas, a certa espécie ou classe de danos, componentes ou integrantes do direito cuja tutela é jurisdicionalmente solicitada.[25]

A recorrente defendeu ainda que a quantia devida pela perda do veículo, considerando o valor de capital seguro, abatendo o valor do salvado e o valor da franquia, é de € 14.195,67, e não o valor atribuído na sentença, de € 14.188,68, pedindo a sua correção.
Não se trata de uma mera retificação de um lapso. A diferença está em que o tribunal recorrido atendeu à franquia pelo valor de € 297,72 e a apelante considera o valor da franquia de € 290,73.
Está dado como provado, sob o ponto M) dos factos provados, que “a R. apresentou como valor a ser ressarcido a quantia de € 14.195,67, resultante do cálculo feito deduzindo os valores do carro depois do sinistro (salvado) e da franquia acordada no contrato de seguro ao valor do capital seguro, ou seja, aos € 14.886.40, valor do capital seguro, subtraiu € 290.73, valor da franquia, e € 400, valor do salvado;”. Mas não está provado que o valor da franquia fosse aquele montante.
Na carta de julho de 2015, a R. aponta efetivamente para aquele montante, mas também como sendo o indicado nas condições particulares do contrato de seguro.
Porém, analisadas estas condições (fl.s 49), logo se retira, pela indicação ali expressa, que o valor da franquia é de € 297,72, precisamente o valor a que a sentença atendeu.
Tudo ponderado, deve a condenação da R. ser reduzida ao valor do pedido (€ 17.963,68), sendo € 14.188,68 a título de danos causados ao veículo da A. e € 3.775,00 pela privação do seu uso, ambas as quantias acrescidas dos respetivos juros de mora, à taxa legal, nos termos decididos na 1ª instância (e não impugnados).
*
Litigância de má fé
Subordinadamente, vem a A. defender que, caso a apelação seja procedente e não se mantenha a condenação da R. quanto ao dano da privação do uso do veículo de forma equitativa e proporcional, deve a mesma ser condenada como litigante de má fé,
Na sentença, consignou-se, quanto à litigância má fé: “Ora, nos presentes autos, não se retira dos elementos juntos aos autos e das provas produzidas qualquer actuação da R. que seja susceptível de integrar a litigância de má fé, que se limitou a impugnar os factos alegados pela A. e invocar argumentos para tal, sendo que a prova do contrário ao alegado pela R. não permite concluir por si só que esta não devia ignorar a falta de fundamento da oposição deduzida, ou que o tenha feito com dolo ou negligência grave, pelo que se julga improcedente a requerida condenação da R. como litigante de má fé”.
No art.º 8º do Código de Processo Civil consagra-se o chamado “dever de boa fé ou de probidade processual”. Ao litigarem, as partes têm o dever de agir de boa fé, segundo a regra de honeste procedere. A mais grave violação desses deveres constitui justamente a litigância de má fé, com os contornos definidos no art.º 542º do mesmo código[26].
Dispõe este último preceito, sob a epígrafe “Responsabilidade no caso de má fé – Noção de má fé”, que:
«1- Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2- Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3 – Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé.»

Na redação dada ao art.º 456º do anterior Código de Processo Civil, antes da revisão operada pelo Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro e pelo Decreto-lei nº 180/96, de 25 de setembro, o que relevava para efeitos de má fé era a existência de uma “intenção maliciosa” (má fé em sentido psicológico) e não apenas leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético)[27].
Não bastava a imprudência, o erro, a falta de justa causa; era necessário o querer e o saber que se está a atuar contra a verdade ou com propósitos ilegais.
No dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida --- dolo direto --- ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial – dolo indireto. No dolo instrumental faz-se dos meios e poderes processuais, um uso manifestamente reprovável.[28] Como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.11.72[29], só a lide essencialmente dolosa, e não a meramente temerária ou ousada, justificava a condenação como litigante de má fé.
A revisão introduzida no processo civil pelo Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, passou a sancionar também a litigância com negligência grave, opção que o legislador justificou assim no respetivo preâmbulo: “Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagra-se expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.
Incorre em culpa grave ou erro grosseiro a parte que vai para Juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas que comprometiam a sua pretensão. É a lide gravemente temerária[30]. Ocorre negligência grave nas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou desaconselhadas pelas previsões mais elementares que devem ser observadas nos usos correntes da vida[31]. Haverá uma negligência em grau tão elevado e reprovável que se aproxima da atuação dolosa e justifica idêntica reação punitiva.
Este regime, ora aplicável, traduz uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjetiva como no aspeto objetivo. A condenação por litigância de má fé passou então a poder fundar-se, além da situação de dolo, em erro grosseiro ou culpa grave.
Não basta, para o efeito, a mera circunstância de a parte litigar “sem razão” e sem fundamentos legais para a pretensão que apresenta. A litigância de má fé não se confunde com a improcedência da pretensão deduzida, já que aquilo que está em causa neste instituto jurídico não é o facto de a parte ter ou não direito à pretensão que deduz, mas sim um determinado comportamento processual que, correspondendo a um incumprimento doloso ou gravemente negligente dos deveres de cooperação e de boa fé processual, a que as partes estão submetidas por força dos art.ºs 7º, 8º e 9º do Código de Processo Civil, é censurável e reprovável por atentar contra o respeito pelos Tribunais e prejudicar a ação da justiça.
Com efeito, e conforme decorre daquelas três disposições legais, as partes devem colaborar entre si e com o Tribunal, usando uma conduta processual honesta e correta, de modo a ser alcançada, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. É da violação – dolosa ou gravemente negligente – desses deveres que que pode resultar a litigância de má fé. A parte há de deixar de observar, de forma grave, dolosa ou grosseira, os deveres que, em cada situação, lhe sejam exigíveis e que seriam adotados por uma pessoa normal e medianamente formada e cuidadosa, colocada nas mesmas circunstâncias.
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra de 9.4.2013[32], o “fundamento ético do instituto, a dignidade da pessoa humana e o carácter gravoso e estigmatizante de uma condenação como litigante de má-fé exigem que se conclua por um desrespeito pelo tribunal, pelo processo e pela justiça, imputável subjectivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira (a faute lourde do direito francês ou a Leichtfertigkeit do direito alemão).
Numa síntese feliz, Pedro Albuquerque[33] refere que “a proibição de litigância de má fé apresenta-se, assim, como um instituto destinado a assegurar a moralidade e eficácia processual, porquanto com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça. O dolo ou má fé processual não vicia vontades privadas nem ofende meramente interesses particulares das partes envolvidas. Também não se circunscreve a uma violação sem mais do dever geral de actuar de boa fé. A virtualidade específica da má fé processual é outra diversa e mais grave: a de transformar a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial”.
Haverá sempre que ponderar o princípio da culpa na ação dos litigantes sob pena de fazer recear a qualquer interessado a faculdade de recorrer livremente aos Tribunais para fazer valer os seus direitos; ou melhor, os direitos de que se julga titular e dos quais pretende ser convencido e convencer terceiros, justamente, através destes órgãos de soberania. Na avaliação e graduação da culpa atender-se-á à diligência do bom pai de família, em função das circunstâncias do caso.
De uma forma ou de outra, mesmo em circunstâncias que tornam discutível a sua tomada de posição, a R. entendeu que não deveria ser responsabilizada e só por via de ação da A., e da subsequente condenação judicial, esta podia vir a obter o pagamento da indemnização por parte da R. pelos danos emergentes do sinistro.
Na fase do processo judicial, a R. litigou de forma aceitável, sendo efetivamente discutível a sua responsabilidade face às circunstâncias em que o sinistro ocorreu. Mesmo a posição jurídica seguida na sentença recorrida e agora neste acórdão, fundamentadora da atribuição de indemnização por privação do uso do veículo, não é pacífica. Já se sustentaram posições diversas, como assinalámos atrás.
À R. não poderia ser coartado o direito de defender o seu interesse, contestando a ação, tendo exercido esse seu direito através de uma utilização razoável dos meios processuais e pela alegação de factos pertinentes, sem que, por dolo ou negligência grave, tivesse agido de má fé. Mesmo a junção tardia do relatório pericial de fl.s 242 e seg.s não significa que o mesmo não existisse e nele não se tivesse baseado (nem o contrário) quando, enviou à A. a carta de 31 de agosto de 2015, em que poderá ter-se apoiado para recusar a sua responsabilização.
A R. não será condenada como litigante de má fé.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar:
1. A apelação procedente e, em consequência, altera-se a sentença recorrida, reduzindo-se para € 17.963,68 o valor da indemnização em que a R. foi condenada a favor da A., sendo € 14.188,68 a título de danos causados ao veículo da A. (perda total) e € 3.775,00 pela privação do uso do veículo, ambas as quantias acrescidas dos respetivos juros de mora, à taxa legal, vencidos nos termos decididos (e não impugnados) na 1ª instância.
2. Improcedente o recurso subordinado da A. relativo ao pedido de condenação da R. por litigância de má fé.
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Custas da apelação pela A.
Custas do recurso subordinado pela A., por nele ter decaído.
Custas da ação na proporção do decaimento.
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Porto, 11 de janeiro de 2018
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Pela sua fidelidade ao processo, segue-se de perto o relatório da sentença recorrida.
[2] Após deferimento de retificação posterior, operado na audiência prévia. No pedido de retificação fez-se constar: “Neste valor apurado de € 17.963,68 está incluída a quantia de € 14.588,68 a título de danos próprios pela perda total do veículo, conforme demonstrado pelo artigo 51º da petição inicial, e a quantia de € 3.375,00 a título de dano patrimonial de privação de uso, (…).
[3] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[4] Por transcrição.
[5] Por transcrição.
[6] Pedro Romano Martinez, Direito dos Seguros – Apontamentos, 2006, pág. 51.
[7] Pedro Pais Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2007, 4.ª Edição, pg. 449.
[8] Lei do Contrato de Seguro, aprovada pela Lei nº 72/2008.
[9] Neste sentido, v.d. Romano Martinez, Lei do Contrato de Seguro anotada, Almedina, 2009, pág.s 368 e 369.
[10] Entre outros, o acórdão da Relação de Guimarães de 9.3.2017, proc. 4076/15.8T8BRG.G1, in www.dgsi.pt, além do acórdão citado na sentença recorrida, da mesma Relação.
[11] A. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina 2013, pág. 699.
[12] Direito das Obrigações, 9ª edição, pág. 63.
[13] Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. III, pág. 38.
[14] Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, pág. 443.
[15] Contratos Atípicos, 2ª edição, Coloecção Teses, pág.s 215 e seg.s.
[16] Cf. também acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.5.2014, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, II, pág. 128.
[17] Contrato e Deveres de Protecção, pág. 36 e seg.s.
[18] Da Boa Fé, I, pág. 604.
[19] Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, pág.s 339 e 340.
[20] Erro e Vinculação Negocial, pág.s 44 e 45, também citado no acórdão de 8.9.2009.
[21] Das Obrigações em Geral, 8ª edição, vol. I, pág. 129, também citado naquele mesmo aresto.
[22] Nota-se, aliás, que ocorreu um lapso de cálculo na retificação do pedido efetuada na audiência prévia.
[23] O assento nº 4/95, DR de 17.5.1995 prevê, no entanto que, quando a pretensão se basear em contrato cuja nulidade seja oficiosamente decretada, deve o tribunal condenar na restituição do recebido, por aplicação do art.º 289º do Código Civil, se do processo constarem os factos suficientes.
[24] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 51.
[25] Cf., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.2.2005, proc. 04S3164, de 23.2.2005, proc. 04S3164, de 28.3.2006, proc. 06A407, e, mais recentemente, o acórdão daquele Tribunal de 18.12.2013, proc. 1749/06.0TBSTS.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[26] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[27] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, página 358.
[28] cf. Menezes Cordeiro, “Da Boa Fé no Direito Civil”, I., Almedina, 1984, pág. 380
[29] B.M.J. 221/164,
[30] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, anot., volume II, pág. 262, pese embora no seu tempo e até à reforma de 1995 não houvesse litigância de má fé sem a existência de dolo na ação das partes.
[31] Maia Gonçalves, “Código Penal Português”, 4ª ed., pág. 48.
[32] Proc. nº 1210/10.8TBVNO.C1, in www.dgsi.pt.
[33] Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina, pág. 56.