Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5258/18.6T9VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: CRIME DE LENOCÍNIO
CONSTITUCIONALIDADE
CÚMULO DE PENAS
Nº do Documento: RP202305245258/18.6T9VNG.P1
Data do Acordão: 05/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELOS ARGUIDOS
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída; tal perspetiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma ordem jurídica orientada por valores de justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de ação, situações e atividades cujo "princípio" seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem.
II - Para a determinação da medida concreta da pena única impõe-se ao Tribunal que atenda à imagem global do facto, como se se ficcionasse o conjunto dos crimes do concurso como um todo único, no qual deve ser analisada a existência de eventuais conexões entre os factos e o tipo de conexão existente, procurando estabelecer uma relação destes com a personalidade do agente; no fundo, é necessário perceber se a personalidade do agente e a forma como é caracterizado tem projeção nos factos praticados; este trabalho de avaliação global tem em vista aferir se o conjunto daqueles factos praticados expressa uma tendência criminosa a qual se possa, até e eventualmente, apelidar de “carreira” criminosa, ou, somente, pode ser tida como uma situação de pluriocasionalidade, isto é, se a repetição dos factos ilícitos emerge, apenas de fatores meramente ocasionais.
III – No caso vertente, para efeitos de cúmulo jurídico, aplicando os fatores de 1/3, o mais comummente usado pelo Supremo Tribunal de Justiça, e o de ½, atenta os factos e personalidade dos arguidos que eles revelam, ao remanescente das penas parcelares (total das penas parcelares – pena mais grave) a somar à pena mais grave, teríamos, face às penas parcelares, que a pena única dever-se-ia situar entre 3 anos e cerca de 4 meses (1/3 do remanescente) e 4 anos e 4 meses (1/2 do remanescente) para o arguido e dever-se-ia situar entre 3 anos (1/3 do remanescente) e 3 anos e 10 meses (1/2 do remanescente) para a arguida, pelo que as penas concretas únicas fixadas para um e outra cumprem aqueles critérios, porquanto fixadas, respetivamente, em 03 anos e 06 meses e 03 anos de prisão no conjunto global dos factos e personalidade do agente e dos critérios legais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 5258/18.6T9VNG.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No Processo Comum (Tribunal Coletivo) id. em epígrafe, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto, Juiz 8, foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo:
Em face de tudo o exposto, acordam os juízes que compõem o Tribunal Colectivo em julgar parcialmente procedente a acusação e, em consequência, condenar os arguidos:
-AA, pela prática, em co-autoria material de cinco crime de lenocínio, p.p. pelo art.º 169º, nº1, do C.P., em quatro penas de 1 ano e 6 meses de prisão e uma pena de 1 ano e dois meses de prisão;
Em cúmulo jurídico condena-se o arguido na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos e 6 meses;
- BB, pela prática, em co-autoria material de cinco crimes de lenocínio, p.p. pelo art.º 169º, n.º1, do C.P., em quatro penas de 1 ano e 4 meses de prisão e uma pena de 1 ano de prisão.
Em cúmulo jurídico, condena-se a arguida na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.
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Julga-se parcialmente procedente o pedido de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público e, consequentemente, condenam-se os arguidos a pagar ao Estado a quantia de € 11.600,00.
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Declara-se perdida a favor do Estado as quantias de € 1235,00 e € 241, 44.
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Determina-se a devolução aos arguidos dos telemóveis apreendidos nos autos.
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Custas a cargo dos arguidos, nos termos do art.º 513º do CPP, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC e suportando ainda os encargos devidos.
Notifique.

Inconformados, vieram os arguidos interpor recurso, pugnando pelo seu provimento com os fundamentos que constam da motivação, e formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem.
Arguido AA:
Diferente qualificação jurídico-penal
1- A decisão recorrida condenou - -AA, pela prática, em co- autoria material de cinco crime de lenocínio, p.p. pelo art.º 169º, n.º1, do C.P., em quatro penas de 1 ano e 6 meses de prisão e uma pena de 1 ano e dois meses de prisão; Em cúmulo jurídico condena-se o arguido na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos e 6 meses;
2- O tribunal a quo entendeu que o ilícito em causa configura pessoal, estando inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual, pelo que o número de crimes se determina pelo número de ofendidas.
Isto é, considerou que o bem jurídico protegido é de natureza eminentemente pessoal, pelo que o número de crimes coincide com o número de vítimas (art. 30.º, n.º 3, do CP).
3- Diversamente o arguido defende no seu recurso, pelos fundamentos aduzidos no Item A, pontos 3 a 17, que aqui se dão como reproduzidos para os devidos efeitos legais, a condenação por um só crime de lenocínio simples, por entender que o legislador, ao punir todo e qualquer aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de outros, pune essencialmente uma actividade, uma profissão e não uma corrupção da vontade livre.
Isto é, porque o crime de lenocínio previsto no art. 169º nº 1 do CP é um crime de actividade que se concretiza apenas mediante uma única resolução, há um só crime independentemente do número de prostitutas cuja actividade era fomentada.
Trazemos à liça o Ac. da Rel. de Coimbra de 10-07-2013, do Exmo Juiz Desembargador Relator Fernando Chaves, quando refere:
“O bem jurídico protegido no tipo legal de crime de lenocínio simples não é a liberdade de expressão sexual da pessoa mas uma certa ideia de «defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade» que não é encarada hoje como função do direito penal e, de qualquer modo, não presidiu ao novo enquadramento dos «crimes contra a liberdade sexual» no título mais vasto dos crimes contra as pessoas e como uma forma que assumem os atentados contra a liberdade”
4- No caso em apreço, o arguido e a co-arguida BB tomaram de arrendamento um imóvel, sito na Rua ..., ..., em ..., Vila Nova de Gaia, onde entre fevereiro de 2019 e 11 de fevereiro de 2020 tinham lugar a prática de atos de prostituição, nos quartos que os mesmos cediam para o exercício dessa actividade, da qual retiravam um rendimento fixo mensal cobrado a cada uma das mulheres pelo menos, cinco mulheres que lá exerciam – também - essa atividade. cfr ponto 6 do item A da motivação de recurso
5- Atenta a matéria de facto dada como provada o arguido AA, praticou em co-autoria com a arguida BB, um único crime de lenocínio simples (pois os bens jurídicos protegidos não são eminentemente pessoais e apenas se descortinou uma única resolução criminosa que foi executada ao longo de cerca de um ano), em coautoria material e sob a forma consumada, uma vez que estes dois arguidos tomaram de arrendamento um imóvel.” onde, entre fevereiro de 2019 e 11 de fevereiro de 2020, tinha lugar a prática de atos de prostituição, nos quartos que os mesmos cediam para o exercício dessa actividade da qual retiravam um rendimento fixo mensal cobrado a cada uma das mulheres pelo menos, cinco mulheres que lá exerciam – também - essa atividade.
6- Em face do exposto, a qualificação jurídica efectuada na decisão recorrida deve ser alterada.
7- Violou-se o disposto nos arts 30, 169 nº 1 do C.P.
Medida da pena
8- Na determinação concreta da medida da pena, o julgador atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (art. 71º do C.P.), ou seja, as circunstâncias do complexo integral do facto que relevam para a prevenção e para a culpa.
9- No caso concreto, atento às razões aduzidas no Item A- Diferente Qualificação Jurídica, pontos 2 a 15, o arguido deveria ser punido pela prática de um único crime de lenocínio simples.
10- Atento as razões aduzidas na motivação do recurso ora interposto, pontos 3 a 5 do item B, que aqui se dão por reproduzidas e face aos critérios legais (arts. 40º, 70º e 71º do C.P), a pena aplicada ao arguido, não deveria ser superior a 1 anos e 8 meses de prisão.
11- Em súmula, o recorrente aduz a seu favor, que o grau de ilicitude é mediana em face do número mulheres, sendo os valores obtidos com tal actividade, no período de um ano pouco expressivos, € 11.600,00.
Ademais, facto do arguido estar inserido social, profissional e familiarmente, ter confessado parcialmente os factos e entre a prática dos factos e aqueles pelos quais o mesmo foi anteriormente condenado, terem decorrido mais de 20 anos, constituem factores que mitigam as necessidades de prevenção geral e especial que o caso impõe.
12- Pena cuja execução deverá ser suspensa na sua execução, atento às condições pessoais e familiares apuradas, que apontam para formulação de um juízo de prognose no sentido de que a ameaça de execução da pena bastará para o afastar da prática de novos crimes.
Juízo de prognose favorável que o tribunal na decisão recorrida, entendeu verificar-se, ao condenar o arguido na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de 5 crimes de lenocínio p.p. no art 169 nº 1 do C.P.
13- Violou-se o disposto nos arts 70 e 71 do C.P
Sem prescindir:
14- Caso o tribunal entenda manter a qualificação jurídica e condenar o arguido pela prática, em co-autoria material de cinco crimes de lenocínio, p.p. pelo art.º 169º, nº1, do C.P.
Pelas razões já aduzidas no Item – Medida da pena, por cada um dos crimes de lenocínio relativamente às ofendidas CC, DD, EE e FF, o tribunal deveria fixar uma pena não superior a 1 ano e 4 meses de prisão, relativamente à ofendida GG a pena de 1 ano de prisão.
Em cúmulo na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelas razões supra indicadas.
15- Violou-se o disposto nos arts 70,71 e 77 do C.P.”

Arguida BB
“1- A decisão recorrida condenou - a arguida BB, pela prática, em co-autoria material de cinco crimes de lenocínio, p.p. pelo art.º 169º, n.º1, do C.P., em quatro penas de 1 ano e 4 meses de prisão e uma pena de 1 ano de prisão.
Em cúmulo jurídico, condenou a arguida na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.
2- O tribunal a quo entendeu que o ilícito em causa configura pessoal, estando inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual, pelo que o número de crimes se determina pelo número de ofendidas.
Isto é, considerou que o bem jurídico protegido é de natureza eminentemente pessoal, pelo que o número de crimes coincide com o número de vítimas (art. 30.º, n.º 3, do CP).
3- Diversamente a arguida defende no seu recurso, pelos fundamentos aduzidos no Item A, pontos 3 a 17, que aqui se dão como reproduzidos para os devidos efeitos legais, a condenação por um só crime de lenocínio simples, por entender que o legislador, ao punir todo e qualquer aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de outros, pune essencialmente uma actividade, uma profissão e não uma corrupção da vontade livre.
Isto é, porque o crime de lenocínio previsto no art. 169º nº 1 do CP é um crime de actividade que se concretiza apenas mediante uma única resolução, há um só crime independentemente do número de prostitutas cuja actividade era fomentada.
Trazemos à liça o Ac. da Rel. de Coimbra de 10-07-2013, do Exmo Juiz Desembargador Relator Fernando Chaves, quando refere:
“O bem jurídico protegido no tipo legal de crime de lenocínio simples não é a liberdade de expressão sexual da pessoa mas uma certa ideia de «defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade» que não é encarada hoje como função do direito penal e, de qualquer modo, não presidiu ao novo enquadramento dos «crimes contra a liberdade sexual» no título mais vasto dos crimes contra as pessoas e como uma forma que assumem os atentados contra a liberdade”
4- No caso em apreço, a arguida e o co-arguido AA tomaram de arrendamento um imóvel, sito na Rua ..., ..., em ..., Vila Nova de Gaia, onde entre fevereiro de 2019 e 11 de fevereiro de 2020 tinham lugar a prática de atos de prostituição, nos quartos que os mesmos cediam para o exercício dessa actividade, da qual retiravam um rendimento fixo mensal cobrado a cada uma das mulheres pelo menos, cinco mulheres que lá exerciam – também - essa atividade. cfr ponto 6 do item A da motivação de recurso
5- Atenta a matéria de facto dada como provada a arguida BB, praticou em co-autoria com o arguido AA um único crime de lenocínio simples (pois os bens jurídicos protegidos não são eminentemente pessoais e apenas se descortinou uma única resolução criminosa que foi executada ao longo de cerca de um ano), em coautoria material e sob a forma consumada, uma vez que estes dois arguidos tomaram de arrendamento um imóvel.” onde, entre fevereiro de 2019 e 11 de fevereiro de 2020 , tinha lugar a prática de atos de prostituição, nos quartos que os mesmos cediam para o exercício dessa actividade da qual retiravam um rendimento fixo mensal cobrado a cada uma das mulheres pelo menos, cinco mulheres que lá exerciam – também - essa atividade.
6- Em face do exposto, a qualificação jurídica efectuada na decisão recorrida deve ser alterada.
7- Violou-se o disposto nos arts 30, 169 nº 1 do C.P.
Medida da pena
8- Na determinação concreta da medida da pena, o julgador atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (art. 71º do C.P.), ou seja, as circunstâncias do complexo integral do facto que relevam para a prevenção e para a culpa.
9- No caso concreto, atento às razões aduzidas no Item A- Diferente Qualificação Jurídica, pontos 2 a 15, a arguida deveria ser punida pela prática de um único crime de lenocínio simples.
10- Atento as razões aduzidas na motivação do recurso ora interposto, pontos 3 a 5 do item B, que aqui se dão por reproduzidas e face aos critérios legais (arts. 40º, 70º e 71º do C.P), a pena aplicada à arguida, não deveria ser superior a 1 anos e 4 meses de prisão.
11- Em súmula, a recorrente aduz a seu favor, que a sua conduta surge por impulso do co- arguido, que a ilicitude é mediana em face do número mulheres, sendo os valores obtidos com tal actividade, no período de um ano pouco expressivos, € 11.600,00.
Ademais, o facto da arguida estar inserida social, profissional e familiarmente, não registando no seu CRC, qualquer condenação, conjugada com o lapso de tempo decorrido entre a prática do facto e a data da condenação, constituem factores que mitigam as necessidades de prevenção geral e especial que o caso impõe.
12- Pena cuja execução deverá ser suspensa na sua execução, atento às condições pessoais e familiares apuradas, que apontam para formulação de um juízo de prognose no sentido de que a ameaça de execução da pena bastará para a afastar da prática de novos crimes.
Juízo de prognose favorável que o tribunal na decisão recorrida, entendeu verificar-se, ao condenar a arguida na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de 5 crimes de lenocínio p.p. no art 169 nº 1 do C.P.
13- Violou-se o disposto nos arts 70 e 71 do C.P
Sem prescindir:
14- Caso o tribunal entenda manter a qualificação jurídica e condenar a arguida pela prática, em co-autoria material de cinco crimes de lenocínio, p.p. pelo art.º 169º, n.º1, do C.P.
Pelas razões já aduzidas no Item – Medida da pena, por cada um dos crimes de lenocínio relativamente às ofendidas CC, DD, EE e FF, o tribunal deveria fixar uma pena não superior a 1 ano e 2 meses de prisão, relativamente à ofendida GG a pena de 8 meses de prisão
Em cúmulo na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelas razões supra indicadas.
15- Violou-se o disposto nos arts 70, 71 e 77 do C.P”

Admitido o recurso, o Ministério Público veio responder pugnando pela sua improcedência concluindo:
“1 – AA foi condenado como autor de 5 crimes de lenocínio do art.º 169º, n.º 1, do C. Penal, em quatro penas de 1 ano e 6 meses de prisão e numa pena de 1 ano e dois meses de prisão; e em cúmulo jurídico na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos e 6 meses, tendo recorrido dessa condenação, entendendo que só se verifica um único crime ao qual deveria ser aplicada a pena de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução.
2 – Mas, entende o Ministério Público que não merece provimento este recurso.
3 – No que se refere ao concurso de crimes de lenocínio, nessa direcção aponta o sentido e a literalidade da norma.
4 – Com efeito, dispõe o n.º 1 do art.º 169.º que «quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição…», donde resulta que o bem jurídico protegido pela norma, e que não pode deixar de ser considerado, é “a liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição”.
5 – E o carácter pessoal desse mesmo bem jurídico, é fortemente realçado, de molde a procurar retirar dúvidas ao intérprete/aplicador, pela expressão “outra pessoa” usada no segmento da norma que se transcreveu e com a qual se quis frisar essa natureza pessoalíssima, afastando o foco da “actividade” desenvolvida pelo agente.
6 – Nesse sentido vai a generalidade da Doutrina.
7 – Desse carácter pessoal do bem jurídico resultam consequências quanto ao concurso de infracções quanto o agente fomenta, favorece ou facilita, no mesmo espaço temporal a prostituição de várias pessoas: o agente comete tantos crimes de lenocínio quantas as pessoas cuja prostituição, fomentar, favorecer ou facilitar, atenta a natureza pessoalíssima do bem jurídico protegido.
8 – Pensamos também que é maioritária a corrente jurisprudencial que vai no mesmo sentido, da qual se situam vários arestos dos nossos Tribunais Superiores, que se referem nesta resposta
9 – O recorrente, entre Fevereiro de 2019 e 11 de Fevereiro de 2020, disponibilizou os quartos da moradia que arrendou, especificamente com esse objectivo, a mulheres que aí mantinham práticas sexuais mediante o pagamento de um preço, recebendo, dessas mulheres, dividendos provenientes dessas actividades, pelo que praticou cinco crimes de lenocínio.
10 – No que se refere à medida da pena quanto á pretendida pena por um só crime (a ter vencimento a questão da qualificação jurídica), a douta decisão recorrida não violou nenhuma das normas indicadas pelo recorrente, pois que não enfrentou, nem resolveu essa questão, uma vez que aplicou 5 penas parcelares e depois uma pena única.
11 – E a ter aquela sua posição vencimento, teria(rá) de ser esse Venerando Tribunal a determinara a pena a pena a aplicar então e a extrair consequências para a co-arguida, nos termos do art.º 402.º, n.º 2, al. a) do CPP, tendo o Ministério Público, por dever funcional, deixado a sua posição quanto à quantificação, expressa no texto da resposta.
12 – Quanto à pena única dir-se-á que, no caso, a moldura penal aplicável era, no quadro traçado pelo n.º 2 do art.º 77.º do C. Penal, de 1 ano e 6 meses (maior pena parcelar) a 7 anos e 2 meses de prisão (soma das penas parcelares), sendo de 5 anos e 8 meses o remanescente das penas parcelares (soma das penas parcelares – a maior das penas parcelares) e, à luz da jurisprudência do STJ, no nosso sistema de pena única conjunta, o limite mínimo da moldura atendível é constituído pela mais grave das penas parcelares (numa concessão minimalista ao princípio da agravação — a punição do concurso correrá em função da moldura penal prevista para o crime mais grave) mas devendo a pena concreta ser agravada por força da pluralidade de crimes, sem que possa ultrapassar a soma das penas concretamente que seriam de aplicar aos crimes singulares (princípio da acumulação — a fonte essencial de inspiração do cúmulo jurídico em que são determinadas as penas concretas aplicáveis a cada um dos crimes singulares, construindo-se depois uma moldura penal do concurso, dentro do qual é encontrada a pena unitária). Nessa óptica e num esforço para evitar as disparidades injustificadas detectadas naquelas penas, tem vindo a considerar-se como ponto de partida na determinação dessas penas, a agravação da pena parcelar mais grave com um coeficiente do remanescente das restantes penas parcelares, que se situa, em princípio, ente um terço e um sexto da sua soma total, a precisar em função das circunstâncias do caso e a personalidade do agente.
13 – Aplicando o factor de 1/3, o mais comummente usado pelo STJ, seguido de ¼, atenta a gravidade dos factos e personalidade do arguido que eles revelam, ao remanescente das penas parcelares (total das penas parcelares – pena mais grave) a somar à pena mais grave, teríamos, face às penas parcelares, a pena única dever-se-ia situar entre 3 anos e 5 meses (1/3 do remanescente), pelo que se aceita a pena de 3 anos e 6 meses de prisão.
Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso, como é de justiça.”

Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, aderindo à resposta da Exmº. Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Instância.

No âmbito do 417º, nº2, do CPP, nada foi requerido de relevante.

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à Conferência.
Nada obsta ao conhecimento do recurso.

II. Fundamentação
É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados (transcrição):

2.1. Matéria de facto provada
1- Em data não concretamente não apurada, mas pelo menos desde fevereiro de 2019, os arguidos AA e BB, em conjugação de esforços e de comum acordo, decidiram aumentar os seus rendimentos à custa de mulheres que se dedicassem à prática de atos sexuais, designadamente coito vaginal e oral, contra o pagamento de uma quantia em dinheiro, atividade que é normalmente conhecida por prostituição;
2- Tendo em vista o aludido objetivo e na execução de tal plano, por contrato escrito, contra o pagamento da renda mensal de 700 € e pelo período de 5 anos, no dia 7 de março de 2017, os arguidos AA e BB tomaram de arrendamento a HH, usufrutuária da mesma, a moradia sita na Rua ..., ..., em ..., Vila Nova de Gaia, imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da União de freguesias ... e ... e descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ..., contrato este que os arguidos fizeram cessar por denúncia a 30 de abril de 2020;
3) Então, a partir daquela data e até 11 de fevereiro de 2020, a intenção referida em 1), os arguidos AA e BB, em comunhão de esforços e na execução do plano que ambos estabeleceram, passaram a ceder os quartos da referida moradia a diversas mulheres, designadamente
a:
– FF, cidadã brasileira;
– CC, cidadã brasileira;
– EE, cidadã portuguesa;
– GG, cidadã brasileira; e
– DD, cidadã portuguesa;
4- Para aí se dedicarem à prática da prostituição, nomeadamente recebendo os seus clientes e aí com eles praticando atos sexuais, tais como coito vaginal e oral, e deles recebendo dinheiro, entre outros,
– II;
5- Além disso, os arguidos AA e BB angariavam-lhes e procediam a algumas marcações de clientes para as mulheres que se dedicavam à prostituição no referido imóvel;
6- Em contrapartida do supra descrito, os arguidos AA e BB recebiam das mulheres que naquele local se dedicavam à prostituição quantias em dinheiro.
Assim;
7- Entre fevereiro de 2019 e 11 de fevereiro de 2020, CC entregou aos arguidos, pelo menos, a quantia de € 200,00, por mês, no total de € 2400,00;
8- EE, entre 11 entre fevereiro de 2019 e 11 de fevereiro de 2020 entregou aos arguidos, pelo menos, a quantia de € 200,00, por mês, no total de € 2400,00;
9- DD entre fevereiro de 2019 e 11 de fevereiro de 2020, entregou aos arguidos, pelo menos, a quantia de € 400,00, por mês, no total de € 4800,00;
10- Entre maio de 2019 e 11 de fevereiro de 2020, FF entregou mensalmente aos arguidos, pelo menos a quantia de € 200,00, por mês no total de € 2000,00
11- Em período não concretamente apurado, mas inferior a 6 meses, GG, ocupou um dos quartos da habitação e entregou aos arguidos quantia não concretamente apurada.
12- Os arguidos receberam ainda, de cada uma das mulheres, e com regularidade não apurada, a quantia mensal de € 50,00.
13- No dia 11 de fevereiro de 2020, o arguido AA, quando se encontrava no interior da referida moradia, tinha na sua posse os seguintes bens que lhe foram apreendidos:
– 1235 € (em 4 notas de 50 €, 45 de 20 €, 13 de 10 € e 1 de 5 €);
– um telemóvel, marca Samsung, modelo ..., com os IMEIS ... e ..., com o n.º ... da Vodafone;
14- Também nesse dia 11 de fevereiro de 2020 e igualmente no interior da referida moradia, a arguida BB tinha na sua posse um telemóvel, Iphone, modelo ..., cor branca/rosa bronze e com capa dourada, com o IMEI ..., com pin ... e com pin de acesso ao equipamento ..., o qual lhe foi apreendido;
15- Tinham ainda os arguidos AA e BB na sua posse, no interior da referida moradia, os seguintes bens que lhes foram apreendidos:
i. Na cozinha:
– um caderno de capa azul, com inscrições “80 folhas Universitário”, contendo manuscrito detalhes referentes a clientes, respetivos horários, valores, primeiros nomes femininos e faturas de contrato de fornecimento da EDP, NOS e Águas Gaia, titulados pela arguida BB;
– uma agenda de 2019, de cor bronze, com apontamentos de dia 26 de janeiro, com valores monetários, dois nomes femininos e duas referências a classificados;
ii. Numa das salas:
– um caderno cor de rosa, com figuras animadas, nomeadamente unicórnios e donuts, com apontamentos manuscritos, com nome CC e vários valores monetários e datas;
– um bloco cor de rosa, marca Oxford, com dizeres “Multidisciplinares”, identificado como pertencente a CC, contendo, sob o titulo “Trabalho”, valores monetários a cada dia dos meses de janeiro e fevereiro;
iii. Noutras divisões da casa:
– uma bolsa de tecido, cor de rosa, marca Tous;
–uma embalagem de acondicionamento de cartão SIM da operadora Vodafone, correspondente ao número de ..., contendo apenas o respetivo cartão de suporte com referência ap PIN E AO puk, com uma anotação manuscrita correspondendo às palavras “Nova JJ” acondicionada na bolsa descrita;
–uma embalagem de acondicionamento de cartão SIM da operadora Vodafone, correspondente ao numero ..., sem qualquer conteúdo, com a seguinte anotação manuscrita “KK”, acondicionada na bolsa acima descrita;
– a quantia, em numerário, de 241,44 €, acondicionada na referida bolsa;
16- Os arguidos AA e BB utilizavam os referidos bens, designadamente os telemóveis, bolsas, cadernos e agendas, supra descrita no exercício da sobredita actividade.
17- Os arguidos AA e BB obtiveram as quantias referidas com a actividade que desenvolveram.
18 - A 11 de fevereiro de 2020, CC tinha na sua posse um telemóvel da marca Nokia, cor cinzenta, Dual SIM, com os IMEIS ... e ..., onde opera um número de telemóvel desconhecido da operadora Vodafone;
19- Os arguidos AA e BB atuaram em comunhão de esforços, na concretização de plano que previamente elaboraram e que visava aumentar os seus rendimentos à custa de mulheres que se dedicassem à prostituição;
20- Os arguidos agiram nos termos descritos, cedendo alojamento, angariando clientes e procedendo à sua marcação para que as mulheres, nomeadamente as identificadas supra se dedicassem à prática de atos sexuais contra remuneração, o que representaram, quiseram e conseguiram;
21- Atuaram os arguidos AA e BB com a intenção, conseguida, de obter rendimentos da atividade de prostituição a que FF, CC, EE, GG e DD se dedicavam, o que previram e quiseram;
22- Agiram os arguidos livre, voluntária e conscientemente, cientes do caráter ilícito e reprovável das suas condutas.
*
23- Por acórdão transitado em julgado em 23 de junho de 2008, foi o arguido AA condenado na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, pela prática em 30 de setembro de 2006, de um crime de ofensa à integridade física qualificada e um crime de detenção de arma proibida; por sentença transitada em julgado em 19 de abril de 2012, foi o arguido condenado na pena de 100 dias de multa, pela prática em 31 de agosto de 2010, de dois crimes de importunação sexual.
*
Do CRC da arguida BB, nada consta.
*
AA integra agregado familiar composto pelo próprio, de 45 anos, e pela companheira/coarguida, 41 anos de idade, com residência na morada indicada nos autos, correspondente a um apartamento de tipologia 1, arrendado, suscetível de proporcionar condições adequadas de habitabilidade e localizado em zona residencial de Vila Nova de Gaia, dissociada de problemáticas sociais e criminais, onde o agregado vive desde 2009.
A dinâmica familiar é caracterizada como funcional e o relacionamento entre o casal como equilibrado e afetivamente gratificante ao longo dos cerca de 13 anos de vivência comum. O arguido mantém convívio regular e próximo com a progenitora, residente na cidade do Porto, contando com suporte afetivo da mesma, sendo filho único.
O seu processo de socialização decorreu junto da família nuclear até aos 17 anos, altura em que os progenitores se separarem, ficando a residir com a progenitora. Neste contexto familiar, terá estado exposto a ambiente familiar norteado por parâmetros de normatividade, com a presença, porém, de indicadores de disfuncionalidade, relacionada com o desajustamento comportamental do progenitor e reduzido compromisso com as responsabilidades familiares. Tem uma irmã consanguínea, menor de idade.
AA possui habilitações literárias ao nível do 2º ciclo do ensino básico, com frequência até ao 8º ano, através da frequência de curso que lhe daria equivalência ao 9º ano, que não chegou a concluir, pela desmotivação e desinvestimento pelas atividades escolares.
Formalmente desempregado e inscrito no Instituto de Emprego e Formação Profissional do Porto desde 14.10.2022, refere desempenhar informalmente atividade laboral como motorista de táxis, por intermédio da empresa A... Unipessoal, Lda., a auferir rendimentos mensais na ordem dos €800 (oitocentos euros), segundo refere. A companheira, também formalmente desempregada e a beneficiar de apoios sociais, designadamente do Rendimento Social de Inserção desde junho de 2011, no montante atual de €322.42 (trezentos e vinte e dois euros e quarenta e dois cêntimos), realiza trabalhos temporários de limpeza em habitações privadas, auferindo quantitativos variáveis a rondar os €200/€300 mensais (duzentos / trezentos euros).
A nível profissional conta com experiência como estafeta, atendimento telefónico, eletricista automóvel, ramo imobiliário e, por último, como taxista, atividade que refere desempenhar há alguns anos.
O enquadramento socioeconómico do agregado é descrito como instável, mas suficiente para fazer face a todos os compromissos financeiros inerentes à gestão diária, apresentando como despesas fixas mensais a renda de casa, no montante de €375 (trezentos e setenta e cinco euros) e as despesas inerentes ao fornecimento de bens domésticos, nomeadamente de água, energia elétrica e internet/telefone, cujos montantes ascendem a cerca de €150 (cento e cinquenta euros).
Para além do impacto a nível pessoal e familiar restrito, o arguido referencia a inexistência de impacto junto da família alargada, uma vez que este processo será do desconhecimento dos familiares, designadamente dos progenitores, que procurou manter distanciados.
A inserção social também não terá sido afetada, sendo a mesma caracterizada pelo ajustamento e estabelecimento de relações cordiais e reservadas com a comunidade de inserção.
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Em termos de funcionamento pessoal, a construção de identidade da arguida terá sido norteada pela exposição a modelos de dedicação familiar e profissional, estruturada em aspetos de responsabilidade e honestidade. O seu processo de socialização decorreu juntos dos progenitores e irmã mais velha, família nuclear de proveniência socioeconómica humilde.
À data dos factos relatados na acusação, a arguida residia com o atual companheiro/coarguido, na morada indicada nos autos, em apartamento tipologia 1, arrendado por €330, enquadramento habitacional e familiar que detém desde 2009 e que mantém. A arguida tem uma descendente de 23 anos de idade, autonomizada, fruto de anterior relacionamento afetivo, com quem mantém regular convivialidade.
A habitação conta com regulares condições de habitabilidade e encontra-se inserida em zona urbana dissociada de problemáticas sociais e/ou criminais, sendo que a arguida e coarguido apresentam uma inserção caracterizada como ajustada e normativa no meio social de inserção.
Formalmente desempregada, a beneficiar de Rendimento Social de Inserção (RSI) desde junho de 2011, no montante atual de €322.42, a arguida realiza trabalhos temporários de limpeza em habitações privadas, onde aufere quantitativos variáveis a rondar os €200/€300 mensais. Conta com o 9º ano de escolaridade e experiência profissional como lojista e atendimento telefónico em telemarketing, na generalidade, de forma informal.
O enquadramento socioeconómico do agregado é descrito como suficiente, contando com despesas fixas habitacionais na ordem dos €500, onde se inclui o valor de renda (€330). O valor global auferido pelo agregado, de aproximadamente €1400, assenta no vencimento do companheiro (cerca de €800), que trabalha como taxista, no RSI (€332) em que a arguida é titular e dos quantitativos que a mesma aufere dos trabalhos de limpeza (€200/€300).
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2.2. Matéria de facto não provada
Dos factos descritos na acusação e nas contestações deduzidas pelos arguidos, com relevo para a decisão a proferir, não se provaram quaisquer outros, designadamente os seguintes:
Entre janeiro de 2019 e 11 de fevereiro de 2020, GG pagava 10 € por cada cliente que os arguidos, diariamente, lhe angariavam, nomeadamente através do telemóvel com o n.º ...; e
Entre janeiro de 2019 e 11 de fevereiro de 2020, GG entregou aos arguidos a quantia global de € 4070,00.
Os arguidos atuavam nos termos descritos aproveitando-se de as referidas mulheres se encontrarem em situações existenciais difíceis, nomeadamente sem emprego ou outros rendimentos para suportar os seus gastos básicos e, nalguns casos, os dos seus familiares próximos ou serem estrangeiras, especificamente
FF, encontrando-se em situação irregular em território nacional, não se encontrava inserida socialmente, não possuía qualquer retaguarda familiar, não tinha qualquer ocupação profissional e, consequentemente, não dispunha de quaisquer rendimentos que lhe permitisse sustentar os três filhos, dois deles menores, que com ela residiam, circunstância e motivação que eram do conhecimento dos referidos arguidos;
CC não se encontrava inserida socialmente, não possuía qualquer retaguarda familiar, não tinha qualquer ocupação profissional e, consequentemente, não dispunha de quaisquer rendimentos para prover o seu sustento, circunstância e motivação que eram do conhecimento dos referidos arguidos;
EE não possuía qualquer retaguarda familiar, não tinha qualquer ocupação profissional e, consequentemente, não dispunha de rendimentos que lhe permitissem prover pelo seu sustento e pagar os seus estudos, circunstância e motivação que eram do conhecimento dos referidos arguidos;
GG não se encontrava inserida socialmente, não possuía qualquer retaguarda familiar, não tinha qualquer ocupação profissional e, consequentemente, não dispunha de quaisquer rendimentos para prover o seu sustento, circunstância e motivação que eram do conhecimento dos referidos arguidos; e
DD não possuía qualquer retaguarda familiar, não tinha qualquer ocupação profissional e, consequentemente, não dispunha de quaisquer rendimentos para se sustentar, circunstância e motivação que eram do conhecimento dos referidos arguidos;
Os arguidos tinham perfeito conhecimento que as mulheres que se dedicavam à prostituição no imóvel de que eram arrendatários se encontravam numa situação existencial difícil e de especial vulnerabilidade;”

II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes e todas matéria de direito:
- Natureza e bem jurídico do crime de Lenocínio.

-Medida da pena.
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Vejamos.

A propósito da questão chama-se à colação questão da constitucionalidade desta norma e sua conformidade com a Constituição da República Portuguesa recentemente apreciada e decidida nos Acórdãos do tribunal Constitucional n.º 72/2021, de 27 de janeiro, o qual decidiu, com um voto de vencido, não julgar inconstitucional a norma do artigo 169º, nº1, do Código Penal.
Esta decisão foi, por razões de segurança jurídica e igualdade de tratamento dos destinatários das decisões dos tribunais superiores, bem como de viabilidade e economia processual, respeitada e reiterada no Acórdão nº 197/2021, de 08.04.2021, do Tribunal Constitucional, transcrevendo aqui, por economia de processo, a argumentação do Acórdão nº 72/2021 que sufragamos.
Assim, lê-se naquele acórdão que «(…) as posições no sentido da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, têm assentado na afirmação da perda de conexão com um bem jurídico suficientemente definido, a partir das alterações introduzidas na norma incriminadora pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro. Ao eliminar-se o elemento típico de exploração duma situação de abandono ou necessidade, já não estaria em causa a proteção da liberdade sexual e, por outro lado, a dignidade da pessoa humana seria mobilizável em termos vagos, não oferecendo suporte bastante à incriminação. Não se afigurando viável considerar uma interpretação do preceito mais restritiva do que a sua letra consente, restaria apenas, então, a injustificada criminalização da mera atividade de proxenetismo, a tutela por via penal de interesses morais ou de bons costumes, a evitação “do pecado”, que poderia manifestar-se até com sinal contrário ao da liberdade individual das pessoas que a norma visou proteger. Os possíveis comportamentos atentatórios da dignidade humana estariam fora do tipo, sem poderem considerar-se necessária ou mesmo razoavelmente pressupostos na ação expressamente proibida, o que, especialmente estando em causa um comportamento passível de acordo, não consentiria uma construção constitucionalmente conforme de um crime de perigo abstrato, já de si particularmente exigente.
Não é esta, todavia, a única perspetiva a partir da qual pode ser olhada a norma sub judice.
2.3. Como é sabido, outras decisões do Tribunal Constitucional, em expressiva maioria, têm adotado uma orientação no sentido da não inconstitucionalidade da norma sub judice. Atravessa este entendimento uma ideia – a sua ideia fulcral – de que “[…] a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo com – colocando em perigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui” [Acórdão n.º 641/2016, sublinhado acrescentado; esta decisão viria a ser referida pelo Tribunal Constitucional italiano na Sentenza 141/2019, de 06/03/2019, enquanto abonação da conformidade constitucional da criminalização, nesse caso decorrente da chamada legge Merlim, das condutas de facilitação e de intermediação (construídas em torno dos conceitos de recrutamento e de favorecimento) ao exercício da prostituição, empreendidas por terceiro (cfr., quanto às referências ao Acórdão n.º 641/2016, os pontos 4.5. e 6.2. das Considerações de Direito da Sentenza)].
Existe, em tais casos – e corresponde ao entendimento deste Tribunal desde a decisão de 2004 –, uma genérica e preponderante apetência da ação descrita no tipo para o desencadear de eventos ou criar situações cujo desvalor (cuja danosidade), causalmente conexionado, imediata ou mediatamente, com o exercício da prostituição, o legislador quis antagonizar, através do instrumento de atuação do Estado correspondente à perseguição criminal, sendo certo que a opção por essa via ocorre num quadro racionalmente compreensível de valoração das potencialidades desvaliosas da realidade social envolvida (precursora, desencadeada ou propiciada) no conjunto de situações correspondentes ao fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição, por parte de alguém, que não o próprio agente do crime, num quadro de atividade profissional ou de um exercício com intenção lucrativa.
E vale esta opção na intencionalidade que lhe subjaz, independentemente do tratamento legal conferido na nossa Ordem Jurídica aos atos de prostituição, em si mesmos considerados, concretamente à subtração destes a qualquer tipo de perseguição sancionatória, através de uma política usualmente qualificada – e que corresponde à realidade portuguesa – como abolicionista, por oposição a uma política proibicionista ou a um enquadramento legal de tolerância regulamentadora (v. a caraterização destas opções legais, nas suas diversas gradações, em Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, Oxford University Press, Oxford, 2010, pp. 28/30).
Com efeito, o abolicionismo, referido à prática da prostituição, caracteriza um conjunto de políticas públicas que excluem a criminalização da venda de serviços sexuais, em si mesma considerada, e das atividades, exercidas pelo próprio agente da venda, diretamente relacionadas com esta, como seja a solicitação ou a oferta em si mesma. Essa opção não descarta, todavia – conforme demonstra a prática assumidamente abolicionista de diversos países (ibidem) –, sancionar (mesmo até criminalizar) a compra de serviços sexuais ou os comportamentos de terceiros (dos “clientes”) comummente utilizados para a obtenção desses serviços. É o que sucede, por exemplo, com a lei britânica sancionando o chamado kerb crawling [v. https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/kerb-crawling] e, na Suécia, desde 1999, com a aprovação da designada Lei Kvinnofrid [v. a entrada prostitution in Sweden, na Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/Prostitution_in_Sweden, consultada em 19/01/2021], que não proíbe a oferta de serviços sexuais mediante contrapartida remunerada, criminalizando, porém, o cliente e toda a atividade de gestão de um negócio de aproveitamento económico da prostituição (que envolva o contributo de qualquer pessoa diversa daquela que se prostitui), e a atividade remunerada de agenciação para o exercício da prostituição [a opção de criminalização do cliente e das condutas paralelas de facilitação ou aproveitamento por terceiros, foi considerada pelo Conseil Constitutionnel francês (Decisão n.º 2018-761, de 01/02/2019) conforme à Constituição].
No contexto geral da opção abolicionista, emprega-se o expressão abolição permissiva (permissive abolition, em contraposição a impermissive abolition, que sinaliza a perseguição sancionatória do cliente, Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, cit, p. 29) para referenciar, no quadro geral de uma política abolicionista, a opção por políticas públicas de não repressão sancionatória ou criminalização, tanto da oferta como da aquisição e procura de serviços sexuais (a prostituição que só envolve o par individualizado formado pelo agente da oferta e o agente da procura), criminalizando-se, todavia, no conjunto de políticas designadas como abolição permissiva, as atividades intimamente relacionadas com o aproveitamento económico por terceiros do negócio da prostituição, como paradigmaticamente o são a gestão de bordéis, os negócios do tipo clubes ou bares de alterne, que comportem ligação à atividade de prostituição, e mesmo a simples intermediação, com o objetivo de lucro, no negócio da prostituição travada entre os polos originários (quem se prostitui e o cliente).
2.3.1. Não estando, manifestamente, em causa “[…] saber se a incriminação do lenocínio, nos moldes em que se se encontra prevista, traduz a melhor opção ao nível da política criminal” (disse-se no Acórdão n.º 421/2017, retomando uma asserção já presente no Acórdão n.º 144/2004, cfr. o respetivo item 8) – constitui tal incriminação uma opção de quem está democraticamente legitimado para efeito da tomada dessas opções –, importa notar que “[…] o critério da necessidade de tutela penal, enquanto decorrência do princípio da proporcionalidade, na dimensão acolhida no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, foi sempre apreciado pela jurisprudência constitucional proferida sobre a incriminação do lenocínio”, o que não impediu que se concluísse pela “[…] legitimação material da norma incriminadora constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, à luz do princípio da proporcionalidade” (Acórdão n.º 694/2017).
Este entendimento foi reiterado, por último, nos Acórdãos n.ºs 90/2018 e 178/2018, para além de diversas decisões sumárias (v., designadamente, as Decisões Sumárias n.os 375/2016, 359/2017, 737/2017, 129/2018 e 519/2018) e “não espelha o imobilismo” que, por vezes, se pretende assinar-lhe em algumas decisões de recusa indutoras de muitos dos recursos apreciados (v. o Acórdão n.º 160/2020). Pelo contrário, resulta esse entendimento de viva discussão de argumentos de sinal contrário, atrás referida, a qual, simplesmente, não conduziu a uma alteração do sentido das decisões, que se reforçaram com novos fundamentos.
Com efeito, no Acórdão n.º 178/2018, pode ler-se:
“[…]
Em relação à constitucionalidade da norma constante do artigo 169.º, n.º 1, do CP, nos termos da qual «Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição», alega uma vez mais o recorrente que o facto de a norma não exigir como requisito da incriminação «a exploração de situações de abandono ou de necessidade económica», implicaria uma violação, na sua perspetiva, do princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, por não estar o legislador a tutelar a liberdade sexual das pessoas prostituídas, mas sim uma determinada moral social, que não competiria ao direito penal proteger, de acordo com o princípio da intervenção mínima ou da ultima ratio, invocando a seu favor os argumentos aduzidos nos votos de vencido à jurisprudência dominante neste Tribunal, que tem proferido um juízo negativo de inconstitucionalidade em relação à norma impugnada.
Os argumentos referidos nos votos de vencido incidem sobre a ausência de um bem jurídico com dignidade penal, que se traduzisse na proteção de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, e no entendimento, segundo o qual a norma prevê um crime sem vítima, que visaria apenas a prevenção ou a repressão do moralismo ou de sentimentos religiosos, e que traduziria um paternalismo do legislador, que seria até suscetível de ofender a liberdade das pessoas que, de livre vontade, se quisessem prostituir.
Contudo, como tem sido reafirmado pela jurisprudência dominante no Tribunal Constitucional, esta norma visa combater um fenómeno invisível na sociedade e que se traduz na exploração das pessoas prostituídas, que prestam um consentimento meramente formal à atividade da prostituição, mas que não vivem em estruturas económico-sociais que lhes permitam tomar decisões em liberdade, por pobreza, desemprego e percursos de vida marcados pela violência e pelo abandono desde uma idade muito jovem. Por outro lado, o fenómeno da prostituição, nos últimos trinta anos, mudou muito, verificando-se uma estrita ligação entre a prostituição e o tráfico de pessoas, o qual atinge dimensões crescentes, inimagináveis há algumas décadas. Verificou-se também que o sistema não tem instrumentos para distinguir, na prática, a ténue linha que separa o consentimento da pessoa para a prática de atos de prostituição das situações de tráfico e prostituição forçada. As leis que criminalizam o uso do serviço sem o consentimento da vítima enfrentam dificuldades sérias na sua implementação e o sistema não consegue aplicá-las efetivamente (cf. Sexual exploitation and its impact on gender equality, European Parliament, 2014, http://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2014/493040/IPOLFEMM_ET(2014)493040_EN.pdf). Neste contexto de política criminal, o desaparecimento do requisito da «exploração de um estado de necessidade ou de abandono» situa-se dentro da margem de liberdade de conformação do legislador democrático e visa, não a tutela de qualquer moral, mas a proteção de direitos fundamentais das pessoas à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade (artigos 1.º, 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP). (sublinhado nosso)
A prostituição é uma questão que preocupa os Estados, por estar associada ao tráfico de pessoas e implicar uma violação de direitos humanos de um número cada vez mais elevado de pessoas, na sua maioria mulheres e crianças migrantes (traficadas de países subdesenvolvidos para países desenvolvidos), impedindo a estas pessoas o acesso à cidadania, à liberdade, à igualdade de direitos, e à autonomia na condução da sua vida. As pessoas são utilizadas como fonte de lucro para outrem, através de uma atividade que é hoje designada como a escravatura dos tempos modernos, tratando-se a prostituição de um dos negócios mais rentáveis do mundo, movimentando cerca de $186.00 biliões por ano e envolvendo cerca de 40-42 milhões de pessoas, 90% das quais dependentes de outrem e 75% das quais têm idades compreendidas entre 13 e 25 anos (cf. Sexual exploitation and its impact on gender equality, European Parliament, 2014 – um estudo pedido ou encomendado pela Comissão do PE relativa aos Direitos das Mulheres e à Igualdade de Género). Segundo estatísticas dos Estados membros da EU, cerca de 60% a 90% das pessoas prostituídas são vítimas de crimes de tráfico (Ibidem).
Desde 1979, que as Nações Unidas têm por objetivo combater todas as formas de tráfico das mulheres e de exploração da prostituição das mulheres, conforme consta do artigo 6.º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).
A regulação jurídica e penal desta matéria encontra-se em evolução nos países da UE, visando a definição de políticas fortes de combate à exploração sexual e a elaboração de convenções e diretivas dirigidas ao alargamento da incriminação e ao aumento das penas quando a pessoa prostituída é menor de idade (Diretiva 2011/93/UE) ou vítima de tráfico (Convenção do Conselho da Europa contra o tráfico de seres humanos, de 2005, e as Diretivas 2011/36/UE e 2012/29/UE).
Os legisladores europeus aderiram a modelos diversos em matéria de prostituição: o modelo liberal da regulação da atividade como trabalho sexual (em vigor na Alemanha e na Holanda, mas ineficaz no combate ao tráfico, tendo provocado o aumento do mesmo, com indivíduos condenados por tráfico a pedirem licenciamento para o negócio da prostituição, sem qualquer melhoria das condições de trabalho das pessoas prostituídas e descida dos níveis de violência); o modelo abolicionista, em vigor na Suécia, na Noruega, na Islândia, na França e na Irlanda do Norte, que criminaliza todas as atividades relacionadas com a prostituição, inclusive o comprador de sexo, mas não as pessoas prostituídas (recomendado pelo Parlamento Europeu, na “Resolução de 26 de fevereiro de 2014, sobre a exploração sexual e a prostituição e o seu impacto na igualdade dos géneros”, por ter contribuído para a diminuição do tráfico de pessoas e da prostituição, bem como para uma alteração de mentalidades, normas e valores da população em relação à prostituição), e o modelo em vigor em Portugal, e noutros países europeus, que pune o lenocínio, de uma forma mais ou menos alargada, encontrando-se Portugal entre os países que prescindem, na definição do âmbito da incriminação, do requisito típico da exploração de um estado de necessidade e que pune, no artigo 160.º, n.º 6, do CP, quem, tendo conhecimento do crime de tráfico, utiliza, mediante pagamento ou outra contrapartida, os serviços da vítima.
Existe consenso entre os Estados membros da UE de que o tráfico de pessoas e a exploração sexual devem ser erradicados, afirmando-se no estudo «Sexual exploitation and prostitution and its impact on gender equality», de 2014, atrás citado, p. 9, que «A prostituição e a exploração sexual são assuntos altamente genderizados, com mulheres e meninas, na maioria dos casos, a vender o seu corpo, por coação ou com consentimento, e homens e rapazes a pagar por este serviço» (sobre dados estatísticos, na Holanda, vide TAMPEP, 2009, Netherlands Country Report, citado no estudo do Parlamento Europeu, p. 37, segundo os quais, em 2008, 90% das pessoas prostituídas eram mulheres e a maioria das mulheres prostituídas eram migrantes, principalmente da Europa de Leste). Segundo o mesmo estudo do Parlamento Europeu, está a «ganhar apoio crescente a conceção que entende que o negócio da prostituição não pode ser legitimado, por violar os princípios ínsitos na Carta dos Direitos Fundamentais, entre os quais se encontra o princípio da igualdade» (Ibidem, p. 9).
No quadro social e jurídico descrito, dada a complexidade da definição dos instrumentos legais adequados à proteção das pessoas prostituídas e ao combate ao tráfico, não pode deixar de se entender que está dentro da margem de liberdade do legislador democrático consagrar o modelo de criminalização do lenocínio, nos moldes em que o faz o artigo 169.º, n.º 1, do CP, que não padece assim de qualquer vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
[…]”.
Sendo certo que os fundamentos transcritos assentam em determinadas pressuposições, não é menos certo que, como se faz notar no Acórdão n.º 90/2018:
“[…]
[Não se pressupõe que as situações de prostituição estejam necessariamente associadas a carências sociais elevadas e que qualquer comportamento de fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição comporte uma exploração da necessidade económica ou social do agente que se prostitui, mas antes que tais situações comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, colocando em perigo a autonomia e liberdade do agente que se prostitui.
[…]
Por outro lado, […] a jurisprudência constitucional acima referida […] apreciou o critério da necessidade de tutela penal, enquanto decorrência do princípio da proporcionalidade, na dimensão acolhida no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
No entanto, e conforme se salienta no Acórdão n.º 694/2017, em que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre esta matéria, tal apreciação não se «deve confundir, porém, com o controlo da bondade das opções que o legislador democrático, no âmbito da sua margem de conformação, tome na concretização do respetivo programa político criminal, mormente quanto à inadequação ou insuficiência para a tutela do bem jurídico em proteção de meios não penais de controlo social a constituir – a decisão recorrida, pressupondo a manutenção da proibição do lenocínio, aponta a ‘via contraordenacional mínima em sede de regulação administrativa da atividade’ –, questão que não incumbe a este Tribunal apreciar».
[…]” (sublinhados acrescentados). […]
De onde resulta, em suma, uma liberdade, com amplitude muito considerável, do legislador – desde sempre sublinhada, neste exato contexto, pelo Tribunal (de novo remetemos para o item 8 do Acórdão n.º 144/2004) – em punir ou não punir os comportamentos, neste âmbito, com o que nisso vai implicado em termos de não proibição constitucional da solução adotada. Por outras palavras, “[decidir se o risco implicado para a autonomia do agente que se prostitui deve ser considerado como um perigo a prevenir pela via da incriminação da exploração profissional ou com fins lucrativos da pessoa que se prostitui, é […] uma opção que cabe dentro do poder de definição da política criminal que pertence ao legislador” (Acórdão n.º 421/2017).
2.4. É que existe uma diferença substancial entre a mera atividade de prostituição (não punida), e a (outra) atividade que a fomenta, favorece ou facilita, deslocando a segunda do campo da mera liberdade individual para uma constelação de relações sociais muito mais complexas, e desligadas das circunstâncias referenciáveis à individualização do ato de prostituição, que é inevitavelmente próxima – demasiado próxima – de movimentos, nacional e internacionalmente organizados, cujo resultado (aqui referimo-nos ao resultado da atividade dos referidos movimentos organizados num plano superior ao de cada “empresário”), quase invariavelmente, corresponde à perpetuação de situações de diminuição da liberdade e de sujeição a um poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo, visto que se exerce fora de relações formalizadas ou declaradas, as quais, uma vez iniciadas, são difíceis de quebrar ou interromper, tendendo a perpetuar-se enquanto se mantiver a respetiva “utilidade comercial”.
Com tal proximidade se gera um risco socialmente inaceitável, que não exorbita o âmbito de proteção da norma, nem dele é sequer periférico, porque se trata de um risco conatural ao proxenetismo, cujo empresário – como o de qualquer outro negócio – tende a organizar-se de modo a potenciar o lucro (criando redes ou procurando redes já estabelecidas, que lhe propiciem economias de escala, maximizando o controlo da atividade – insiste-se – fora de mecanismos de controlo efetivo, que pura e simplesmente não existem no nosso país), objetivo ao qual, mais tarde ou mais cedo, dificilmente escapará (o dano d)a vontade e (d)a liberdade das pessoas que se prostituem.
Mesmo que a expressão exploração esteja fora do tipo – e, como tal, não seja facto a provar in concreto – o risco da sua materialização é suficientemente forte para conter a norma dentro dos limites da proporcionalidade e, em particular, da necessidade da intervenção penal.
2.5. É o sentido da linha decisória a este respeito assumida, e diversas vezes reiterada, pelo Tribunal Constitucional desde 2004, num entendimento geral desta questão que ora cumpre, em oposição ao Acórdão recorrido, afirmar de novo.»
Por toda a fundamentação supra transcrita, e à qual aderimos, entendemos que a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, além de não ser inconstitucional protege a dignidade pessoal de quem se prostitui.
Ver a este propósito recente Ac RP Processo nº 26/19.0ZRPRT.P2, relatora: Amélia Catarino de 03.05.23.

Dispõe o artigo 169º, n.º 1 do Código Penal, que “1 - Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.”
São elementos constitutivos do tipo do crime de lenocínio que o agente fomente, favoreça ou facilite o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de atos sexuais de relevo; que o agente pratique tais condutas profissionalmente ou com intenção lucrativa; quanto ao dolo o conhecimento e vontade de praticar o facto, abarcando, naturalmente, todos os elementos do tipo objetivo.
A atividade profissional a que alude o tipo objetivo está diretamente relacionada com uma perspetiva de habitualidade da conduta, com uma atividade permanente, enquanto a intenção lucrativa igualmente prevista no tipo, pode já verificar-se através de uma atividade pontual ou esporádicas (cfr. Cons. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, II Vol. 1996, 281)
Na verdade, os arguidos, com intenção lucrativa, e bem sabendo que os quartos eram usados por prostitutas, e para a prostituição, facilitaram de forma interessada, a todas as meninas a quem alugavam os quartos, o exercício da prostituição. O que fizeram de forma livre e consciente.
Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra, transcrito no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 197/2021, “O que está em causa neste crime, com a redação que lhe foi dada pela Lei n° 59/2007 de 4.9, é o aproveitamento/exploração de quem dispõe do seu corpo, para dai retirar vantagens patrimoniais, o que conflitua com o principio da dignidade humana, e já não a liberdade de determinação sexual.(…)
Desapareceu a referência aos atos sexuais de relevo mas também à exploração de situações de abandono ou de necessidade económica.
Assim, sofreu alteração o bem jurídico protegido pela norma. Deixou de ser a liberdade de determinação sexual para passar a ser a dignidade da pessoa humana, valor constitucional, vertido, desde logo, no artigo 1o da nossa Lei Fundamental.
O bem jurídico, como o define Figueiredo Dias em Direito Penal - Parte Geral, tomo I, 2aed., "é a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso".
Ora, a exploração de quem se prostitui é indigna e ofende grandemente a dignidade da pessoa humana, dignidade esta protegida constitucionalmente.
"A atual redação do artigo 169°, n° 1 do Código, ao delimitar o tipo, recortando-o apenas em função da ação de fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição, com intenção lucrativa, eliminando a exigência da exploração de uma situação de abandono ou de necessidade económica, assim como a referência à prática de atos sexuais de relevo, não pune a ingerência na formação da vontade de quem se prostitui mas apenas o aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente, não é reconhecida como plenamente licita" - cfr. Ac. da RC de 10.7.2013.”
Nesta medida, é nosso entendimento que o bem jurídico protegido no art.º 169.º, n.º 1 do C. Penal não é tão só a liberdade de determinação sexual. Este crime existirá mesmo que aquele ou aquela que pratica a prostituição o faça livremente, sem quaisquer constrangimentos.
Ou seja, se for maior idade, e no gozo perfeito das suas faculdades mentais e pretender exercer a prostituição, o favorecimento que outrem fizer dessa atividade, profissionalmente ou com intuito lucrativo, não tem a ver com a sua liberdade de determinação sexual, mas antes com a ação de fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição, profissionalmente com intenção lucrativa, usando o corpo de uma mulher.
Assim, o que se pune não é a intromissão ou influência na formação da vontade de quem se prostitui, mas sim o aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente, não é reconhecida como totalmente lícita.
A norma do nº1 do artigo 169º, do CP, ao punir todo e qualquer aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de outros, pune essencialmente uma atividade, uma profissão, uma conduta (“quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa (…)”, e não uma desvirtuação ou deturpação da determinação sexual livre.
No fundo, o aproveitamento económico por terceiros da prostituição não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), tendo em conta o contexto social em que se verifica (classes sociais, relações interpessoais, ambiente ou ainda o nível de instrução ou escolaridade das pessoas ligadas à prostituição).
Acresce que esta incriminação da atividade profissional que se aproveita economicamente da prostituição condicionando a livre determinação sexual está em sintonia com a Constituição da República Portuguesa a qual, no artigo 59º, nº1, b) e c), e nº2, c), confere a todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, o direito à “A organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar; e à “prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde” incumbindo ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente, a “especial protecção do trabalho das mulheres durante a gravidez e após o parto, bem como do trabalho dos menores, dos diminuídos e dos que desempenhem actividades particularmente violentas ou em condições insalubres, tóxicas ou perigosas”.
Como se afirma no Ac. do TC n° 144/2004/T.Const, in www.dre.pt, está em causa, "inevitavelmente uma perspetiva fundamentada na história, na cultura e nas análises sobre a sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída ... Tal perspetiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma ordem jurídica orientada por valores de justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de ação, situações e atividades cujo "princípio" seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.° da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana".
Concluindo, os arguidos facilitaram o exercício por outras pessoas de prostituição com intenção lucrativa, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de obter para si os referidos proveitos económicos da atividade de prostituição que aquelas pessoas praticavam, a qual era do seu conhecimento.
E ao fazerem-no cometeram tantos crimes quantas as pessoas envolvidas exploradas na sua dignidade pessoal.
Desse carácter pessoal do bem jurídico resultam consequências quanto ao concurso de infrações quanto o agente fomenta, favorece ou facilita, no mesmo espaço temporal a prostituição de várias pessoas.
Encontramos aí concordância na Doutrina. Refere PINTO DE ALBUQUERQUE (Comentário…, p. 674): «o agente comete tantos crimes de lenocínio quantas as pessoas cuja prostituição, fomentar, favorecer ou facilitar, atenta a natureza pessoalíssima do bem jurídico protegido. Este entendimento é confirmado pela letra da lei, que inclui uma menção expressa e individualizada a “outra pessoa” (também assim o ac. do TRP de 13.7.2005, proc. 0540595 e JORGE DIAS DUARTE, Crime de Lenocínio: unidade ou pluralidade de infracções, SJ. Crimes Sexuais: o direito em acção, n.º 26, pp 33, INÊS GODINHO, 2011. 49; e MIGUEZ GARCIA e CASTELA RIO, C. Penal, Parte Geral e Parte Especial, anotação 13.º ao artigo 169.º).
É maioritária a corrente jurisprudencial que vai no mesmo sentido, da qual se situam ainda os seguintes arestos:
Lenocínio — constitucionalidade — concurso efectivo de infracções — (3)Hodiernamente, o tipo de lenocínio simples tutela uma determinada concepção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição. (4) — Evidenciando a matéria de facto provada várias resoluções criminosas da arguida, dirigidas ao propósito de lucro com a prostituição, ocorrem tantos crimes de lenocínio quanto as ofendidas envolvidas. (5) —
Em relação a cada uma das ofendidas que, durante todo o tempo da cedência onerosa, pela arguida, do espaço onde a prostituição era exercida, renovaram a prática dessa actividade, à luz de um juízo baseado nas normas de experiência de vida, a continuidade verificada corresponde a uma unidade de resolução volitiva, verificando-se, deste modo, tão só, um crime de lenocínio. (AcRC de 17/02/28, proc.° n.° 6/13.0 ZRCBR.C1 e AcRC de 18/02/28, proc.° n.° 6/13.0 ZRCBR.C1)
Bem jurídico protegido – concurso de crimes – (II) - O bem jurídico tutelado pela norma do n.º 1, do art.º 169.º, do C. Penal, é a dignidade da pessoa humana, “na vertente da dignidade ínsita à auto-expressividade sexual codeterminando tal inciso, axiológico-normativamente, a expressividade comunitária do modo de exercício do direito à liberdade e autodeterminação sexual”, que reveste carácter eminentemente pessoal. (III) – Sendo o bem jurídico protegido de natureza eminentemente pessoal, o número de crimes coincide com o número de vítimas. O mesmo é dizer que se verificam tantos crimes de lenocínio quantas as mulheres cuja actividade sexual foi pelos agentes explorada. (Ac. Rel. Lisboa de 19/01/2016. Proc. n.º 5964/11.6T3SNT.L1-5)
Bem jurídico protegido – (III) - No crime de lenocínio, o bem jurídico protegido é, não o sentimento geral de pudor e moralidade, mas sim a liberdade individual e a liberdade de determinação sexual". (Ac. Rel Porto de 14/10/2015, proc. n.º 43/10.6ZRPRT.P1)
Bem jurídico protegido – concurso de crimes – (IX) - O bem jurídico protegido com a incriminação do Lenocínio é a liberdade sexual individual da prostituta e a sua dignidade pessoal; tais bens, como bens eminentemente pessoais que são, levam a que se verifique um concurso efetivo de crimes sempre que existir uma pluralidade de vítimas. (X) - O acrescento sobre bens jurídicos pessoalíssimos aposto pela revisão de 2007 ao art. 30º do CP (nº 3) introduz um limite negativo à aplicação da figura do crime continuado: não há crime continuado – existe, portanto, um concurso real de infrações – quando o agente tiver atacado bens pessoalíssimos de mais de um portador. (Ac. da Rel. Porto de 28/03/2012, proc. n.º 86/08.0GBOVR.P1).
No caso sujeito, atenta a matéria de facto dada como provada, os arguidos praticaram cinco crimes de lenocínio, porquanto mostra-se provado que entre Fevereiro de 2019 e 11 de Fevereiro de 2020, os arguidos disponibilizaram os quartos da moradia que arrendaram a mulheres que aí mantinham práticas sexuais mediante o pagamento de um preço, recebendo os arguidos, dessas mulheres, dividendos provenientes dessa atividade.
Mostra-se ainda provado que os arguidos agiram de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Portanto, nenhuma ofensa cometeu o douto Tribunal Coletivo às normas invocadas ao efetuar a qualificação jurídica, contestada, como concurso real de infrações: cinco crimes de lenocínio do n.º 1 do art.º 169.º do C. Penal.
Não merecem, assim, provimento os recursos, quanto a esta primeira questão.

Da Medida da pena.
O recorrente AA a este propósito afirma que a medida da pena, por cada um dos crimes de lenocínio relativamente às ofendidas CC, DD, EE e FF, o tribunal deveria fixar uma pena não superior a 1 ano e 4 meses de prisão, relativamente à ofendida GG a pena de 1 ano de prisão.
Em cúmulo na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelas razões supra indicadas.
Violou-se o disposto nos arts 70, 71 e 77 do C.P.
E que atentas as razões aduzidas na motivação do recurso ora interposto, pontos 3 a 5 do item B, que aqui se dão por reproduzidas e face aos critérios legais (arts. 40º, 70º e 71º do C.P), a pena aplicada ao arguido, não deveria ser superior a 1 anos e 8 meses de prisão, considerando a hipótese de a sua conduta constituir apenas um crime.
A recorrente BB alega que pelas razões já aduzidas no Item – Medida da pena, por cada um dos crimes de lenocínio relativamente às ofendidas CC, DD, EE e FF, o tribunal deveria fixar uma pena não superior a 1 ano e 2 meses de prisão, relativamente à ofendida GG a pena de 8 meses de prisão.
Em cúmulo na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelas razões supra indicadas.
Violou-se o disposto nos arts 70, 71 e 77 do C.P
Pretende a recorrente que deveria ter sido aplicada a pena de 1 ano e 4 meses de prisão por um só crime de lenocínio que abrangesse toda a sua conduta.

O Tribunal a quo pronunciou-se sobre esta questão nos seguintes termos:
“O crime de lenocínio, p.p. no art.º 169º, n.º1, do C.P. é punido com pena de prisão de 6 meses a cinco anos.
A compreensão dos fundamentos, do sentido e dos limites das penas deve partir de uma concepção de prevenção geral de integração (a pena só ganha justificação a partir da necessidade de protecção de bens jurídicos – art. 40º, nº 1, do CP –, visando uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada e em que a intimidação só actua dentro do campo marcado por certas orientações culturais, por modelos ético-sociais de comportamento que a pena visa reforçar), ligada institucionalmente a uma pena da culpa (a pena deve supor sempre e sem alternativa um elemento ético de censura pessoal do facto ao seu agente, por exigência constitucional de respeito da dignidade da pessoa humana, revelando a personalidade do agente para a culpa na medida em que se exprime no ilícito típico perpetrado; a culpa constitui ainda o limite inultrapassável da pena – art. 40º, nº 2, do CP), a ser executada com um sentido predominante de (re)socialização do delinquente (trata-se de oferecer ou de proporcionar ao delinquente o máximo de condições favoráveis ao prosseguimento de uma vida sem praticar crimes, ao seu ingresso numa vida fiel ou conformada com o ordenamento jurídico-penal – art. 40º, nº 1, do CP).
Traçadas as coordenadas lógicas do moderno sistema penal português, no que às reacções criminais diz respeito, importa agora proceder à determinação da natureza e medida da sanção a aplicar, tendo em conta o disposto no arts. 71º do Código Penal.
O critério e as circunstâncias do art.º 71º do Código Penal são contributo quer para a determinação da medida concreta proporcionalmente compatível com a prevenção geral (que depende da natureza e do grau de ilicitude do facto face ao maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), quer para identificar as exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), fornecendo ainda indicações exógenas objectivas para a apreciação e definição da culpa do agente.
As exigências de prevenção geral são determinantes de primeira referência na fixação da medida da pena, face à necessidade de reafirmação da validade das normas, defendendo o ordenamento jurídico e assegurando segurança à comunidade, para que esta sinta confiança e protecção pela norma, apesar de violada.
Tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com as exigências de prevenção especial, quer no sentido de evitar a reincidência, quer na socialização do agente com vista a respeitar os valores comunitários fundamentais tutelados pelos bens jurídico-criminais.
No caso concreto, diremos que a ilicitude é mediana se considerarmos o número mulheres e os valores obtidos pelos arguidos com tal actividade.
O dolo, porém, é directo
A favor do arguido AA depõe a confissão, ainda que parcial.
Contra si depõem os antecedentes criminais, também por crime contra a autodeterminação sexual.
A arguida, por seu turno, não tem antecedentes criminais e, pese embora a co-autoria, a sua actuação é, em nosso entendimento, dependente do impulso inicial do arguido.
Temos ainda a ponderar o tempo durante o qual os arguidos desenvolveram a referida actividade.
Tudo ponderado, o Tribunal entende dever condenar os arguidos, por cada um dos crimes de lenocínio relativamente às ofendidas CC, DD, EE e FF, nas penas:
O arguido AA, nas penas de 1 ano e 6 meses de prisão;
A arguida BB, nas penas de 1 ano e 4 meses de prisão;
Relativamente à ofendida GG, considerando que não foi possível determinar o período de tempo em que a mesma permaneceu na casa, mas sendo este seguramente inferior ao das demais, julga-se adequado fixar a pena de 1 ano e 2 meses, no que respeita ao arguido AA e 1 ano, relativamente à arguida BB.
*
Do cúmulo jurídico das penas
Cabe proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares encontradas nos termos estabelecidos no artigo 77.º do Código Penal, cujo nº1 preceitua: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
O artigo 77.º, nº2, do CP estabelece: “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
Aplicando o critério legal para a determinação da pena única, verifica-se que a sua moldura se define:
No que respeita ao arguido AA entre 1 ano e 6 meses de prisão e 7 anos e 2 meses de prisão;
No que respeita à arguida BB, entre 1 ano e 4 meses de prisão e 6 anos e 4 meses de prisão;
Ponderando os factos na sua globalidade e personalidade dos arguidos neles espelhada, julga-se adequado e necessário condenar os arguidos nas seguintes penas únicas:
- o arguido AA, 3 anos e 6 meses de prisão;
- a arguida BB, na pena de 3 anos de prisão.
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3.2. Das penas de substituição
Como é sabido, a aplicação de penas curtas de prisão abre o campo das soluções de descaracterização, desformalização e diversão, i.e., das penas de substituição (na nova nomenclatura legal, as penas de substituição são alinhadas pela seguinte ordem: regime de permanência na habitação, substituição da prisão por multa, proibição do exercício de profissão, função ou actividade, prestação de trabalho a favor da comunidade e suspensão da execução da pena de prisão.
Na ponderação da aplicação das penas de substituição, dentro do quadro das finalidades da punição, o tribunal deve atender à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
É de convocar para o caso dos autos, a suspensão da execução da pena de prisão, única pena de substituição aplicável, dadas as penas únicas concretamente aplicadas
O tribunal tem o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
É sabido que só se deve optar pela suspensão da execução da pena quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro.
Esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar.
Trata-se, pois, de uma convicção subjectiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso (cf. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, já citado, pág. 344).
A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.
Numa perspectiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado.
Por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal.
A aposta que a opção pela suspensão, sempre pressupõe, há-de fundar-se num conjunto de indicadores que a própria lei adianta: personalidade do agente, condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias deste.
No caso dos autos, os arguidos estão social e profissionalmente inseridos, pelo que julgamos poder fundamentar um juízo de prognose no sentido de que a ameaça de execução da pena bastará para a afastar da prática de novos crimes.
Assim, entende o tribunal colectivo dever suspender a execução da pena de 3 anos e 6 meses aplicada ao arguido AA, pelo período de 3 anos e 6 meses; e a pena de 3 anos de prisão aplicada à arguida BB pelo período de 3 anos.”

Posto isto à partida poder-se-ia dizer que se acolhe integralmente a posição assumida no acórdão recorrido, não se vislumbrando qualquer erro de direito no percurso lógico e jurídico enunciado, concordando-se com a avaliação aí realizada.

No que se refere à primeira parte destas conclusões, em que os recorrentes pretendem que foram violados os art.s 70.º e 71.º do C. Penal (conclusão 13.ª), ao não se fixar a pena de 1 ano e 8 meses de prisão e de 1 ano e 4 meses de prisão, respetivamente, por um só crime de lenocínio que abrangesse toda a sua conduta, não lhes assiste patentemente qualquer razão, pois que dada a qualificação jurídica efetuada na decisão recorrida, e que este Tribunal subscreve, não tinha o Tribunal recorrido que determinar uma só pena que abrangesse toda a conduta de cada um dos arguidos, pelo que não o fazendo, não violou o Tribunal qualquer norma.
Por outro lado a Relação intervém na pena, alterando-a, quando deteta incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação ou aplicação das normas e princípios legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de 1ª instância, pois o recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal a quo enquanto componente individual do ato de julgar.
A aplicação de penas visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, nº 1 e nº 2, do C. Penal), sendo que a proteção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos.
Prevenção e culpa são os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena. A prevenção representa a necessidade, para a comunidade, da punição do caso concreto enquanto a culpa, já dirigida ao agente do crime, constitui o limite máximo da pena e, por consequência, o limite às exigências de prevenção.
A dimensão da necessidade de tutela dos bens jurídicos, em cada caso concreto, temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, ditará a medida concreta da pena, a qual nunca poderá ultrapassar a culpa.
Claus Roxin, Culpabilidade y Prevención en Derecho Penal, págs. 94 -113, explica, na sua teoria da margem de liberdade, a função da culpa na determinação concreta da pena, que a pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), limites esses que são determinados em função da culpa do agente e aí intervindo, dentro desses limites, os outros fins das penas (as exigências da prevenção geral e da prevenção especial).
De harmonia com estes princípios, estabelece o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.” E, “Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. (artº 71º, nº 2, do CP)
“Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena” – artigo 71º, nº3, do CP.
No caso concreto está em causa a condenação dos arguidos pela prática de vários crimes de lenocínio.
Tal crime protege como já tivemos oportunidade de dizer, essencialmente a dignidade da pessoa humana.
Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71º do Código Penal estando vinculado aos critérios de escolha da pena constantes do preceito.
Como se refere no acórdão do STJ de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do art. 71º do C. Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.
Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194, diz: “o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena”.
Retornando ao concreto caso dos autos, e face à descrita e provada conduta dos arguidos, temos que o grau de ilicitude é saliente, atentos os valores obtidos com a exploração e o número de vítimas envolvidas.
Por outro lado, o dolo com que atuaram foi direto e intenso.
Não podemos também olvidar as exigentes necessidades de prevenção geral neste domínio do crime em que em suma se trafica o corpo da mulher, enquanto gerador de significativa criminalidade e que tem assumido contornos graves, afetando a vida em sociedade na medida em que dificulta a inserção social e possui comprovados efeitos criminógenos e que causam alarme social.
Por outro lado, considerou a decisão recorrida a confissão parcial dos factos colaborando com o tribunal na administração da justiça, e bem assim o seu comportamento anterior traduzido na existência e ausência (a arguida) de antecedentes criminais e a respetivas inserção familiar, profissional e social.
Dessa forma se tendo ponderado, na sentença recorrida, as exigências de prevenção geral e especial.
Assim, as exigências preventivas gerais mostram-se significativas, perante a necessidade de manutenção da validade das normas que protegem a saúde, a dignidade, e também a liberdade de autodeterminação sexual.
Face a estes elementos, pouco há a adiantar afigurando-se-nos terem as penas concretas sido doseadas com equilíbrio e de forma adequada e proporcional, não se justificando intervenção corretiva por parte deste Tribunal de recurso.
De facto e relativamente às penas parcelares situam-se as mesmas para ambos os arguidos abaixo de 1/3 da pena máxima.
Revela-se suficientemente aferido o grau de culpa dos recorrentes, bem como as necessidades de prevenção geral e especial, tendo as penas sido fixada próximas do limite mínimo abstratamente estatuído para o crime em causa, estando assim plenamente preenchidas as finalidades da punição, pelo que nenhuma censura nos merece a decisão do Tribunal recorrido a qual não apresenta incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido na interpretação e aplicação das normas e princípios legais e constitucionais que regem a pena.
Concluindo, de acordo com o suprarreferido, e em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização, tendo em atenção, no caso concreto, as necessidades de tutela do bem jurídico violado, e as exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem ter olvidado as condições pessoais dos recorrentes, concluímos que as penas parcelares de um ano e seis meses e um ano e quatro meses e um ano de dois meses e de um ano atinentes a cada um dos arguidos e respeitantes a cada uma das vítimas, se mostram proporcionais e adequadas aos factos praticados, sendo suficientes para salvaguarda da premente prevenção geral que o caso reclama, e em respeito pelas normas dos artigos 40º, 71º do C.P.

Relativamente à pena única estipulada ao abrigo do art. 77º do C.P.
O legislador português desenhou um modelo de determinação da medida concreta da pena única, por aplicação das regras do concurso, assente em três operações fundamentais.
A primeira operação passará por determinar a pena que concretamente cabe a cada um dos crimes em concurso, segundo o procedimento normal de determinação. No caso concreto tal passo está já realizado, uma vez que, por se tratar de um conhecimento superveniente do concurso, já foram aplicadas penas concretas a cada um dos crimes em concurso.
Em seguida, impõe-se a determinação da moldura do concurso, nos termos e com os limites definidos pelo artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal, que estabelece que “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Por fim, movendo-se dentro das balizas oferecidas pela moldura alcançada, deve o Tribunal determinar a medida concreta da pena conjunta segundo os critérios gerais da culpa e da prevenção a que alude o artigo 71.º, do Código Penal, e, ainda, segundo um critério especial que o legislador inseriu para a determinação da medida da pena única, os factos e a personalidade do agente, conjuntamente considerados (cf. artigo 77.º, n.º 1 in fine). A propósito deste critério especial, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2013, esclareceu que “imprescindível na valoração global dos factos, para fins de determinação da pena de concurso, é analisar se entre eles existe conexão e qual o seu tipo; na avaliação da personalidade releva sobretudo se o conjunto global dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, dando-se sinais de extrema dificuldade em manter conduta lícita, caso que exaspera a pena dentro da moldura de punição em nome de necessidades acrescidas de ressocialização do agente e do sentimento comunitário de reforço da eficácia da norma violada ou indagar se o facto se deve à simples tradução de comportamentos desviantes, meramente acidentes de percurso, que toleram intervenção punitiva de menor vigor, expressão de uma pluriocasionalidade, sem radicar na personalidade, tendo presente o efeito da pena sobre o seu comportamento futuro”.
Assim, para a determinação da medida concreta da pena única impõe-se ao Tribunal que atenda à imagem global do facto, como se se ficcionasse o conjunto dos crimes do concurso como um todo único, no qual deve ser analisada a existência de eventuais conexões entre os factos e o tipo de conexão existente, procurando estabelecer uma relação destes com a personalidade do agente. No fundo é necessário perceber se a personalidade do agente e a forma como é caracterizado, tem projeção nos factos praticados. Este trabalho de avaliação global tem em vista aferir se o conjunto daqueles factos praticados expressa uma tendência criminosa a qual se possa, até e eventualmente, apelidar de “carreira” criminosa, ou, somente, pode ser tida como uma situação de pluriocasionalidade, isto é, se a repetição dos factos ilícitos emerge, apenas de fatores meramente ocasionais.
Volvendo ao caso dos autos, impõe-se realizar as operações descritas para determinar a pena a aplicar ao arguido.
É dentro destas balizas que funcionarão os critérios gerais de determinação da pena concreta e o critério especial da determinação da pena única do concurso.
No que concerne aos critérios gerais importa sublinhar as exigências de prevenção quer geral quer especial que o caso convoca e que se apresentam de forma elevadíssima.
No que concerne à prevenção geral a prática de cinco crimes de Lenocínio reclama uma reafirmação firme da norma violada atendendo à importância do bem jurídico em causa.
No que tange às exigências de prevenção especial o arguido AA apresenta fortes necessidades de intervenção ao nível da sua ressocialização e da prevenção da prática de novos crimes face aos seus antecedentes criminais.
Virando agora a atenção para o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, in fine, a visão global dos factos é dada pelas cinco condenações em apreço, pela prática, em cada uma delas, do mesmo tipo legal de crime, com lesão do mesmo bem jurídico.
Desta avaliação global ressalta, ainda uma conexão dos factos assente na repetição do mesmo tipo legal de crime.
Através de tudo o que fica dito é possível estabelecer uma relação com a personalidade dos agentes. A factualidade provada permite caracterizar estas personalidades como desviantes, sendo pautadas por uma desconformidade ao direito e pelo desrespeito para com o dever ser jurídico-penal, pela falta de interiorização do desvalor das suas condutas e da gravidade dos crimes perpetrados. O passado criminal do arguido AA revela que as penas que foram aplicadas ao arguido ao longo do tempo não surtiram efeito no sentido de o sensibilizar para um caminho longe da ilicitude porquanto desrespeitou todas as solenes advertências contidas nas penas que lhe foram sendo aplicadas até ao momento presente. Ora, destas considerações não pode retirar-se outra conclusão que não seja a de que a imagem global do facto, assente na reiterada prática do mesmo tipo legal de crime, espelha, efetivamente, uma tendência criminosa, não podendo afirmar-se que a prática destes factos se tenha ficado a dever a circunstâncias externas ou a uma situação de ocasionalidade. O mesmo já não poderá dizer-se para a arguida BB.
Assim sendo, e nas palavras de FIGUEIREDO DIAS “Só no primeiro caso [referindo-se à verificação da tendência criminosa], já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta” (FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Coimbra Editora, p.291).
Ora, ponderando, por um lado as elevadas exigências de prevenção geral e especial, e por outro, a conjugação dos factos praticados (atinentes à prática do mesmo tipo legal de crime) com a personalidade, que revela a tendência criminosa do arguido AA, têm necessariamente de agravar a medida concreta da pena a aplicar. Esta agravação pode traduzir-se na fixação da pena concreta em medida superior ao ponto médio da moldura encontrada para o cúmulo e relativamente a BB bastamo-nos com o limite no ponto médio.
A este respeito importa ainda considerar o que afirma o M.P. a quo “Ora, à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como informam Simas Santos e Leal-Henriques Noções de Direito Penal, 8ª edição 2020 pag. 291: «já entendeu o Supremo Tribunal que, no nosso sistema de pena única conjunta, o limite mínimo da moldura atendível é constituído pela mais grave das penas parcelares (numa concessão minimalista ao princípio da agravação — a punição do concurso correrá em função da moldura penal prevista para o crime mais grave) mas devendo a pena concreta ser agravada por força da pluralidade de crimes, sem que possa ultrapassar a soma das penas concretamente que seriam de aplicar aos crimes singulares (princípio da acumulação — a fonte essencial de inspiração do cúmulo jurídico em que são determinadas as penas concretas aplicáveis a cada um dos crimes singulares, construindo-se depois uma moldura penal do concurso, dentro do qual é encontrada a pena unitária). Nessa ótica e num esforço para evitar as disparidades injustificadas detetadas naquelas penas, tem vindo a considerar-se como ponto de partida na determinação dessas penas, a agravação da pena parcelar mais grave com um coeficiente do remanescente das restantes penas parcelares, que se situa, em princípio, entre um terço e um sexto da sua soma total, a precisar em função das circunstâncias do caso e a personalidade do agente.» (Cfr., v.g., os Ac.STJ de 15.3.2007, proc. n.º 633/07-5 de 31.5.2007, proc. n.º 1412/07-5, disponíveis em www.dgsi.pt).
Sobre essa matéria incidiu uma tese de mestrado em Criminologia, “Pena única no concurso de Crimes, um estudo em sentencing”, um estudo empírico sobre esta temática em que se concluiu ser nesse sentido a prática do Supremo Tribunal de Justiça. “Universidade da Maia, de Tatiana Severino, orientação do Conselheiro Simas Santos, publicada em Estudos em sentencing, Edições ISMAI, Maia, 2018.”
Aplicando os factores de 1/3, o mais comummente usado pelo STJ, e o de ½, atenta os factos e personalidade dos arguidos que eles revelam, ao remanescente das penas parcelares (total das penas parcelares – pena mais grave) a somar à pena mais grave, teríamos, face às penas parcelares, que a pena única dever-se-ia situar entre 3 anos e cerca de 4 meses (1/3 do remanescente) e 4 anos e 4 meses (1/2 do remanescente) para AA e dever-se-ia situar entre 3 anos (1/3 do remanescente) e 3 anos e 10 meses (1/2 do remanescente) para BB, pelo que as penas concretas únicas fixadas para um e outra cumprem aqueles critérios, porquanto fixadas em 03 anos e 06 meses e 03 anos respetivamente de prisão no conjunto global dos factos e personalidade do agente e dos critérios legais.
Consequentemente, porque nas operações realizadas para determinação da medida concreta da pena não se deteta qualquer desconformidade com a lei ou desproporcionalidade na sua fixação, nada se impõe alterar.
Acresce que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo há muito que «[em matéria de medida concreta da pena, apesar de se mostrar hoje afastada a concepção da medida da pena concreta, como a «arte de julgar» substituída pela de autêntica aplicação do direito, aceitando-se a sindicabilidade da correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa e a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada.»[2]
No mesmo sentido, entre outros, entendeu-se no acórdão da Relação de Coimbra de 05-04-2017[3] que:
«I - No quadro da moldura penal abstracta, a fixação [da pena] estabelece-se entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente: entre estes limites satisfazem-se as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
II - Relativamente à determinação do quantum exacto de pena [só] será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou se se verificar desproporção da quantificação efectuada.»
Esta jurisprudência reflete a ideia, que perfilhamos, de que a alteração da medida concreta da pena em sede de recurso deve respeitar a zona de liberdade do julgador em 1.ª Instância ao fixar o quantum da pena, desde de que se situe entre os referidos limites que satisfazem as necessidades de prevenção especial (o mínimo necessário à salvaguarda das expectativas comunitárias e o máximo balizado pela culpa do agente) e não ocorra violação das regras da experiência comum ou manifesta desproporção na pena aplicada, o que claramente não ocorreu no caso dos autos.
Nenhuma alteração se impõe, por isso, realizar nesta sede.

III. Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento aos recursos, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida por cada um (arts. 513.º, n.ºs. 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).
Notifique.

Sumário da responsabilidade do relator.
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Porto, 24 de maio de 2022
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cf., entre muitos outros, acórdão de 11-10-2007, Proc. n.º 07P3171, acessível in www.dgsi.pt.
[3] Cf. Proc. n.º 47/15.2IDLRA.C1, acessível in www.dgsi.pt.