Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1108/14.0T2OVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: LIVRANÇA
SUBSCRITOR
SOCIEDADE POR QUOTAS
VINCULAÇÃO DA SOCIEDADE
QUALIDADE DE GERENTE
PREENCHIMENTO ABUSIVO
Nº do Documento: RP201706051108/14.0T2OVR-A.P1
Data do Acordão: 06/05/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTO N.º 652, FLS.30-40)
Área Temática: .
Sumário: I - Atenta a posição firmada pelo Acórdão do STJ para uniformização de jurisprudência nº 1/2002, de 06/12/2001, a indicação de qualidade de gerente prescrita no nº 4 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais, para vincular a sociedade, não tem que ser feita de forma expressa, podendo ser deduzida, nos termos do artigo 217.º do Código Civil, de factos que, com toda a probabilidade, a revelem.
II - A vinculação da sociedade resulta de o acto ser praticado “em nome” da sociedade, não se exigindo palavras sacramentais ou, sequer, a assinatura com a própria firma da sociedade.
III – No domínio das relações imediatas, não obstante as assinaturas não se encontrarem acompanhadas da indicação da qualidade de gerente, essa qualidade não pode deixar de ser deduzida se, além do mais, a sua autoria não foi posta em causa e se as mesmas pessoas singulares assinaram as livranças como avalistas, pois que não tendo o aval prestado pelo subscritor qualquer valor, visto ser ele o principal obrigado na relação cambiária, lícito é concluir que quem produziu as duas assinaturas o fez em qualidades diferentes, ou seja, em nome próprio numa das situações (avalista) e, na outra, como representante da sociedade subscritora.
IV - Numa livrança subscrita e avalizada em branco a eficácia da excepção do preenchimento abusivo fica dependente da alegação e prova de factos que o demonstrem, prova que compete àquele a quem se exige o cumprimento da obrigação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1108/14.0T2OVR-A.P1-Apelação
Origem: Comarca de Aveiro-Águeda-Inst. Central-1ª Secção de Execução-J1
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
I - Atenta a posição firmada pelo Acórdão do STJ para uniformização de jurisprudência nº 1/2002, de 06/12/2001, a indicação de qualidade de gerente prescrita no nº 4 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais, para vincular a sociedade, não tem que ser feita de forma expressa, podendo ser deduzida, nos termos do artigo 217.º do Código Civil, de factos que, com toda a probabilidade, a revelem.
II - A vinculação da sociedade resulta de o acto ser praticado “em nome” da sociedade, não se exigindo palavras sacramentais ou, sequer, a assinatura com a própria firma da sociedade.
III – No domínio das relações imediatas, não obstante as assinaturas não se encontrarem acompanhadas da indicação da qualidade de gerente, essa qualidade não pode deixar de ser deduzida se, além do mais, a sua autoria não foi posta em causa e se as mesmas pessoas singulares assinaram as livranças como avalistas, pois que não tendo o aval prestado pelo subscritor qualquer valor, visto ser ele o principal obrigado na relação cambiária, lícito é concluir que quem produziu as duas assinaturas o fez em qualidades diferentes, ou seja, em nome próprio numa das situações (avalista) e, na outra, como representante da sociedade subscritora.
IV - Numa livrança subscrita e avalizada em branco a eficácia da excepção do preenchimento abusivo fica dependente da alegação e prova de factos que o demonstrem, prova que compete àquele a quem se exige o cumprimento da obrigação.
I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, Lda, com sede em …, Sever do Vouga, C…, D…, E…, F… todos residentes em …, Sever do Vouga, G… e H… residentes na Rua …, nº .., Aveiro deduziram os presentes embargos de executado contra Banco I…, SA alegando, para tanto e em síntese, que:
- as livranças dadas à execução não são títulos executivos válidos e eficazes, porquanto no local destinado à subscritora da livrança consta o nome da sociedade executada, o carimbo da mesma e a assinatura de C… e de E… sem a menção de que actuam na qualidade de gerentes da sociedade, em desconformidade com o disposto no artigo 260.º, nº 4 do Código das Sociedades Comerciais;
- entre a sociedade subscritora da livrança e o exequente não foi celebrada qualquer convenção posterior ao vencimento do débito no sentido de procederem à capitalização de juros, nem foi a sociedade B… notificada pelo exequente de que iria proceder à capitalização dos juros vencidos, pelo que não o poderia fazer. Tal actuação conduz à aplicação, por parte do exequente de juros usurários, o que é vedado pelo disposto no artigo 559.º do Código Civil;
- os juros de mora devem ser contados à taxa legal de 4% e não de 6%;
- as livranças exequendas foram abusivamente preenchidas, porquanto do requerimento executivo e das mesmas não resulta como o exequente chegou aos valores nelas apostas, não sendo esclarecido qual o capital em dívida referente a cada um dos contratos, quando a sociedade executada entrou em mora, desde quando foi feita a contagem dos juros e a taxa aplicada, não tendo sido os executados notificados previamente à execução dos valores que se encontravam em débito, nem por que valores iriam ser preenchidas as livranças exequendas.
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Admitidos os embargos de executado, foi notificado o exequente para os contestar, o que fez.
Alegou que as livranças exequendas são títulos executivos válidos e eficazes, não existindo dúvidas de que a assinatura de C… e E… por cima do nome e carimbo da sociedade B… foi aposta na qualidade de gerentes da sociedade, sendo certo que desde que foi proferido o AUJ ./…. que não se exige a concreta indicação da qualidade de gerente em todos e quaisquer documentos que obriguem uma sociedade comercial.
Quanto ao anatocismo, alega o exequente que estamos perante uma excepção ao seu regime, prevista no artigo 560.º, nº 3 do Código Civil, em conformidade com o disposto no DL 344/78.
No que toca ao preenchimento abusivo das livranças exequendas, alega que as mesmas foram preenchidas de acordo com o acordado no pacto de preenchimento celebrado entre as partes, tendo havido contactos presenciais, telefónicos e escritos entre o exequente e a sociedade executada, no sentido de ser alcançada uma solução que permitisse a regularização dos pagamentos, pelo que foram enviadas e recepcionadas pela sociedade executada, duas cartas registadas com AR, a fixar prazo para pagamento das rendas em dívida, sob pena de serem considerados resolvidos os respectivos contratos, dando conhecimento das mesmas a todos os avalistas.
A dívida exequenda é, pois, certa, líquida e exigível.
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Uma vez que as questões a decidir nos autos eram meramente de direito, foram as partes notificadas para se pronunciarem pela dispensa da realização da audiência prévia e pela prolação de saneador sentença, tendo-se oposto a tal solução os embargantes.
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Realizada a audiência prévia e não sendo possível resolver o litígio por transacção, foi proferida decisão que julgou parcialmente procedentes os embargos de executado deduzidos por B…, Ld, C…, D…, E…, F…, G… e H… contra Banco I…, SA, determinando-se que da livrança referida em D) seja expurgado o valor respeitante a juros de mora vencidos, mais se determinando o prosseguimento da execução com contagem dos juros de mora à taxa legal de 4%.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os embargantes interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
1ª – Da análise das livranças dadas à execução resulta que no local destinado à identificação da subscritora ou sacadora (Sociedade B…, Lda) apenas constam das mesmas o nome e morada da referida sociedade, tais elementos resultam do carimbo aposto que refere a mencionada identificação e morada, sem que seja possível aferir a partir dos mesmos a qualidade em que os subscritores actuaram, designadamente na qualidade de gerentes, sendo essa uma condição de que depende a própria existência das livranças.
2ª – Na falta da indicação da qualidade de gerente não podem os subscritores obrigar a Sociedade e, consequentemente, as livranças supra mencionadas consideram-se inexistentes e ineficazes relativamente à Sociedade Recorrente, não tendo força executiva contra esta–cf. artº 260º, nº 4 do Código das Sociedades Comerciais
3ª – A obrigação cambiária que padeça de uma invalidade formal comporta necessariamente a inoponibilidade do título de crédito ao subscritor–artº 32º da LULL–; assim sendo, se os Recorrentes subscreveram os títulos de crédito aqui referenciados, sem que constasse das livranças a qualidade em que actuavam, isto é, se actuavam como gerentes da Sociedade e por essa razão obrigavam a Sociedade, a livrança é formalmente NULA.
4ª – No âmbito das obrigações cambiárias vigora o princípio da literalidade, o que significa que o conteúdo, extensão e modalidade do direito incorporado vale exclusivamente em conformidade com o teor do próprio título de crédito, da letra (ou livrança) nada mais pode resultar se não o que consta da mesma e nesse sentido, não se pode retirar das livranças dadas à execução que a Sociedade é obrigada cambiária, dado que os gerentes da mesma ao subscreverem as livranças não indicaram a qualidade em que o faziam.
5ª – O prescrito no artigo 32.º da LULL seja um requisito meramente formal com aplicação facultativa dos subscritores; caso assim fosse o legislador não teria o cuidado de o tornar Lei. Esta exigência é condição de validade da obrigação;
6ª – A causa de pedir na execução não é o título executivo, mas antes os factos constitutivos da obrigação exequenda, revelando-se os mesmos imprescindíveis para a fundamentação do pedido e respectivo título. A Recorrida não invocou em sede de execução a causa de pedir, designadamente os valores em débito e respectivos juros de mora em que incorriam os Recorrentes, sendo que do título não é possível retirar qual o contrato subjacente, qual o valor contratado e quais os débitos dos Recorrentes.
7ª – Sufragar a posição do Tribunal equivale a considerar totalmente despropositada a enunciação em qualquer requerimento executivo da descrição dos factos, designadamente da causa de pedir, bastando-se a execução com um título executivo válido. Ora, diz-nos o artigo 703.º, n.º 1, alínea c) do CPC que: “à execução apenas podem servir de base c) os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”. Daqui resulta, pois, que não emergindo do título os factos emergentes da relação fundamental, como é o caso em apreço, sempre teriam os mesmos que constar do requerimento executivo, o que não acontece.
8ª – Dos títulos dados à execução apenas emerge que estes se destinariam alegadamente à “garantia de contrato de empréstimo”, sem que se refira qual o contrato específico subjacente às livranças dadas a pagamento, assim como não se demonstra de forma clara e objectiva como é que o Exequente chegou aos valores inseridos dos referidos títulos, designadamente quando é que os Executados incorreram em mora, desde quando foi feita a contagem dos juros inseridos nos títulos e a taxa praticada respectivamente para esse cálculo. Logo, não pode ser outra a conclusão senão a de que a obrigação exequenda se revela manifestamente incerta, inexigível e ilíquida.
9ª – A sentença ora recorrida violou o disposto nos artºs 260º, nº 4 do Código das Sociedades Comerciais, 32º da LULL, 219º do Código Civil, 576º, nº 3, 579º e 703º nº 1 al. c) do Código de Processo Civil, dos quais fez uma incorrecta aplicação e/ou interpretação.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. cfr. arts. 635.º, nº 3, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir:
a)- saber se as livranças dadas à execução são nulas por delas não constar a qualidade em que foi subscrita pelos embargantes;
b)- saber se as livranças foram, ou não, preenchidas abusivamente.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pela tribunal recorrido:
1º)- Foram dadas à execução as duas livranças, cujos originais se encontram juntos a fls. 47 PP dos autos principais.
2º)- A livrança com o nº ……………. tem como data de emissão 21.03.2012, data de vencimento 03.03.2014, o valor de 257.974,05€ e no campo referente à assinatura do subscritor encontra-se o carimbo da sociedade B… Lda e a assinatura de C… e E….
3º)- No verso da livrança, em seguida a cada uma das expressões “Dou o meu aval à firma subscritora” encontram-se as assinaturas C…, D…, E…, F…, G… e H….
4º)- A livrança com o nº …………….. tem como data de emissão 14.11.2013, data de vencimento 03.03.2014, o valor de 20.161,45€ e no campo referente à assinatura do subscritor encontra-se o carimbo da sociedade B… Lda e a assinatura de C… e E….
5º)- No verso da livrança, em seguida a cada uma das expressões “Dou o meu aval à firma subscritora” encontram-se as assinaturas C…, D…, E…, F…, G… e H….
6º)- A gerência da sociedade B…, Lda cabia a C… e a E….
7º)- Subjacente à livrança referida em B) está o contrato de mútuo celebrado entre o exequente e a sociedade B…, Lda, em Março de 2012, pelo valor de 279.000,00€, nos termos e nas condições constantes de fls. 67 a 71 PP dos presentes autos, cujo teor damos aqui por reproduzido para os devidos efeitos legais.
8º)- Subjacente à livrança referida em 3º) está o contrato de mútuo celebrado entre o exequente e a sociedade B…, Lda, em Outubro de 2013, pelo valor de 19.624,00€, nos termos e nas condições constantes de fls. 59 a 64 dos presentes autos, cujo teor damos aqui por reproduzido para os devidos efeitos legais.
9º)- Em garantia das responsabilidades que o não cumprimento destes contratos pudessem originar, a B…, Lda, simultaneamente, com a outorga de cada um deles constitui a favor do Banco I…, SA:
- 1 hipoteca sobre o seguinte imóvel-prédio urbano, composto por lote de terreno para construção, sito na Estrada de …, lote nº.., freguesia de …, concelho de Aveiro, descrito na C.R.P. de Aveiro sob o n°2077, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo nº2579 (empréstimo de Março de 2012, no valor de €279.000.00);
- 2 hipotecas sobre o seguinte imóvel–prédio urbano, composto por lote de terreno para construção, sito na Estrada de …, lote n°.., freguesia de …, concelho de Aveiro, descrito na C.R.P. de Aveiro sob o n” 2078, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo n° 2580 (empréstimo de Outubro de 2013, no valor de €19.624.14);
- 3 entregou a I…, SA, com cada um dos contractos, uma livrança, de caução, devidamente subscrita e avalizada, com o montante e a data de vencimento em branco, autorizando-o a completar o seu preenchimento, nomeadamente no que diz respeito à data de vencimento, valor (englobando capital, juros, encargos, despesas e encargos inerentes à emissão da própria livrança) e local de pagamento .
10º)- Em 17.01.2014, o Banco exequente enviou à executada B… Lda duas cartas registas com aviso de recepção, recebidas por esta, em que comunicava que se as rendas em dívida não fossem liquidadas até ao dia 27.01.2014, consideraria os respectivos contratos resolvidos, dando-lhe nota de todas as consequências daí resultantes.
11º)- Destas duas cartas enviadas à B…, Lda, o Banco I…, SA, na mesma data e por cartas registadas com aviso de recepção (recebidas), deu nota a todos os avalistas.
12º)- Dado que os apontados montantes não foram pagos naquele prazo, nem posteriormente, o Banco I…, SA considerou os contratos resolvidos.
13º)- O que motivou o Banco I…, SA, com vista à cobrança de todos os valores pecuniários que lhe são devidos, a acabar de preencher as duas livranças dadas de caução, do que, em 19.02.2014, deu nota a todos os obrigados cambiários, a quem solicitou, ainda, o respectivo pagamento, tudo por cartas registadas com aviso de recepção e por todos recebidas.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão colocada no recurso prende-se com:
a)- saber se as livranças dadas à execução são nulas por delas não constar a qualidade em que foi subscrita pelos embargantes.
Referem sob este conspecto os recorrentes que da análise das livranças dadas à execução resulta que no local destinado à identificação da subscritora ou sacadora (Sociedade B…, Lda) apenas constam um carimbo com o nome e morada da referida sociedade mas sem que seja possível aferir, a partir dos mesmos, a qualidade em que os subscritores actuaram, designadamente na qualidade de gerentes, sendo essa uma condição de que depende a própria existência das livranças.
Como se evidencia da decisão recorrida o tribunal a quo não seguiu tal entendimento, considerando que as referidas assinaturas foram apostas nas livranças na qualidade de gerentes da sociedade subscritora.
Que dizer?
Como emerge da factualidade dada como assente verifica-se que foram dadas à execução duas livranças:
- A livrança com o nº ……………. tem como data de emissão 21.03.2012, data de vencimento 03.03.2014, o valor de 257.974,05€ e no campo referente à assinatura do subscritor encontra-se o carimbo da sociedade B… Lda e a assinatura de C… e E….
- A livrança com o nº ………………. tem como data de emissão 14.11.2013, data de vencimento 03.03.2014, o valor de 20.161,45€ e no campo referente à assinatura do subscritor encontra-se o carimbo da sociedade B… Lda e a assinatura de C… e E….
Não há dúvida de que a subscritora da livrança é de facto a sociedade comercial indicada no lugar destinado a esse efeito.
Contudo, como é óbvio, não basta estar-se indicado numa livrança como seu subscritor para surgir sem mais a obrigação cambiária correspondente. Pelo contrário, tal como o aceitante da letra, o subscritor assume a posição de devedor através da aposição da sua assinatura do lugar destinado a esse fim-cfr. artigos 78.º e 25.º da Lei Uniforme.
Ora, perscrutando os título de crédito, temos que a assinatura que surge no lugar destinado à assinatura do subscritor não menciona a que título é que é feita, não indica a qualidade de quem a fez, não indica se é feita em representação de outrem, nomeadamente da sociedade “B… Lda”.
Portanto, a questão a resolver consiste em saber se a sociedade executada se encontra ou não obrigada como subscritora da livrança.
A tese dos recorrentes é a de que aparecendo como subscritora uma sociedade por quotas, para que o gerente vincule essa mesma sociedade, torna-se necessário que ele faça acompanhar a aposição da respectiva assinatura com a indicação da sua qualidade. Não constando do título a indicação expressa de que se vinculou como gerente, a livrança não vale como título executivo.
Dúvidas não existem de que tratando-se de uma sociedade comercial por quotas esta sociedade é representada pelos seus gerentes.
Ora, nos termos do nº 4 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais, “Os gerentes vinculam a sociedade, em actos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade”.
A problemática tem tido tratamento diversificado na doutrina e na jurisprudência.
Relativamente a ela o Acórdão Uniformador de Jurisprudência 1/2002, publicado no Diário da Republica, Série I nº 20 de 20/01/2002, relativamente a esta norma legal, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido: “A indicação de qualidade de gerente prescrita no nº 4 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais pode ser deduzida, nos termos do artigo 217 do Código Civil, de factos que, com toda a probabilidade, a revelem.”
O referido Acórdão entendeu que “A interpretação que circunscreve a indicação da qualidade de gerente às manifestações expressas no acto escrito desprotege a confiança no tráfico jurídico, não tutela a boa-fé dos que negoceiam com a sociedade e permite a esta o subterfúgio de, quando lhe convier, se desvincular das obrigações que assumiu.”
Dentro da uniformização da jurisprudência supra referida será que no caso em apreço estamos perante um deles casos em que, de forma tácita, se retira que a assinatura aposta nas livranças o foi na qualidade de gerentes da sociedade subscritora?
Cremos, salvo o devido respeito por entendimento contrário, que a resposta à referida questão terá de ser em sentido afirmativo.
Analisando.
Antes de mais, saliente-se que os embargantes, na sua petição de embargos, não põem em causa a qualidade de gerentes da sociedade B… Lda [resulta, aliás, do ponto 6º) da fundamentação que assim é] nem que as assinaturas por cima do carimbo da referida sociedade, não sejam da sua autoria.
Questionam tão somente o facto de nas livranças, junto às assinaturas, não constar a qualidade em que assinaram, neste caso “gerentes”.
Resulta do artigo 260.º, nº 4 do CSC atrás citado, como salienta Raul Ventura[1], a indispensabilidade da reunião de dois elementos: assinatura pessoal dos gerentes e menção da qualidade do gerente.
É, antes de mais, evidente que para existir responsabilidade obrigacional das sociedades, como pessoas colectivas que são, é necessário que o contrato de onde emerge a obrigação tenha sido celebrado por quem tinha poderes para vincular a sociedade.
E para que resulte para a sociedade responsabilidade por não cumprimento da obrigação assumida é forçoso que a obrigação tenha por si sido assumida.
As pessoas colectivas são centros de uma esfera jurídica, autónoma em relação ao conjunto de direitos e deveres dos seus órgãos, membros ou serventuários. São titulares de direitos e destinatários de deveres jurídicos, “adquirem direitos e cumprem obrigações através da prática de actos jurídicos realizados em seu nome pelos seus órgãos”.[2]
Não há, assim, dúvidas de que o acto tem que ser praticado em “nome” da sociedade.
A citada norma do artigo 260.º, nº 4 do CSC destina-se a proteger os interesses daqueles que contratam com a sociedade, no sentido de poderem estar seguros de que quem contratou foi a sociedade e que será na esfera jurídica dela-que não dos seus gerentes-que radicam os direitos e obrigações assumidos: é que, reunidos os dois elementos – assinatura e menção da qualidade de gerente-dificilmente se poderá questionar que o contrato não tenha sido firmado pela própria sociedade.
O que se questiona é saber se são ou não necessárias as palavras, neste caso sacramentais, de “gerente” ou “administrador”.
Acontece que sendo a realidade da vida tão rica em circunstâncias, e tantos os seus matizes, raramente se ficando nos claros pretos ou brancos, sim ou não, torna-se necessário apurar os termos exigidos para a referida vinculação.
E a este respeito há que indagar o aspecto essencial de saber se tal referência à qualidade de gerente sabendo-se que a letra (livrança) é um negócio formal tem de ser expressa ou pode ser tácita.
Não se pode ignorar que a declaração negocial pode ser expressa ou tácita, sendo aquela a que se traduz por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação e vontade, e a última (tácita) a que se deduz de factos que com toda a probabilidade a revelam (artigo 217.º CCivil).
Ora, não podemos esquecer os ensinamentos de Rui de Alarcão[3], Mota Pinto[4] e ainda J. P. Furtado[5] que o carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz.
Ora, pese embora, estarmos perante um título de crédito-no caso Livrança-se dos próprios termos da acto de vinculação resultar que a intervenção do assinante individual (gerente) com a aposição da sua assinatura só podia com toda a probabilidade ter sido feita em nome e representação da sociedade, torna-se inútil e desnecessário que a menção daquela qualidade de gerente tenha de ser feita de forma expressa através da forma habitual: “O Gerente”.
Esta indicação, nos termos do artigo 260.º, nº 4 CSC, pode, então, ser feira de forma tácita.
E será que no caso concreto não existem tais elementos?
Atentemos.
- Estamos perante duas livrança dadas à execução;
- No lugar destinado à assinatura do subscritor (pessoa que passa a livrança-artigo 75.° da LULL) temos os seguintes dizeres: “B… Lda, …, …, ….. - …, …”; precisamente aposta por cima das assinaturas de duas pessoas singulares, sem qualquer menção da qualidade em que intervem;
- No lugar destinado ao nome e morada do subscritor encontra-se a seguinte indicação: “B… Lda, …, ….., …. - …, …”.
Pela própria natureza das coisas (até porque a livrança é constituída por um impresso do próprio banco exequente) o título teve de ser remetido à 1ª executada, sendo depois devolvido ao banco exequente, pelo menos com a assinatura de subscrição (assinatura pessoal sobre o carimbo social) do que resulta claro que os assinantes só tiveram acesso ao título no âmbito das relações internas da sociedade, na qualidade de seu gerente.
Assim, parece-nos uma incidência que, perante as circunstâncias concretas do caso, qualquer declaratário normal colocado nas mesmas circunstâncias do exequente, entenderia que as assinaturas de subscrição foram apostas em nome da sociedade agindo os assinantes como seus gerentes, visto que a sociedade, como ente colectivo é por eles representada (trata-se de uma sociedade por quotas).
A tudo isto acresce que, as mesmas pessoas que assinaram sobre o carimbo social da primeira executada, assinaram as livranças como avalistas [cfr. pontos 3º) e 5º) da fundamentação factual], o que mais reforça a ideia que as assinaturas de subscrição não podiam deixar de ser apostas na qualidade de gerentes da primeira executada.
A não ser assim, não se entenderia a que título as livranças foram subscritas por aquelas pessoas concretas.
É preciso não esquecer que o aval prestado pelo subscritor não tem qualquer valor, visto ser ele o principal obrigado na relação cambiária[6], razão pela qual seria lícito concluir que quem produziu as duas assinaturas o fez em qualidades diferentes, ou seja, em nome próprio numa das situações (avalista) e, na outra, como representante da sociedade subscritora.
De outra forma, aliás, estaria posta em crise a tutela da confiança e abrir-se-ia a porta a actuações de má-fé, premiando-se estas ou simples esperteza oportunística em prejuízo dos terceiros contratantes que o artigo 260.º do CSC visa tutelar.
Perante estes elementos, devidamente conjugados, pensamos ser de deduzir, com toda a probabilidade, que eles revelam que as pessoas que assinaram as livrança na qualidade de gerentes (como atrás se referiu os embargantes não põem em causa a qualidade de gerentes das pessoas que assinaram as livranças) em representação da mencionada sociedade “B… Lda”.
E, uma vez que todos estes factos concludentes estão revestidos de forma escrita, a declaração da qualidade de gerentes surge validamente formulada de forma tácita, de modo formal, estando inteiramente observado o preceituado no artigo 217.º do C.Civil.
Por outro lado, os embargantes, podendo questionar a relação fundamental subjacente, os factos que integram a causa de pedir, não o fazem, pois que a impugnação se limita à questão do anatocismo, ao cálculo da taxa de juros e ao preenchimento abusivo dos títulos cambiários.
Aceitam a existência da dívida, embora não saibam como a exequente chegou aos montantes inscritos nas livranças, não colocam em causa as assinaturas apostas nas livranças ou a sua posição de avalistas e a qualidade de gerentes (aliás, suas qualidades) de pessoas singulares que assinaram os títulos.
Nestas condições torna-se evidente que as assinaturas singulares são dos gerentes, que subscreveram os títulos nessa qualidade e que, como tal, vinculam a sociedade.
Nestas condições exigir a existência formal da palavra “gerentes” seria atentatória do princípio de boa fé e configuraria uma clamorosa situação de abuso de direito (artigo 334° do CC).
A exigência da menção de “gerentes” destina-se a provar que é a pessoa colectiva que se obriga, pelas razões já expostas.
Constando o carimbo da sociedade e não se pondo em causa que foram os gerentes que assinaram por cima dos carimbos, não se questionando igualmente a relação subjacente, é óbvio que está cumprida a formalidade legal.
Tendo-se a sociedade obrigado, resulta daí a validade dos títulos executivos.
E, contra isto não se esgrima com o argumento de literalidade e abstracção, características de que comungam os títulos cambiários.
Com efeito, a literalidade, a abstracção e a autonomia destes títulos executivos não têm a ver com as assinaturas nelas apostas, além de que, elas só produzem efeitos, quando os títulos entram em circulação e já se encontram em poder de terceiros de boa fé, não no caso das relações imediatas, que é o caso dos autos, em que os subscritores bem sabem a relação obrigacional que contraíram.
No fundo o que os embargantes, mais concretamente a sociedade subscritora, pretendem mais não é do que socorrer-se de uma mera irregularidade formal para se eximir ao pagamento.
E se o recurso a essa simples irregularidade já seria, por si só, de duvidosa aceitação, ela torna-se manifestamente inviável se atentarmos em que tal irregularidade é da exclusiva responsabilidade da embargante subscritora.
Com efeito, se a análise dos títulos permite deduzir que as assinaturas individuais apostas sob o carimbo da sociedade “B… Lda” pertencem aos seus gerentes, figurando aquela como subscritora e se a mesma não discutiu a natureza das referidas assinaturas podendo fazê-lo por estarmos no domínio das relações imediatas[7], temos de concluir que ela não ilidiu a presunção de que tais assinaturas pertencem aos seus gerentes.
E então, sendo-lhe imputável a irregularidade assinalada, bastaria que os assinantes tivessem aditado a menção “o gerente” às suas assinaturas para que a mesma de todo desaparecesse: ora, importa reconhecer que em sobreposição do princípio da forma, se perfila um outro, qual seja o de que ninguém deve poder tirar uma vantagem jurídica de uma sua conduta dolosa ou gravemente negligente.
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Improcedem, desta forma, as conclusões 1ª a 5ª formulada pelos recorrentes.
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A segunda questão posta no recurso consiste em:
b)- saber se as livranças foram, ou não, preenchidas abusivamente.
Referem a este propósito os recorrentes que dos títulos dados à execução apenas emerge que estes se destinariam alegadamente à “garantia de contrato de empréstimo”, sem que se refira qual o contrato específico subjacente às livranças dadas a pagamento, assim como não se demonstra de forma clara e objectiva como é que o exequente chegou aos valores inseridos dos referidos títulos, designadamente quando é que os executados incorreram em mora, desde quando foi feita a contagem dos juros inseridos nos títulos e a taxa praticada respectivamente para esse cálculo, razão pela qual, não pode ser outra a conclusão senão a de que a obrigação exequenda se revela manifestamente incerta, inexigível e ilíquida.
Como bem se refere na decisão recorrida sendo os títulos executivos duas livranças, não tem o exequente que verter, em sede de requerimento executivo, os elementos a que se referem os recorrentes.
Efectivamente, preceitua o artigo 724.º, nº 1 do CPCivil que “no requerimento executivo, dirigido ao tribunal de execução, o exequente expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo, podendo ainda alegar os factos que fundamentam a comunicabilidade da dívida constante de título assinado apenas por um dos cônjuges”.
Sob este conspecto referem Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes[8] que: “Uma vez que a execução tem sempre por base um título executivo e este deve acompanhar a petição inicial, o exequente só nela tem que indicar factos quando:
a-) o título careça de prova complementar, por a certeza ou a exigibilidade dele não resultar (...), por ter ocorrido sucessão no crédito ou no débito (...) ou no caso de escritura pública contendo a promessa de contrato real ou a previsão de obrigação futura (...);
b-) a obrigação precise de ser liquidada (...);
c-) tratando-se de obrigação causal, o título não lhe faça referência concreta.
Esta falta de referência ocorre quando o título executivo contenha uma promessa de cumprimento ou o reconhecimento duma dívida sem indicação da respectiva causa (artigo 458.º CCivil), máxime se se tratar de letra, livrança ou cheque relativamente ao qual tenham decorrido já os prazos de prescrição da obrigação cartular (...)”.
No caso dos autos, os títulos executivos são, como temos vindo a referir livranças, títulos cambiários estes que estão sujeitos a uma disciplina jurídica especial, a qual reflecte a preocupação de defender os interesses de terceiros de boa-fé, imposta pela necessidade de facilitar a circulação dos títulos de crédito.
Tal especialidade sintetiza-se nos seguintes princípios:
- Incorporação da obrigação no título (a obrigação e o título constituem uma unidade);
- Literalidade da obrigação (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspecção do título);
- Abstracção da obrigação (a livrança é independente da “causa debendi”);
- Independência recíproca das obrigações incorporadas no título (a nulidade de uma das obrigações que a lei incorpora não se comunica às demais.);
- Autonomia do direito ao portador (o portador é considerado credor originário).
Ora, atendendo às características destes títulos de crédito, está o exequente dispensado de alegar a relação jurídica que lhes é subjacente, a não ser nos casos em que se encontrem prescritos, conforme decorre do artigo 703.º, nº 1 alínea c) do CPCivil.
Por outro lado, está fora de dúvida que os títulos dados à execução foram emitidos e avalizados em branco [facto descrito em 9º)].
Ora, estamos perante uma livrança em branco quando falte um ou até todos os requisitos do artigo 75.º da LULL, mas onde existe a assinatura de uma pessoa que exprime a intenção de se obrigar cambiariamente ao subscrever um título com a designação explícita ou implícita de letra.
Embora o artigo 76.º da mesma lei afirme que o escrito a que faltam alguns dos requisitos indicados no artigo 75.º não produzirá o seu efeito como livrança, tal significa que os referidos requisitos são elementos, não de existência mas sim de eficácia da livrança, pois preenchido o escrito com todos os requisitos do referido normativo o que é permitido pelo artigo 10.º (ex vi artigo 77.º) da mesma lei, ele transforma-se em livrança e, portanto, apta a produzir os seus efeitos inerentes a esta, ou seja, o portador de uma livrança em branco pode preenchê-la com todos os requisitos do artigo 75.º, para, assim lhe dar força executiva.
Acontece que, quem emite uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em certos e determinados termos, isto é, o subscritor, ao emiti-la atribui àquele o direito de a preencher em conformidade com o pacto ou contrato de preenchimento entre eles convencionado.[9]
Para o Prof. Pinto Coelho, o subscritor do título fica vinculado a partir do momento em que o entrega assinado. Quanto propriamente à obrigação cambiária, isto é, a obrigação de pagar a soma constante do título, ela só se constitui através do preenchimento. O que existe antes do preenchimento para o emitente do título, não é uma obrigação cambiária, mas apenas o estar sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título, sendo o preenchimento que marca o nascimento da obrigação cambiária.
Não falta, porém, quem considere a obrigação cambiária como existente só pelo facto de o título (em branco) ser emitido. Desde que contenha o nome do tomador, o título se bem que ainda incompleto, pode já circular por meio de endosso.[10]
Ora, para a defesa dos embargantes ser eficaz deveriam ter alegado que a convenção de preenchimento acordada foi violada mas, para além disso, era necessário que tivessem concretizado, factualmente, onde a exequente desrespeitou as condições de preenchimento ali ajustadas.
Segundo o artigo 378.º do C.Civil se o documento tiver sido assinado em branco, total ou parcialmente, o seu valor probatório pode ser ilidido, mostrando-se que nele se inseriram declarações divergentes do ajustado com o signatário ou que o documento lhe foi subtraído.
Conforme se escreveu no Ac. do S.T.J. de 16/07/75[11] “a assinatura em branco faz presumir no signatário a vontade da fazer seu o texto que no documento vier a ser escrito, e daí presumir-se que o texto representa a sua vontade confessória; tal presunção beneficia o apresentante do documento ou aquele a quem a confissão ou escrito aproveita, cabendo à parte contrária, ou contra quem o documento é oferecido, provar que nele se inseriram declarações divergentes do ajustado com o signatário”.
De igual modo se entendera no Ac. da Relação do Porto de 03/10/74[12], onde se sublinhou que o valor probatório da letra terá de ser ilidido por aquele a quem se exige o cumprimento da obrigação, mostrando este que essa letra não se acha preenchida em conformidade com o ajustado entre o sacador e aceitante.
E a mesma doutrina, fazendo recair sobre o devedor o ónus de alegação e da prova relativamente ao abuso de preenchimento, fora já sustentada por Alberto dos Reis.[13]
Ou seja, a eficácia daquela excepção depende, como se diz no acórdão do STJ de 23/04/2009[14] de se trazerem ao processo factos que, provados, demonstram o abuso do preenchimento.
É que, aí também se refere, “ao celebrar o negócio subjacente à emissão do título e ao subscrever uma livrança em branco, sem estabelecer expressamente os termos em que será preenchida, o subscritor está tacitamente a autorizar o beneficiário a acrescentar os elementos em falta, em termos concordantes com aquele negócio
Invocar e provar o preenchimento abusivo significa alegar e provar que o beneficiário se afastou de tal autorização – por exemplo, quanto à data do vencimento, ou ao montante em dívida nessa altura ou qualquer outra desconformidade.
Destarte, os argumentos invocados nas alegações recursivas pelos embargantes são perfeitamente inócuos.
Portanto, era aos recorrentes que competia a alegação e posterior prova da inobservância, pela exequente da convenção de preenchimento, o que, aliás, se harmoniza com as regras contidas no artigo 342.º do C.Civil e com o critério de normalidade que preside à repartição legal do ónus da prova, visto que se impõe àquele contra quem o direito cambiário foi exercido o ónus de alegar e provar os factos impeditivos do direito invocado, o que, manifestamente, não fizeram como, resulta do articulado da oposição.
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Improcedem, desta forma, as conclusões 6ª a 9ª formuladas pelos embargantes e, com elas, o respectivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente por não provada e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelos apelantes (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 5 de Junho de 2017.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] In Sociedade por Quotas, Vol. II, pág. 171.
[2] Cfr. Prof. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 319 e segs.
[3] In BMJ 86/233.
[4] Obra citada pag. 337.
[5] In Código das Sociedades Comerciais, 4ª Ed. em anotação ao artigo 260.°.
[6] Cfr. neste sentido Ferrer Correia in Lições de Direito Comercial, pág. 202 quanto ao caso do aceitante das letras, mas cujas considerações valem também para as livranças por força do disposto nos artigo 77.º e 78.º da LULL.
[7] Segundo o entendimento corrente na doutrina e jurisprudência, no âmbito das relações imediatas é sempre possível invocar a verdadeira situação e fazê-la prevalecer sobre o que consta do título (cfr. acórdãos do STJ de 14.10.97, proc. n.º 224/97, de 12.5.98, Proc. n.º 262/98 in www.dgsi.pt). Nas relações imediatas, tudo se passa como se uma obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, uma vez que os respectivos sujeitos cambiários são também os sujeitos da relação determinante do negócio cambiários, podendo por isso, invocar entre eles quaisquer relações de ordem pessoal (art. 17º da LULL) (cfr. Ac. STJ, de 22-6-99, in CJ, Tomo II, pág. 162).
[8] In Código de Processo Civil Anotado Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 280 e 281.
[9] Cfr. neste sentido Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, III, 1966, págs. 123 e seguintes; Pinto Coelho, As letras, Fasc. II, 2ª ed. págs. 31 e seguintes e Marnoco e Sousa, Letras, Livranças e Cheques, I, 2ª ed. pág. 134.
[10] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 128 e, entre outros, o Ac. da Rel. de Lisboa de 27-01-98, CJ, 1998, tomo I, pág. 95.
[11] In B.M.J. nº 247, pág. 107 e seguintes.
[12] In B.M.J. 240. pág. 273.
[13] In Cod. Proc. Civil Anot. Volume III, 4 Ed. pág. 421.
[14] In www.dgsi.pt