Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2425/07.1TBVCD.P1
Nº Convencional: JTRP00042898
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
EMPRESAS
ESTADOS MEMBROS DA UNIÃO EUROPEIA
Nº do Documento: RP200909082425/07.1TBVCD.P1
Data do Acordão: 09/08/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: AGRAVO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 321 - FLS 10.
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTIGOS 65º-A E 99º DO CPC E 22º E 23º DO REGULAMENTO (CE) Nº 44/2001 DO CONSELHO, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2000
Sumário: Os Tribunais Portugueses carecem de competência internacional para conhecerem de questões relativas à responsabilidade contratual entre empresas de dois Estados-Membros da União — incluindo aí a responsabilidade pré e pós- contratual — se as partes tiverem convencionado entre si, por escrito, atribuí-la aos Tribunais Italianos, pois que nenhuma razão de ordem pública o impede e se não trata de casos da competência exclusiva dos Tribunais Portugueses, nos termos dos artigos 65.°-A e 99.° do CPC e 22.° e 23.° do Regulamento (CE) n.° 44/200 1 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 2425/07.1 – AGRAVO (VILA do CONDE)


Acordam os juízes nesta Relação:


A Autora “B………., S.A.”, com sede na Rua …, ……, Zona Industrial ………., ………., Vila do Conde, vem interpor recurso do douto despacho proferido no .º Juízo Cível do Tribunal Judicial dessa comarca, nestes autos de acção declarativa de condenação, com processo ordinário, que aí instaurara contra a Ré “C………. – S.P.A.”, com sede na ………., n.º .., ………., Itália, intentando ver agora revogada essa decisão da 1.ª instância que declarou a incompetência internacional dos tribunais portugueses para a apreciação da acção e competentes os tribunais italianos (com o fundamento aí aduzido de que se discute aqui matéria de responsabilidade contratual e não de responsabilidade extracontratual e que as partes escolheram essa jurisdição para dirimir os conflitos que pudessem surgir entre si, derivados destes contratos), alegando, para tanto e em síntese, que foram cometidos dois erros pelo M.º Juiz ‘a quo’, a saber: “ter aludido a matéria que não é passível de convenção, como é o caso da violação dos deveres das partes agirem com lealdade, honestidade e conscienciosamente, que nada tem a ver com a validade ‘versus’ invalidade dos acordos, porque são pressupostos de ordem pública” e “não ter considerado a posição da recorrente, que se finca numa posição de âmbito muito mais amplo, temporalmente – quer a montante, quer a jusante – para além do âmbito desses acordos”. Por isso que se não poderá dar relevo, como veio a considerar-se, à responsabilidade contratual como factor decisivo de aferição da competência internacional do tribunal. Razão para que se dê agora provimento ao recurso, se revogue o douto despacho recorrido e se declare competente para a apreciação da matéria dos autos o Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde e não os tribunais italianos.
A Recorrida “C………. – S.P.A.” vem responder, dizendo, ainda em síntese, que o recurso não merece provimento, pois que, “como resulta com evidente clareza dos documentos juntos aos autos, maxime os contratos celebrados entre as partes, o relacionamento entre elas estabeleceu-se no âmbito de um quadro exclusivamente contratual” – assim não estando em causa “o tipo de contrato ou a qualificação jurídica dos contratos celebrados entre a agravante e a agravada” (que se consubstanciaram “em dois contratos e numa carta-acordo”). Dessarte, qualquer que seja essa qualificação, “sempre estaríamos perante uma relação contratual e, até como a recorrente colocou a questão em juízo, em sede de responsabilidade civil contratual e não extra-contratual”. Ora, “sendo manifesto que as partes sempre quiseram, acordaram e aceitaram que a jurisdição dos Tribunais Italianos seria a exclusivamente competente para julgar os litígios emergentes das suas relações comerciais – seja por via da Arbitragem, seja do Tribunal Judicial –, os Tribunais Portugueses, ‘maxime’ o Tribunal Judicial de Vila do Conde, são internacionalmente incompetentes para julgar a presente acção”. Por isso que a decisão recorrida, não padecendo de qualquer nulidade, deverá vir a ser mantida, negando-se provimento ao agravo.
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Provam-se os seguintes factos com interesse para a decisão:

1) A Autora e a Ré mantiveram entre si uma relação comercial, executada desde Junho de 2005 até Fevereiro de 2007 (acordo das partes).
2) A mesma foi consubstanciada pelos Contratos datados de 12 de Abril de 2005 (vidé documento de fls. 82 a 101, traduzido a fls. 156 a 175 dos autos), de 16 de Setembro de 2005 (vidé o documento de fls. 102 a 120, traduzido a fls. 198 a 216 dos autos) e de 16 de Outubro de 2006 (vidé o documento de fls. 121 a 122, traduzido a fls. 238 a 239 dos autos), cujos teores, quanto a todos, se dão aqui por integralmente reproduzidos.
3) Em 20 de Julho de 2007 a Autora instaurou a presente acção, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe “a quantia de € 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil euros), bem como juros legais, aplicável às relações comerciais, pelas taxas que vigorarem no decurso desta acção, e a calcular na decisão final”, conforme o douto articulado de fls. 2 a 20 dos autos, aqui dado por reproduzido.
4) Na contestação a Ré suscitou a questão da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da matéria da acção, conforme esse douto articulado, a fls. 48 a 81 dos autos, aqui igualmente dado por reproduzido na íntegra.
5) A Autora “B………., S.A.” tem a sua sede na Zona Industrial ………., Rua …, ……, ………., em Vila do Conde, Portugal.
6) A Ré “C………. – S.P.A.”, tem a sua sede na ………., n.º .., em ………., Itália.
7) Por douto despacho do Mm.º Juiz do processo proferido a 07 de Março de 2008, foi declarada a incompetência internacional do Tribunal Judicial da comarca de Vila do Conde para conhecer da acção, conforme a decisão de fls. 262 a 266 dos autos, aqui dada por reproduzida integralmente.
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ‘ad quem’ é a de saber se são internacionalmente competentes para apreciar a matéria destes autos os Tribunais Portugueses, designadamente o Judicial da comarca de Vila do Conde – como quer a Recorrente e onde a acção se mostra instaurada –, ou os Tribunais Italianos – como decidiu o Mm.º Juiz ‘a quo’ e intenta a Recorrida. É só isso que ‘hic et nunc’ está em causa, como se vê das conclusões do recurso apresentado.
Vejamos, pois.

Nos termos do artigo 17.º, n.º 2 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, “a lei de processo fixa os factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais” – factores esses estabelecidos depois no artigo 65.º do Código de Processo Civil. Por seu turno, segundo o artigo 22.º, n.º 1 daquela LOFTJ, “a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente”.
Por isso que, e como bem se costuma entender, a competência do tribunal não pode deixar de aferir-se pelos termos em que a acção foi proposta (vidé, na doutrina, o Prof. Manuel de Andrade, no seu “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1976, a páginas 90/91 e na jurisprudência, o douto acórdão desta Relação do Porto de 04 de Março de 2002, publicado pelo ITIJ e com a referência n.º 0151929, onde se deixou exarado no respectivo sumário que “na apreciação da questão da competência [territorial], deve analisar-se concretamente a causa de pedir e o pedido formulado, porque tal competência é determinada em função do modo como a causa é delineada na petição inicial e não pela controvérsia que resulta da confrontação entre a acção e a defesa”).

“In casu”, não podem restar dúvidas, salva melhor opinião e com apreço pela construção assaz inteligente que a recorrente faz da situação em sede de alegações – precisamente face aos termos em que a Autora coloca o problema na sua petição inicial, isto é, face ao pedido que formula e aos fundamentos que invoca e ao contrário do que agora pretende fazer crer –, que estamos perante um caso que se enquadra no âmbito da responsabilidade contratual, porquanto se perspectiva aqui a exigência de um valor pecuniário de grande monta por um alegado incumprimento de obrigações assumidas e decorrentes de contratos (cuja qualificação ainda se discute: de prestação de serviços? de empreitada?) celebrados entre as partes e que se mantiveram entre elas, em termos de relação comercial, desde Junho de 2005 até Fevereiro de 2007 – contratos datados de 12 de Abril de 2005 (fls. 82 a 101), de 16 de Setembro de 2005 (fls. 102 a 120) e de 16 de Outubro de 2006 (fls. 121 a 122 dos autos). É à volta deles que gira, efectivamente, tudo (seria, de resto, curioso perguntar-se, tendo por boa a tese que a recorrente ora vem defender, de que se trataria de responsabilidade extra-contratual, onde é que duas empresas, uma de Vila do Conde e outra de Milão, foram estabelecer ligações e conexões entre si para se vislumbrar agora uma responsabilidade desse tipo; naturalmente que o encontro – e o desencontro – entre ambas se deve e ocorre por causa dos contratos que celebraram entre si e não por qualquer outra razão; mas isso é responsabilidade contratual).

E será também por isso – porque mesmo que inconscientemente e ainda que a Autora se proponha apresentar outra coisa, ela sabe que, de uma maneira ou de outra, são as relações advindas dos contratos celebrados entre as partes que estão por trás do pedido de indemnização formulado – que a essa petição de indemnização associou mesmo um pedido de juros … mas comerciais (virados naturalmente para relações de tipo contratual/comercial e não extra-contratual). Na verdade, quem é que usualmente pede juros comerciais por responsabilidade que não advenha de relações contratuais de comércio ou entre comerciantes? É mais um elemento que aponta para que a recorrente saiba e queira invocar aqui a responsabilidade contratual e não qualquer outra.

Depois, a agravante aduz ainda que também invoca uma responsabilidade de índole pré-contratual e pós-contratual para definir a sua posição na acção e, assim, considerar que, também por isso, não deixa de fundar a sua pretensão em responsabilidade extra-contratual.
Mas a responsabilidade pré-contratual (como a pós-contratual: ‘culpa post pactum finitum’) são ainda contratuais e não extra-contratuais. Continuam a centrar-se nos respectivos contratos, quer antes, quer depois da sua celebração e vigência (vidé o artigo 227.º, n.º 1 do Código Civil, que estabelece a chamada ‘culpa in contrahendo’; e o Dr. Abílio Neto, no seu ‘Código Civil Anotado’, 6.ª edição, 1987, da Petrony, nas anotações 3 e 16 a esse artigo, escreve a páginas 113: “A culpa ‘in contrahendo’ é uma forma de responsabilidade contratual”; e “Em princípio, são as normas da responsabilidade contratual que se aplicam ao caso contemplado neste artigo”; e o Prof. Menezes Leitão, no seu ‘Direito das Obrigações’, volume I, 6.ª edição, Almedina, 2007, a págs. 359, vai adiantando que “Tem vindo a ser controvertida a qualificação da responsabilidade pré-contratual como responsabilidade obrigacional ou como responsabilidade delitual. A maioria da doutrina, onde se incluem os nomes de Galvão Telles, Carlos Mota Pinto, Menezes Cordeiro e Ribeiro de Faria, inclina-se para a sua qualificação como responsabilidade obrigacional”; ele, porém, opta por uma posição mista, mas sublinhando, na página seguinte (360), que “Em relação à culpa ‘in contrahendo’, o regime aplicável será preponderantemente o da responsabilidade obrigacional”).
Portanto, não estamos ainda, também por aí e no caso presente, fora do âmbito daquela responsabilidade contratual.

Por fim, a recorrente alega – precisamente para se colocar fora do âmbito da responsabilidade contratual – que funda o seu pedido indemnizatório numa eventual violação do princípio da boa fé, daí concluindo que se trataria então de um caso de responsabilidade extra-contratual.
Mas também os ditames da boa fé se não deixam de aplicar aos casos de responsabilidade contratual, conforme o que dispõe o n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil: “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”.

Como assim, tido por assente que se discutem ‘in casu’ questões relativas à responsabilidade contratual e não à extra-contratual (que era verdadeiramente a disputa que vinha suscitada), temos que aceitar a competência convencionada dos tribunais italianos (arbitrais ou judiciais) – o apelidado pelo Prof. Manuel de Andrade, na pág. 93 da obra citada, de ‘pacto atributivo da jurisdição’ –, nos termos do artigo 99.º, n.os 1 e 3, alíneas a), d) e e) do Código de Processo Civil e 23.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que estabelece: “Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado-Membro, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva, a menos que as partes convencionem em contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado por escrito ou verbalmente com confirmação escrita” (sua alínea a), “ou em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si” (alínea b).

Com efeito, escreveu-se na cláusula n.º 27 do contrato celebrado a 12 de Abril de 2005: “Qualquer litígio entre as partes acerca da interpretação e da execução do presente contrato será submetido à tentativa obrigatória de conciliação na Camera di Commercio Industria e Artigianato de Arezzo. Se nos 30 (trinta) dias seguintes ao início da tentativa de conciliação não se chegar a uma efectiva conciliação, o litígio será remetido ao juízo inapelável de 3 (três) árbitros compositores amigáveis, 2 (dois) dos quais a nomear por cada uma das partes em litígio e o terceiro pelos 2 (dois) árbitros assim eleitos, ou, em caso de desacordo, pelo Presidente do Tribunal de Arezzo. A nomeação de um membro do Colégio passará a ser da competência do mesmo Presidente do Tribunal de Arezzo sempre que uma das partes não o tiver feito após o prazo de 10 (dez) dias a contar da data do aviso feito pela outra parte por meio de carta registada com aviso de recepção. Os árbitros julgarão de acordo com o disposto no artigo 806.º C.P.C. e seguintes. A sede da arbitragem será Arezzo”. E estabelece a sua cláusula n.º 34 que “O presente contrato é regulado pela Lei Italiana e deverá por isso ser interpretado e submetido à legislação italiana em vigor no momento”.
Escreveu-se na cláusula n.º 26 do contrato celebrado em 16 de Setembro de 2005: “O presente contrato é regulado pela Lei Italiana e deverá, por isso, ser interpretado e submetido à legislação italiana em vigor no momento. Na eventualidade de qualquer litígio entre as partes acerca da interpretação e da execução do presente contrato, as mesmas comprometem-se a resolvê-lo amigavelmente; caso tal não seja possível, as partes escolhem a competência exclusiva da jurisdição italiana e transferem para o foro de Arezzo a competência exclusiva da causa judicial”.
E no contrato celebrado em 16 de Outubro de 2006 escreveu-se todo um clausulado “na sequência dos nossos acordos anteriores”, pelo que se têm por válidas aquelas cláusulas transcritas, não objecto de nova regulamentação.

Como assim, num tal enquadramento fáctico e jurídico, não assiste razão à recorrente nas objecções que levanta ao trabalho do M.º Juiz ‘a quo’, que vem explanado no douto despacho recorrido, por isso se mantendo o mesmo intacto na ordem jurídica e improcedendo o recurso (considerando-se incompetentes os Tribunais da Orgânica Judiciária Portuguesa para apreciarem a acção).

E, em conclusão, dir-se-á:

Os Tribunais Portugueses carecem de competência internacional para conhecerem de questões relativas à responsabilidade contratual entre empresas de dois Estados-Membros da União – incluindo aí a responsabilidade pré e pós-contratual – se as partes tiverem convencionado entre si, por escrito, atribuí-la aos Tribunais Italianos, pois que nenhuma razão de ordem pública o impede e se não trata de casos da competência exclusiva dos Tribunais Portugueses, nos termos dos artigos 65.º-A e 99.º do CPC e 22.º e 23.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a douta decisão recorrida.
Custas pela agravante.
Registe e notifique.

Porto, 8 de Setembro de 2009
Mário João Canelas Brás
Manuel Pinto dos Santos
Cândido Pelágio Castro de Lemos