Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5460/18.0T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
INADMISSIBILIDADE LEGAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
IRREGULARIDADE
INTERVENÇÃO HIERÁRQUICA
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RP202010285460/18.0T9PRT.P1
Data do Acordão: 10/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO ASSISTENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Uma vez que em processo penal vigora o princípio da legalidade, só são nulos os actos quando essa cominação estiver expressamente prevista na lei.
II – Nos casos em que a lei não cominar expressamente a nulidade o acto ilegal é irregular, tal como sucede com a eventual omissão de pronúncia do despacho que indeferiu liminarmente o requerimento para abertura de instrução, o que implica a sua sanação caso uma tal irregularidade não seja tempestivamente arguida.
III – A intervenção hierárquica prevista no art. 278º do CPP ocorre quando já não for possível requerer a abertura de instrução ou quando o interessado optar por não requerer a abertura de instrução.
IV – Significa isto que os pressupostos da intervenção hierárquica excluem a possibilidade de haver instrução, uma vez que a possibilidade de o assistente requerer a abertura de instrução ou a intervenção hierárquica são possibilidades alternativas, pelo que a opção por uma delas exclui a outra.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 5460/18.0T9PRT.P1

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
1.1. B…, Assistente devidamente identificado nos autos acima referenciados, notificado da decisão que indeferiu o Requerimento para Abertura de Instrução por si apresentado, recorreu para este Tribunal da Relação do Porto, terminando a motivação com as conclusões seguintes:
1. O Requerimento de Abertura da Instrução formulado pelo aqui Recorrente, Assistente nos autos, foi rejeitado por inadmissibilidade legal, com fundamento no artigo 278.º n.º 2 do CPP;
2. Posição com a qual o Recorrente não se pode conformar;
Vejamos,
3. O Autor apresentou a queixa-crime que subjaz aos Autos;
4. O inquérito corria, estavam ainda em decurso a perícia aos Assistente, quando o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, com base no princípio ne bis in idem;
5. Ora, considerando, além de outros factores, a prematuridade dessa decisão, mas também a inexistência de qualquer violação do aludido principio, conforme aliás amplamente fundamentado, o Assistente requereu a Intervenção Hierárquica, nos termos do 278.º do CPP;
6. Opção que faria mais sentido, em alternativa imediata da Abertura de Instrução, atenta a posição do Assistente, porquanto o inquérito era ainda muito insuficiente para sustentar um arquivamento/acusação;
7. Todavia, no âmbito da referida Intervenção Hierárquica, foi proferido despacho através do qual se indeferiu a pretensão do Assistente, mas desta feita, com base na caducidade do direito de queixa;
8. Ora, o Assistente, não se conformando apresentou Requerimento de Abertura de Instrução, fundamentado convenientemente a sua admissibilidade, a ausência de caducidade do direito de queixa e não verificação de violação do principio ne bis in idem;
9. Alegando ainda, a existência de nulidades arguidas e não apreciadas;
10. Ocorre que, o Assistente foi notificado do despacho de indeferimento liminar do Requerimento de Abertura de Instrução, que num texto sucinto e ambíguo, diz que “ficou precludida a possibilidade de ser requerida a instrução, uma vez que a intervenção hierárquica suscitada teve como fundamento a discordância do requerente com a alegada inexistência de indícios e a decisão tomada pelo superior hierárquico do M. Público (também) teve por fundamento a confirmação da ausência de indícios”;
11. Decisão da qual ora se recorre, e que subjaz ao presente recurso;
Atentemos,
12. Desde logo, e salvo o devido respeito, a Intervenção Hierárquica pedida pelo Assistente não teve como fundamento a sua discordância na ausência de indícios, mas sim a caducidade do direito de queixa;
13. E, ainda que se aceite a confirmação, em sede de Reclamação Hierárquica, de ausência de indícios, não podemos descurar que o pilar dessa decisão é a caducidade do direito de queixa;
14. Mas ainda que assim não fosse, a instrução teria sempre de ser admitida;
15. É que, o Assistente tem direito a ver as questões apreciadas judicialmente, garantindo ao mesmo o exercício do contraditório e a defesa dos seus direitos;
16. E, caso isso não se conceba, o Ofendido ficaria sempre nas mãos do Ministério Público;
17. A questão da Intervenção Hierárquica e da Abertura de Instrução não pode ser vista como alternativa;
18. Primeiro, porque estamos perante o mesmo poder decisório, se bem que em posição de superioridade hierárquica;
19. Por outro lado, faz todo o sentido o recurso primeiro à Intervenção Hierárquica, principalmente nos casos, como o dos Autos, em que o inquérito não pode ser dado como encerrado, por ainda existirem actos a realizar, sem os quais não pode haver um despacho de arquivamento/acusação devidamente fundamentado;
20. E depois porque, nesse procedimento o Superior Hierárquico pode revogar o despacho de arquivamento proferido e ordenar o prosseguimento do Inquérito;
21. E todos os bens princípios apontam nesse sentido;
22. Aqui se perfilhando integralmente a doutrina do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque – vide anotação ao artigo 278.º in Comentário ao Código de Processo Penal, página 724, no sentido da admissibilidade de Instrução, mesmo após pedido de Intervenção Hierárquica, como meio de apreciação externo.
23. Vide ainda o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 2302/04.8TACSC.L1 em 20/02/2013, nesse preciso sentido;
24. Até porque, havendo uma confirmação pelo Superior Hierárquico, a decisão de arquivamento só aí pode ser considerada para efeitos de trânsito em Julgado, o que quer dizer pois que a 1.ª decisão de arquivamento fica condicionada àquela decisão, prevalecendo apenas a 2.ª;
25. E assim, sendo o aqui Recorrente tem legitimidade e está mais que em tempo de requerer a Abertura de Instrução, inexistindo qualquer motivo para a indeferir;
26. Impondo assim uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal de Instrução a quo;
27. Mais acresce que, a Instrução deve ser vista como, para além do mais, como meio de realização de atos de investigação e de recolha de prova, de debate sobre os factos probatórios recolhidos durante a instrução e no inquérito, formulação e debate sobre questões de direito de que depende o sentido da decisão instrutória e de decisão judicial sobre se a causa deve ou não ser submetida a julgamento;
28. Cabendo ao juiz analisar os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados, pronunciar os arguidos pelos mesmos - cfr. artigo 308.º do CPP;
29. Bem ainda verificar a legalidade e impedir o atropelo dos direitos fundamentais;
30. Tem de existir controlo na acção judicial na decisão do Ministério Público, o que se compatibiliza e exige, nomeadamente através do Requerimento de Abertura de Instrução – princípio da judicialização da instrução - artigo 32.º, n.º 4, da CRP;
31. Só assim também se garantem os princípios da igualdade e o da tutela jurisdicional efectiva, constitucionalmente consagrados;
32. De modo que, deve ser revogado o despacho que indeferiu liminarmente a Abertura de Instrução e substituído por um outro que a receba, ordenando o prosseguimento dos Autos para os seus ulteriores termos;
Sem prescindir,
Por cautela do patrocínio,
33. No Requerimento de abertura de Instrução, o Assistente requereu a produção de prova e ainda alegou a existência de nulidades;
34. O Juízo de Instrução Criminal não se pronunciou nem sobre um nem sobre outro pedido;
35. De modo que devem agora ser apreciados nesta sede;
36. Contemplemos, apresentada uma queixa o Ministério Público tem de promover o inquérito, para apurar os factos;
37. Sendo que, nos termos do artigo 119.º n.º 1 alínea d) e 120º n.º 1 alínea d) do CPP verifica-se uma nulidade do inquérito quando inexistir inquérito ou sua insuficiência na medida em que tiverem sido omitidas diligências que pudessem reputar-se de essenciais para a descoberta da verdade.
38. Ora, no caso dos Autos, o Assistente ainda estava a ser avaliado pelo IML para apuramento da verdade material quando foi proferida decisão de arquivamento dos Autos;
39. Perícia essa que nem sequer chegou sequer a ser concluída, tanto que, no próprio despacho de arquivamento, se determina que se dê conhecimento ao IML do arquivamento dos Autos, bem como se ordena a “suspensão de todos os exames relativos à matéria factual destes autos”.
40. Pelo que, assim apurarmos a existência de omissão de diligências de prova que se reputam essenciais para a descoberta da verdade material.
41. Verificando-se assim insuficiência dos Autos, e nesse sentido, ainda que improcedam as razões anteriormente alavancas que determinam a admissibilidade da instrução, sempre deverá ser reconhecida a nulidade aqui arguida, com os demais efeitos legais;
Em conclusão,
42. É apodítico que a decisão sob sindicância viola, entre outros, os artigos 148º do C.P, 97º n.º 3, 4 e 5, 119º n.º 1 alínea d) e 120º n.º 1 alínea d), 278º, 287º CPP, 13º e 20º da CRP.
1.2. Respondeu o MP junto do Tribunal “a quo”, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo por seu turno:
1. A questão que se coloca reside em determinar se ficou ou não precludida a possibilidade de o assistente requerer a abertura da instrução em virtude de ter previamente suscitado a intervenção hierárquica.
2. Decorre do art. 278º-1-2 do CPP que apenas pode haver intervenção do superior hierárquico do titular do inquérito, oficiosamente ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, com vista a apreciar internamente a decisão de arquivamento, quando já não puder ser requerida a abertura de instrução ou quando aqueles optem por não a requerer.
3. E apenas quando não haja lugar à fase da instrução é que o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem reclamar para o superior hierárquico do titular do inquérito que proferiu o despacho de arquivamento.
4. Por isso, as opções facultativas da apresentação de requerimento de abertura de instrução ou da apresentação de requerimento a suscitar a intervenção hierárquica são modos de reação alternativos e não cumulativos, ao despacho de arquivamento do titular do inquérito.
5. Se o assistente queria submeter o despacho de arquivamento do titular do inquérito a “comprovação judicial” tinha que ter optado pela apresentação atempada do requerimento de abertura de instrução.
6. Tendo antes optado pela intervenção hierárquica então isso significa que renunciou a uma apreciação judicial daquele despacho de arquivamento do titular do inquérito.
7. Neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.02.2020, relator Jorge Bispo, proc. n.º 954/19.3T9BRG.G1; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7.02.2017, relator Carlos Berguete Coelho, proc. nº 2336/15.7T9FAR.E1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6.02.2013, relatora Maria do Carmo Silva Dias, proc. nº 1759/11.5TAMAI.P1; Parecer do Conselho Consultivo da PGR nº 312009, relator Pimentel Marcos in “dgsi.pt”.
8. Posto isto, no caso em apreço o assistente optou pela intervenção hierárquica, requerendo a reabertura do inquérito (cfr. fls. 145).
9. No dia 25.03.2020 foi proferida decisão pela imediata superior hierárquica da magistrada que proferiu despacho de arquivamento a declarar extinto o direito de queixa por ter sido apresentado depois de ter decorrido o prazo de 6 meses a contar da data em que o assistente teve conhecimento do facto e do seu autor.
10. Nessa decisão foram elencadas todas as diligências de investigação e apreciadas as questões suscitadas pelo ora recorrente, tendo-se concluído que não existiam indícios suficientes para a formulação de despacho de acusação (cfr. fls. 168 a 172).
11. Ora, no caso dos autos, o Mm.º Juiz, ao apreciar o requerimento de abertura de instrução deparou-se com a existência formal de um requerimento do assistente a, previamente, suscitar a intervenção hierárquica.
12. Com efeito, tal requerimento foi apresentado pelo assistente na sequência do despacho de arquivamento do inquérito pelo respetivo titular, e foi apreciado pela imediata superior hierárquica da magistrada que proferiu despacho de arquivamento que decidiu indeferi-lo pelas razões atrás aduzidas.
13. Assim sendo, não cabia ao Mm.º Juiz de instrução sindicar tal decisão, por não lhe serem reconhecidos poderes para tal, como se extrai claramente do disposto nos art.ºs 286.º e 287.º, n.º 1, alínea b), do CPP, para além de se traduzir numa insuportável ingerência na autonomia do Mº Pº, o que significava uma interpretação inconstitucional, desde logo por violação do disposto nos art.ºs 32.º, n.º 5 e 219.º, n.º 2, da CRP.
14. Face ao exposto, bem decidiu o Mm.º Juiz de Instrução ao concluir que ficou precludida a possibilidade de ser requerida a instrução, uma vez que a intervenção hierárquica suscitada teve como fundamento a discordância do requerente com a alegada inexistência de indícios e a decisão tomada pelo superior hierárquico do M. Publico (também) teve por fundamento a confirmação dessa ausência de indícios (cfr. fls. 196).
15. Finalmente e na eventualidade de se discordar deste entendimento, situação que apenas se coloca sob o ponto de vista académico, sempre se dirá que o requerimento de abertura da instrução é extemporâneo uma vez que foi apresentado depois de ter decorrido o prazo de 20 dias da notificação do despacho de acusação (cfr. art. 287º-1-b) do CPP e fls. 182 a 192).
1.3. Nesta Relação, o Ex.º Procurador -geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, referindo, além do mais:
“(…)
4. Sobre a questão colocada no recurso escreve-se na resposta do MP “as opções facultativas da apresentação de requerimento da abertura de instrução ou da apresentação de requerimento a suscitar a intervenção hierárquica são modos de reação alternativos e não cumulativos ao despacho de arquivamento do titular do inquérito”.
5. Tal asserção é a que resulta da jurisprudência, como bem se ilustra na resposta do MP.
6. Aliás, aplicando ao caso dos autos a jurisprudência fixada no AUJ 3/2015 em que estabelece que “o prazo de 20 dias para o assistente requerer a abertura de instrução, nos termos do artigo 287º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, conta-se sempre e só a partir da notificação do despacho de arquivamento proferido pelo magistrado do Ministério Público titular do inquérito ou por quem o substitua, ao abrigo do artigo 277º do mesmo código, não relevando para esse efeito a notificação do despacho do imediato superior hierárquico que, intervindo a coberto do artigo 278º, mantenha aquele arquivamento”, a instrução nunca poderia ser admitida.
7. Donde se conclui também que os pedidos de intervenção hierárquica e de abertura de instrução são formas alternativas de reagir à decisão de arquivamento do titular do inquérito, em que a opção por uma delas exclui a outra.
8. O recurso deverá ser julgado improcedente.”
1.4. Deu-se cumprimento ao disposto no art. 417º, 2 do CPP.
1.5. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
O despacho recorrido é do seguinte teor:
“(…)
O presente requerimento de abertura da instrução não pode ser admitido.
Com efeito, sendo exacta a afirmação do assistente em como foi aduzido em sede de intervenção hierárquica um novo fundamento de arquivamento dos autos – a extinção, pelo decurso do prazo legal, do direito de queixa – nessa mesma decisão hierárquica se reitera “…que não existem indícios suficientes para a formulação de despacho de acusação.” (fls. 171).
Ou seja, e nos termos do art.º 278.º, n.º 2 do C. Pr. Penal, ficou precludida a possibilidade de ser requerida a instrução, uma vez que a intervenção hierárquica suscitada teve como fundamento a discordância do requerente com a alegada inexistência de indícios e a decisão tomada pelo superior hierárquico do M. Público (também) teve por fundamento a confirmação dessa ausência de indícios.
Notifique.
(…)”.

2.2. Matéria de direito
2.2.1. Objecto do recurso.
A decisão recorrida indeferiu liminarmente o requerimento para abertura de instrução, por entender precludida essa possibilidade nas situações previstas no art. 278º do CPP, isto é, nas situações em que o assistente, perante o despacho de arquivamento do inquérito, suscita a intervenção do imediato superior hierárquico do magistrado do MP.
No presente recurso, o assistente, depois de sumariar a tramitação que antecedeu o despacho recorrido, sustenta a tese segundo a qual o pedido de intervenção hierárquica não pode ser visto como uma alternativa ao pedido de abertura de instrução (conclusões 17 a 32), sendo que a mesma foi requerida dentro do prazo legal, a contar da decisão do superior hierárquico (conclusões 24 e 25). Nas conclusões seguintes (33 a 41) alega que o despacho recorrido não se pronunciou sobre questões suscitadas no seu requerimento para abertura de instrução, designadamente sobre (i) a produção de prova e (ii) existência de nulidades.
Estão assim em causa, no essencial, duas questões jurídicas: (i) a possibilidade de o assistente requerer a abertura de instrução, após intervenção do superior hierárquico do MP, nos termos do art. 278º do CPP e (ii) a nulidade da decisão, por omissão de pronúncia e ausência de inquérito.
Vejamos cada uma das questões suscitadas.
2.2.2. Nulidades: omissão de pronúncia e ausência de inquérito
2.2.2.1. Omissão de pronúncia
Alega o recorrente que a decisão recorrida não se pronunciou sobre questões que suscitou, mais concretamente sobre a requerida produção de prova e nulidades imputadas ao inquérito. Deste modo e por esta via, imputa à decisão recorrida a nulidade por omissão de pronúncia.
Como vamos ver, o recorrente não tem razão.
Na verdade, a omissão de pronúncia imputada ao despacho recorrido não configura uma verdadeira nulidade processual, pois a lei não a comina expressamente como tal. É certo que o art 378º do CPP qualifica como nulidade da sentença (entre outras) a omissão de pronúncia. Todavia, esse preceito legal não é aplicável aos demais despachos – como acontece, por exemplo, nas situações previstas no art. 380º, 3 do CPP.
Relativamente aos vícios dos actos jurisdicionais – diferentes da sentença – são aplicáveis as regras gerais e, portanto, só são nulos quando essa cominação estiver expressamente prevista na lei. Isto porque, em processo penal, vigora o princípio da legalidade, segundo o qual, “a violação ou a inobservância da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei” – art. 118º, n.º 1 do CPP.
Nos casos em que a lei não cominar expressamente a nulidade, o acto ilegal é irregular, como nos diz o art. 118º, n.º 2 do CPP.
Na verdade, e de acordo com a respectiva classificação legal, as nulidades podem ser sanáveis ou insanáveis, estando estas também expressamente previstas na lei, quer no art. 119º, quer noutras disposições legais (v. g. artigos 330º, 1 e 321º, 1 do CPP).
As nulidades sanáveis, ou relativas, dependem de arguição e o seu regime aproxima-as das meras irregularidades. Como refere GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Volume II, pág. 87, “não existe grande diferença entre o regime das nulidades relativas (dependentes de arguição) e o das irregularidades. Num caso e noutro o vício necessita ser arguido pelos interessados dentro de certos prazos, sob pena de se considerar sanado e a declaração da nulidade ou da irregularidade produz igualmente a invalidade do acto em que se verificar o vício, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar (art. 122º, 1 e 123º, 1 do C. P. Penal) ”.
Assim, dado que não existe, no caso, qualquer preceito legal a cominar a nulidade dos despachos, por omissão de pronúncia, estamos perante uma mera irregularidade – art. 123º, 1 do CPP.
Nos termos do art. 123º, 1 do CPP, qualquer irregularidade do processo deve ser arguida pelo interessado no próprio acto ou, se a este não tiver assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiver sido notificado para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
É verdade que o n.º 2 do art. 123º do CPP permite a reparação oficiosa de qualquer irregularidade, “no momento em que da mesma se possa tomar conhecimento”, mas tal preceito deve ser interpretado no sentido de que só é possível a reparação oficiosa de irregularidades ainda não sanadas. De outro modo, transformar-se-iam as meras irregularidades em nulidades insanáveis (conhecíveis oficiosamente e a todo o tempo), contrariando frontalmente o disposto no artigo 119º, 1 do CPP, segundo o qual as nulidades insanáveis são apenas as cominadas na lei como tal.
No presente caso, a mandatária do assistente foi notificada do despacho recorrido em 07-07-2020 e, portanto, quando foi interposto recurso do mesmo (em 31-07-2020) já tinha decorrido o referido prazo de 3 dias.
Deste modo, não tendo a referida nulidade sido regular e tempestivamente arguida nos termos e prazo previstos no n.º 1 do art. 123º do CPP, a mesma ficou sanada.
Assim, e dado que no momento em que foi interposto o presente recurso a nulidade decorrente da omissão de pronúncia (a ter efectivamente ocorrido) já se encontrava sanada, a mesma está, por essa razão, excluída do objecto do recurso – cfr. art. 410º, 3, do CPP.
2.2.2.2. Ausência de inquérito – art. 119º d) do CPP
A nulidade invocada pelo recorrente, traduzida na “falta de inquérito” e prevista no art. 119º, d) do CPP, deve ser apreciada neste recurso, por se tratar de nulidade insanável, de conhecimento oficioso e, portanto, não ficar precludida com a sanação da alegada omissão de pronúncia.
Todavia e como vamos ver, tal nulidade não existe.
Na origem deste processo está o facto de o assistente ter sido vítima de ofensa à integridade física causada por desconhecidos, a qual deu origem a um inquérito que foi oportunamente arquivado.
Mais tarde, veio o ora assistente fazer nova queixa, agora contra o médico que o assistiu, imputando-lhe o crime de ofensa à integridade física negligente, decorrente de sequelas da anterior ofensa à integridade física que, a seu ver, poderiam ter sido evitadas, se tivesse sido adequadamente atendido no Hospital.
O MP abriu novo inquérito e, mais tarde, ordenou o seu arquivamento. Neste inquérito foram realizadas diligências de prova, tendo sido, além do mais, inquirida a testemunha C… e consultado o processo n.º 467/14.0SJPRT - originado pela ofensa à integridade física sofrida pelo ora assistente, provocada por desconhecidos - tendo concluído:
Assim e em face dos elementos de prova destes autos, resulta dos elementos clínicos que as lesões à integridade física denunciadas não resultam de nenhum acto médico, nem de nenhuma omissão de acto médico, mas foram causa directa e necessária das agressões ocorridas no Processo 467/14.0 SJPRT, que correram termos na 4ª secção e que já foram devidamente apreciados naqueles autos. Assim sendo, sob pena de violação do princípio “ne bis in idem”, não pode conhecer-se, de novo, dos factos em causa”.
O assistente, notificado deste despacho de arquivamento, suscitou nos termos do art. 278º do CPP a intervenção do imediato superior hierárquico do MP, titular do inquérito, o qual manteve a decisão de arquivamento (do inquérito), por ter entendido que a queixa contra o “novo” arguido não fora tempestivamente apresentada e ainda que, no caso, não se verificavam indícios do crime de ofensa à integridade física por negligência – cfr. despacho do superior hierárquico do MP, transcrito na resposta ao recurso.
Tendo em conta o exposto, é evidente que existiram diligências próprias do inquérito, das quais resultou a convicção do MP sobre a inexistência de indícios do novo crime e, ainda, a caducidade do direito de queixa. Nestas condições, em que o MP abriu o inquérito, promoveu diversas diligências de prova (audição de testemunha e consulta do inquérito relativo à queixa contra desconhecidos) e finalmente ordenou o arquivamento do inquérito, por despacho que foi fiscalizado hierarquicamente (e mantido), não tem sentido falar na falta do mesmo.
2.2.3. Inadmissibilidade de instrução nos casos previstos no art. 278º do CPP.
O despacho recorrido indeferiu liminarmente o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, por entender que a intervenção hierárquica prevista no art. 278º do CPP é uma alternativa ao requerimento para abertura de instrução. Assim, tendo o assistente optado por aquela, ficou precludida a possibilidade de requerer a aberta de instrução. Sublinhou ainda que a decisão hierárquica, para além de ter acrescentado um fundamento novo para o arquivamento (ausência de queixa), reiterou “a inexistência de indícios suficientes para a formulação de despacho de acusação”, ou seja, manteve o arquivamento do inquérito pela mesma razão do despacho de arquivamento: falta de indícios.
As questões suscitadas no recurso, relativas à interpretação do art. 278º do CPP não são novas.
O MP sustentou (na resposta ao recurso) que o referido art. 278º do CPP prevê procedimentos alternativos, ou seja, a opção por um deles preclude o outro, citando vária jurisprudência nesse sentido:
“(…)
Tendo antes optado pela intervenção hierárquica – diz o MP - então isso significa que renunciou a uma apreciação judicial daquele despacho de arquivamento do titular do inquérito. A dedução da renúncia à fase facultativa da instrução torna-se uma evidência quando o assistente, ainda no prazo aludido no art.º 287.º, n.º 1, al. b), do CPP, em vez de requerer a abertura de instrução, opta por requerer a intervenção do superior hierárquico ao abrigo do art. 278º do CPP. Neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.02.2020, relator Jorge Bispo, proc. n.º 954/19.3T9BRG.G1; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7.02.2017, relator Carlos Berguete Coelho, proc. nº 2336/15.7T9FAR.E1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6.02.2013, relatora Maria do Carmo Silva Dias, proc. nº 1759/11.5TAMAI.P1; Parecer do Conselho Consultivo da PGR nº 312009, relator Pimentel Marcos in “dgsi.pt”.
(…)”
O Ex.º Procurador-geral Adjunto Nesta Relação, concordando com a resposta do MP na primeira instância, citou ainda o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/2015 em que estabelece que “o prazo de 20 dias para o assistente requerer a abertura de instrução, nos termos do artigo 287º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, conta-se sempre e só a partir da notificação do despacho de arquivamento proferido pelo magistrado do Ministério Público titular do inquérito ou por quem o substitua, ao abrigo do artigo 277º do mesmo código, não relevando para esse efeito a notificação do despacho do imediato superior hierárquico que, intervindo a coberto do artigo 278º, mantenha aquele arquivamento”.
Por seu turno, o assistente sustenta que não deve ser assim, invocando a seu favor “… a doutrina do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque – vide anotação ao artigo 278.º in Comentário ao Código de Processo Penal, página 724, no sentido da admissibilidade de Instrução, mesmo após pedido de Intervenção Hierárquica, como meio de apreciação externo”. Citou ainda neste sentido “o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 2302/04.8TACSC.L1 em 20/02/2013” (cujo texto não encontrámos na base de dados da dgsi).
Vejamos então qual a solução a seguir.
O art. 278º, do CPP tem a seguinte redacção:
Artigo 278.º
Intervenção hierárquica
1 - No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento.
2 - O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento.”
Da leitura deste preceito decorre (sem margem para dúvidas) que a intervenção hierárquica pode ser suscitada pelo assistente ou pelo denunciante com a faculdade se constituir assistente, em duas situações:
(i) decorrido o prazo para se requerer a abertura da instrução (20 dias a contar da data em que a instrução já não puder ser requerida);
ii) dentro desse prazo se optarem por não requerer a abertura de instrução.
A intervenção hierárquica prevista no art. 278º do CPP ocorre assim quando já não for possível requerer a abertura de instrução, ou quando o interessado optar por não requerer a abertura de instrução. São assim pressupostos da intervenção hierárquica as seguintes circunstâncias (i) não ser já possível requerer a abertura da instrução ou (ii) o interessado optar por não requerer a abertura da instrução.
A conclusão lógica é, portanto, a de que os pressupostos da intervenção hierárquica excluem a possibilidade de haver instrução. Como sustenta o MP na resposta ao recurso, perante um despacho de arquivamento, a possibilidade de o assistente requerer a abertura de instrução ou a intervenção hierárquica são possibilidades alternativas, pelo que a opção por uma delas exclui a outra.
A leitura lógica do referido artigo 278º, 2 do CPP está, por outro lado, em total conformidade com a Constituição, como se decidiu no acórdão n.º 713/2014 do Tribunal Constitucional:
a) Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos artigos 278º, n.º 2, e 287º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, optando por suscitar a intervenção hierárquica, o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, vê, sempre e irremediavelmente, precludido o direito de requerer a abertura de instrução ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito
Para tal conclusão, ponderou o referido Tribunal:
“(…)
O Tribunal Constitucional tem sustentado que a lei processual penal não pode privar o ofendido daqueles poderes processuais que se revelem necessários à defesa dos seus interesses, restringindo o direito de intervenção do ofendido de forma desadequada, desnecessária ou arbitrária (v.g. o Acórdão n.º 338/06, em www.tribunalconstitucional.pt), sujeitando, assim, a um juízo de proporcionalidade as limitações que sejam impostas à intervenção da vítima no processo penal.
A solução normativa sindicada não deixa de garantir ao denunciante com a possibilidade de se constituir assistente a faculdade de requerer a abertura da instrução perante o despacho de arquivamento proferido pelo titular do inquérito, estando aberta, desta forma, uma via do controlo jurisdicional da decisão do Ministério Público.
O que ela não permite é que, tendo aquele optado pela reclamação hierárquica do despacho de arquivamento, a via jurisdicional permaneça aberta para ser acionada posteriormente, em caso de malogro da reclamação deduzida.
(…).
A solução interpretativa adotada tem um fundamento racionalmente inteligível, uma vez que atende a outros valores constitucionais que têm de ser salvaguardados, designadamente os direitos de defesa dos eventuais suspeitos ou arguidos, que veem tanto mais prolongada a sua situação processual, quanto mais perdurar no tempo a possibilidade de a decisão de arquivamento do inquérito puder ser alterada.
No sentido da prevalência dos direitos de defesa dos eventuais suspeitos ou arguidos sobre o direito dos ofendidos requererem a instrução já se pronunciou o acórdão n.º 27/2001 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se referiu o seguinte: «[…] Ora, nos casos de não pronúncia de arguido e em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente – e que deve revestir a forma de uma verdadeira acusação – não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso de aquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação.
Dir-se-á, por último, que do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efetivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito.
[…]»
A este respeito, importa ainda ter também em atenção o que se diz no Acórdão n.º 636/11 do Tribunal Constitucional (acessível em www.tribunalconstitucional.pt). Neste aresto, o Tribunal salientou que o reconhecimento textual expresso, no n.º 7, do artigo 32.º, da Constituição, introduzido pela quarta lei de revisão constitucional, do direito de o ofendido intervir no processo, nos termos da lei, «não obnubila o lugar central que a Constituição reserva à tutela processual do arguido», acrescentando ainda que: «As garantias de processo criminal que, no artigo 32.º, a CRP consagra, são essencialmente as garantias da defesa. E como é em torno da tutela destas últimas que o legislador ordinário organiza as regras de processo – procurando a realização do equilíbrio entre as necessidades emergentes dessa tutela e as exigências decorrentes do imperativo de realização da justiça penal –, nelas, o estatuto do assistente não poderá nunca ser equiparável ao estatuto do arguido. Por assim ser, diz o nº 7 do artigo 32.º que o direito do ofendido a intervir no processo será reconhecido nos termos da lei. Semelhante formulação não é usada pelo texto constitucional quanto ao reconhecimento das garantias de defesa do arguido. Em relação à conformação do estatuto processual do assistente detém, portanto, o legislador ordinário uma margem de liberdade maior do que aquela que a Constituição lhe consente quando se trata de definir o estatuto processual do arguido».
E salienta-se ainda um outro aspeto.
É que, refere o Acórdão:
«[…] há que ter em conta que as normas ordinárias relativas a pressupostos processuais se incluem, por via de regra, no âmbito dessa margem de livre conformação. As regras legais que definem estes pressupostos, enquanto condições de admissibilidade, por parte do tribunal, dos atos praticados pelos sujeitos processuais, não podem à partida ser consideradas como agressões ao direito de acesso ao direito (artigo 20.º) e às garantias de processo (artigo 32.º). Pelo contrário: na exata medida em que visam isso mesmo – a regulação, por parte do legislador ordinário, dos termos em que o tribunal admite os atos praticados pelos sujeitos intervenientes no processo – constituem as referidas regras mecanismos de funcionalização do sistema judiciário no seu conjunto, fazendo parte dele enquanto meios necessários para a realização do direito a uma tutela jurisdicional efetiva e a um processo (penal) côngruo. Ponto é que o conteúdo dessas regras se inscreva ainda nas exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade, não transformando os pressupostos processuais em encargos excessivos ou desrazoáveis para aqueles a que se destinam».
Estas considerações valem também para o caso concreto, impondo-se concluir que, estando garantida ao assistente ou ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente, nos termos expostos, a possibilidade de requerer a abertura da instrução face a uma decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito criminal, a proibição de o fazer quando opta pela reclamação hierárquica daquela decisão, revelando-se justificada por um fundamento razoável, é uma limitação que não se revela desproporcionada face aos diferentes interesses em jogo, encontrando-se a adoção dessa solução normativa dentro dos poderes do legislador ordinário que lhe são cometidos pelo n.º 7, do artigo 32.º, da Constituição.
(…).”
Nestes termos, tendo o assistente optado pela via da intervenção hierárquica, ficou precludido o direito de posteriormente requerer a abertura de instrução, sendo certo que, como sublinhou o Tribunal Constitucional, uma interpretação com este sentido não ofende a Constituição.
Dado que o despacho recorrido seguiu entendimento sedimentado na nossa jurisprudência, com o qual concordamos, impõe-se negar provimento ao recurso.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo assistente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido, fixando a taxa de justiça em 5 UC.

Porto, 28.10.2020
Élia São Pedro
Donas Botto