Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0435762
Nº Convencional: JTRP00037350
Relator: VIRIATO BERNARDO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: RP200411110435762
Data do Acordão: 11/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: Os tribunais portugueses são os internacionalmente competentes para julgar um acidente de viação alegadamente provocado por um veículo de matrícula espanhola, ocorrido em Espanha, onde a autora recebeu alguma assistência médica num hospital, vindo depois a ser tratada em Portugal, onde a ré está representada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - B.........., residente em ....., Vila Nova de Gaia, veio intentar a presente acção declarativa com processo ordinário contra:
X.......... com sede na Av. ....., nº....., Lisboa, alegando, no essencial:
No dia 04 de Agosto do ano 2.000, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes C.......... conduzindo o seu auto ligeiro de matrícula portuguesa ..-..-HL e D.........., conduzindo o seu auto ligeiro de matrícula M-....-BP, a qual havia transferido a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação com a aludida viatura para a para a Companhia de Seguros Y.........., mediante a Apólice N°000...,que titulava o respectivo contrato de seguro então em vigor, e que entretanto, por fusão, passou a integrar o grupo segurador da X.......... (agora demandada).
Que a Autora seguia como passageira no assento da frente ao lado do condutor, do veículo ..-..-HL vindo a ser embatido pelo veículo M-.... sem possibilidade de fuga ao embate, com culpa exclusiva da condutora do veículo matrícula espanhola.
Do que resultaram plúrimos ferimentos, tais como: ficou a Autora politraumatizada do que resultou:
a) Comoção, cefaleia intensa e palidez cutânea-mucosa.
b) Dor torácica com dificuldades ventilatórias.
c) Forte dor cervical com contractura paravertebral.
d) Múltiplas contusões.
e) discreto derrame pleural bilateral.
f) Traumatismo craniano com forte contusão cervical com síndrome cérvico-braquial bilateral.
Lesões às quais foi socorrida no Hospital Miguel Dominguez em Pontevedra Espanha onde esteve internada durante quatro dias.
Passando posteriormente a ser tratada, em Portugal pelo Sr. Dr. E...........
Que lhe medicou colar cervical.
Passando posteriormente a ser seguida pelos Serviços Clínicos da Companhia de Seguros Z.......... no Porto nos Serviços de Neurocirurgia e Psiquiatria.
E posteriormente por médico da especialidade de Neurologia o Sr. Dr. F........... Fazendo desde então tratamento psiquiátrico, tomando regularmente Prosedar Adronax, Tofranil e Xanax.
Tendo a Autora permanecido na situação de incapacidade temporária absoluta geral durante 90 dias.
Em situação de incapacidade temporária parcial geral durante 270 dias.
Em situação de incapacidade temporária absoluta profissional durante 360 dias, apresentando como sequelas definitivas as seguintes:
a) Síndrome cérvico-cefálico associado a síndrome pós-comocional, que se traduz designadamente em vertigens, dor suboccipital, cefaleias frequentes, sensação de peso na cabeça, desequilíbrio, dificuldade de concentração e de associação de ideias, fatigabilidade intelectual, alterações mnésicas, modificações do humor e do carácter, bem como perturbações do sono e intolerância ao barulho.
b) Contractura cervical por rectificação da lordose cervical e limitação da motilidade do pescoço e cervicalgias, o que a obriga a usar ,com frequência, colar cervical e a impede de manipular e prender objectos pesados.
Além de outras mazelas.
A A. era, à data do acidente, uma pessoa saudável, alegre, bem disposta, dinâmica e cheia de iniciativa.
Tinha apenas 51 anos
Era sócia - gerente e trabalhadora de um café.
A A. é a beneficiária N°.001... da Segurança Social.

E quanto à competência do Tribunal português, alegou ainda:
O Tribunal Português de Vila Nova de Gaia é competente para julgar a presente causa, ao abrigo do disposto na al. d) do nº 1 do art.65° do CPC.
Com efeito, no acidente em causa intervieram portugueses o condutor e a A. passageira e uma viatura portuguesa.
A Responsabilidade do mesmo acidente acha-se transferida para a Ré.
A Ré, através da sua representação em Portugal, assumiu essa transferência.
Aceitando inclusivamente a culpa da condutora do veículo com a sua cobertura de seguro.
E mais do que isso: a Ré procurou dar respostas ressarcitórias aos danos do sinistro, tendo pago ao proprietário do veículo de matrícula portuguesa todos os danos materiais decorrentes do sinistro.
Encaminhou ainda a Ré para os Serviços Clínicos da «Companhia de Seguros Z.........." no Porto.
Seguradora esta que chegou a pagar à A um adiantamento de 500 Euros, por conta das despesas de transporte para tratamento e danos provocados indemnização final, destinado a roupa e objectos pessoais.
Foi em Portugal que ocorreu todo o processo de recuperação fisio-psíquica da Autora. E tal sucedendo sob a égide e controlo da própria Ré.
Por tudo isso, existe, por um lado forte elemento de conexão pessoal e real com a ordem jurídica nacional.
E, por outro lado, não parece exigível à A. propor no estrangeiro acção de indemnização contra a Ré.
Depois de esta aqui a ter acompanhado a par e passo.
E depois de não dispor a A. de meios económicos e humanos que promover tal acção.
Tendo ocorrido grande parte da causa de pedir da presente acção em Portugal.
Fica assim, demonstrada a competência do Tribunal Português.
Conclui que deverá a presente acção ser julgada procedente e, por conseguinte, ser a Ré condenada a pagar à A. a quantia global de 125.730 Euros, acrescida de juros, à taxa legal, a partir da citação e até efectivo e integral pagamento, além de nas custas e o mais legal.

Porém, no despacho saneador, a Sr.ª Juíza a quo veio a julgar procedente a invocada excepção dilatória da incompetência internacional deste tribunal (a quo), para conhecer da acção e consequentemente absolveu a Ré da instância.
Para tanto a Srª Juíza considerou, em síntese, que à luz do regulamento CE 44/2001 e do art. 8º da Constituição da República Portuguesa, o elemento dominante para a solução da questão em causa é o local do acidente .
Assim, tendo tal acidente ocorrido em Espanha, como fluí da sua descrição, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes.

Inconformada com tal decisão dela veio agravar a Autora apresentando alegações e respectivas conclusões.
A Srª Juíza sustentou a sua decisão.

II – Os elementos referidos supra, constantes da tramitação do processo são os bastantes para decidir.

III - Mérito do recurso:
Como é sabido as conclusões das alegações delimitam o âmbito do recurso – cfr. arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 ambos do Código do Processo Civil.

A única verdadeira questão a decidir é a de saber se os Tribunais Portugueses são ou não internacionalmente competentes para julgar um acidente de viação alegadamente provocado por um por veículo de matrícula espanhola, ocorrido em Espanha, onde a autora recebeu alguma assistência médica num hospital, vindo depois a ser tratada em Portugal, onde a Ré está representada.
Vejamos:

Temos como presentes as Convenções de Lugano e de Bruxelas e, bem assim, o art. 65º do CPC .
Fazendo uma aproximação ao caso concreto, temos que a questão que nos cabe resolver consiste apenas em saber se o Tribunal de Vila Nova de Gaia é internacionalmente competente para decidir a presente causa.

Seguiremos aqui , muito de perto, no que ao caso couber, os argumentos e a decisão proferida no acórdão desta Relação e da mesma secção, ou seja, do agravo nº 4740/04 – 3ª data vénia, do qual foi relator o aqui 1º Adjunto, Des. João Bernardo.
Factos relevantes:
O acidente dos autos ocorreu em 04/08/2000.
A presente acção foi intentada em 30/07/2003.
A Autora tem residência em Vila Nova de Gaia.
A Ré Seguradora tem escritórios em Portugal.

Analisemos, pois, as disposições legais interessantes para o caso que nos ocupa.

1 - No âmbito interno, temos o art. 65º do CPC, assim redigido:
b) A competência dos tribunais portugueses depende da verificação de alguma das seguintes circunstâncias:
Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
d) Não poder o direito invocado tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português, ou não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (como no caso sujeito, adianta-se já).

2 - No domínio internacional, vieram a lume:
A – A Convenção de Bruxelas, que dispõe:
art. 3º
As pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante só podem ser demandadas perante os tribunais de outro Estado Contratante por força das regras enunciadas nas secções 2 a 6 do presente título.
Contra elas não podem ser invocadas, nomeadamente:
Em Portugal: o n.º1, alínea c) do art. 65º do Código de Processo Civil.
art. 5º
O requerido com domicílio no território de um Estado contratante pode ser demandado num outro Estado contratante:
3 Em matéria extracontratual perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso.
B – A Convenção de Lugano, estatuindo nos arts 3º e 5º, n.º3, o mesmo que a anterior Convenção.

C – O Regulamento CE n.º 44/2001, do Conselho, de 22.1.2.2000 que insere os seguintes preceitos:
art. 3º
1 - As pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo.
2 – Contra elas não podem ser invocadas, nomeadamente, as regras de competência nacionais constantes do Anexo I.
Este anexo, no que se refere a Portugal veda, além do mais, todo o artigo 65º do CPC.
art. 5º
Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:
3 - Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.
art. 8º
Em matéria de seguros, a competência é determinada pela presente secção.
art. 9º
O segurador domiciliado no território de um Estado-Membro pode ser demandado:

Noutro Estado Membro, em caso de acções intentadas pelo tomador do seguro, o segurado ou um beneficiário, perante o tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio.
Artº11º
O disposto nos arts 8º, 9º e 10º aplica-se em caso de acção intentada pelo lesado directamente contra o segurador, sempre que tal acção directa seja possível.
art. 66º
1 – As disposições do presente regulamento só são aplicáveis às acções judiciais intentadas... posteriormente à entrada em vigor do presente regulamento.
art. 76º
O presente regulamento entra em vigor em 1.3.2002.

VI –
Cabe aqui referir, antes do mais, que o afastamento do art. 65º, n.º1 c) do CPC, levado a cabo pelas Convenções de Bruxelas e de Lugano, não se reporta à actual alínea c). Reporta-se à alínea c) de então que estabelecia o princípio da reciprocidade que aqui não nos interessa. A alínea que se reportava à causa de pedir era a b).

Interpretando a expressão “facto danoso“ que é repetida nas ditas Convenções, o TJ das Comunidades entendeu que pode abranger o lugar da verificação do dano, ainda que não de modo absoluto – Ac. de 11.1.1990, Colectânea I, 1990, 74.
Este entendimento da abrangência do lugar dos danos, ainda que centrado na interpretação da lei interna, tem sido uma constante da nossa Jurisprudência e doutrina. Preenchem-se as dúvidas que poderiam existir com recurso, antes da redacção de 1995-96, à natureza da causa de pedir e à sua referência, então, na alínea b) do art. 65º do CPC.
Foi esta interpretação que presidiu ao Assento, tirado por unanimidade, de 17.2.1994 (BMJ 434, 61) (ainda que ele aqui não valha directamente) e aos Ac.s do STJ de 14.1.93 (CJ STJ, I, 1, 57) e da RC de 23.10.1990 (CJ 1990, 4, 83). Na doutrina, apenas exemplificativamente, Prof. A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª ed. 202 e Prof. Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil Declaratório, II, Ano 1982, 28.
Depois da redacção emergente da mencionada reforma de 95-96, a agora alínea c) do n.º1 do artº65º passou a ser expressa: basta ter lugar em Portugal – refere - algum dos factos que integram a causa de pedir. Nessa conformidade, manteve-se a orientação anterior - cfr. também exemplificativamente, o Ac. do STJ de 23.9.1997 (BMJ 469, 445), os Ac.s desta Relação de 28.9.1998, na CJ XXIII, 4, 194 e de 8.5.2001, em www.dgsi.pt, Prof. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 119 e Prof. Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, I, 132.

VII –
No que respeita especificamente aos acidentes de viação, de há muito que se considera a respectiva causa de pedir complexa, abrangendo, nessa complexidade, os prejuízos (Veja-se, nomeadamente, Prof. Vaz Serra, RLJ 103, 511 e jurisprudência tão abundante que dispensa citação).
Assim, considerou-se que ocorrendo em Portugal os prejuízos, estava assegurada a competência dos tribunais portugueses – cfr. os citados acórdãos do STJ de 23.9.97 e desta Relação de 8.5.2001

VII –
Com a entrada em vigor do Regulamento CE n.º44/2001 referido não há razões para alterar este entendimento. Não se poderá agora olhar para o art. 65º do CPC, por, em prevalência do direito de origem externa, tal Regulamento o vedar.
Mas o art.5º, nº 3 dispõe nos termos sobreditos. Manteve-se a referência ao lugar do facto danoso, acrescentando-se apenas o lugar onde este poderá ocorrer.

VIII –
Para além disto, este Regulamento encerra outro caminho por onde se chega à competência do tribunal português.
Referimo-nos ao disposto no art. 11º, n.º2, que remete, além do mais, para a alínea b) do art. 9º.
A acção de indemnização do lesado directamente contra o segurador pode ser intentada no Estado Membro onde aquele tiver o seu domicílio.
Compreende-se bem esta disposição. Primeiro, face ao constante do n.º13 dos “Considerandos” (“No respeitante aos contratos de seguro... é conveniente proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral). Depois, já no domínio específico dos acidentes de viação, face à tendência facilitadora, a nível de indemnizatório, que atingiu expoente máximo na Directiva n.º2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Maio, transposta para a ordem interna portuguesa pelo Decreto-Lei n.º72-A/2003, de 14.4.

Tendo em conta a data do acidente e da entrada em vigor do mencionado Regulamento poder-se-ia pensar que estava aqui arredado.
Só que, este contém a norma de direito intertemporal que transcreveu supra (art. 66º, n.º1), colocando o ponto de referência para a sua aplicação no tempo, não na data dos factos, mas da instauração do processo. Exclui a aplicação às acções já intentadas em 1.3.2002, mas inclui-a quanto às intentadas posteriormente. O que também, afinal, se compreende bem. Estamos no domínio do direito adjectivo, a regra seria a aplicação imediata, e haveria apenas que legislar contra ela, evitando o contratempo de se intentar acção contando com determinadas regras processuais e, no decurso dela, ver estas, com relevância em tal processo, alteradas. A data dos factos que integram a causa de pedir não é importante para aqui.

X –
Tendo esta acção sido intentada em 23.10.2002, temos de nos valer do aludido Regulamento.
O que, não só permite que nos apoiemos no entendimento que já vinha de trás, como lhe acrescentemos o que referimos em VIII.

IV - Decisão:
Face ao exposto dá-se provimento do agravo, determinando-se que a Sr.ª Juíza substitua a sua decisão por outra que considere o Tribunal a quo competente para esta acção.
Custas pela Ré.

Porto, 11 de Novembro de 2004
José Viriato Rodrigues Bernardo
João Luís Marques Bernardo
Gonçalo Xavier Silvano