Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18080/15.2T8PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: CONFISSÃO DA DÍVIDA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO
Nº do Documento: RP2020012718080/15.2T8PRT-B.P1
Data do Acordão: 01/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A confissão de dívida constante de escritura pública só tem força probatória plena, como previsto no art. 358º nº2 do C.Civil, no confronto entre o mutuante dos empréstimos que originam tal dívida e o confitente (mutuário) e quando tal confissão foi feita em relação àquele;
II – Sendo tal confissão de dívida apresentada e invocada, por via da reclamação de créditos, perante um terceiro, a mesma, face ao disposto no nº4 daquele mesmo art. 358º, é apreciada livremente pelo tribunal.
III – Tendo, na sequência dessa livre apreciação, o tribunal dado como não provados os empréstimos que alegadamente estavam na sua base, é de concluir pela não verificação do crédito confessado para efeitos da sua graduação naquela reclamação de créditos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº18080/15.2T8PRT-B.P1
(Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 5)

Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Joaquim Moura
2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

Por apenso à execução ordinária que a B…, S.A. instaurou contra C… e D…, veio E… reclamar um crédito do qual alega ser titular no valor de 101.435,90, titulado por escritura pública de confissão de dívida e garantido por hipoteca constituída a seu favor, crédito esse que resulta de empréstimos que fez aos executados e que estes não pagaram.
A Exequente impugnou tal crédito alegando que a reclamante não faz prova de que efectivamente as quantias reclamadas tenham sido entregues aos executados, não tendo a escritura pública de confissão de dívida e constituição de hipoteca sido querida pelas partes, antes tendo sido celebrada com o intuito de impedir que o produto da venda do imóvel hipotecado fosse entregue à exequente.
A reclamante E… respondeu à impugnação e, por apelo aos termos da escritura de reconhecimento de dívida e constituição da hipoteca, e de outros factos que alega para circunstanciar os alegados empréstimos efectuados aos executados e que a hipoteca dos autos visaria garantir, conclui como na reclamação apresentada.
Foi proferido despacho saneador no qual se julgou verificados outros créditos reclamados (pelo MP em representação da Autoridade Tributária e pelo Banco F…, S.A.) e se determinou o prosseguimento dos autos para julgamento quanto à reclamação apresentada pela referida E….
Procedeu-se depois a julgamento, tendo nessa sequência sido proferida sentença que julgou improcedente a reclamação em referência, tendo-se aí considerado para tal que a Reclamante não logrou efectuar a demonstração da existência do crédito confessado.
De tal sentença veio a Reclamante interpor recurso, tendo na sequência da sua motivação apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:

“1ª -A ora Apelante deduziu contra os executados, C… e D…, Reclamação de Créditos, por ser titular de um crédito no montante global, á data, de 101.435,90 €, titulado por escritura pública de confissão de dívida e constituição de hipoteca, outorgada em 26.11.2015, no Cartório Notarial da Dra. G….

2ª-Na referida escritura pública, os referidos executados confessam e reconhecem ser solidariamente devedores à ora Apelante, E…, da quantia de cem mil euros, declarando que em garantia do referido montante que dela receberam por vários empréstimos em dinheiro, constituem a seu favor hipoteca sobre o seguinte imóvel: fracção autónoma designada pela letra K, correspondente ao rés-do-chão direito, com entrada pelo número …. da Rua … e número ... da Rua sem denominação oficial, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o número mil duzentos e oito barra mil novecentos e noventa e cinco zero quatro zero seis da freguesia ….

3ª- O documento autêntico que titula o crédito reclamado pela ora Apelante goza da presunção resultante do carácter probatório pleno do documento.

4ª-Pelo que, até prova em contrário, considera-se provado nos exactos termos constantes do documento, uma vez que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos neles atestados – art. 371º C. Civil.

5ª- A confissão de dívida e constituição de hipoteca foi feita através de documento idóneo – escritura pública – fazendo prova plena do respectivo conteúdo.

6ª- Pelo que, o exequente, ora recorrido, ao invocar a invalidade do negócio, nomeadamente por vício de vontade ou divergência entre a vontade e a declaração, tinha de alegar e provar – e NÃO provou -, os factos consubstanciadores do vício ou divergência.

7ª- Devido à força probatória plena do documento, o reclamante goza da presunção legal do seu direito (art. 350º, nº 1 C. Civil), podendo ser ilididas mediante prova em contrário (nº 2).

8ª- Prova em contrário que a impugnante não fez, nem podia fazer, pois nenhum facto alegou nesse sentido, sendo que a prova dos factos impeditivos do direito compete àquele contra quem a invocação é feita (artº 342º, nº 2 C. Civil).

9ª- Não tendo a impugnante posto em crise a validade do mútuo formalizado pelo documento autêntico consubstanciador do mesmo, tem-se o mesmo como provado, e igualmente por provada a entrega pela mutuante aos mutuários do valor global em causa (100.000,00 €).

10ª- Resultou tal crédito de diversos empréstimos feitos aos executados pela reclamante, ora Apelante, reconhecido e confessado por aqueles, através confissão de dívida, e garantindo o bom pagamento dessa dívida através da constituição de hipoteca, formalizado por documento autêntico (escritura pública), este faz prova plena das declarações emitidas pelas partes e nele atestadas, bem como dos factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses dos declarantes, prova esta que se impõe quer a estes, quer a terceiros.

11ª- O terceiro que pretenda ver destruídos os efeitos do negócio e da declaração confessória nele exarado terá, pelo menos, de alegar e provar que os factos por si impugnados, e que se mostram plenamente provados pelo documento autêntico ou pela confissão nele exarada, não são verdadeiros.

12ª- A declaração confessória proferida pelos reclamados, constante de tal documento, de que, na sequência dos diversos empréstimos, se reconhecem devedores da quantia de cem mil euros, é oponível aos demais credores dos executados, dispensando a credora reclamante de apresentar qualquer prova complementar da entrega das quantias mutuadas.

13ª - Encontrando-se a credora reclamante munida de documento autêntico a formalizar a confissão de dívida com hipoteca, o ónus da prova dos elementos constitutivos do seu crédito fica satisfeito com a simples apresentação de tal documento, sendo ao credor impugnante que incumbe a alegação e prova de que não houve entrega(s) efectiva da quantia mutuada.

14ª - Ao decidir como decidiu o Tribunal “a quo” errou na determinação as normas aplicáveis e na qualificação jurídica dos factos.

15ª - Pois só poderia concluir pela procedência da reclamação de créditos atenta a matéria de facto dada como provada e a dada como não provada, e as normas jurídicas aplicáveis.

16ª- A douta sentença ora recorrida, violou, entre outras, as disposições contidas no artº 342º, nº 2 , 371º nº 1, e 350º, nº 1, todos do C. Civil.

17ª- Deve assim ser a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” substituída por outra que reconheça o crédito reclamado pela recorrente, nos exactos termos inicialmente peticionados na sua Reclamação de Créditos.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados os vistos nos termos previstos no art. 657º nº4 do CPC e considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há uma única questão a tratar: a de saber se há que dar como verificado o crédito invocado pela Reclamante/Recorrente estritamente com base na força probatória da escritura pública de confissão de dívida.
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II – Fundamentação

Vamos então ao tratamento da questão enunciada.
É a seguinte a matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida (que se transcreve):

Dos factos
1 – Em 26 de Novembro de 2016 os executados C… e D… declararam perante a Notária G… que “confessam-se e reconhecem-se solidariamente devedores à Segunda Outorgante (E…), da quantia de CEM MIL EUROS, que dela receberam por vários empréstimos em dinheiro, ” mais declarando que “em garantia do referido capital emprestado, constituem a favor da Segunda Outorgante, hipoteca sobre o seguinte imóvel: Fracção autónoma designada pela letra K, correspondente ao rés-do-chão direito, com entrada pelo número …. da Rua … e número .. da Rua sem denominação oficial descrita na Primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o número mil duzentos e oito barra mil novecentos e noventa e cinco zero quatro zero seis” da Freguesia ….
2 – Por sua vez a reclamante declarou “Que aceita esta confissão de dívida e a hipoteca constituída, nos termos e condições que ficam exarados”
3 – A referida hipoteca foi inscrita na Conservatória do Registo Predial a favor da reclamante pela Ap 3191 de 2015/11/26.
4 – A reclamante é irmã da executada D….
5 – A execução de que estes autos são apenso foi interposta em 17 de Julho de 2015 tendo o executado marido sido citado para os termos da execução em 29 de Outubro de 2015 e a executada mulher em 25 de Novembro de 2015.
6 – Em 8 de Julho de 2017 foi a fracção referida em 1 penhorada à ordem dos autos de execução de que estes são apenso (Ap 3235 de 2017/07/8).

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, nomeadamente
- que a reclamante emprestou aos reclamados os valores referidos no documento denominado “Confissão de Dívida e Hipoteca” junto à petição inicial;
- que a reclamante e os reclamados não quiseram celebrar qualquer negócio tendo o documento atrás referido sido lavrado para impedir que o produto da venda do imóvel penhorado nos autos fosse entregue ao exequente.

Como se vê das conclusões do recurso, o que há que apurar é se, face ao teor da confissão de dívida constante de escritura pública referida sob o nº1 (constante de fls. 13 a 15 dos autos), há que, por força de tal documento autêntico e da sua força probatória, dar como provado o crédito da Reclamante/Recorrente sobre os executados – do que decorreria a consequência de, ao contrário do decidido pelo tribunal recorrido, não se poder dar como não provado que a Reclamante emprestou aos reclamados os valores referidos na referida escritura.
Desde já se adianta que não pode ser reconhecida razão à Recorrente.
Em primeiro lugar, há desde logo que precisar que a Recorrente não impugna ou sequer esboça qualquer oposição à motivação apresentada pelo tribunal recorrido para dar como não provado o empréstimo dos valores referidos na escritura de confissão de dívida (motivação essa que se reconduziu a, em termos probatórios, ter-se considerado as próprias declarações de parte da Reclamante de valor diminuto “dado o natural interesse no desfecho dos autos” e precisado que as mesmas “foram pouco credíveis, em primeiro lugar porque a embargante, não tendo conseguido explicar como é que o dinheiro que vinha emprestando à irmã chegou aos valores referidos na escritura de constituição de dívida (para pagamento duma dívida desta às finanças e depois para a ajudar no pagamento da prestação da casa), confrontada com tal facto acrescentou o empréstimo de outros valores, sem explicar a finalidade dos mesmos, para depois não ser capaz de dizer, nem por aproximação, qual o valor do seu rendimento médio mensal, nem o valor da sua declaração de rendimentos. A acrescer, todos os alegados empréstimos foram efectuados mediante entregas em numerário e sem que fosse emitido qualquer documento comprovativo das entregas efectuadas, sendo que os documentos juntos aos autos para demonstrar os pagamentos efectuados às finanças estão em nome do executados e são de pouco mais de € 3.000,00”).
Do que decorre que a Recorrente, independentemente de, em termos de substância, não se ter efectivamente feito prova dos empréstimos que alegadamente baseiam o crédito por si invocado, ainda assim pretende que os mesmos sejam dados como provados só por efeito da força probatória plena que considera que escritura pública dá à confissão da dívida alegadamente deles proveniente.
É certo que a escritura pública é um documento autêntico e que, como tal, faz prova plena dos factos nele atestados com base nas percepções da entidade documentadora (art. 371º nº 1 do C.Civil).
Porém, como se refere no “Manual de Processo Civil” de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Coimbra Editora, 2ª edição, pag. 522, “o documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes” [no mesmo sentido, vide, todos disponíveis em www.dgsi.pt, os Acórdãos do STJ de 11/12/2018 (relator Pinto de Almeida) e de 15/4/2015 (relator Pires da Rosa) e ainda o Acórdão da Relação de Coimbra de 9/1/2018 (relator Falcão de Magalhães), onde bem se esclarece (pontos IV e V do respectivo sumário) que “o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Dito doutro modo: o documento autêntico não fia, por exemplo, a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram. Pode, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele”].
Tendo presente este raciocínio, há que concluir que, no caso concreto, embora não tenha sido posta em causa a falsidade da escritura pública (pois aceita-se o ali atestado pela autoridade pública), não se veio a fazer prova material dos empréstimos em dinheiro ali referidos e confessados pelos executados.
Sempre se poderia porém eventualmente defender – como nos parece ser o que pretende a Recorrente – que, não obstante a não prova estrita de tais empréstimos, se fez prova plena da confissão da respectiva dívida por parte dos executados à Reclamante, pois tal confissão consta expressamente na escritura pública como percepcionada pela autoridade que a exarou.
Mas esta conclusão pela força probatória plena de tal confissão – uma vez que a mesma foi feita à alegada mutuante dos empréstimos – só poderia ser válida se estivéssemos exclusivamente no confronto entre a Reclamante (que é aquela mutuante) e os executados (os confitentes), respectivamente credor e devedor, como expressamente previsto no art. 358º nº2 do C.Civil (no caso da previsão legal de tal preceito, a “parte contrária” ali referida corresponde, naturalmente, ao credor, pois este é que é o destinatário da declaração confessória).
Porém, no caso dos presentes autos a confissão de dívida é apresentada e invocada, por via da reclamação de créditos, perante um terceiro, no caso o credor exequente, e por isso, face ao disposto no nº4 daquele mesmo art. 358º, é “apreciada livremente pelo tribunal”.
Efectivamente, como se diz no Acórdão do STJ de 12/1/2012 (relator Lopes do Rego), disponível em www.dgsi.pt, que versa sobre caso praticamente idêntico ao dos presentes autos e que por isso aqui particularmente bem assenta, “o art. 358º, nº2, do CC apenas confere força probatória plena à confissão extrajudicial que – constando, designadamente, de documento autêntico, for feita à parte contrária; prescrevendo, porém, o nº4 deste preceito legal que a confissão extrajudicial feita a terceiro é livremente apreciada pelo tribunal. Ora, na concreta situação litigiosa, situada no âmbito de um procedimento de reclamação de créditos, a declaração confessória do mutuário não foi naturalmente feita ao credor exequente, mas antes ao próprio mutuante, não podendo, consequentemente, este prevalecer-se da referida força probatória plena no confronto de um outro credor comum do mutuário. Em suma: a declaração confessória, constante de escritura pública em que intervieram mutuante e mutuário, não faz prova plena relativamente a terceiros cujos direitos possam ser abalados pelo teor do reconhecimento confessório, em termos de lhes precludir a utilização de todo e qualquer meio de prova, admitido em direito, para convencer da invalidade ou inveracidade do reconhecimento confessório que, porventura, conste da escritura.
Ora, sendo a força probatória da confissão, como acima se concluiu, livremente apreciada pelo tribunal, verifica-se que na sequência dessa livre apreciação o tribunal deu como não provados os alegados empréstimos em dinheiro que a baseiam e que, além disso, a não prova de tais factos e a respectiva motivação apresentada pelo tribunal para tal não foram sequer postas em causa no presente recurso.
Como tal, na sequência da não prova de tais factos, é de concluir, como se faz na sentença recorrida, que a Recorrente/Reclamante não fez prova da existência do crédito confessado e que, por isso, não se pode ter o mesmo como verificado para efeitos da sua graduação na presente reclamação de créditos.
Daí que seja de confirmar tal sentença, fazendo-se improceder o recurso em análise.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
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Porto, 27/1/2020
Mendes Coelho
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim