Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0434740
Nº Convencional: JTRP00037249
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO
Nº do Documento: RP200410150434740
Data do Acordão: 10/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: Quer em virtude de os danos se terem verificado em Portugal, quer em virtude de a lesada ter residência no nosso país, o tribunal português é internacionalmente competente para conhecer dum pedido indemnizatório emergente de despesas com um veículo de substituição havidas em Portugal, para substituir um veículo sinistrado em Espanha, sendo também competente para conhecer do pedido de indemnização por danos não patrimoniais derivados dos incómodos relacionados com tal substituição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I -
B............., residente no ............., n.º.., ..........., veio intentar contra:
O GABINETE PORTUGUÊS DA CARTA VERDE, com sede na Rua ............, n.º.., ...........;
A presente acção sumária.

Alegou, em síntese, que entre o seu veículo, que identifica, e outro de matrícula espanhola, que também identifica, ocorreu – em ............, Espanha - um acidente de viação.
A seguradora (espanhola) do veículo daquele país assumiu a responsabilidade, mas recusa-se a pagar o preço que ela, A., despendeu, já em Portugal, com um veículo de substituição.

Em consequência, pediu a condenação desta a pagar-lhe:
3.861 euros relativos ao preço do aluguer do veículo;
700 euros a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros a contar da citação.

Contestou a R., sustentando, no que agora nos importa, que o tribunal português é internacionalmente incompetente.

No despacho saneador, a Sr.ª Juíza, estribando-se no n.º3 do artº 5º da Convenção de Lugano, julgou o tribunal português internacionalmente incompetente e, corolariamente, absolveu a R. da instância.

II –
Agrava a A., concluindo as alegações do seguinte modo:

1. Na petição inicial a ora agravante invocou como causa de pedir as despesas que efectuou com um veículo de substituição consequência do acidente que ocorreu em Espanha;
2. No ordenamento jurídico espanhol não existe causa de pedir para a presente acção porque as seguradoras espanholas não pagam despesas com veículos de substituição;
3. Só perante os tribunais portugueses a agravante poderá fazer valer os seus direitos pois não pode de outro modo o direito invocado tornar-se efectivo.
4. É o estado de necessidade que justifica a atribuição aos tribunais portugueses da competência internacional para que o direito invocado não fique sem garantia judiciária – in Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, I, 3ª Ed.
5. Entendemos que a Meritíssima Juiz violou o princípio da necessidade estatuído na alínea d) do artº 65º do CPC.

Contra-alegou o Gabinete da Carta Verde.
Apoiou-se nas Convenções de Lugano e de Bruxelas e, bem assim, no artº 65º do CPC e sustentou, em consequência que extrai, que é de manter o decidido.

III –
A questão que se nos depara consiste, pois, apenas em saber se o Tribunal de ............. é internacionalmente competente para a presente causa.
Na construção jurídica que vamos fazer não estamos limitados à levada a cabo pela recorrente, por valer, neste domínio, a liberdade do tribunal que aprecia o recurso (cfr-se, prof. Castro Mendes, Recursos, 28).

IV –
Concretizando o referido em I, temos que a A. alega que:

- No dia 28 de Julho de 2001 ocorreu um acidente de viação, na cidade de ............., em Espanha, em que foram intervenientes o seu veículo de matrícula ..-..-PH e o veículo de matrícula espanhola A-....-CT;
- Sete meses após o acidente, a representante da Companhia de Seguros estrangeira a “X............” reconheceu a responsabilidade do seu segurado pela ocorrência do sinistro e autorizou a reparação do veículo da Autora, entregando-lhe a quantia de 1.604,01 Euros para pagamento à oficina;
- Durante o período de privação do seu veículo, a Autora alugou uma viatura, despendendo com o seu aluguer 3.861 Euros;
- A representante da seguradora espanhola recusou o pagamento de tal montante, com o argumento de que as seguradoras espanholas não pagam veículos de substituição.

De interesse, temos ainda que:

A acção foi intentada em 23.10.2002.
A A. tem residência em ........... .

V –
Atentemos primeiro nas disposições legais que nos possam interessar:

1 . No âmbito interno, temos o artº 65º do CPC, assim redigido:
A competência dos tribunais portugueses depende da verificação de alguma das seguintes circunstâncias:
a) .....
b) ......
c) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
d) Não poder o direito invocado tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português, ou não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

2 . No domínio internacional, vieram a lume:
A – A Convenção de Bruxelas, que dispõe:
Artº 3º
As pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante só podem ser demandadas perante os tribunais de outro Estado Contratante por força das regras enunciadas nas secções 2 a 6 do presente título.
Contra elas não podem ser invocadas, nomeadamente:
........
Em Portugal: o n.º1, alínea c) do artº 65º do Código de Processo Civil...
........

Artº 5º
O requerido com domicílio no território de um Estado contratante pode ser demandado num outro Estado contratante:
.....
3 .... Em matéria extracontratual perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso.

B – A Convenção de Lugano, estatuindo nos artºs 3º e 5º, n.º3, o mesmo que a anterior Convenção.

C – O Regulamento CE n.º 44/2001, do Conselho, de 22.1.2.2000 que insere os seguintes preceitos:
Artº 3º
1 - As pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo.
2 – Contra elas não podem ser invocadas, nomeadamente, as regras de competência nacionais constantes do Anexo I.

Este anexo, no que se refere a Portugal veda, além do mais, todo o artigo 65º do CPC.

Artº 5º
Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:
.........
3 - Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.

Artº 8º
Em matéria de seguros, a competência é determinada pela presente secção...
Artº 9º
O segurador domiciliado no território de um Estado-Membro pode ser demandado:
a) .....
b) Noutro Estado-Membro, em caso de acções intentadas pelo tomador do seguro, o segurado ou um beneficiário, perante o tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio...

Artº11º
O disposto nos artºs 8º, 9º e 10º aplica-se em caso de acção intentada pelo lesado directamente contra o segurador, sempre que tal acção directa seja possível.

Artº 66º
1 – As disposições do presente regulamento só são aplicáveis às acções judiciais intentadas...posteriormente à entrada em vigor do presente regulamento.

Artº 76º
O presente regulamento entra em vigor em 1.3.2002.

VI –
Temos de referir, antes do mais, que o afastamento do artº 65º, n.º1 c) do CPC, levado a cabo pelas Convenções de Bruxelas e de Lugano, não se reporta à actual alínea c). Reporta-se à alínea c) de então que estabelecia o princípio da reciprocidade que aqui não nos interessa. A alínea que se reportava à causa de pedir era a b).

Interpretando a expressão “facto danoso” que é repetida nas ditas Convenções, o TJ das Comunidades entendeu que pode abranger o lugar da verificação do dano, ainda que não de modo absoluto – Ac. de 11.1.1990, Colectânea I, 1990, 74.
Este entendimento da abrangência do lugar dos danos, ainda que centrado na interpretação da lei interna, tem sido uma constante da nossa Jurisprudência e doutrina. Preenchem-se as dúvidas que poderiam existir com recurso, antes da redacção de 1995-96, à natureza da causa de pedir e à sua referência, então, na alínea b) do artº 65º do CPC.
Foi esta interpretação que presidiu ao Assento, tirado por unanimidade, de 17.2.1994 (BMJ 434, 61) (ainda que ele aqui não valha directamente) e aos Ac.s do STJ de 14.1.93 (CJ STJ, I, 1, 57) e da RC de 23.10.1990 (CJ 1990, 4, 83). Na doutrina, apenas exemplificativamente, prof. A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª ed. 202 e prof. Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil Declaratório, II, Ano 1982, 28.
Depois da redacção emergente da mencionada reforma de 95-96, a agora alínea c) do n.º1 do artº 65º passou a ser expressa: basta ter lugar em Portugal – refere - algum dos factos que integram a causa de pedir. Nessa conformidade, manteve-se a orientação anterior – cfr-se, também exemplificativamente, o Ac. do STJ de 23.9.1997 (BMJ 469, 445), os Ac.s desta Relação de 28.9.1998, na CJ XXIII, 4, 194 e de 8.5.2001, em www.dgsi.pt, prof. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 119 e prof. Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, I, 132.

VII –
No que tange especificamente aos acidentes de viação, de há muito que se considera a respectiva causa de pedir complexa, abrangendo, nessa complexidade, os prejuízos (Veja-se, nomeadamente, prof. Vaz Serra, RLJ 103, 511 e jurisprudência tão abundante que dispensa citação).
Assim, considerou-se que ocorrendo em Portugal os prejuízos, estava assegurada a competência dos tribunais portugueses – cfr-se os citados acórdãos do STJ de 23.9.97 e desta Relação de 8.5.2001

VII –
Com a entrada em vigor do Regulamento CE n.º44/2001 referido não há razões para alterar este entendimento. Não se poderá agora olhar para o artº 65º do CPC, por, em prevalência do direito de origem externa, tal Regulamento o vedar. [Acentue-se que o veda quanto a casos como o nosso. Se o réu não tivesse domicílio em qualquer dos Estados Membros até o afirmava – artº 4º, n.º2]
Mas o artº 5º, n.º3 dispõe nos termos sobreditos. Manteve-se a referência ao lugar do facto danoso, acrescentado-se apenas o lugar onde este poderá ocorrer.

VIII –
Para além disto, este Regulamento encerra outro caminho por onde se chega à competência do tribunal português.
Referimo-nos ao disposto no artº 11º, n.º2, que remete, além do mais, para a alínea b) do artº 9º. A acção de indemnização do lesado directamente contra o segurador pode ser intentada no Estado Membro onde o aquele tiver o seu domicílio. E, por aqui se tratar do Gabinete da Carta Verde, tal não fica afastado. Antes vale, contra este, o argumento de maioria de razão.
Compreende-se bem esta disposição. Primeiro, face ao constante do n.º13 dos “Considerandos” (“No respeitante aos contratos de seguro...é conveniente proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral”). Depois, já no domínio específico dos acidentes de viação, face à tendência facilitadora, a nível de indemnizatório, que atingiu expoente máximo na Directiva n.º2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Maio, transposta para a ordem interna portuguesa pelo Decreto-Lei n.º72-A/2003, de 14.4. [“Possibilitando o decurso do processo de indemnização do lesado no seu Estado Membro de residência...” – Lê-se no preambulo do Decreto-Lei. Note-se, contudo, que o processo ali aludido não é o processo judicial, assunto em que a Directiva 2000/26/CE não quis estatuir (cfr-se o ponto 13 dos respectivos considerandos). Assim, a aplicação aqui do DL está arredada, sendo certo que sempre o estaria, aliás, por razões manifestas de direito intertemporal. Chamámos para aqui tais normativos apenas como adjuvantes da interpretação que vimos defendendo]

IX –
Chegados aqui, voltemos ao caso dos autos.
Pela data do acidente e da entrada em vigor do mencionado Regulamento poder-se-ia pensar que estava aqui arredado.
Só que, este contém a norma de direito intertemporal que transcrevemos supra (artº 66º, n.º1), colocando o ponto de referência para a sua aplicação no tempo, não na data dos factos, mas da instauração do processo. Exclui a aplicação às acções já intentadas em 1.3.2002, mas inclui-a quanto às intentadas posteriormente. O que também, afinal, se compreende bem. Estamos no domínio do direito adjectivo, a regra seria a aplicação imediata, e haveria apenas que legislar contra ela, evitando o contratempo de se intentar acção contando com determinadas regras processuais e, no decurso dela, ver estas, com relevância em tal processo, alteradas. A data dos factos que integram a causa de pedir não é importante para aqui.

X –
Tendo a nossa acção sido intentada em 23.10.2002, temos de nos arrimar ao falado Regulamento.
O que, não só permite que nos estribemos no entendimento que já vinha de trás, como lhe acrescentemos o que referimos em VIII.
Ou seja, quer a partir do lugar onde foi alugado o veículo de substituição, quer tendo em conta o domicílio da autora, chegamos à competência internacional do tribunal português.

XI –
Nesta conformidade, em provimento do agravo, determina-se que a Sr.ª Juíza substitua a decisão recorrida por outra que considere que assiste ao tribunal a referida competência.
Custas pela R..
Porto, 15 de Outubro de 2004
João Luís Marques Bernardo
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida