Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1048/14.3TAPVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: BANCO DE PORTUGAL
SIGILO BANCÁRIO
Nº do Documento: RP201709131048/14.3TAPVZ-A.P1
Data do Acordão: 09/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 727, FLS.10-13)
Área Temática: .
Sumário: O segredo bancário do Banco de Portugal reger-se pelos arts. 80º e 81º do RGICSF, e a quebra do sigilo tem de ser obtida mediante o incidente do artº 135º CPP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal n.º 1048/14.3TAPVZ-A.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Criminal de Vila do Conde

Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I - Relatório.
Nos autos de inquérito nº 1048/14.3TAPVZ que correm termos na secção única do Departamento de Investigação e Acção Penal da Póvoa de Varzim são investigados factos que eventualmente preenchem a prática de um crime de burla qualificada, tendo por objecto a entrega à assistente de 10 cheques pré-datados, num valor superior a 160 mil euros, para pagar uma dívida da Sociedade “B… S.A.”, representada pelo denunciado C….
Na participação é alegado que quando os cheques foram emitidos por aquele denunciado a “B… S.A.” titular da conta sacada já se encontrava inibida de emitir cheques.
Efectuadas diligências no sentido de obtenção da informação sobre a data a partir da qual o titular da conta bancária com o NIB …. …. ……….. .., denominada “B…, S.A:” NIPC ……… se encontra inibido do direito de emitir cheques, esta não foi prestada pelo Banco de Portugal por entender estar a coberto do dever de segredo. Após a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo, invocando ser fundamental para apurar da prática de eventual burla qualificada, saber se à data em que os cheques juntos a fls. 107 a 111 foram emitidos e entregues à assistente depois de a Sociedade “B…, SA” titular da conta sacada já se encontrar inibida de passar cheques, requereu ao Mmo. Juiz de Instrução, nos termos do art. 135º do CPP que seja ordenada a prestação daquela informação ou que seja suscitada no Tribunal da Relação a decisão do incidente no sentido daquela instituição prestar a informação pretendida com quebra do segredo bancário.
Num 1º despacho datado de 24.03.2017 a Mma. Juiz de instrução determinou a notificação do Banco de Portugal para que procedesse ao envio da informação solicitada.
Por requerimento entrado em juízo em 03 de Abril de 2017, o Banco de Portugal além do mais expôs “…O Banco de Portugal, não podendo considerar-se dispensado do dever de segredo profissional que lhe é especialmente imposto nos termos do artigo 80º do RGISCSF, vem deduzir motivo de escusa legítima na prestação da informação sobre eventuais inibições do uso de cheques, ao abrigo do artigo 135º do Código de Processo Penal, salientando que se compromete a prestar, de imediato, a informação solicitada assim que for rececionada a autorização do interessado ou notificado do levantamento jurisdicional do dever de segredo nos termos do incidente previsto no citado artigo 135º do Código de Processo Penal.”
Foi então proferido com data de 07.04.2017, o despacho recorrido, com o seguinte teor:
«Constituiu objecto do presente inquérito a eventual prática de factos susceptíveis de consubstanciar a prática de um crime de burla qualificada, e, para comprovar a existência desse crime, torna-se fundamental apurar se à data em que os cheques juntos a fls. 107 a 111 foram emitidos e entregues à Assistente, a sociedade "B…, SA", titular da conta sacada, já se encontrava inibida de passar cheques, situação que, a verificar-se, é demonstrativa da intenção do não pagamento dos valores em causa.
Para tanto o MP solicitou ao Banco de Portugal informação sobre se a sociedade "B…, SA" se encontra, inibida, do direito de emitir cheques e desde quando.
Porém, aquela entidade, invocando o segredo bancário, recusou-se a prestar tal informação, que se reputa fundamental para a instrução do processo - cfr. Fls. 422 e novamente a fls. 433-434; alegando, neste último, que o regime aplicável ao Banco de Portugal é presentemente distinto do regime aplicável às demais instituições de crédito, não estando este abrangido pelo disposto no art. 79º do RG1CSF.
Conforme se deixou já exarado no nosso despacho de fls. 425 e ss., devidamente notificado ao BDP, é nosso entendimento que, no caso concreto, tendo em conta a excepção enunciada no artº 80º, n.º 2, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, os serviços do Banco de Portugal não podem validamente invocar o sigilo bancário.
E conforme também já se adiantou, é nosso entendimento que ao tribunal de 1ª instância é que cumpre ordenar a prestação das informações pelo recusante se entender que a escusa é ilegítima, só lhe sendo possível remeter para o tribunal superior a decisão de quebra do segredo bancário se entender que a recusa é fundada (só há quebra do segredo quando este se puder legitimamente afirmar).
Assim sendo, considero ilegítima a recusa do Banco de Portugal em prestar a informação solicitada e ordeno que a mesma seja prestada no prazo de 15 dias.
Nestes termos, remetendo cópia de fls. 422, 425-429, 433-434, bem como do presente despacho, notifique, uma vez mais, o Exmo. Coordenador do Núcleo de Regulação de Sistemas de Pagamentos (do Departamento de Sistemas de Pagamentos) para responder ao solicitado, no prazo de 15 dias, sob pena de, no caso contrário, ser dado conhecimento da recusa ilegítima ao Ministério Público, ao Conselho de Administração do Banco de Portugal e aos competentes órgãos jurisdicionais, sem prejuízo da eventual condenação na multa processual prevista no art. 521º, nº 2, do Código de Processo Penal adequada.»
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É deste despacho que recorre o Banco de Portugal, com motivação constante dos autos a fls. 443 a 449, onde formula as seguintes conclusões:
«i).O Tribunal a quo, no despacho recorrido – a articular com os respetivos antecedentes – desconsiderou a dedução de motivo de escusa legítima por parte do Banco de Portugal na prestação de informações constantes da LUR;
ii). Os elementos constantes da LUR, enquanto sistema gerido pelo Banco de Portugal, constituem informação abrangida, como tal, pelo regime legal de segredo previsto no art.º 80.º do RGICSF, que ao Banco de Portugal cumpre salvaguardar sob pena de responsabilidade civil e criminal;
iii). O dever de segredo de supervisão que impende sobre o Banco de Portugal é o que se encontra previsto no art.º 80.º do RGICSF;
iv). E não se confunde, nem nos valores que visa garantir, nem na norma legal aplicável, com o sigilo bancário que é próprio das instituições de crédito;
v). O artigo 79.º do RGICSF apenas se aplica às instituições de crédito sujeitas à supervisão do Banco de Portugal, que não a este último;
vi). Ao Banco de Portugal, repisa-se, apenas se aplica o artigo 80.º do RGICSF;
vii). In casu não vigora nenhuma das exceções contempladas no n.º 2 do artigo 80.º do RGICSF;
viii). O Banco de Portugal está, pois, vinculado no caso sub iudicio ao dever de segredo previsto no art.º 80.º do RGICSF, o qual só poderá ser excecionado mediante autorização dos interessados ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal, isto é, nos termos do artigo 135.º do CPP;
ix). Segundo o disposto no artigo 135.º do CPP, se o Tribunal de 1.ª Instância concluir que existe efetivamente um dever legal de segredo a preservar, considera a escusa legítima e suscita o incidente de quebra do segredo invocado, perante o tribunal imediatamente superior, o qual decide através da ponderação do valor relativo dos interesses em confronto;
x). O Tribunal a quo, ao desconsiderar a escusa invocada pelo Banco de Portugal, julgando-a – atento o conteúdo do despacho ora sindicado – como infundada e ilegítima, incorreu em errada interpretação e aplicação dos artigos 80.º do RGICSF e 135.º do CPP.
Termina pedindo que seja julgado procedente o presente recurso e, em consequência, seja revogado o despacho judicial recorrido, com as legais consequências.
Respondeu a Assistente e o Ministério Público pugnando, ambos, pela improcedência do recurso.
Foi emitido Parecer.
Foi cumprido o artigo 417º, n.º2 do CPP, sem resposta.
Corridos os vitos cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
1.- Como é jurisprudência assente é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Assim, no caso em apreço, é a seguinte a questão a decidir:
- Saber se a recusa do Banco de Portugal a prestar a informação solicitada é legítima e consequentemente o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que tal reconheça com as consequências legais.
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2.- Apreciação.
Vejamos a solução da questão.
Não existe norma que expressamente limite o segredo bancário, no âmbito do crime em causa.
Não há notícia de autorização do interessado para revelação da informação solicitada ao Banco de Portugal.
Posto isto, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (aprovado pelo Dec. Lei nº 298/92 de 31 de Dezembro, com a última alteração introduzida pela Lei nº 16/2015, de 24 de Fevereiro e, doravante, designado por RGICSF), estabelece no seu art. 78º, nº 1, que os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos ou outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
E no seu nº 2 do mesmo artigo dispõe que estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes de clientes, as contas de depósito e os seus movimentos e outras operações bancárias.
As excepções ao dever de segredo encontram-se previstas no art. 79º do mesmo RGICSF. Assim, nos termos do seu nº 1, os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição bancária podem ser revelados mediante autorização do cliente transmitida à instituição.
Quando não exista autorização do cliente devidamente comunicada à instituição, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, os factos e elementos sujeitos ao segredo só podem ser revelados:
- Ao Banco de Portugal, à Comissão de Mercado de Valores Imobiliários, ao Fundo de Garantia de Depósitos, ao Sistema de Indemnização de Investidores e ao fundo de resolução, no âmbito das respectivas atribuições; às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal (redacção dada pela lei 36/2010, de 02 de Setembro, à al. d) do artigo 79º].
Posto isto, a questão posta prende-se com a simples interpretação da lei.
A sujeição do dever de segredo do Banco de Portugal e seus agentes pode ser afastado nos termos do artigo 79º, ou apenas nos termos do artigo 80º?
Nos termos do artigo 17º da Lei Orgânica do Banco de Portugal – Lei 5/98, de 31 de Janeiro - Compete ao Banco exercer a supervisão das instituições de crédito, sociedades financeiras e outras entidades que lhe estejam legalmente sujeitas, nomeadamente estabelecendo directivas para a sua actuação e para assegurar os serviços de centralização do riscos de crédito, bem como aplicando-lhes medidas de intervenção preventiva, correctiva e de resolução, nos termos da legislação que rege a supervisão financeira.
Decorre deste artigo 17º da LOBP que o Banco de Portugal é una entidade diferente e superior às instituições de crédito e sociedades financeiras, relativamente às quais tem poder de supervisão.
Acresce que a informação pretendida não se trata de divulgar “ nomes de clientes, respectivas contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”, mas de divulgar uma informação exclusiva do Banco de Portugal e constante da Listagem de Utilizadores de cheques que oferecem Risco (LUR) que, como refere o recorrente no seu recurso, é informação diferente da informação bancária geral, e que se insere nas “condições de movimentação da conta”, previstas no n.º 2 do art. 81º-A do RGCISF.
Por outro lado, o RGICSF estabelece normas diferentes para o Banco de Portugal, nomeadamente nos artigos 80º e 81º.
Assim, estabelece o primeiro, na parte relevante:
1 – As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas.
2 – Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.
(…).
Já o art. 81º, regulando a cooperação do Banco de Portugal com outras entidades, dispõe não obstar ao segredo a troca de informações com determinadas entidades, nacionais e europeias (nºs 1 e 2), a troca de informações no âmbito de acordos de cooperação (nº 3), a troca de informações, e a troca de informações entidades não nacionais nem europeias (nº 4), observados os respectivos requisitos.
O desrespeito do segredo pode fazer incorrer o agente na prática de um crime de violação de segredo, p. e p. pelo art. 195º do C. Penal (cfr. ainda art. 84º do RGICSF).
Atenta a diferente redacção das normas dos artigos 78º e 79º, por um lado, e artigos 80º e 81º, por outro lado; atenta a alteração a que foi sujeito o artigo 79º, nomeadamente na sua al d), nos termos que referimos [a anterior redacção do artigo 79º al. d) era: “Nos termos previstos na lei penal e de processo penal”, altura em que era unanimemente aceite que a recusa das sociedades financeiras e instituições crédito a prestar informações, no processo penal, sobre os seus clientes era legítima e havia, assim, necessidade de usar o expediente do artigo 135º do CPP, a fim de ser efectuado um juízo sobre a prevalência dos interesses em conflito, deferido a um tribunal superior, para quebra ou não do segredo], não o tendo sido na mesma medida o artigo 80º, n.º2 do RGICSF, que continua a manter uma redacção igual à anterior redacção da al. d) do artigo 79º, antes da alteração efectuada pela lei 36/2010, de 02 de Setembro; atento o facto de a norma do artigo 80º ter sofrido alterações posteriores, nomeadamente, as introduzidas pelos DL 31-A/2012, de 10.02 e 157/2014 de 24.10, mas nenhuma em direcção ao disposto na actual al. d) do n.º2 do artigo 79º do RGICSF; por tudo isto, afigura-se-nos não haver dúvidas que as normas dos artigos 78º e 79º do RGCISF não são aplicáveis ao Banco de Portugal e seus agentes regendo-se o segredo do Banco de Portugal e seus agentes pelas normas dos artigos 80º e 81.
O Exposto tem como consequências que a recusa do Banco de Portugal em prestar a informação solicitada é legítima.
A informação solicitada só pode ser obtida mediante o incidente do artigo 135º do CPP, depois de o juiz de instrução reconhecer a legitimidade da recusa e solicitar ao tribunal imediatamente superior a ponderação de interesses conflituantes ínsita ao mesmo incidente, visando a quebra do segredo – vide n.º3 do artigo 135º do CPP.
Pelo exposto, o despacho proferido não pode ser mantido, devendo ser substituído por outro que reconheça a legitimidade da recusa do Banco de Portugal em fornecer a informação solicitada e suscite o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior, que no caso é o Tribunal da Relação.
O recurso é procedente.
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III. Decisão.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso com a revogação do despacho recorrido que deve ser substituído por outro que reconheça a legitimidade da recusa do Banco de Portugal em fornecer a informação solicitada e suscite o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior, que no caso é o Tribunal da Relação.
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Custa pelo assistente, pois deduziu oposição ao recurso, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos dos artigos 515º al. b) do CPP, art. 8º, n.º 9 do Regulamento das Custas processuais e tabela anexa nº 3.
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Notifique.
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Elaborado e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.
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Porto, 13 de Setembro de 2017
Maria Dolores Silva e Sousa
Manuel Soares