Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
262/22.2JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: CRIME DE HOMICÍDIO SIMPLES
TENTATIVA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PRESSUPOSTOS
CONFISSÃO INTEGRAL E SEM RESERVAS
ARREPENDIMENTO
Nº do Documento: RP20230503262/22.2JAPRT.P1
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A suspensão da execução de uma pena de prisão pressupõe, nos termos do disposto no artigo 50º, nº 1, do Código Penal, um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do agente do crime, formado com base nos factos provados - não dependendo do puro arbítrio do juiz nem se bastando com apreciações abstratas – sendo também de valorar as preocupações de prevenção geral e não deixando de ter em vista a necessidade de ressocialização do arguido.
II - Uma confissão integral e sem reservas não implica, necessariamente, uma demonstração de arrependimento
III - Revelando as condutas provadas do agente do crime de homicídio simples tentado uma personalidade claramente criminógena, associada a uma vida desestruturada e desorganizada nos planos emocional e comportamental, a mera ausência de antecedentes criminais, a confissão do crime e as suas perspetivas de trabalho não mitigam suficientemente as exigências de prevenção especial, de modo a permitir a suspensão da execução da pena de prisão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 262/22.2JAPRT.P1
Data do acórdão: 3 de Maio de 2023

Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora 1ª adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Desembargador 2º adjunto: Manuel Soares

Origem:Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Criminal de Vila do Conde


Sumário:
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Acordam, em conferência, os juízes acima identificados
do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente o arguido AA;

I - RELATÓRIO
1. No dia 6 de Dezembro de 2022 foi proferido o acórdão condenatório do arguido, depositado no mesmo dia, o qual terminou com o seguinte dispositivo:
“Nestes termos, e ao abrigo das referidas disposições legais, os Juízes que compõem o Tribunal Colectivo julgam a acusação provada, parcialmente procedente, e em consequência decidem:
1- Absolver o arguido AA pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelo artº 131º, 132º, n.º 1 e 2 al. e), h) e j), com referência aos artºs 22º, nºs 1, al. b) e 23º, do Código Penal.
2- Condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelo artº 131º, com referência aos artºs 22º, nºs 1, al. b) e 23º, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão;
3- Arbitrar uma quantia de 10.000 (dez mil euros) a titulo de reparação à vitima BB, a ser paga pelo arguido;
4- Declarar o casaco de fato de treino nike e a t-shirt verde da primark perdidas a favor do Estado e determinar a destruição desses objectos;
5- Condenar o arguido ao pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça no valor de 3 UC;
6- Determinar a recolha, após trânsito em julgado deste acórdão, de vestígios biológicos do arguido e a respectiva inserção na base de dados de perfis de ADN, nos termos do disposto no artº 8º, nº 2, da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro (na redacção conferida pela Lei nº 90/2017, de 22 de Agosto). (…)”

2. Inconformado com a sanção penal, o arguido interpôs recurso da decisão, terminando a motivação de recurso com a formulação das conclusões seguidamente reproduzidas[1]:
«O recorrente, foi condenado nos presentes autos, pela prática, de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelo artº 131º, com referência aos artºs 22º, nºs 1, al. b) e 23º, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão.
Considera o recorrente que mal andou o Tribunal a quo ao condena-lo em pena de prisão efetiva não tendo assim atendido e ponderado à confissão integral e sem reservas, que implica necessariamente demonstração de arrependimento e vontade de colaborar com a justiça por parte do arguido, o que o mesmo fez desde o primeiro momento.
Não ponderou ainda o Tribunal a quo devidamente o teor do relatório social, a ausência de antecedentes criminais revelador de que se tratou de um ato único e irrepetível na vida de um arguido ainda muito jovem.
Não foram ainda devidamente ponderadas pelo Tribunal a quo as circunstâncias concretas do crime praticado.
Considerando todos os elementos constantes dos autos acima referidos somos levados a crer que os mesmos permitiam que Tribunal a quo pudesse considerar como adequada uma pena suspensa na sua execução.
Abstratamente analisando qualquer situação, haverá sempre vantagem na ressocialização.
Mas, a esta consideração abstrata, terão necessariamente que existir elementos concretos que permitam concluir que o arguido, uma vez fora da prisão, tem um ambiente propício a que se afaste de ambientes, lugares e pessoas que o poderão levar, novamente, para a prática de atos da mesma natureza dos praticados.
Do relatório social e dos factos provados resulta o inequívoco apoio familiar, o projeto de vida laboral concreto e bem definido.
Resulta ainda dos factos provados as circunstâncias do crime praticado e que levou à condenação aliado ao facto de se tratar de um delinquente primário e que não evidenciam, apesar de tudo, um prognóstico completamente negativo relativamente à possibilidade da ainda integração deste jovem num mundo afastado do crime e externamente condizente com as regras sociais.
Na verdade, se, por um lado, a gravidade dos factos praticados são de molde a colocar algumas dúvidas quanto à possibilidade de integração na sociedade, por outro lado, o apoio familiar e a postura do arguido desde o primeiro momento subsequente à prática do crime de assunção dos seus atos bem como o pedido de desculpas sincero efetuado ao ofendido apresentam um relevante indício positivo no sentido da reintegração do recorrente ainda muito jovem.
Entendemos, pois, que não podemos simplesmente retirar da gravidade do crime praticado a impossibilidade de reintegração.
Na realidade, sempre que resulte algum dado que permita considerar que a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução trará vantagem para a ressocialização do delinquente, esta atenuação deve ser aplicada, sem que as exigências de prevenção geral por si só sejam de molde a afastar essa possibilidade.
Uma vez do seu registo criminal não constam outras condenações, não existem nos autos elementos que permitam concluir por uma carreira criminosa. Ou seja, tudo evidencia que se tratou de uma pluriocasionalidade, pelo que as exigências de prevenção especial se mostram significativas de modo a que seja aplicada uma pena de prisão suspensa na sua execução sendo a mesma ainda apta a salvaguardar as exigências de prevenção geral.
Trata-se, assim, de um arguido primário que, tendo em conta o apoio familiar que apresenta, nomeadamente, a possibilidade de poder retomar a vida afastando-se dos grupos de jovens que de algum modo determinaram o seu comportamento, e sabendo que se mostrou arrependido e apresentou algum juízo de auto-censura, considera-se que a simples ameaça da prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.
Pelo que entende o recorrente, que o Acórdão recorrido deverá ser revogado no segmento decisório respeitante à pena efectiva, devendo a mesma ser suspensa na sua execução por, neste caso, tal se revelar adequado e preferível, sendo ainda comunitariamente suportável à luz da necessidade de tutela de bens jurídicos e da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, assim se respeitando as normas dos artigos 43.º, 70.º, 71.º, n.º 1, 50, n.º 1 e 53.º, n.3, todos dos Código Penal.
Atenta a idade do arguido, a suspensão deve ser acompanhada de regime de prova nos termos do art. 53.º, n.º 3, do CP.
Princípios e disposições legais violadas ou incorretamente aplicadas: artigos 50.º, 52.º, 53.º, 54.º
(…)”

3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo nos próprios autos, com efeito suspensivo.
4. O Ministério Público junto do tribunal da primeira instância pugnou, de forma fundamentada, pela improcedência do recurso, por carecer de fundamento legal:
O tribunal a quo valorou adequadamente todas as circunstâncias relevantes para a determinação da pena do arguido.
Para além das implicações resultantes da gravidade do crime apurado e do respectivo modo de execução, assim como da motivação do agente, não poderia deixar de se considerar, na ponderação da possibilidade da aplicação do regime da suspensão da execução da pena, as elevadíssimas exigências de prevenção, com especial enfoque nas necessidades de defesa do bem jurídico da vida humana.
E, nesta medida, os factos apurados e o que os mesmos revelam quanto à personalidade do arguido, apontam para a existência de fortíssimas necessidades de prevenção geral, pois a aplicação de pena suspensa, considerando o primado da vida humana consagrado constitucionalmente, afrontaria fortemente princípios de certeza e efectividade das penas consagrados no nosso sistema jurídico-.penal e constitucional.
Por seu lado, ainda que não ostente outras condenações, o que se apurou sobre as respectivas circunstâncias de vida não apontam para adequada inserção social e profissional, não dando quaisquer garantias relativamente a um comportamento futuro de acordo com o direito.
É, assim, parecer do Ministério Público que todas as vertentes atendíveis, quer as respeitantes à avaliação da ilicitude e culpa dos factos apurados, quer às necessidades de prevenção, geral e especial, nomeadamente quanto à ausência de comportamento posterior tendente à reparação do mal cometido, no caso, impunham a aplicação de uma pena efectiva.

5. O Ministério Público junto deste Tribunal[2] emitiu parecer, sufragando a posição já manifestada na primeira instância e acrescentando o seguinte:
“(…)
Tendo-se como adquirido que o objecto do recurso ora sob apreço contende, apenas e tão somente, com a questão de a pena de prisão em que o recorrente se mostra condenado dever, ou não, ser suspensa na respectiva execução1, importa, antes do mais, reter que (conforme também doutrinária e jurisprudencialmente se tem como adquirido), a suspensão da execução da pena de prisão não é meramente, ou apenas, facultativa, tratando-se antes de um poder-dever2, dependendo dos pressupostos formais e materiais estipulados na lei, assim dispondo o n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
E mostrando-se, in casu, verificado o pressuposto formal da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão – i. e., a circunstância de, em concreto, não ter sido aplicada (ao agente) pena de prisão superior a 5 (cinco) anos – impõe-se sublinhar que aquela mesma suspensão depende também de um pressuposto material, consubstanciado na exigência da verificação, pelo tribunal, de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do condenado, tendo em atenção a respectiva personalidade e as circunstâncias do caso, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para o afastar da criminalidade, satisfazendo, simultaneamente, as exigências de prevenção geral, ínsitas nas finalidades da punição, previstas no n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal (quais sejam, “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”). Importará, a este propósito, reter o lúcido ensinamento contido no comentário de Simas Santos e Leal Henriques ao citado artigo 50.º do Código Penal3, quando referem que “Na base da decisão … deverá estar uma prognose social favorável ao réu (como lhe chama Jescheck, op. e loc. cit.)… ou seja, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que a esperança não é seguramente uma certeza, mas se tem dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa” (…).
Também a este propósito convoca-se o entendimento expresso no Acórdão proferido em 17 de Dezembro de 2014 pelo Tribunal da Relação de Coimbra (processo 872/09.3PAMGR.C1; relator: Vasques Osório), no qual se lê que “O juízo de prognose a realizar pelo tribunal parte da análise conjugada das circunstâncias do caso concreto, das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente e da sua revelada personalidade, análise da qual resultará como provável, ou não, que o agente irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova), para concluir ou não, pela viabilidade da sua socialização em liberdade”. Assim sendo e conforme se refere também no Acórdão proferido pela Relação de Guimarães em 13 de Abril de 2015 (processo 1/12.6PFGMR.G1; relator: João Lee Ferreira), “De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente por forma a corresponder a exigências de prevenção especial de socialização. Na avaliação da personalidade expressa nos factos, deverão ser ponderados os elementos disponíveis da socialização e inserção do arguido na comunidade, assumindo relevância a consideração dos antecedentes criminais bem como de eventual repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade expressos no conjunto dos factos”.
E não se questionando a validade da citação pelo recorrente efectuada dos ensinamentos do Professor Figueiredo Dias, impõe-se relembrar que o mesmo Mestre não deixa também de advertir que apesar – à luz, natural e consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização – o tribunal poder concluir por um prognóstico favorável, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime», assim reafirmando que “… estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa”4 (destaque e sublinhados do signatário).
Por sua vez, refere André Lamas Leite5, “Suspender a execução da pena de prisão, e em geral, lançar mão de uma medida substitutiva, importa uma aposta no condenado, a qual não pode deixar de ser de «risco permitido», visto que esta categoria dogmática só se liberta de anátemas economicistas quando se reforça em eficácia e em balanceamento dos interesses presentes. Todavia, e mesmo assim se operando, é sempre com renovada confiança antropológica que se cauciona o infractor de uma norma violadora dos mais íntimos fundamentos comunitários” (sublinhado do signatário).
Mas se tais ensinamentos se têm como de primordial relevo na decisão de suspender, ou não, a execução da pena de prisão em que o arguido vem condenado, tal questão não poderá, também, crê-se, ser separada em absoluto da questão do substracto da culpa do agente (necessariamente avaliado em momento anterior), o qual, conforme ensina também o Prof. Figueiredo Dias6, «… não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível …. Reside sim na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto e, portanto, também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a “atitude” da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal.
A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita, e, assim, o critério essencial da medida da pena» (destaque e sublinhado do signatário). Tal substracto deverá, salvo distinto e melhor entendimento, ser mantido em mente quando se coloca a questão de suspender, ou não, a execução da pena, pois que apenas a leitura da “totalidade da personalidade do agente”, associada ao concreto facto cometido e percurso de vida (anterior e posterior ao cometimento do facto) do agente, permitirá alcançar a conclusão de a suspensão da execução da pena corresponder, ou não, ao risco prudente, anteriormente referido, e, assim, socialmente aceite, ou não. Alega o recorrente que se encontra social e familiarmente inserido, que revela hábitos de trabalho, que “Reconhece a necessidade de alterar o seu estilo de vida, designadamente abandonar o seu problema aditivo que considera ter sido um elemento desestabilizador no seu percurso de vida” e que conta com perspectivas de inserção no mercado laboral (em território nacional ou no estrangeiro), mais demonstrando arrependimento, assim tendo pedido desculpas ao ofendido. Todavia e ressalvado o devido respeito, os elementos que se vêm de indicar não serão, quer-se crer, à luz dos factos em apreço nos autos, suficientes para que a pretensão recursiva do arguido possa proceder. Na verdade e no que corresponde aos seus alegados hábitos de trabalho, dos autos resulta que nos dois anos anteriores à prática dos factos pelos quais vem condenado, o arguido não exerceu qualquer actividade profissional e/ou regularmente remunerado, antes contando com o vencimento da respectiva companheira, assim como com a ajuda de familiares, para sobreviver/fazer face às mais diversas despesas, inexistindo notícia de que o mesmo padecesse de algum problema (e.g., de saúde) que o impedisse de procurar ou conseguir inserção no mercado de trabalho – com efeito, a este propósito o que resulta dos autos é que, para além de desempenhos profissionais em várias áreas, por curtos hiatos temporais, o arguido teve “como experiência laboral mais significativa a que desenvolveu no período em que esteve emigrado na Holanda, também na área dos transportes, sendo que regressou a Portugal de férias pelo natal de 2020, optando por não regressar à Holanda” (cfr. pontos 27 e 28 dos factos dados como provados).
Paralelamente, e como resulta do ponto 29 da matéria de facto dada como assente por provada, “…AA alude a uma relação afectiva desestruturada e desestruturante como factor potenciador do comportamento aditivo”, protestando que, entretanto, cessou o consumo de cocaína, que seria diário e que derivaria, também, da influência de pares sociais”, tudo apontando no sentido de o arguido não assumir a plena responsabilidade por dever ser, enquanto adulto, o escritor do guião da respectiva história de vida, antes procurando imputar a terceiros responsabilidades pelos caminhos que, ele próprio, optou por seguir.
Paralelamente e pese embora o tribunal a quo tenha dado como assente (cfr. ponto 21 dos factos provados) que “O arguido confessou os factos que lhe são imputados e alegou8 arrependimento”, não se pode deixar de citar o Acórdão proferido a 15 de Janeiro de 2020, pelo Tribunal da Relação de Coimbra (processo: 61/17.3PEFIG.C1; relatora: Ana Carolina Cardoso) no qual se lê que “… o arrependimento mais não é que um juízo valorativo, quando emitido sem qualquer outra sustentação, nomeadamente em factos donde se consiga extrair tal conclusão (de que o agente está arrependido). Na verdade, o arrependimento sincero (o único que releva) carece de ser objetivado em atos que inequivocamente o demonstrem; constituindo um ato interior, a sua demonstração terá de ser ativa e visível, de molde a revelar em atos que rejeitou o mal praticado e a convencer o tribunal de que, se no futuro vier a ser confrontado com situação idêntica, não voltará a delinquir…”.
A este propósito mais importará reter que, quando prestou declarações perante o tribunal a quo, o arguido estava, ainda, confrontado com uma acusação em que lhe era imputada a prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, assim se encontrando, ainda, numa situação em que se confrontava com a possibilidade de lhe ser aplicada uma pesada pena de prisão…
E desejando-se que o arrependimento então verbalizado corresponda, de facto, a um genuíno “acto de contrição”, capaz de indiciar que o recorrente terá já encetado um caminho que lhe permita uma vida de acordo com as regras de vivência numa sociedade caracterizada também pelo respeito pelos direitos dos demais, o certo é que, logo após a prática dos factos pelos quais vem, agora, condenado e quando ainda não sabia quais as concretas consequências que do respectivo comportamento adviriam para o ofendido, conforme resulta do ponto 10 dos factos dados como provados, o arguido não se coibiu de se virar para o local onde esfaqueara o ofendido altura em que «… retirou a faca do bolso das calças, abriu-a e proferiu a seguinte expressão “já lhe dei duas facadas, já podemos ir embora”», o que não obstante o tempo entretanto decorrido, dá nota de uma atitude (conforme ensinamentos do Prof. Figueiredo Dias anteriormente invocados) profundamente desconforme ao direito, tanto mais que estava em causa a possibilidade de (conforme era sua intenção) ter tirado a vida ao ofendido, numa conduta assumidamente levada a cabo, conforme se lê na decisão recorrida, “… por se sentir traído e magoado, com ciúmes, uma vez que, referiu, estava apaixonado pela namorada…”.
Tal comportamento do arguido, pese embora o mesmo assuma que “… se fosse hoje não teria praticados tais factos”, não só dá nota de um total desprezo pela vida alheia, como o próprio facto de se municiar com “uma faca”, que ocultou do ofendido e que apenas empunhou quando o esfaqueou, não deixam dúvidas a que, conforme resulta demonstrado pelo tribunal a quo, o arguido agiu com expressa intenção (dolo directo) de tirar a vida ao ofendido, conforme resulta também da própria zona corporal do ofendido que visou (e atingiu por mais que uma vez), tudo militando no sentido de a conduta do arguido ter sido – conforme o mesmo, aliás, não nega – expressa e objectivamente, direccionada ao bem jurídico primeiro, que é a vida humana.
E se tais elementos culminam no “pedaço de vida” que levou a que o tribunal recorrido proferisse a sentença condenatória ora sob análise, da mesma sentença (e.g., do respectivo segmento final) resulta que o tribunal a quo se debruçou também, de forma que se tem igualmente como serena e isenta de crítica, sobre a “história de vida” do arguido, assim tendo sido devidamente ponderados todos os elementos do percurso vivencial já percorrido pelo mesmo, de forma a apurar se os mesmos permitiam, ou não, alcançar formular um juízo de prognose que possibilitasse a eventual suspensão da execução da pena de prisão pela qual o arguido, ora recorrente, se mostra condenado.
E ressalvado o devido respeito por distinto e melhor entendimento, à luz dos elementos disponíveis nos autos – que, repete-se, na decisão recorrida se mostram ponderados de forma que se tem isenta de crítica – assim como dos elementos doutrinários e jurisprudenciais que se vêm de elencar, crê-se não ser possível alcançar juízo distinto do firmado pelo tribunal a quo sem ultrapassar os limites do risco prudente ou risco permitido a que anteriormente se aludiu, tanto mais que o arguido não só demonstrou uma absoluta incapacidade de autocontrolo de impulsos agressivos (quando não mesmo básicos), como mais demonstra uma muito frágil consciência crítica do mal do crime cometido, como demonstra também, pese embora quanto alega, rede familiar de suporte que se afigura também como algo frágil a que se associa a aparente inexistência de qualquer tipo de inserção no tecido social envolvente que não correspondesse, para usar a expressão do próprio arguido, aos “grupos de jovens que de algum modo determinaram o seu comportamento”…
E correspondendo o mencionado risco prudente (ou permitido), afinal, ao limite a partir do qual se coloca em perigo a própria segurança da sociedade e que, assim, a mesma não conseguirá aceitar, conforme se afirma em decisão datada de 12 de Julho de 2017 do Tribunal da Relação de Coimbra10 (processo: 372/16.5JALRA.C1; relatora: Brízida Martins) “Se deve privilegiar-se a socialização em liberdade, não é menos certo que a defesa do ordenamento jurídico não pode ser postergada, sob pena de se sacrificar a função de tutela de bens jurídicos que a pena, irrenunciavelmente, desempenha”, motivo pelo qual “O entendimento que tem prevalecido na jurisprudência é o de que, nestes casos, a aplicação da pena de substituição não satisfaz aquele conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico”.
Conclusão: À luz de quanto antecede e considerado igualmente quanto consta da resposta apresentada pelo Exm.º Procurador da República junto do tribunal recorrido, emite-se parecer no sentido de que o recurso interposto pelo arguido AA não merecerá provimento, assim devendo ser confirmada a sentença recorrida.”


6. Notificado do parecer, o recorrente não apresentou qualquer resposta.
*
Cumpre, pois, apreciar e decidir.

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Do objeto do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina e a jurisprudência são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o “thema decidendum” que foi colocado à apreciação do tribunal “ad quem”, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir a única questão jurídica suscitada pelo recorrente, constituindo, assim, o objeto do recurso e, consequentemente, desta decisão:

Erro em matéria de direito:
- A pena deveria ter sido suspensa na sua execução, tendo a decisão recorrida violado o disposto nos artigos 50.º, 52.º, 53.º, 54.º, todos do Código Penal.
*

1.
II – FUNDAMENTAÇÃO

Para decidir a questão controvertida, importa ter presente a fundamentação da decisão recorrida:
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) De facto
1. Factos provados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
1. No dia 12 de janeiro de 2022, o arguido AA tomou conhecimento que a sua namorada CC mantinha uma relação amorosa com o ofendido BB.
2. Desagradado com esse facto, o arguido decidiu munir-se de uma faca, para com ela atingir o corpo do ofendido BB, de forma a provocar-lhe a morte.
3. Assim, no dia 13 de janeiro de 2022, pelas 18h30m, o arguido AA, na companhia de dois indivíduos, dirigiu-se ao café “A...”, sito na Rua ..., ..., em ..., na ..., local que sabia ser habitualmente frequentado pelo ofendido BB, naquele horário.
4. Aí chegado, o arguido AA ficou a aguardar pela chegada do ofendido BB, que aí surgiu por volta das 19h00m.
5. Quando o ofendido surgiu no local, o arguido disse-lhe “anda aqui que eu quero falar contigo” e ainda lhe perguntou “andas com a minha mulher?”.
6. Após, e já com o ofendido mais próximo de si, o arguido disse-lhe que o ia matar e, ato contínuo, desferiu um murro no queixo do ofendido que, para se defender, agarrou o arguido no tronco.
7. De seguida, o arguido AA empurrou o ofendido e, de imediato, retirou do bolso a faca que trazia consigo e logo desferiu dois golpes do lado esquerdo do peito do ofendido, designadamente, no 3º espaço intercostal na linha médio clavicular e no 5º espaço intercostal na linha axilar anterior.
8. A seguir, enquanto o ofendido fugia do local, o arguido AA ainda tentou ir no seu encalço, tendo sido impedido por um dos indivíduos que o acompanhava e que o agarrou.
9. Pelo que o arguido AA guardou a faca no bolso das calças e correu, apeado, na direção da igreja de ....
10. Quando se encontrava a meio da rua, o arguido AA voltou-se para o local onde ocorreram os factos supra descritos, retirou a faca do bolso das calças, abriu- a e proferiu a seguinte expressão “já lhe dei duas facadas, já podemos ir embora”.
11. Com a sua conduta, o arguido AA provocou no ofendido BB um trauma torácico perfurante esquerdo, com laceração pulmonar esquerda, hemotórax esquerdo de moderado volume, pneumotórax esquerdo de pequeno volume e hemopericárdio, o que levou ao seu internamento na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de São João, no Porto.
12. Da conduta praticada pelo arguido resultaram para o ofendido, como consequência direta e necessária, as seguintes lesões:
- No tórax: na face anterior do terço superior do hemitórax esquerdo, na linha médioclavicular, cicatriz avermelhada linear com 1 cm de comprimento, de orientação longitudinal, associada a vestígios de pontos de sutura, ocupando uma área com 2,5 cm de maior dimensão;
- Na face lateral do terço superior do hemitórax esquerdo, presença de duas cicatrizes: uma na linha axilar anterior, avermelhada, linear com 1,5cm de comprimento, de orientação transversal, associada a vestígios de pontos de sutura, ocupando uma área de 3 por 2 cm de maiores dimensões; outra localizada inferiormente à cicatriz previamente descrita, na linha médio-axilar, avermelhada, aproximadamente linear, com limites ligeiramente irregulares, com 2 cm de comprimento, de orientação oblíqua descendente anterior, associada a vestígios de pontos de sutura, ocupando uma área de 1,5 por 2 cm de maiores dimensões.
13. Tais lesões determinaram ao ofendido 35 dias para a consolidação médico-legal: com 7 dias de afetação total da capacidade de trabalho geral e 20 dias de afetação parcial da capacidade de trabalho geral, até os últimos cuidados de enfermagem prestados.
14. Do evento resultaram para o ofendido, como consequências permanentes sob o ponto de vista médico-legal, as cicatrizes atrás descritas e as próprias de consolidação de fratura de arco costal e laceração pulmonar, sujeitas a tratamento conservador, excetuando a necessidade de drenagem torácica, que pelas suas caraterísticas e habitual evolução clínica, não é expetável que sejam causa de desfiguração grave, nem de afetação grave da capacidade de trabalho geral.
15. Como complicações médicas temporárias de relevo, encontram-se documentados hemopneumotórax, hemopericárdio e pericardite aguda.
16. Apesar destas, o ofendido manteve-se durante todo o período de internamento hemodinamicamente estável, tendo apenas sido submetido a drenagem torácica e terapêutica medicamentosa.
17. O arguido AA sabia que, ao desferir os golpes da forma supra descrita, iria atingir o ofendido BB no peito, local onde se alojam órgãos vitais, o que quis, bem conhecendo a natureza corto-perfurante do instrumento utilizado - faca.
18. Atuou o arguido, inviabilizando qualquer hipótese de defesa eficaz por parte do ofendido, que foi surpreendido com a sua atuação.
19. O arguido quis, assim, provocar no ofendido lesões adequadas a causar a sua morte, como era sua intenção, a qual apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade, face aos cuidados médicos que foram logo prestados ao ofendido.
20. O arguido AA agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punida por lei.
21. O arguido confessou os factos que lhe são imputados e alegou arrependimento.
22. Nada consta do registo criminal do arguido.
23. Atualmente o arguido reside com a companheira em habitação arrendada, de tipologia T0, pela qual o agregado familiar paga mensalmente cerca de 350,00€ mensais, aos quais acrescem as despesas com água e energia elétrica na ordem dos 120,00€ mensais.
24. O núcleo familiar subsiste com o salário auferido pela companheira do arguido, que desempenha funções na área da estética feminina, auferindo em termos médios cerca de 600,00€ mensais por mês, contudo, o arguido faz referência à dependência que mantêm o núcleo familiar do apoio financeiros e em géneros por parte do núcleo familiar alargado, minimizando dificuldade e constrangimentos.
25. O processo de desenvolvimento psicossocial de AA decorreu integrado na família de origem, do qual fazia parte a irmã e uma prima que desde tenra idade integrou este núcleo familiar, assumindo os progenitores do arguido o processo educativo da mesma.
26. AA integrou o ensino pré-escolar, integrando o 1º ciclo do ensino quando contava com cerca de 6 anos de idade. Viria o arguido a integrar o ensino publico, registando várias retenções, uma das quais no 7º ano, levando a que viesse a integrar curso profissionalizante onde conclui o 9º ano de escolaridade, na área de informática, quando contava já com 18 anos de idade.
27. Em termos laborais AA viria a desempenhar funções em várias áreas, nomeadamente na área dos transportes sem que, contudo, tenha adquirido algum tipo de vinculo, devido aos curtos hiatos temporais em que desempenhou funções.
28. AA menciona como experiência laboral mais significativa a que desenvolveu no período em que esteve emigrado na Holanda, também na área dos transportes, sendo que regressou a Portugal de férias pelo natal de 2020, optando por não regressar à Holanda.
29. O arguido coloca no decurso do ano de 2021 e 2022 alguma enfase em termos de desorganização, quer emocional quer comportamental, por via da influência de pares sociais com quem mantinha consumos diários de cocaína, hábito que desde a aplicação da medida de coação de OPHVE, à ordem dos presentes autos, o arguido refere ter cessado. AA alude a uma relação afectiva desestruturada e desestruturante como factor potenciador do comportamento aditivo.
30. AA refere que conta com proposta laboral para emigrar para a Irlanda, onde irá desempenhar funções de cozinheiro, estando de momento a aguardar a resolução do presente processo com vista à tomada da decisão.
31. Tem proposta de trabalho numa barbearia.
32. Na DGRSP há registo de outros contactos de AA com o sistema de justiça penal, no âmbito do processo 330/14.4PFVNG pela pratica de um crime de roubo e no âmbito do processo 63/14.1SGPRT pela prática de um crime de condução sem habilitação legal.

B) De Direito
1. Qualificação jurídico-criminal dos factos
(…)
Em face destas considerações, os factos que ficaram provados em audiência integram, quanto à conduta do arguido contra o ofendido BB, os elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio, na forma tentada, não se enquadrando, contudo, os factos no tipo qualificado desse delito.
(…)
2. Escolha e determinação da medida concreta da pena
Nos termos do disposto no artº 131º do Código Penal, ao crime de homicídio consumado corresponde pena de prisão de 8 (oito) a 16 (dezasseis) anos. Por seu turno, o artº 23º, nº 2, do Código Penal dispõe que “A tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada”. Assim, tendo presentes as regras do artº 73º, nº 1, als. a) e b), do Código Penal, ao crime de homicídio tentado corresponde pena de prisão de 1 (um) ano, 7 (sete) meses e 6 (seis) dias a 10 (dez) anos e 8 (oito) meses.
Encontrada a moldura abstractamente aplicável, cumpre proceder à determinação da medida concreta da pena.
O artº 40º, nº 1, do Código Penal estatui que “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, acrescentando o nº 2 do citado preceito legal que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Prevenção e culpa são, assim, os dois vectores de determinação da medida concreta da pena (bem como, quando seja o caso de pena alternativa, da escolha da natureza da sanção criminal).
FIGUEIREDO DIAS assinala que “As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa” (“Direito Penal Português – Parte Geral II – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, p. 227).
O patamar mínimo de cada pena corresponde ao nível abaixo do qual a comunidade jurídica não sente suficiente e eficazmente protegido o bem jurídico que foi violado com a prática do crime em questão, atendendo-se ao factor da prevenção geral positiva. Quanto a este factor, importa ter presente que uma das finalidades das penas consiste na reafirmação perante a comunidade da manutenção da confiança na validade das normas jurídicas que, com a prática do crime, foram infringidas, com vista a prevenir, ao nível societário, a prática de novos crimes, do mesmo ou de outros tipos. A este respeito, FIGUEIREDO DIAS salienta que “[…] primordialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto […] protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida” (idem, ibidem, pp. 227-228).
O nível máximo é fornecido pelo grau de culpa, já que esta, constituindo o fundamento ético e jurídico da aplicação das penas, representa também o seu máximo inultrapassável, como explicita o artº 40º, nº 2, do Código Penal. A este propósito, o Autor atrás indicado destaca que a verdadeira função da culpa, na doutrina da medida da pena “reside, efectivamente, numa incondicional proibição de excesso: a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas” (idem, ibidem, pp. 229-230).
Finalmente, a medida concreta da pena deve ser encontrada atendendo às exigências de prevenção especial que o caso reclame. No que concerne a este factor, cumpre salientar que uma das finalidades das penas consiste na reintegração do agente do crime na sociedade, afastando-o, por essa via, da prática de outros delitos. Sobre o contributo da prevenção especial na determinação da medida concreta da pena, FIGUEIREDO DIAS remata “Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração – entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos –, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena” (idem, ibidem, pp. 230-231).
Sobre o tema, pode consultar-se, na doutrina, ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade”, Coimbra Editora, 1995, maxime p. 312, bem como “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 12 (Abril/Junho de 2002) e, na jurisprudência, a título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de Março de 2015.
Tendo presentes estas considerações de prevenção e culpa, na tarefa de determinação da medida concreta das penas, o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do arguido e contra ele, nos termos do artº 71º, nº 2, do Código Penal.
No caso em apreço, importa ponderar os seguintes factores de determinação da medida concreta da pena:
- O bem jurídico violado- vida- é o bem jurídico supremo.
- Foram dois os golpes de faca que o arguido desferiu à vitima BB, sendo acentuado por isso o desvalor da acção.
- O modo de execução do crime, dentro do âmbito da tentativa criminosa, foi gravoso, tendo o arguido atingido com uma faca a zona torácica da vitima onde se alojam órgãos vitais.
- O desvalor de resultado foi muito acentuado, pois as consequências que resultaram para o ofendido, nomeadamente ao nível e quantidade das lesões por este sofridas, conforme descrito na matéria de facto e considerando que dos quais não sobreveio a morte apenas porque foi socorrido e recebeu logo tratamento médico.
- O arguido agiu com dolo directo quer quanto à acção quer quanto ao resultado morte, revelador de uma profunda insensibilidade perante o valor da vida humana.
- A circunstância de, no caso concreto, serem elevadíssimas as exigências de prevenção geral, desde logo face ao cada vez maior número de vitimas no seio e relacionadas com relacionamentos amorosos conturbados ou que são interrompidos ou cessam sem a aceitação de um dos elementos do casal que terminam com resultados graves e na maioria das vezes trágicos, num claro e chocante engrossar das cifras negras quanto a tipos de ilícito idênticos.
- Igualmente, pelos mesmos motivos referidos e atendendo às circunstâncias do caso e à concreta actuação do arguido, descrita na matéria de facto, se mostram também elevadas as exigências de prevenção especial, sendo necessário que aquele consciencialize e interiorize a gravidade dos factos praticados – o que em rigor não demonstrou, pese embora o alegado arrependimento, na medida em que desde a prática dos factos nada fez para se retratar perante o ofendido ou para atenuar a dor por este sofrida, com isso não adequando o seu comportamento futuro às normas da vida em sociedade e ao respeito devido aos direitos, nomeadamente à vida e à integridade física daqueles que de alguma forma lhe causem contrariedades.
- Apenas em audiência de discussão e julgamento apresentou um pedido de desculpas ao ofendido.
- A favor do arguido, e atenuando estas exigências de prevenção especial, o facto de o arguido não ter antecedentes criminais e se encontrar familiarmente inserido e com perspetivas de emprego quer em Portugal quer no estrangeiro.
- Ainda a seu desfavor, a circunstância de desde 2020 e pelo menos até lhe ser aplicada a medida de coacção em Fevereiro de 2022 não ter qualquer atividade profissional, viver a expensas dos pais e encontrar-se relacionado com pessoas conotadas com o mundo da toxicodependência.
Tudo visto e ponderado, considera-se necessária, suficiente, adequada e proporcional à gravidade dos factos a pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão.
*
O artº 50º, nº 1, do Código Penal dispõe que o tribunal determina a suspensão da execução da pena de prisão não superior a 5 (cinco) anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Contudo, no caso em apreço, o Tribunal considera que as exigências de prevenção não se compadecem com a substituição da pena privativa da liberdade.
A tipificação do homicídio visa a tutela do bem jurídico superior que é a vida humana. Está em causa o bem jurídico supremo da Humanidade.
A circunstância de BB não ter falecido já foi considerada no enquadramento dos factos na figura da tentativa criminosa e, em consequência, numa redução considerável dos limites da moldura penal abstractamente aplicável, não podendo servir, porém, para afastar a execução efectiva da reacção criminal justa. O crime em questão e as motivações do arguido, começam a tornar este tipo de criminalidade muito frequente, pelo que se justifica no caso concreto, pelas razões atrás aduzidas, uma pena efectivamente privativa da liberdade.
Todas estas razões concorrem para um patamar muito elevado das exigências de prevenção geral.
Por outro lado, os factos relativos às condições pessoais e sócio-económicas do arguido não ultrapassam a premente necessidade de cumprimento de penas efectivamente privativas da liberdade, ante as elevadas exigências de prevenção geral.
Não pode deixar de se reconhecer que no caso concreto sobrelevam as exigências de prevenção geral e essas opõem-se à suspensão da execução da sanção privativa da liberdade.
A este respeito, FIGUEIREDO DIAS explicita: “Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização –, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime» (artº 48º-2, in fine). Já determinámos (supra § 502) que estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise” (“Direito Penal Português – Parte Geral II – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, p. 344).
Também a jurisprudência tem salientado que e relação a determinados crimes, de determinada gravidade e perante quadros circunstancias adversos, não pode deixar de ser aplicada a sanção efectivamente privativa da liberdade.
A este respeito, o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 17 de Setembro de 2014, salientou que as exigências de prevenção geral, em casos de criminalidade em grupos e altamente danosa não consentem a suspensão da execução da pena de prisão.
Em sentido idêntico, o Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão de 25 de Março de 2019, expendeu as seguintes considerações: “Apesar de ser possível fazer um juízo de prognose positiva relativamente ao futuro comportamento do condenado, não deve ser suspensa uma pena de 3 anos de prisão imposta a um arguido que praticou um crime de homicídio, na forma tentada, na pessoa de um vizinho com quem se desentendeu por questões de água e que ficou com lesões graves na saúde, sob pena de a opção pela pena de substituição, refletir menosprezo por valores – vida e/ou integridade física – irrenunciáveis numa sociedade sadia”.
MIGUEZ GARCIA/CASTELA RIO assinalam que “A suspensão da execução da pena de prisão não se mostra adequada, em princípio, nos crimes de homicídio doloso, ainda que privilegiado” e acrescentam, em geral, que “A suspensão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as finalidades da punição, portanto, de defesa do ordenamento jurídico” (“Código Penal – Parte geral e especial”, 2018, 3ª edição, Almedina, pp. 368-369).
Perante o quadro de circunstâncias que em audiência ficou provado, a substituição da pena privativa da liberdade pela suspensão da execução da pena de prisão não seria suficiente para colmatar as exigências de prevenção atrás explicitadas.
Em conformidade com o exposto, deverá ser aplicada uma pena efectivamente privativa da liberdade. (…)”

§ 1 - O recorrente sustenta a motivação de recurso num alegado erro em matéria de direito, que consiste na efetividade da pena de prisão fixada, violando a fundamentação jurídica o disposto nos artigos 50.º, 52.º, 53.º, 54.º, devendo a pena ser suspensa na sua execução sob regime de prova.
A decisão recorrida incorreu em tal erro, ao não ponderar, como devia:
a) a confissão integral e sem reservas que, no entender do recorrente, implica necessariamente uma demonstração de arrependimento e vontade de colaborar com a justiça desde o primeiro momento: se, por um lado, a gravidade dos factos praticados colocam algumas dúvidas quanto à possibilidade de integração na sociedade, por outro lado, o apoio familiar e a postura do arguido desde o primeiro momento subsequente à prática do crime e o pedido de desculpas sincero efetuado ao ofendido apresentam um relevante indício positivo no sentido da reintegração do recorrente ainda muito jovem;
b) a ausência de antecedentes criminais revelador de que se tratou de um ato único e irrepetível na vida de um arguido ainda muito jovem;
c) tratar-se de um delinquente primário e que não evidencia, apesar de tudo, um prognóstico completamente negativo relativamente à possibilidade da ainda integração deste jovem num mundo afastado do crime e externamente condizente com as regras sociais;
d) o apoio familiar de que beneficia, permitindo retomar a vida afastando-se dos grupos de jovens que de algum modo determinaram o seu comportamento
Conclui, pois, à luz de tais fatores de ponderação no caso concreto, que a simples ameaça da prisão realizará de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.
Não foram ainda devidamente ponderadas pelo Tribunal a quo as circunstâncias concretas do crime praticado.
§ 2 - O Ministério Público respondeu à questão concreta suscitada pelo recorrente, pugnando pela confirmação da decisão recorrida, argumentando para o efeito que o arguido não beneficia, neste caso, de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do condenado, tendo em atenção a respetiva personalidade e as circunstâncias do caso, não bastando a simples censura do facto e a ameaça da pena para o afastar da criminalidade, satisfazendo, simultaneamente, as exigências de prevenção geral, ínsitas nas finalidades da punição, previstas no n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal (quais sejam, “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”). Ainda no douto parecer é referido que o “lúcido ensinamento contido no comentário de Simas Santos e Leal Henriques ao citado artigo 50.º do Código Penal, quando referem que “Na base da decisão … deverá estar uma prognose social favorável ao réu (como lhe chama Jescheck, op. e loc. cit.)… ou seja, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que a esperança não é seguramente uma certeza, mas se tem dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa” (…) os elementos que se vêm de indicar não serão, quer-se crer, à luz dos factos em apreço nos autos, suficientes para que a pretensão recursiva do arguido possa proceder. Na verdade e no que corresponde aos seus alegados hábitos de trabalho, dos autos resulta que nos dois anos anteriores à prática dos factos pelos quais vem condenado, o arguido não exerceu qualquer actividade profissional e/ou regularmente remunerado, antes contando com o vencimento da respectiva companheira, assim como com a ajuda de familiares, para sobreviver/fazer face às mais diversas despesas, inexistindo notícia de que o mesmo padecesse de algum problema (e.g., de saúde) que o impedisse de procurar ou conseguir inserção no mercado de trabalho – com efeito, a este propósito o que resulta dos autos é que, para além de desempenhos profissionais em várias áreas, por curtos hiatos temporais, o arguido teve “como experiência laboral mais significativa a que desenvolveu no período em que esteve emigrado na Holanda, também na área dos transportes, sendo que regressou a Portugal de férias pelo natal de 2020, optando por não regressar à Holanda” (cfr. pontos 27 e 28 dos factos dados como provados).
Paralelamente, e como resulta do ponto 29 da matéria de facto dada como assente por provada, “…AA alude a uma relação afectiva desestruturada e desestruturante como factor potenciador do comportamento aditivo”, protestando que, entretanto, cessou o consumo de cocaína, que seria diário e que derivaria, também, da influência de pares sociais”, tudo apontando no sentido de o arguido não assumir a plena responsabilidade por dever ser, enquanto adulto, o escritor do guião da respectiva história de vida, antes procurando imputar a terceiros responsabilidades pelos caminhos que, ele próprio, optou por seguir.
Paralelamente e pese embora o tribunal a quo tenha dado como assente (cfr. ponto 21 dos factos provados) que “O arguido confessou os factos que lhe são imputados e alegou8 arrependimento”, não se pode deixar de citar o Acórdão proferido a 15 de Janeiro de 2020, pelo Tribunal da Relação de Coimbra (processo: 61/17.3PEFIG.C1; relatora: Ana Carolina Cardoso) no qual se lê que “… o arrependimento mais não é que um juízo valorativo, quando emitido sem qualquer outra sustentação, nomeadamente em factos donde se consiga extrair tal conclusão (de que o agente está arrependido). Na verdade, o arrependimento sincero (o único que releva) carece de ser objetivado em atos que inequivocamente o demonstrem; constituindo um ato interior, a sua demonstração terá de ser ativa e visível, de molde a revelar em atos que rejeitou o mal praticado e a convencer o tribunal de que, se no futuro vier a ser confrontado com situação idêntica, não voltará a delinquir…”.
A este propósito mais importará reter que, quando prestou declarações perante o tribunal a quo, o arguido estava, ainda, confrontado com uma acusação em que lhe era imputada a prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, assim se encontrando, ainda, numa situação em que se confrontava com a possibilidade de lhe ser aplicada uma pesada pena de prisão…
E desejando-se que o arrependimento então verbalizado corresponda, de facto, a um genuíno “acto de contrição”, capaz de indiciar que o recorrente terá já encetado um caminho que lhe permita uma vida de acordo com as regras de vivência numa sociedade caracterizada também pelo respeito pelos direitos dos demais, o certo é que, logo após a prática dos factos pelos quais vem, agora, condenado e quando ainda não sabia quais as concretas consequências que do respectivo comportamento adviriam para o ofendido, conforme resulta do ponto 10 dos factos dados como provados, o arguido não se coibiu de se virar para o local onde esfaqueara o ofendido altura em que «… retirou a faca do bolso das calças, abriu-a e proferiu a seguinte expressão “já lhe dei duas facadas, já podemos ir embora”», o que não obstante o tempo entretanto decorrido, dá nota de uma atitude (conforme ensinamentos do Prof. Figueiredo Dias anteriormente invocados) profundamente desconforme ao direito, tanto mais que estava em causa a possibilidade de (conforme era sua intenção) ter tirado a vida ao ofendido, numa conduta assumidamente levada a cabo, conforme se lê na decisão recorrida, “… por se sentir traído e magoado, com ciúmes, uma vez que, referiu, estava apaixonado pela namorada…”.
*
Apreciando.
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De jure
Resulta manifesto perante o relatório acima concretizado em que se desenham as teses jurídicas em confronto sobre o objeto do recurso, que a norma principal e decisiva a aplicar será o artigo 50º, nº 1, do Código Penal:
"O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."
Perante a redação da norma, importa considerar os factos apurados que permitam esclarecer:
a) a personalidade do arguido;
b) as condições da sua vida;
c) a sua conduta anterior e posterior ao crime;
d) as circunstâncias do crime;
Resulta da norma acima transcrita que a opção pela suspensão da execução da pena pressupõe um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido AA, construído com base factos provados, não dependendo do puro arbítrio do juiz nem se bastando com apreciações abstratas.
Como é consabido, em sede de escolha de uma pena de substituição, são as considerações de prevenção especial e já não as relativas à culpa do infrator (esta apenas decisiva, por limitar superiormente o “quantum” da pena) e as preocupações de prevenção geral que importa valorar, não deixando de ter em vista a necessidade de ressocialização do arguido.
O caso concreto:
Neste âmbito, importa ter presente, quanto às circunstâncias do crime – que também têm reflexo na avaliação da personalidade do arguido, pela sua especial gravidade -, que o arguido tentou matar outro indivíduo, por ciúmes (factos 1 e 2) e, para o efeito, muniu-se de uma faca (facto 2) e fez-se acompanhar de mais dois indivíduos (facto 3), esperando com estes a chegada da vítima (factos 3 e 4), que chegou meia-hora depois (facto 4). Interpelando-a, depois de lhe perguntar “andas com a minha mulher”, disse-lhe que o ia matar (facto 5), começando logo por lhe desferir um murro no queixo (facto 6) e, a seguir, retirou do bolso a faca e desferiu-lhe dois golpes no lado esquerdo do peito da vítima - no 3º espaço intercostal na linha médio clavicular e no 5º espaço intercostal na linha axilar anterior - (facto 7).
A vítima fugiu do local, tendo o arguido tentado ir no seu encalço, tendo sido impedido de o fazer por um dos jovens que o acompanhara (facto 8), acabando também por afastar-se do local a correr tendo guardado a faca no bolso (facto 9) e, quando se encontrava a meio da rua, voltou-se para o local onde ocorreram os factos, retirou a faca do bolso das calças, abriu-a e proferiu a seguinte expressão “já lhe dei duas facadas, já podemos ir embora”.
Tais condutas – com um grau de ilicitude e de culpa manifestamente elevados, fatores que foram ponderados na determinação da medida concreta da pena – revelam um arguido com um comportamento violento com o propósito de matar a vítima, utilizando para o efeito uma faca, golpeando por duas vezes o visado na zona do seu pulmão esquerdo (zona habitualmente associada à localização do coração), por motivo de ciúmes.
Mesmo depois de ter golpeado a vítima, o arguido ainda tentou perseguir a vítima que fugia, tendo sido impedido de o fazer por uma das pessoas que o acompanhava.
A facilidade com que o arguido decidiu matar outra pessoa, munindo-se de uma faca para o efeito e fazendo-se acompanhar de duas pessoas, fazendo uma “espera” à vítima, aguardando a sua chegada durante meia-hora, revela bem a sua intensidade dolosa e – nesta parte valorável à luz da concretização das preocupações de prevenção especial - a ausência, ou pelo menos, uma manifesta fragilidade dos mais elementares princípios éticos e das inibições naturais que caracterizam quase todos os cidadãos, de tirar o bem jurídico mais precioso a outra pessoa: a vida. Logo após cometer o crime, o arguido não mostrou o menor esboço de arrependimento no local.
É evidente, perante a descrição dos factos, que o arguido revela uma personalidade claramente criminógena e que suscita manifestas preocupações de prevenção especial, não constituindo a ausência de antecedentes criminais, a sua confissão e o alegado entorno familiar e perspetivas de trabalho atenuantes minimamente suficientes para minorar as exigências de prevenção especial.
Contrariamente ao alegado pelo recorrente, a confissão integral e sem reservas não implica necessariamente uma demonstração de arrependimento – tal como referido no douto parecer – podendo antes ser uma atitude calculista de uma estratégia de defesa processual, de modo a evitar uma sanção penal. De resto, a própria decisão da matéria de facto – não impugnada pelo recorrente – explicita mesmo essa reserva, ao considerar provado que “O arguido confessou os factos que lhe são imputados e alegou arrependimento.”(facto 21). Uma alegação de arrependimento não corresponde à demonstração desse arrependimento e a mera confissão do crime também não o implica necessariamente.
De resto, o comportamento do arguido, logo após ter desferido os golpes com a faca na vítima, com a intenção de a matar, não revela o menor arrependimento, mas antes uma satisfação pessoal em ter concretizado a agressão.
Somente quando foi confrontado com o sistema de justiça é que o arguido passou a alegar arrependimento e a sua confissão em pouco contribuiu para o apuramento dos factos, uma vez que o seu crime foi presenciado por testemunhas – além da própria vítima, que sobreviveu e esteve presente em julgamento -.
De resto, o modo de vida e entorno familiar do arguido, desde o Natal de 2022, revelam uma vida desestruturada, emocional e comportamental desorganizada (facto 29), marcada pelo consumo diário de cocaína (que o arguido apenas disse ter cessado, nunca o tendo demonstrado), uma vida afetiva desestruturada e ausência de trabalho efetivo.
Do exposto resulta manifesto que a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste apenas permitem concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, mesmo com regime de prova, não realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, improcedendo o recurso.
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Das custas:
Sendo negado provimento ao recurso, impõe-se a condenação do recorrente no pagamento das custas, nos termos previstos nos artigos 513°, nº 1, do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais.
A taxa de justiça individual é fixada em 4 UC (quatro unidades de conta), nos termos da Tabela III anexa àquele Regulamento, tendo em conta o objeto do recurso.
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III – DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores em conferência e por unanimidade negar provimento ao recurso do arguido AA.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (quatro unidades de conta).


Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.



Porto, em 3 de Maio de 2023.
Jorge Langweg
Maria Dolores Silva e Sousa
Manuel Soares
_________________
[1] Transcrevendo-se as conclusões na sua reformulação emergente do convite judicial que lhe foi dirigido nesse sentido, nos termos do disposto no artigo 417º, nº 3, do Código de Processo Penal.
[2] Parecer subscrito pelo Procurador-Geral Adjunto Dr. Jorge Dias Duarte.