Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1358/19.3JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: CONFISSÃO
ARREPENDIMENTO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
DADOS DE BASE
COMUNICAÇÕES TELEFÓNICAS EM TEMPO REAL
REGISTOS DE PASSAGENS DE VEÍCULOS
PERDA DE INSTRUMENTOS DO CRIME
REGISTO CRIMINAL
CANCELAMENTO DO REGISTO CRIMINAL
Nº do Documento: RP202305241358/19.3JAPRT.P1
Data do Acordão: 05/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A confissão parcial dos factos não tem que constar da matéria assente, desde que a mesma decorra da motivação.
II - O arrependimento juridicamente relevante é um ato pessoal fidedigno situado na arena interior da consciência individual que seja de tal forma intenso e credível que venha a “tocar” na convicção ou múnus decisório do julgador; a demonstração desse estado de contrição tem de ser ativa, assumida e visível; o agente tem de revelar com autenticidade que rejeitou o mal inerente ao tipo legal de crime que praticou, de modo a convencer o tribunal que se no futuro vier a ser confrontado com uma situação idêntica, não voltará a delinquir.
III - O vício de contradição insanável entre factos provados e não provados consiste na afirmação de factos animados de sinal contrário, cuja verificação simultânea é impossível, sendo a sua coexistência inexoravelmente inconciliável.
IV – Quanto aos dados considerados de base (v.g., a obtenção da identificação dos IMEI) recolhidos em inquérito, está atribuído ao Ministério Público a competência de os obter, donde resulta que, dentro dos seis meses e no âmbito de competência própria, poderia o Ministério Público obter/investigar a identificação do cliente (dados de subscritor – BSI), nos termos dos artigos 11.º, n.º 1 e 14.º, n.º 4, al. b), da Lei do Cibercrime, artigo 6.º, n.º 2 e n.º 7, da Lei 41/2004, de 18 de agosto e artigo 48.º, n.º 7, da Lei 5/2004, de 10 de fevereiro).
V – No caso vertente e no que diz respeito ao conteúdo das comunicações, a obtenção de tal meio de prova seguiu as regras que se mostram plasmadas nos artigos 187.º a 189.º do Código de Processo Penal, não se vislumbrando a violação de qualquer norma que importe a proibição de valoração de provas.
VI - A obtenção de tais conteúdos ocorreu para o futuro, não para o passado, porque tais conversações não se encontravam armazenadas em qualquer base de dados detida por qualquer operadora.
VII - Toda a informação obtida em tempo real no período em que está a decorrer a investigação e para futuro está protegida ao abrigo das disposições legais e o seu acesso não é inconstitucional, sendo legítimo o seu acesso para efeitos de investigação criminal e nomeadamente no que diz respeito ao tráfico de estupefacientes; o acesso a esses dados de comunicação não é inconstitucional, sendo apenas questionadas a duração da conservação de tais dados e a sua abrangência pessoal.
VIII - Os registos de passagens nas fronteiras de veículo automóveis não são dados de comunicação e, portanto, não estão abrangidos pelas disposições legais suprarreferenciadas e muito menos pela declaração de inconstitucionalidade decorrente do acórdão do Tribunal de Constitucionalidade n.º , a qual se refere à obrigação de retenção de dados de comunicação, incidindo concretamente sobre os artigos 4.°, 6.° e 9.° da Lei n.º 32/2008 de 17 de julho.
IX - À luz da Lei da Droga, para a declaração de perda de bens a favor do Estado basta que os mesmos tenham servido à prática do crime (isto é, que exista uma relação de instrumentalidade ou funcionalidade do objeto, para a realização do crime, sem necessidade de qualquer juízo de essencialidade para a sua prática), embora temperado por um juízo de proporcionalidade entre a gravidade do ilícito e o efeito da declaração de perda.
X - A reabilitação legal ou de direito do condenado decorrente do cancelamento definitivo do registo criminal, nos termos previstos no artigo 11º da Lei n.º 37/2015, tem subjacente o critério da prevenção especial e a ressocialização do condenado, a qual se deduz do decurso de um longo espaço de tempo da vida em liberdade sem praticar novos crimes.
XI - Estabelecendo a lei o cancelamento dos registos criminais e prazos perentórios para o efeito, o Tribunal não pode valorar algumas das condenações que por imperativo legal já não deviam constar do certificado do registo criminal; consequentemente, por se tratar de uma verdadeira proibição de prova, está o Tribunal impedido de ter em conta as referidas condenações, pelo que tais factos devem ser retirados dos factos provados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1358/19.3JAPRT.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Central Criminal de Penafiel – Juiz 2

Relator: Paulo Costa.
Adjuntos: Nuno Pires Salpico.
Paula Natércia Rocha.



Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
No âmbito do Comum Coletivo com o nº em epígrafe, a correr termos no Juízo Central Criminal de Penafiel, Juiz 2, por acórdão de 08-12-2022, foi decidido condenar o(a/s) arguido(a/s):
AA, filho de BB e CC, natural de ..., Paredes, nascido a .../.../1953, divorciado, dizendo-se marceneiro reformado, titular do cartão de cidadão n.º ..., residente na Rua ..., ..., Paredes, mas atualmente preso no Estabelecimento Prisional ...;
- pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, como reincidente, nos termos dos artigos 75.º e 76.º do Código Penal, na pena de oito (8) anos de prisão.
- declarar perdidos a favor do Estado, ao abrigo do disposto no artigo 35.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, os seguintes bens:
– um telemóvel da marca NOKIA 105 (...), com o IMEI ...56 e ...55, ligado;
– um talão multibanco com extrato bancário relativo à conta n.º ...56;
– um talão comprovativo de pagamento por cartão bancário da A...; e
– oito pedaços de papeis com manuscritos de diversos nomes e números;
– o telemóvel, da marca ALCATEL, modelo 2053D, com o IMEI ...72 e ...80;
– um pequeno frasco plástico da marca Alifar contendo no seu interior uma pequena embalagem plástica com 6 g de fenacetina;
– sete caixas de plástico com resíduos de cocaína e heroína;
– um copo plástico de cor branca;
– um frasco de vidro com resíduos de cocaína e heroína;
– um frasco de plástico da marca Vencilab, com resíduos de cocaína e heroína;
– uma lata da marca Lapiara, contendo resíduos de cocaína e heroína;
– uma pequena embalagem plástica contendo diversos tipos de comprimidos;
– um frasco de plástico intacto de bicarbonato de sódio;
– uma embalagem de 500,712 g de creatina da marca Aptonia;
– três tesouras, com cabos plásticos de cor verde, preta e laranja com resíduos de cocaína e heroína;
– um x-ato com resíduos de cocaína e heroína;
– uma balança digital, com resíduos de cocaína e heroína;
– cinco x-atos transparentes;
– vários rolos de fita adesiva, de vários tamanhos e cores;
– vários rolos de sacos de plástico transparentes;
– uma embalagem de elásticos;
– vários papeis manuscritos alusivos a contas e contactos;
– restos de plásticos, alguns envoltos em fita adesiva castanha;
– vários recortes de embalagens plásticas transparentes; e
veículo automóvel de BMW, modelo ..., de matrícula ..-..-QQ;
- Condenou-se ainda o arguido AA a pagar ao Estado, ao abrigo do artigo 36.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, a quantia de noventa mil quinhentos e noventa euros.
- Declarou-se que o valor do património do arguido AA que deve ser perdido a favor do Estado, nos termos do artigo 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, é de novecentos e quarenta euros (€940), condenando-o a proceder ao pagamento de tal montante no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado desta decisão.
- E também no pagamento das custas criminais fixando-se a taxa de justiça devida por cada um em duas (2) unidades de conta, acrescida do montante dos encargos a que as respetivas atividades deram lugar.
*
Inconformado, o arguido AA interpôs recurso cujas conclusões, por economia processual, se dão aqui por integralmente reproduzidas para todos os legais efeitos. nos termos que se passam a transcrever para melhor densificação do objecto cognitivo e decisório do recurso (devido à sua extensão só se assinalará as partes ou segmentos mais relevantes).
«1. Foi condenado o arguido pelo crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, como reincidente, nos termos dos artigos 75.º e 76.º do Código Penal, na pena de oito (8) anos de prisão.
2. Consequentemente foram declarados perdidos a favor do estado todos os bens apreendidos à ordem dos presentes autos, mormente o veículo BMW ..., ao abrigo do disposto no artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e todo o dinheiro que foi apreendido.
3. Com todo respeito, que é muito, o arguido não se compadece com a decisão proferida e as soluções aí aplicadas, motivo pelo qual vem o arguido suscitar as seguintes questões:
Da(s) Nulidade(s) do Acórdão recorrido;
Da impugnação da matéria de facto:
Da impugnação da matéria de Direito:
A utilização e valoração de prova proibida – os metadados;
Da Perda de instrumentos, nomeadamente o veículo BMW, matrícula ..-..-QQ; e
Da Medida da Pena
4. Antes de mais, considera-se que o Acórdão recorrido padece da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPP, que aqui expressamente se invoca, para todos efeitos legais.
5. Sucede que tendo o Tribunal a quo condenando nos termos supramencionados, o arguido ora recorrente, em primeiro lugar não enumerou no elenco dos factos provados ou não provados factos constantes confissão do arguido ainda que seja parcial ou com reservas e do seu arrependimento, e, por outro lado, também não se pronuncia sobre tais factos quando se debruça sobre a medida da pena a aplicar questão essencial enquanto atenuante a aplicar ou não ao caso concreto.
6. O arguido AA, prestou declarações, na primeira sessão de audiência de julgamento em 26 de outubro de 2022, pelas 9.30 horas, conforme consta da ata de julgamento de referência citius n.º 90170817, onde consta, conforme se transcreve que “Seguidamente, todos os arguidos manifestaram a intenção de prestar declarações no início da audiência de julgamento, o que fizeram, ficando as mesmas documentadas através do sistema de gravação disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.”
7. Neste sentido as declarações do arguido AA na sessão da manhã, 26 de outubro de 2022, constam de ficheiro 20221026110806_3814215_2871638 onde desde logo o arguido refere que: “Arguido AA: Em primeiro lugar quero pedir desculpas a este tribunal pelo meu erro do qual me arrependo e me envergonho muito”. (passagem de minutos 00:12 e 00:22)
8. Em seguida o arguido é confrontado com a acusação ponto a ponto, admitindo e confessando alguns dos factos e explicando outros, pelo que pelo menos confessou parcialmente os factos. Declarações que constam do referido ficheiro.
9. Declarações que configuram, em nosso modesto entender, o arrependimento do arguido e uma confissão parcial dos factos e que foram relevantes para a decisão do mérito da causa, como se percebe pela fundamentação da maioria dos factos dados como provados.
10. Abrimos aqui um parêntesis, para neste sentido, notar que quanto a outro coarguido o tribunal a quo fez verter na factualidade provada a sua confissão e arrependimento. Contrariamente ao que sucedeu quanto ao arguido, ora recorrente, no que concerne ao coarguido DD, o tribunal a quo verteu nos factos provados, a folhas 19 do acórdão, nos pontos 113) e 114) a confissão do arguido e o arrependimento.
11. Por outro lado, o Tribunal a quo considerou na sua fundamentação que a confissão ainda que parcial dos factos, por parte do arguido, foi relevante para a decisão de mérito, prova disso é que se verteu na fundamentação, a folhas 33 e 34, ponto 10.2 do Acórdão.
12. Ressalte-se que a atividade descrita em 5) a 19) se refere ao início de atividade e todas as vendas realizadas, qualidade e quantidade de produto estupefaciente e ainda a quantia monetária da transação. Foi importante a colaboração do arguido para a delimitação do início da atividade delituosa em 2018, uma vez que no presente processo o arguido aqui recorrente só é identificado como suspeito em finais de fevereiro de 2020!!
13. É inegável que o arguido/recorrente reconheceu condutas que preenchem o tipo de crime pelo qual vinha acusado, de forma espontânea e antes de ser produzida prova, detalhando as suas condutas e vendas, ponto a ponto. Pelo que a sua confissão se mostrou relevante para a decisão de mérito.
14. Aliás, embora em sede de fundamentação o tribunal admitir que o arguido confessou de modo inequívoco a realização de atividades de tráfico de estupefacientes, em momento algum justifica a ausência da aludida confissão da matéria de facto da matéria probatória dada como provada, desconhecendo-se os motivos pelos quais estão omissos da matéria de facto dada como assente.
15. A lei impõe que o tribunal não só dê a conhecer os factos provados e não provados, para que os deve enumerar, mas também que explicite expressamente o porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança mediante a indicação e exame critico das provas que serviram de base para formar a sua convicção.
16. Estamos a falar de imposições que visam, por um lado, a total transparência da decisão, de forma a que os seus destinatários – os arguidos, em particular, e a comunidade em geral – possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação por parte do julgador e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da atividade decisória, o que constitui direito elementar dos participantes processuais, fiscalização e controlo que se concretiza através de recurso.
17. Assim, o Tribunal a quo ao não se pronunciar sobre os aspectos supramencionados, violou o disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código Processo Penal, incorrendo em omissão de pronúncia sobre factos essências para a decisão e condenação, sendo a sentença nula, nos termos do previsto no artigo 379.º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPP, nulidade que desde já se arguí com as devidas consequências legais daí decorrentes.
18. Sem prescindir da nulidade arguida da análise da matéria de facto dada como provada, existem alguns pontos relativamente aos quais não se concorda impugnando-se a matéria de facto.
19. Antes de mais, caso se entenda que a confissão e arrependimento do arguido AA, não constam dos factos provados por desconsideração ou por irrelevância da mesma desde já se entende que tal só pode resultar de erro de julgamento uma vez que o arguido efetivamente confessou e se mostrou arrependido, pelo que tais factos deveriam constar dos factos provados,
………
25. Nestes termos entendemos que deve ser acrescentado aos factos provados, novo ponto com a seguinte redação: “- O arguido AA confessou os factos, ainda que de forma parcial, e mostra-se arrependido”
26. Prosseguindo a impugnação de facto e cumprindo as disposições do artigo 412.º, n.º 3 do CPP, desde já se adianta que se colocam em crise os seguintes pontos da matéria de facto provada e não provada:
27. - Pontos 6 e 7 dos factos provados com correspondência no ponto d) dos factos não provados;
28. - Pontos 15 dos factos provados com correspondência no ponto p) dos factos não provados e ponto 19 dos factos provados;
29. - Pontos R) e S) dos factos não provados.
30. Dos Pontos 6 e 7 da matéria de facto provada
31. Ali se considerou assente que: “6) Para o efeito, o arguido abastecia-se previamente de estupefaciente em vários locais, designadamente e desde meados de novembro de 2021 a um indivíduo de nacionalidade espanhola e nesse país residente chamado EE, encontrando-se com este indivíduo em diversos locais;
32. Assim, no âmbito do descrito em 6) e no dia 17 de novembro de 2021 cerca das 14.50 horas, após contactos telefónicos entre ambos estabelecidos no dia anterior e nesse dia, o arguido AA abasteceu-se de produto estupefaciente de natureza concretamente não apurada no Parque de estacionamento do estabelecimento denominado “Café Snack Bar ...”, sito em ..., concelho de Ponte de Lima, junto de EE;”
33. Por seu lado, com correspondência direta, nos factos não provados considerou-se que não resultou provado que: “d) Sem prejuízo do descrito em 6) e 7) dos factos provados, o arguido AA deslocava-se com regularidade junto da residência do EE, situada na Galiza ou encontravam-se a meio caminho, no acesso de A3, de ..., ou em Paredes de Coura ou ainda na própria residência daquele arguido;”
34. Ora desde logo começamos desde logo por assacar o vício de contradição insanável da fundamentação (art.º 410.º, n.º 2, al. b) CPP), por os factos provados estarem em contradição com a factualidade dada como não provada, nomeadamente o ponto 7 dos factos provados, com o ponto d) dos factos não provados. Desde logo pois se não se mostrando provado que o arguido se encontrava com EE a meio caminho, no acesso de A3, de ..., também não se poderia em sentido inverso dar como provado que em ..., no parque de estacionamento do “café snack bar o ….” o arguido AA tenha adquirido a EE produto estupefaciente de natureza não apurada.
35. Ainda assim decorre que das declarações do Arguido AA, as declarações do Inspetor da Polícia Judiciária FF, e ainda o auto de diligência de 17/11/2021 em .../Vila Verde que consta de fls.1690 a 1691, impõe que os pontos 6 e 7 sejam dados como não provados.
……………….
39. Pontos 15) e 19) dos factos provados
“15) No dia 27 de novembro de 2021, entre as 16.40 horas e as 16.55 horas, nas proximidades do café restaurante B..., sito na Estrada Nacional n.º ..., em ..., Paredes, o arguido AA entregou a GG, que então acompanhava, EE, um saco azul contendo no seu interior umas botas de senhora e, ainda, 5.540€ em notas, dentro de um saco de papel pardo, quantia que lhe foi apreendida;
19) As quantias monetárias que detinha e lhe foram apreendidas eram produto da venda de estupefacientes a terceiros, destinando-se a quantia de 5.540 € apreendida a pagar estupefaciente por ele adquirido;”
Por correspondência nos factos não provados consta que:
“p) O montante de 5.540 € descrito em 15) dos factos provados não pertencia ao arguido AA”
O arguido AA negou que tenha colocado o dinheiro no interior do referido, por sua vez o inspetor da Polícia Judiciária HH em audiência de 04 de novembro da parte da tarde, com a gravação de ficheiro referência ... minutos a 02:03 até 03:40.
……………….
41. Ora a este respeito até se aceita que o arguido AA tenha entregue o saco plástico, mas não se percebe o motivo de o tribunal descredibilizar as suas declarações e recorrer a uma presunção natural, não se percebe bem o momento da transação pelo que com o susto da abordagem policial a esposa de EE pudesse tentar dissimular o dinheiro que já trouxesse consigo.
42. Mais incompreensível se torna pelo facto de as 5 gramas que o arguido tinha consigo e as pequenas quantidades que se deu como provado que vendeu que mais de 5 mil euros fossem para pagar tão pequena quantidade de estupefaciente.
43. É que do ponto 19) dos factos provados consta que “19) As quantias monetárias que detinha e lhe foram apreendidas eram produto da venda de estupefacientes a terceiros, destinando-se a quantia de 5.540 € apreendida a pagar estupefaciente por ele adquirido;”
44. Ora, mas a quantia de 5.540,00 euros era para pagar o estupefaciente adquirido pelo arguido, mas qual estupefaciente e adquirido quando? não se percebe é a qual estupefaciente e comprado em que ocasião o Tribunal a quo se refere.
45. Desde logo pelo simples facto de a quantidade que o arguido detinha (5 g de cocaína) era tão diminuta e ainda a este respeito o inspetor HH, na mesma diligência supramencionada, de ref.ª 20221104143906_3814215_2871638, a minutos 09:25 até 10:09
46. Face ao exposto consideramos que se o Tribunal a quo considerou credíveis as declarações do arguido para umas coisas, por exemplo admissão das vendas, não o poderia descredibilizar quando nem se quer é plausível que o arguido entregasse 5.540 euros para pagar 5g de estupefaciente que tinha consigo.
47. Nesta senda também entendemos que os pontos 15) e 19) elencados como provados devem ser considerados como não provados por não haver prova suficiente e cabal que o dinheiro fosse para paga estupefaciente.
48. Pontos R) e S) dos factos não provados.
O Tribunal a quo deu também como não provado que: “r) O arguido AA, no arco temporal descrito em 5), consumia, semanalmente, 4 a 5 g de cocaína e 1 g de heroína;
s) Parte do estupefaciente que o arguido AA detinha destinava-se ao seu consumo;”
50. O Tribunal a quo considera como não provado que o arguido fosse consumidor e que parte do estupefaciente fosse para o seu consumo, no entanto no elenco dos factos provados nos pontos 86) e 89) consta que:
“86) O estilo de vida de AA passou a pautar-se pela frequência de espaços de diversão noturna e eventos relacionados com desportos motorizados, cessando a segunda união, marcada por ténues vínculos afetivos, ressurgindo outras relações afetivas em contextos marginais associados à toxicodependência e prostituição;
89) A recaída no consumo de drogas ocorreu alguns meses após a sua libertação, com consequente estilo de vida marginal, tendo nesta fase conhecido a atual companheira, com quem passou a residir em união de facto numa habitação arrendada em ..., Paredes;”
51. Ora não pode o Tribunal a quo dar como provado que o arguido tinha hábitos de toxicodependência e que em certa altura teve até uma recaída no consumo e depois simplesmente dar como não provado que o arguido fosse consumidor de estupefaciente ou parte do estupefaciente fosse para o seu consumo apenas pelo depoimento do inspetor II que afirmou que o arguido não seria consumidor, ora contrariamente ao vertido na certidão da sentença do tribunal de vila verde de fls. 2438 a 2478., onde dos seus factos provados consta também que o arguido consumia e para tal “se dirigia ao bairro do ... no porto”
52. Ora concatenadas as declarações do arguido que até acolheram credibilidade para boa parte dos factos provados, com o teor da certidão de fls. 2438 a 2478 da sentença judicial do processo elencado no ponto dois dos factos provados, o tribunal não poderia decidir em desfavor do arguido.
53. Ainda sobre estes concretos pontos ocorre vicio de contradição insanável da fundamentação conforme o disposto no art.º 410.º, n.º 2, al. b) CPP, por os factos não provados estarem em contradição com a factualidade dada como provada, pelo motivo que não se pode dar como provado que o arguido tem hábitos de consumo e a dada altura teve também recaídas e depois simplesmente dar como não provado que o arguido não consumia as quantidades que declarou.
54. Pelo que os pontos R) e S) dos factos não provados devem ser dados como provados.
55. O Tribunal a quo não pode simplesmente dar credibilidade às declarações do arguido em maioria dos factos provados e simultaneamente não as considerar credíveis em detrimento do mesmo por ausência de prova mais forte que o mesmo consumia estupefaciente.
56. Nestes termos, e sem prescindir da nulidade invocada, deverá a decisão recorrida ser substituída por uma outra que aprecie corretamente a prova testemunhal produzida e dê como provados ou não provados os factos supra descritos.
57. Quanto à reapreciação da matéria de direito entendemos que o Tribunal a quo conheceu e valorou prova nula, por obtenção através de metadados.
58. A controvérsia nasce pela Lei n.º 32/2008, de 17 de julho não estar conforme a nossa constituição da república e ter sido declarada a sua inconstitucionalidade pelo acórdão do tribunal constitucional 268/2022.
59. O Acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional, polémico até e bastante comentado na comunicação social, foi mais além do pedido de fiscalização e teve em consideração a proteção constitucional da conservação de todos os metadados identificados nas normas fiscalizadas, independentemente de serem dados de base ou dados de tráfego e de darem ou não suporte a comunicações intersubjetivas. Neste sentido justificando e, transcrevendo do referido aresto, o seguinte: «Ora, a conservação e acesso a todos os metadados a que se referem as normas fiscalizadas — dados de base, dados de tráfego que não pressupõem uma comunicação interpessoal e dados de tráfego relativos a comunicações interpessoais —, porque são aptos a revelar aspetos relevantes da vida privada e familiar dos cidadãos, submete-se a outras garantias constitucionais — designadamente, os direitos à reserva da intimidade da vida privada e ao livre desenvolvimento da personalidade (n.º 1 do artigo 26.º da Constituição) e o direito à autodeterminação informativa (n.ºs 1 e 4 do artigo 35.º da Constituição). O tratamento de todos estes dados, ao manter o rastreio dos passos dos utilizadores, seja quanto à sua localização, seja quanto à utilização que faz da internet, seja quanto às pessoas com quem contacta ou tenta contactar, por telefone, correio eletrónico, mensagens escritas ou através da internet, é suscetível de comprimir os direitos à reserva da intimidade da vida privada, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação informativa. >>
60. O referido Acórdão engloba também os dados de base conforme se percebe.
61. Embora argumente o tribunal que a localização celular e a faturação detalhada não consta no processo, o que é relevante é que a mesma foi acedida pelos Órgãos de Policia Criminal – O.P.C. conforme consta dos autos.
62. Aliás desde já se diga que também há dados de tráfego nesta investigação, e tudo isto foi valorado e assente em matéria de facto provada.
63. Senão vejamos, o arguido AA é identificado, A fls. 397 dos presentes autos, o auto de Audição, Gravação e Relatório de todas interceções telefónicas em curso, reportadas ao período compreendido entre 30 de Janeiro 2020 e 12 de Fevereiro 2020, refere (a PJ) que o suspeito EE, que se encontrava a ser escutado, continuava a ser contactado por diversos clientes para o tráfico de droga. Um desses números que contactou, alegadamente, o EE para o tráfico de droga era o número ...02.
64. De notar que o arguido AA, não era o suspeito, nem visado, no presente inquérito.
65. Note-se que a PJ classifica aquele cliente como “...” pelo simples facto dessa ter sido a Antena de localização celular que se ativou quando o arguido fez a chamada para o suspeito EE.
66. Já estamos no âmbito dos dados de tráfego produzidos no âmbito da comunicação realizada entre duas pessoas.
67. Partindo desta premissa, o MP, de acordo com o proposto pela PJ, solicitou ao Juiz de Instrução Criminal (JIC), a interceção e gravação das chamadas telefónicas de e para o número ...02, o IMEI a ele associado, Faturação detalhada das chamadas recebidas (trace-back), SMS e MMS e a Localização celular. Tendo tal sido deferido por despacho do JIC em 18 de Fevereiro de 2020.
68. As interceções ao referido número tiveram como data de início o dia 26.02.2020 (cf. fls. 419), e tendo acesso aos dados e metadados gerados pelo referido número de telemóvel a PJ conseguiu identificar o arguido AA, o seu número de identificação civil (BI), a sua residência, data de nascimento, naturalidade e ainda que também estaria a utilizar um outro número e ainda o contacto de um alegado cliente do arguido AA – Cf. fls. 496 e seguintes dos autos
69. Resulta cristalino que o arguido AA apenas é identificado através do acesso aos metadados (Lei n.º 32/2008, de 17 de julho) e da mesma forma se procedeu para identificar os seus clientes.
70. Acrescente-se ainda que também há metadados a fls. 1369 a 1371 quando se pede pela PJ os registos de passagens das viaturas do arguido nas fronteiras de Portugal com Espanha no período início do ano de 2020 até maio de 2021, registos que o tribunal a quo considerou nos pontos facto provados ponto 45).
Também são dados de tráfego.
71. O tribunal a quo veio invocar legislação que no seu entender não contende com a declaração de constitucionalidade e legitimaria a recolha de dados que houve nestes autos, E veio invocar os seguintes normativos legais, para sustentar a sua posição: a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (a Lei do Cibercrime), especialmente o artigo 14.º; o Código de Processo Penal, muito particularmente os artigos 187.º a 189.º; a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que transpõe para a nossa ordem jurídica a diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, respeitante à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações; a Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto (Lei de Proteção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações), especialmente o seu artigo 6.º; e a Lei 5/2004, de 10 de fevereiro (Lei das comunicações eletrónicas). “
72. Desde já se diga que as leis invocadas pelo tribunal não se destinam à investigação criminal e não podem servir para “contornar” a declaração de inconstitucionalidade. Neste sentido e por concordar inteiramente com o Acórdão da Relação do Porto que em seguida se transcreve.
73. Tal conforme fez notar o Tribunal da Relação do Porto no seu Acórdão no processo 5011/22.2JAPRT-A.P1, de 07-12-2022 onde foi relator o Desembargador PEDRO VAZ PATO onde consta do respetivo sumário que:
74. “I – Tendo o acórdão do Tribunal Constitucional declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho (Lei relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto de oferta de serviços de comunicações eletrónicas), não podemos tentar tornear esse acórdão, “deixando entrar pela janela” aquilo a que ele “fechou a porta”; ou seja, não podemos recorrer a outras normas para obter o mesmo efeito que resultaria da aplicação das normas declaradas inconstitucionais sem que essas outras normas contenham aquelas garantias que faltam a estas e que levaram a essa declaração de inconstitucionalidade.
II – Não é, por isso, legalmente possível recorrer para esse efeito aos regimes dos artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal (relativo às comunicações em tempo real, não à conservação de dados de comunicações pretéritas), da Lei n.º 4172008, de 18 de agosto (relativo à proteção contratual no contexto das relações entre empresas fornecedoras de serviços de comunicações eletrónicas e seus clientes, ... distinto do da investigação criminal) e da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime).
III – Não podem os tribunais substituir-se ao legislador suprindo omissões de onde resultam graves inconvenientes para a investigação criminal.”
75. Neste sentido entendemos que efetivamente houve recolha e valoração de prova proibida nos presentes autos. Nesta esteira resta-nos convocar os seguintes normativos legais, o artigo 32.º da CRP (“Garantias de processo criminal”), no seu n.º 8, prescreve que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”,
76. Preceito constitucional alicerçado no Código Processo Penal (CPP) no seu artigo 126.º, que é suficientemente forte para consagrar o efeito remoto da utilização de métodos de prova proibidos.
77. O artigo 126.º, n.º 1, do CPP dispõe que “São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas” (o n.º 2 do preceito faz uma indicação exemplificativa de provas ofensivas dessa integridade) e, por sua vez o n.º 3 deste preceito legal refere que “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular”.
78. É no artigo 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP, mandamento constitucional replicado no artigo 126.º do CPP, que encontramos fundamento legal para a admissibilidade em processo penal para a existência de uma consequência negativa numa prova derivada de outra que enferma de nulidades por proibição de prova.
79. Como tal o Acórdão recorrido violou 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP conjugado com o 126.º do CPP e ainda foram ainda violados os direitos fundamentais do arguido tais como os direitos à reserva da intimidade da vida privada e ao livre desenvolvimento da personalidade (n.º 1 do artigo 26.º da CRP) e o direito à autodeterminação informativa (n.ºs 1 e 4 do artigo 35.º da CRP.
80. Insurge-se também o recorrente quanto à perda em favor do estado do BMW ... de matrícula ..-..-QQ.
81. Não se mostram cumpridos os requisitos para decretar a perda do veículo BMW a favor do estado, não se demonstrando a essencialidade do meio para o fim que é o cometimento do crime.
82. Desde logo o único facto provado é que o arguido se deslocava em várias viaturas sem destrinça das que utilizava mais ou menos e simplesmente o Tribunal a quo escolheu o veículo em causa sem qualquer critério válido. Ora entendemos que tem de ser demonstrada a essencialidade do veículo para o crime, ou seja, o nexo de causalidade.
83. Afigura-se que não estão reunidos os pressupostos de que depende a perda do mesmo a favor do Estado uma vez que sem o concurso da referida viatura automóvel o crime de tráfico de estupefacientes verificado também teria ocorrido, ainda que num circunstancialismo fáctico diverso.
84. Na verdade, “o perdimento a favor do Estado de um veículo ao abrigo do disposto no art.º 35.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro pressupõe uma verdadeira relação de instrumentalidade do bem relativamente ao crime, não se bastando com a simples utilização daquele na prática deste” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16-10-2012, processo n.º 117/11.6JAPTM.E1, in www.dgsi.pt).
85. Ora, da matéria de facto apurada resulta que, para o arguido AA adquirir estupefacientes destinados a vender a terceiros se deslocava em vários veículos como também para certas vezes vender os estupefacientes.
86. Pelo que não ficou demonstrado que entre o veículo e a infração intercedesse uma relação de funcionalidade ou instrumentalidade em termos de causalidade adequada. Na verdade, os estupefacientes em causa eram, como foram, facilmente dissimuláveis e, assim, naturalmente transportáveis por qualquer outro meio. Eram de pequena quantidade e quando foi abordado o arguido até tinha as (5g) junto ao seu corpo.
87. Assim, não se pode afirmar uma verdadeira relação instrumental do veículo com a prática da infração, pois os arguidos poderiam ter-se deslocado por qualquer outro meio (em transporte público, à boleia, por exemplo), sem que tal afetasse o cometimento do delito na sua conformação essencial.
88. Assim não deve o veículo ser declarado perdido a favor do estado.
89. Por fim, não se conforma ainda o recorrente com a medida da pena, por considerar a mesma excessiva e desproporcional, não tendo atendido a todas as circunstâncias a seu favor e em seu desfavor valorou excessivamente antecedentes criminais com mais de três décadas, considerando prova proibida por contrária à lei 37/2015 de 05 de maio.
90. A Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio no seu artigo 11.º impõe o cancelamento do registo criminal pelo decorrer do tempo. Pelo que ao tribunal a quo estava vedado conhecer e valor registos tão antigos.
91. Nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal a “determinação da medida da pena, dentro dos limites legais definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, n.º 2, do Código Penal).
92. Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo a culpa concreta do agente, o que implica, por um lado que não há pena sem culpa, e por outro, que esta decide da medida daquela, afirmando-se como seu limite máximo, havendo que ter presente as razões de prevenção geral (proteção dos bens jurídicos) quanto aos fins das penas (artigo 40º, n.º 1, do Código Penal), e os fins de prevenção especial. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente, ou contra ele, nomeadamente as referidas nas alíneas do n.º 2 do artigo 71º do Código Penal.
93. Assim, e como muito bem sintetiza Figueiredo Dias: no momento da determinação de medida concreta da pena deve-se ter em consideração que “(1) toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo próprio ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico (4) dentro dessa moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais”
94. Posto, isto, e vertendo estas considerações para o caso concreto, importa dizer que ao arguido, foi cominada a pena única de oito (8) de prisão efetivos na sua execução.
95. O modo de execução é simples e sem nenhuma organização, era o próprio que comprava e quem vendia diretamente junto dos consumidores, em quantidade sempre na ordem das 2,5 gramas. Atuava sozinho e sem auxílio de colaboradores.
96. A quantidade que lhe foi apreendida cerca de 8 gramas no total, consigo junto ao corpo e depois na habitação, é demonstrativa dos negócios de pequena monta que fazia, mais acrescente-se que a droga que lhe foi apreendida.
97. Ressalte-se que o arguido tem 69 anos de idade e está quase nos 70 pelo que a sua idade e debilidades de saúde não foram tidas em conta, uma pena de 8 anos face à esperança média de vida no país pode significar que o arguido pouco tempo tenha para gozar de liberdade, até podendo falecer em meio prisional.
98. Não foi também considerada a confissão e arrependimento do arguido, confissão que foi relevante para os factos provados, especialmente os de 5) a 19).
99. Aliás o Tribunal a quo, considerações feitas para justificar a suspensão da pena do arguido DD refere, no plural que todos os arguidos interiorizaram o desvalor das suas condutas, porém não o valoraram para o arguido AA.
100. Isto posto, consideramos que o arguido não deveria ser condenado em pena superior a 6 anos.
101. Normas violadas, a saber: 70º e 71º do C.P e 18º nº2 da C.R.P, 412º nº 3 do C.P.P, 374 nº 2 do C.P.P, 410º nº2 a do C.P.P, 410 nº2 alínea a) do C.P.P.,
379.º n.º 1 alíneas a) e c) do CPP, artigo 11.º da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio, art.º 35.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, artigo 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP conjugado com o 126.º do CPP e ainda n.º 1 do artigo 26.º da CRP e o n.ºs 1 e 4 do artigo 35.º da CRP.».

O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência, aduzindo em abono da sua posição as seguintes conclusões, partes relevantes (transcrição):

«1. O acórdão cumpre com suficiência o que se lhe exige no art. 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, enumerando os factos provados e não provados, fazendo uma exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, indicando as provas e delas fazendo um exame crítico.
2. Do texto da decisão não decorre o vício de contradição insanável entre os factos provados e os não provados.
3. Os factos dados como provados sob o ponto 7. referem-se a uma data específica, e a um local específico, onde o recorrente se encontrou com EE, o sendo que do ponto d) resulta que se deu como não provado que o recorrente se deslocava com regularidade (sublinhado nosso) junto da residência deste, ou que se encontravam em ... ou em Paredes de Coura. Este facto não invalida que não se provando essas deslocações, com regularidade, não tenha ocorrido um encontro nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no ponto 6. Simplesmente não se provou que os encontros entre ambos sucediam com regularidade com a finalidade de traficar estupefacientes.
4. Dos autos de vigilância, para além do mais, resulta a existência de inúmeros contactos do aqui recorrente com EE, sem que se encontre outra explicação para além da que, pelas razões constantes da fundamentação, se explicita na matéria provada. Resta, ainda, trazer à colação a matéria de facto constante dos pontos 31 e ss., da qual resultam provados inúmeros contactos entre o recorrente e EE.
5. Não merecem credibilidade as declarações do recorrente quanto à negação do facto dado como provado no ponto 15, desde logo porque os inspetores da Polícia Judiciária que participaram na diligência deixaram bem claro que foi o arguido AA quem entregou a saca onde foi encontrada aquela quantia, mais esclarecendo o modo como esta (quantia) e encontrava acondicionada, não sendo sequer possível que GG tivesse possibilidade de assim acondicionar tão elevada quantia.
6. Resultou provado foi que a quantia apreendida de 5.540,00€ se destinava a pagar estupefaciente adquirido pelo recorrente a EE, sendo que, tal como resulta provado no ponto 6., o arguido abastecia-se previamente de estupefaciente em vários locais, designadamente e desde meados de novembro de 2021 a um indivíduo de nacionalidade espanhola e nesse país residente chamado EE, encontrando-se com este indivíduo em diversos locais.
7. Deu-se como provado que aquela quantia se destinava ao pagamento de estupefaciente que EE lhe havia fornecida, e não apenas ao pagamento de estupefaciente fornecido naquela data.
8. Depois de nova prisão a 9 de Agosto de 2012 e até 8 de Agosto de 2018 (ponto 90), inexiste uma única referência a consumos de estupefacientes que seja contemporânea dos factos pelos quais foi aqui julgado, sendo que, tal como consta da fundamentação, não se ouviu uma única testemunha que tenha referenciado o consumo de estupefacientes por parte do recorrente, pelo que não se pode dar como provado que o arguido era consumidor de estupefacientes.
9. Percorrida com atenção a fundamentação não vislumbramos que tenha sido valorada qualquer prova obtida com recurso a metadados, nem, aliás, como bem se destrinça no acórdão em crise, há, pura e simplesmente utilização de metadados como meio de prova.
10. A confissão do arguido relativamente à essencialidade da actividade de tráfico de estupefacientes tornaria redundante a utilização de supostos metadados para prova daquilo que o arguido confessou, por outro lado não estamos perante metadados.
11. A questão dos metadados, neste caso, meramente académica, porque sem qualquer repercussão jurídica nestes autos, não tem qualquer relevância.
12. À luz da Lei da Droga para a declaração de perda a favor do Estado basta que os mesmos tenham servido à prática do crime (isto é, que exista uma relação de instrumentalidade ou funcionalidade do objeto, à realização do crime, sem necessidade de qualquer juízo de essencialidade à sua prática), embora temperado por um juízo de proporcionalidade entre a gravidade do ilícito e o efeito da declaração de perda.
13. Ainda que se defenda que se entenda que terá que ficar demonstrada a essencialidade, não vemos de que forma se pode defender que tal não era essencial à sua deslocação em tal extensão territorial, lembrando, ainda, que se deu como provado que o arguido se deslocou, pelo menos uma vez a Ponte de Lima para uma aquisição de estupefaciente a EE. Não se vê de que forma, utilizando transportes públicos, de boleia ou deslocando-se a pé, cobriria tamanha distância.
14. Há um carácter grave da culpa e uma conexão geográfica alargada.
15. Há que atender à natureza do estupefaciente (cocaína e heroína), ao modo de desenvolvimento da actividade (vários veículos automóveis, troca constante de telemóveis, utilização de esconderijos difíceis de determinar ), o prolongamento da actividade por mais de três anos, e por fim as elevadíssimas exigências de prevenção especial (pelo menos as quatro condenações por tráfico de estupefaciente), sem descurar os 19 anos que o arguido permaneceu recluso, e em que o crime pelo qual aqui foi condenado inicia o seu curso pouco tempo volvido após o cumprimento de longa pena de prisão (6 anos).
16. O arguido passou mais de um quarto dos seus 69 anos de vida privado da liberdade, pela prática de diversos crimes, pelo que fácil será de concluir que nenhuma das anteriores penas serviu ao arguido para arrepiar caminho, o que coloca a fasquia das necessidades de prevenção especial num nível particularmente elevado.
17. Se é certo que se deve levar em conta a sua idade, não é menos acertado considerar que as longas privações de liberdade impunham necessariamente que o arguido na sua idade já avançada tivesse enveredado pela via do cumprimento do direito, ainda para mais pouco depois de ter sido colocado em liberdade – o que, aliás, aconteceu repetidamente com as anteriores reclusões.
18. Quanto à forma de organização apenas se traz à colação o ponto 8 dos factos provados, os 15 números diferentes de telemóvel usados ao longo dos três anos de actividade delituosa (ponto 10) em análise nos presentes autos, os quatro veículos automóveis por si usados (ponto 11) e o facto de fazer da venda de estupefacientes o seu modo de vida.
19. Não merece qualquer censura a fixação da pena em 8 anos de prisão, pelo que, também aqui, deverá o recurso soçobrar».
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde acompanhou integralmente a posição do Ministério Público junto do Tribunal recorrido nas respostas ao recurso, reforçando-as, pugnando igualmente pelo não provimento dos recursos.
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O arguido respondeu nos termos do 417º. n º 2 do CPP, invocando extemporaneidade da resposta do M.P., reafirmando a nulidade quanto aos metadados, valoração do CRC e excesso da medida da pena.
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É do seguinte teor o elenco pertinente ao arguido recorrente dos factos provados e não provados e motivação constantes do acórdão recorrido:
«A. Factos provados
6. Com relevo para a decisão, mostram-se provados apenas os seguintes factos:
I
A
i
1) O arguido AA (doravante, por facilidade de exposição, designado simplesmente por AA) já foi condenado:
i. No âmbito do processo de querela n.º 1414/82, da 2.ª Secção do 1.ª Juízo do Tribunal de Vila Nova de Famalicão, por decisão de 26.11.1982, pela prática, de
– um crime de furto, previsto e punido pelo ao artigo 310.º, n.º 1 do Código Penal ao tempo em vigor, na pena de 21 meses de prisão; e
– um crime de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 3.º, n.º 1, al. d) e 4.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão;
ii. No âmbito do processo correcional n.º 4/84, da 2.ª Secção do 2.ª Juízo do Tribunal de Paços de Ferreira, por decisão de 18.1.1985, pela prática de um crime de furto de veículo, previsto e punido pelo artigo 1.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 44 939, de 27.3.1967, na pena de 6 meses de prisão e 45 dias de multa a taxa diária de 250$00;
iii. No âmbito do processo correcional n.º 111/85, da 1.ª Secção do 2.º Juízo do Tribunal de Santo Tirso, por decisão de 29.1.1986, pela prática de um crime de introdução em casa alheia, previsto e punido pelo artigo 380.º, § 1.º, do Código Penal de 1886, na pena de 6 meses de prisão, substituídos por multa a taxa diária de 200$00;
iv. No âmbito do processo de querela da 1.ª Secção do 1.º Juízo do Tribunal de Santo Tirso, por decisão de 26.11.1986, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 296.º e 297.º, n.º 1, do Código Penal então em vigor, na pena de 15 meses de prisão;
v. No âmbito do processo comum coletivo n.º 84/95, do Tribunal de Círculo de Paredes, por decisão de 26.10.1995, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 18 meses de prisão;
vi. No âmbito do processo comum coletivo n.º 34/96, do Tribunal de Círculo de Paredes, por decisão de 10.10.1996, pela prática, em 1994 e 1995, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 7 anos de prisão;
vii. No âmbito do processo comum coletivo n.º 81/02.2TBMTS, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Matosinhos, por decisão de 29.4.2003 transitada em julgado a 29.3.2004, pela prática a 28.2.1999, como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. h), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 8 anos de prisão;
2) Além das acima referidas, o arguido AA, no âmbito do processo comum coletivo n.º 310/12.4JABRG, do 1.º Juízo do Tribunal de Vila Verde, por decisão de 14.4.2013 transitada em julgado a 6.5.2013, pela prática, em síntese, dos seguintes factos
“No dia 8 de agosto de 2012, cerca das 12.30 horas, conforme previamente combinado telefonicamente através dos números de telemóvel ...02, propriedade do arguido AA e ...21, propriedade do arguido JJ, os arguidos encontraram-se em Ponte de Lima, onde almoçaram.
Imediatamente após o almoço, o arguido AA deslocou-se no veículo de marca Opel, modelo ..., com a matrícula ..-DE-.. a Espanha para efetuar o levantamento e transporte de 0,5 kg de cocaína, o que fez, regressando, depois, a Portugal.
Pelas 16.50 horas do aludido dia 8 de agosto de 2012, junto das portagens da A3, em ..., Valença, o arguido AA detinha no interior do aludido veículo, no interior de uma saca de plástico transparente cerca de 520 gramas de cocaína (cloridrato), um telemóvel da marca Samsung com o IMEI ...01, tendo inserido o cartão da Vodafone com o n.º ...02, 210€ em nota do Banco Central Europeu e um recorte de papel com os seguintes dizeres: “.../SALIDA .../.../HORA DELES 5h/ ENT ...”
(…)
O arguido AA agiu livre voluntaria e consciente, conhecendo a natureza e caraterísticas estupefacientes do produto que detinha na sua posse, sem que para tal estivesse autorizado
O arguido AA sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei penal”
sendo condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 22/93, de 22 de janeiro, na pena de 6 anos de prisão;
3) O arguido AA sofreu os seguintes períodos de privação da liberdade
– entre 10 de maio de 1982 e 17 de dezembro de 1982;
– entre 30 de setembro de 1995 e 30 de setembro de 2008, à ordem do processo comum coletivo n.º 34/96, do Tribunal de Círculo de Paredes, em cumprimento da pena única de 8 anos de prisão englobando as penas em que foi condenado nesse processo e no processo comum coletivo n.º 84/95, do Tribunal de Círculo de Paredes; e
– entre 9 de agosto de 2012 e 8 de agosto de 2018 à ordem do processo indicado em 2);
4) As condenações acima referidas, nomeadamente as que determinaram efetiva reclusão e em especial aquela que sofreu à ordem do processo identificado em 2), não serviram ao arguido AA de suficiente advertência contra o crime, não o determinando a inibir-se de praticar novos crimes, quando podia e devia manter uma conduta lícita;
ii
5) Em data concretamente não apurada, mas situada em setembro de 2018 e até 27 de novembro de 2021, data em que foi detido, o arguido AA, sem que para tal tivesse qualquer autorização legal, administrativa ou médica para o efeito, dedicou-se à aquisição, venda e cedência de produtos estupefacientes, designadamente heroína e cocaína, a terceiros residentes na região do Vale do Sousa, Peso da Régua, Resende e Cinfães;
6) Para o efeito, o arguido abastecia-se previamente de estupefaciente em vários locais, designadamente e desde meados de novembro de 2021 a um indivíduo de nacionalidade espanhola e nesse país residente chamado EE, encontrando-se com este indivíduo em diversos locais;
7) Assim, no âmbito do descrito em 6) e no dia 17 de novembro de 2021 cerca das 14.50 horas, após contactos telefónicos entre ambos estabelecidos no dia anterior e nesse dia, o arguido AA abasteceu-se de produto estupefaciente de natureza concretamente não apurada no Parque de estacionamento do estabelecimento denominado “Café Snack Bar ...”, sito em ..., concelho de Ponte de Lima, junto de EE;
8) Depois de se abastecer e para que o mesmo não fosse detetado por agentes de investigação criminal ou por terceiros, o arguido AA dissimulava e escondia o estupefaciente em diversos locais, nomeadamente em terrenos baldios, o que aconteceu, entre outras, no dia 8 de julho de 2021, pelas 9.33 horas e pelas 16.05 horas, num descampado defronte à confeitaria denominada “C...”, sita na Avenida ..., em ...;
9) Para vender e ceder o estupefaciente, o próprio arguido AA deslocava-se para diversos locais, tais como, entre outros, a zona da Rotunda de acesso à Autoestrada n.º ..., no Marco de Canaveses, a zona entre ... (Amarante) e Mesão Frio ou ... (na freguesia ..., Peso da Régua) e, ainda, junto da saída de ..., mais próximo da sua casa e, inclusivamente, junto das residências dos clientes;
10) Para contactar com os seus clientes, o arguido AA fazia uso do seu telemóvel, onde operava com vários números, nomeadamente o n.º ...42, o n.º ...02, o n.º ...26, o n.º ...08, o n.º ...62, o n.º ...39, o n.º ...50, o n.º ...92, o n.º ...54, o n.º ...96, o n.º ...94, o n.º ...15, ...68, o n.º...02 e o n.º ...89, que ia mudando com muita frequência, para dificultar a detenção e investigação das suas atividades pelas entidades policiais;
11) Além disso, na aludida atividade, o arguido AA utilizava vários veículos automóveis, designadamente:
– Mercedes..., modelo ..., de cor ..., de matrícula ..-..-IN;
– BMW, modelo ..., de cor ... de matrícula ..-..-QQ;
– Renault, modelo ..., de cor preta, de matrícula ..-..-VJ; e
– Nissan, modelo ..., de cor branca, de matrícula ..-..-QV;
12) Neste circunstancialismo e no arco temporal referido em 5) dos factos provados, o arguido AA vendeu ou cedeu estupefaciente a várias pessoas, designadamente:
i. ao arguido DD (doravante, apenas por facilidade de exposição, designado por DD), heroína, em média 10 g a cada dois dias, pelo preço de 150€, designadamente nos dias 2 e 4 de março, 25 e 27 de maio, 8 de julho, 19, 21, 25 e 27 de novembro de 2021;
ii. ao arguido KK (doravante, apenas por facilidade de exposição designado por KK), que também testava a qualidade do estupefaciente adquirido por AA, no período de 5 meses que antecedeu a detenção deste último, nomeadamente a 8 de julho, 26 e 27 de novembro de 2021
– semanalmente, 2 a 3 g de heroína, pelo preço de 80€; e
– esporadicamente, em quantidade e preço não apurado;
iii. a LL, em datas concretamente não apuradas de 2018, em 3 ocasiões, 2,5 g de heroína em cada ocasião, pelo preço de 75€;
iv. a MM, em duas ocasiões, sendo uma perto do Natal de 2019 e a outra a 4.6.2020, 2 g de heroína em cada ocasião pelo preço de 60€;
v. a NN, em 6 ocasiões, 2,5 g de heroína a cada ocasião, pelo preço de 70€;
vi. a OO, após o início de 2020 e durante 1 ano e 3 meses, até abril ou maio de 2021, uma ocasião a cada mês e em dois deles duas ocasiões (designadamente a 25 e 27 de maio de 2021), 2,5 g de heroína a cada ocasião, pelo preço de 70€;
vii. a PP, durante dois meses entre os meses de abril e julho de 2021, em 3 ocasiões a cada quinze dias, nomeadamente a 4 de março, 25 e 28 de maio de 2021, 2,5 g de heroína em cada ocasião, pelo preço de 75€;
viii. a QQ,
– numa ocasião, 2,5 g de heroína, pelo preço de 60€;
– em 3 ocasiões, 1,5 g de cocaína, pelo preço de 30€;
ix. a RR, desde meados de 2020 e até à sua (dele) detenção, quinzenalmente, 0,5 g de cocaína pelo preço de 20€;
x. a SS, nos dias 18, 19, 20 e 23 de novembro de 2021, 0,5 g de cocaína, pelo preço de 25€;
xi. a TT, entre o início de novembro de 2020 e 25 de novembro de 2021, em 6 ocasiões, designadamente a 21 e 25 de novembro de 2021, 0,5 g de cocaína, pelo preço de 30€;
xii. a UU, após agosto/setembro e até 26 de novembro de 2021, 0,5 g de cocaína em 6 ocasiões, pelo preço de 30 €;
xiii. a VV, no período de um ano antes da sua detenção:
– 2,5 g de heroína em 4 ocasiões, pelo preço de 75€; e
– 1 g de cocaína numa ocasião, sem receber qualquer preço;
xiv. a WW, desde meados de 2020 até 24 de novembro de 2021, em média, 2,5 g de heroína por semana, pelo preço de 75€, nomeadamente a 12 de novembro de 2020, 19 e 24 de novembro de 2021; e
xv. nos dias 1 de março e 10 de setembro de 2021, estupefaciente, em quantidade, qualidade e por preço que não se lograram apurar, a outras pessoas cuja identidade não se conseguiu determinar;
13) Alguns consumidores deixaram de adquirir ao arguido AA por não terem capacidade económica para suportar os preços que o mesmo exigia pelo estupefaciente que vendia;
14) O arguido AA fazia da venda de estupefacientes o seu modo de vida e pretendia obter lucros com a sua realização;
15) No dia 27 de novembro de 2021, entre as 16.40 horas e as 16.55 horas, nas proximidades do café restaurante B..., sito na Estrada Nacional n.º ..., em ..., Paredes, o arguido AA entregou a GG, que então acompanhava, EE, um saco azul contendo no seu interior umas botas de senhora e, ainda, 5.540€ em notas, dentro de um saco de papel pardo, quantia que lhe foi apreendida;
16) Ainda no dia 27 de novembro de 2021, o arguido AA detinha os seguintes objetos e dinheiro que lhe foram apreendidos:
i. no interior do bolso do seu casaco, que trajava:
– 2 embalagens de heroína com o peso líquido de 4,859 g, com um grau de pureza de 28,4 %, suficientes para 13 doses;
– 2 embalagens cocaína (éster metílico), com um grau de pureza de 63 %;
– 450€;
– um telemóvel da marca NOKIA 105 (...), com o IMEI ...56 e ...55, ligado;
– um talão multibanco com extrato bancário relativo à conta n.º ...56;
– um talão comprovativo de pagamento por cartão bancário da A...; e
– oito pedaços de papeis com manuscritos de diversos nomes e números;
ii. o veículo automóvel da marca BMW, modelo ..., de matrícula ..-..-QQ, que se encontrava estacionado próximo do café restaurante B..., sito na Estrada Nacional n.º ..., em ..., Paredes;
iii. no interior do veículo que também lhe foi apreendido, da o telemóvel, da marca ALCATEL, modelo 2053D, com o IMEI ...72 e ...80, igualmente ligado;
iv. No interior da sua habitação, sita na Rua ..., em ..., Paredes, na divisão que servia de sala e cozinha:
á. no exaustor por cima do fogão e escondido na respetiva estrutura:
– três embalagens de cocaína (éster metílico), com um grau de pureza de 63 %, as quais, juntamente com as outras duas que o arguido AA tinha na sua posse, pesavam 3,596 g, e suficientes para 75 doses;
– um pequeno frasco plástico da marca Alifar contendo no seu interior uma pequena embalagem plástica com 6 g de fenacetina;
â.num armário tipo aparador:
– sete caixas de plástico com resíduos de cocaína e heroína;
– um copo plástico de cor branca;
– um frasco de vidro com resíduos de cocaína e heroína;
– um frasco de plástico da marca Vencilab, com resíduos de cocaína e heroína;
– uma lata da marca Lapiara, contendo resíduos de cocaína e heroína;
– uma pequena embalagem plástica contendo diversos tipos de comprimidos;
– um frasco de plástico intacto de bicarbonato de sódio;
– uma embalagem de 500,712 g de creatina da marca Aptonia;
– três tesouras, com cabos plásticos de cor verde, preta e laranja com resíduos de cocaína e heroína;
– um x-ato com resíduos de cocaína e heroína;
– uma balança digital, com resíduos de cocaína e heroína;
– cinco x-atos transparentes;
– vários rolos de fita adesiva, de vários tamanhos e cores;
– vários rolos de sacos de plástico transparentes;
– uma embalagem de elásticos;
– vários papeis manuscritos alusivos a contas e contactos;
ã. no caixote do lixo
– restos de plásticos, alguns envoltos em fita adesiva castanha; e
– vários recortes de embalagens plásticas transparentes;
17) O arguido AA detinha, ainda, na bagageira do veículo automóvel da marca Mercedes ..., com a matrícula ..-..-IN, duas ferramentas de jardinagem, com vestígios de terra, usadas para enterrar o produto estupefaciente em terrenos baldios;
18) O arguido AA destinava o estupefaciente que detinha à venda a terceiros e os objetos que lhe foram apreendidos eram utilizados na atividade descrita em 5) a 14) por ele desenvolvida;
19) As quantias monetárias que detinha e lhe foram apreendidas eram produto da venda de estupefacientes a terceiros, destinando-se a quantia de 5.540€ apreendida a pagar estupefaciente por ele adquirido;
iii
20) O arguido AA conhecia a natureza e características das substâncias estupefacientes que adquiria, guardava, cedia e vendia a terceiros, sabendo tratar-se de heroína e cocaína, estando ciente de que a sua aquisição, detenção, cedência ou venda a terceiros lhe estava vedada por lei;
21) Sabia ainda que não tinha qualquer autorização legal, administrativa ou médica para adquirir, guardar, ceder ou vender tais substâncias;
22) Todavia, conhecendo os efeitos nefastos na saúde humana dos produtos estupefacientes adquiridos, detidos, vendidos ou por qualquer forma cedidos, o arguido agiu nos termos descritos, adquirindo, guardando, cedendo e vendendo heroína e cocaína, o que representou, quis e conseguiu;
23) Em todos os sobreditos momentos, o arguido AA atuou livre, voluntária e conscientemente, sabendo do caráter ilícito e reprovável das suas condutas;
iv
24) Entre 12 de janeiro de 2016 e 27 de novembro de 2021, data em que foi constituído arguido, AA apresentou património no valor de 23.481,60€, assim distribuído:
i. créditos na conta bancária do Banco 1... n.º ...56, por ele titulada, no valor de 18.906,15€, creditados nos seguintes termos:
– 685,54€ em 2016;
– 3.999,80€ em 2017;
– 2.939,88€ em 2018;
– 5.194,59€ em 2019; e
– 6.292,16€ em 2020.
ii. 4.369,63€ de mais valias provenientes da alienação de imóvel (inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...01 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...77, da freguesia ..., Paredes) pertencente à herança aberta por morte do seu progenitor;
25) Todavia, nesse período, o arguido declarou à Autoridade Tributária e Aduaneira apenas os seguintes rendimentos:
– 4.648,34€ de pensões (1.354,14€ do ano de 2019 e 3.294,20€ do ano de 2020); e
– 4.369,63€ de mais valias provenientes da alienação de imóvel (inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...01 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...77, da freguesia ..., Paredes) pertencente à herança aberta por morte do seu progenitor, somando o montante de 9.017,97€;
26) Além dos referidos em 25), o arguido AA recebeu ainda os seguintes rendimentos
i. em 2016, o valor de 685,54 € proveniente de um seguro de saúde francês;
ii. em 2017, o valor de 3.999,80€, sendo
– 2.748€ de um seguro de saúde celebrado em França;
– 1.251,80€ de indemnização atribuída por companhia de seguros;
iii. em 2018, o valor de 2.769,88€ proveniente de um seguro de saúde francês;
iv. em 2019, o valor de 3.090,45€, sendo
– 2.783,83 € de um seguro de saúde celebrado em França;
– 306,62€ de indemnização atribuída por companhia de seguros;
v. em 2020, o valor de 2.977,96€, sendo
– 2.792,14€ de um seguro de saúde celebrado em França;
– 185,82€ de indemnização atribuída por companhia de seguros;
27) A quantia de 940€ correspondente à diferença entre o património descrito em 24) e os montantes declarados à Autoridade Tributária e Aduaneira referidos em 25) e os rendimentos descritos em 26), tem origem na atividade descrita em 5) a 23), período durante o qual o arguido AA não exerceu qualquer atividade remunerada lícita;
28) Foram arrestados, no âmbito de processo apenso ao presente, os seguintes veículos automóveis:
– Mercedes..., modelo ..., de cor ..., de matrícula ..-..-IN;
– Nissan, modelo ..., de cor branca, de matrícula ..-..-QV;
– BMW, modelo ..., de cor ... de matrícula ..-..-QQ; e
29) No dia 20 de setembro de 2022, na residência do arguido AA sita na Rua ..., ..., Paredes, foram efetivamente apreendidos e imobilizados os veículos:
– Mercedes..., modelo ..., de cor ..., de matrícula ..-..-IN; e
– Nissan, modelo ..., de cor branca, de matrícula ..-..-QV,
tendo as respetivas matrículas apostas;
30) Não obstante se apresentarem em bom estado de conservação, o arguido AA solicitou e conseguiu o cancelamento das respetivas matrículas no dia 16 de maio de 2022;
v
31) No dia 1 de julho de 2020, o arguido e EE encontraram-se no parque de estacionamento do “Pingo Doce” de ...;
32) No dia 8 de julho de 2020, o arguido AA e JJ foram à zona de Vila Nova de Cerveira, nas respetivas viaturas, um Mercedes ... de matrícula ..-..-IN, de cor ... e um Renault ..., de cor ... de matrícula ..-..-TU;
33) No dia 22 de outubro de 2020, o arguido AA encontrou-se novamente com EE, no parque de estacionamento do “Pingo Doce”, em ..., onde entregou uma quantia monetária não concretamente apurada;
34) No dia 5 de novembro de 2020, o arguido AA deslocou-se na sua viatura com a matrícula ..-..-QQ, ao Lugar ..., em Galiza, local onde almoçou com EE;
35) No dia 12 de novembro de 2020, pelas 9.40 horas, o arguido AA encontrou-se com JJ junto da saída/entrada da Autoestrada n.º ... em ..., Ponte de Lima, Braga;
36) Após, o arguido AA seguiu para a Galiza, onde se encontrou com o EE;
37) No dia 4 de dezembro de 2020, entre as 9.00 horas e as 10.30 horas e no dia 16 de dezembro de 2020, o arguido AA e EE encontraram-se no já citado supermercado “Pingo Doce”, em frente à residência deste;
38) No dia 10 de dezembro de 2020, cerca das 19.58 horas o arguido AA recebeu uma chamada no seu telemóvel ...02 do n.º ...15, pertencente a um indivíduo de seu nome XX;
39) No dia 1 de março de 2021, o arguido AA deslocou-se novamente à Galiza, na sua viatura com a matrícula ..-..-VJ, da marca Renault, modelo ..., tendo-se encontrado com EE;
40) No dia 5 de maio de 2021, na parte de manhã, o arguido AA encontrou-se com EE na zona de ..., Paredes;
41) No dia 6 de Junho de 2021, o arguido AA e EE encontraram-se no restaurante “D...”, em ..., Paredes;
42) No dia 10 de junho de 2021, o arguido AA deslocou-se à Galiza, ao volante do seu veículo;
43) No dia 8 de julho de 2021, o arguido AA deslocou-se à Galiza onde se encontrou com EE;
44) No dia 25 de setembro de 2021, o arguido AA encontrou-se na EN..., entre Arcos de Valdevez e Paredes de Coura, com EE;
45) Entre o dia 1 de janeiro de 2020 e 21 de maio de 2021, os veículos indicados em 11) passaram a fronteira de Valença em 16 ocasiões, com maior incidência no primeiro semestre de 2021;
B
i
46) O arguido KK destinava parte estupefaciente que adquiria ao arguido AA ao seu consumo e parte à cedência e venda a terceiros;
47) Além disso, o arguido KK testava a qualidade do estupefaciente que o arguido AA adquiria;
48) Após a detenção do arguido AA, o arguido KK passou a adquirir estupefaciente noutros fornecedores, designadamente no Porto;
49) No dia 16 de dezembro de 2021, cerca das 11.15 horas, o arguido KK detinha na sua residência, sita na Travessa ..., ..., Valongo, os seguintes objetos e dinheiro que lhe foram apreendidos:
– 7,226 g de cocaína (éster metílico), dividida por 73 embalagens, sendo:
i. 2,014 g com um grau de pureza de 37%, suficientes para 24 doses; e
ii. 5,212 g com um grau de pureza de 32,4%, suficientes para 56 doses;
– 6,616 g de heroína, dividida em 63 embalagens, com um grau de pureza de 20,2%, suficientes para 13 doses;
– um envelope da Vodafone, contendo um suporte de um cartão SIM da mesma Operadora, a que corresponde o n.º de telemóvel ...54;
– 160€;
– um telemóvel MAXCOM, modelo MM824, com o IMEI ...07, com um cartão SIM da VODAFONE, com o n.º de série ...12;
– um telemóvel da marca XIAOMI, modelo MI8, de cor preta, com os IMEI`S ...78 e ...86, com um cartão SIM da Vodafone;
– um telemóvel da marca Nokia, de cor preta, com um cartão SIM da Operadora Vodafone, a que corresponde o n.º de telemóvel ...54; e
– diversos papeis e documentos com nomes e números de telemóveis;
50) O arguido KK, encontrando-se fora da sua residência e apercebendo-se que ia ser abordado por elementos da Polícia Judiciária, rapidamente entrou e saiu da habitação e, procurando esconder o estupefaciente que detinha, atirou um frasco plástico azul de “Mentos” com o aludido estupefaciente para um terreno ainda de sua propriedade onde se encontrava galinha, local onde foi, depois apreendido;
51) O arguido KK utilizava os bens que lhe foram apreendidos, designadamente os telemóveis, à atividade de aquisição, venda e cedência a terceiros de estupefacientes e as quantias monetárias que detinha e lhe foram apreendidas eram produto da referida atividade;
52) Destinava o estupefaciente que detinha ao seu consumo e à cedência e venda a terceiros;
53) O arguido KK não tinha qualquer autorização legal, administrativa ou médica para adquirir, guardar, vender ou por qualquer forma ceder a terceiros heroína ou cocaína;
ii
54) O arguido KK conhecia a natureza e características das substâncias estupefacientes que adquiria, guardava, cedia e vendia a terceiros, sabendo tratar-se de heroína e cocaína, estando ciente de que a sua aquisição, detenção, cedência ou venda a terceiros lhe estava vedada por lei;
55) Sabia ainda que não tinha qualquer autorização legal, administrativa ou médica para adquirir, guardar, ceder ou vender tais substâncias;
56) Todavia, conhecendo os efeitos nefastos na saúde humana dos produtos estupefacientes adquiridos, detidos, vendidos ou por qualquer forma cedidos, o arguido agiu nos termos descritos, adquirindo, guardando, cedendo e vendendo heroína e cocaína, o que representou, quis e conseguiu;
57) Em todos os sobreditos momentos, o arguido KK atuou livre, voluntária e conscientemente, sabendo do caráter ilícito e reprovável das suas condutas;
C
i
58) O arguido DD destinava parte do estupefaciente que adquiria ao arguido AA ao seu consumo e parte à cedência e venda a terceiros residentes na sua zona ou aos seus vizinhos, designadamente:
i. a LL, em datas e vezes não concretamente apuradas, mas principalmente ao fim de semana e até ao final do ano de 2020, um dose de heroína por 10 €;
ii. a MM, em datas e vezes não apuradas, de tempos a tempos, uns pacotes de heroína, por valor não apurado; e
iii. a NN, esporadicamente heroína, quando este não conseguia adquirir ao arguido AA;
59) Após a detenção do arguido AA, o arguido DD passou a adquirir estupefaciente noutros fornecedores, designadamente no Porto;
60) No dia 15 de dezembro de 2021, o arguido DD detinha na sua residência, sita na Travessa ..., ..., ..., os seguintes bens que lhe foram apreendidos:
– um telemóvel da marca Umidigi, com o IMEI ...22, com um cartão a que corresponde o n.º ...89, na sua pessoa, no seu quarto;
– um telemóvel Nokia, com o IMEI ...64, com o cartão SIM a que corresponde o n.º ...48;
– um aviso de informação dos CTT manuscrito no seu verso com vários números;
61) No dia 5 de abril de 2022, o arguido DD solicitou ao arguido YY (doravante, apenas por facilidade de exposição, designado por YY) que o conduzisse ao Bairro ..., na cidade do Porto, para que pudesse adquirir estupefaciente;
62) Aceitando, por amizade ao mesmo, aquela solicitação, o arguido YY conduziu o arguido DD no seu veículo automóvel da marca BMW, modelo ..., de matrícula ..-HT-.. até ao Bairro ..., no Porto;
63) Aí chegados, depois de sair do veículo, o arguido DD deslocou-se para o interior do aludido Bairro e adquiriu, a indivíduo não identificado, 11,749 g de heroína, dividida em 112 embalagens, com um grau de pureza de 24,7%, suficientes para 29 doses, pelo preço de 250€;
64) Cerca das 18.40 horas desse dia 5 de abril de 2022, quando circulavam, já de regresso, na Avenida ..., no Porto, estando o arguido YY ao volante, os arguidos foram abordados por agentes da Polícia de Segurança Pública, tendo então sido apreendida ao arguido DD o estupefaciente por ele adquirido;
65) O arguido DD utilizava os bens que lhe foram apreendidos, designadamente os telemóveis, à atividade de aquisição, venda e cedência a terceiros de estupefacientes;
66) Destinava o estupefaciente que detinha ao seu consumo e à cedência e venda a terceiros;
67) Os arguidos DD e YY não tinham qualquer autorização legal, administrativa ou médica para adquirir, guardar, vender ou por qualquer forma ceder a terceiros heroína ou cocaína;
ii
68) O arguido DD conhecia a natureza e características das substâncias estupefacientes que adquiria, guardava, cedia e vendia a terceiros, sabendo tratar-se de heroína e cocaína, estando ciente de que a sua aquisição, detenção, cedência ou venda a terceiros lhe estava vedada por lei;
69) Sabia ainda que não tinha qualquer autorização legal, administrativa ou médica para adquirir, guardar, ceder ou vender tais substâncias;
70) Todavia, conhecendo os efeitos nefastos na saúde humana dos produtos estupefacientes adquiridos, detidos, vendidos ou por qualquer forma cedidos, o arguido agiu nos termos descritos, adquirindo, guardando, cedendo e vendendo heroína e cocaína, o que representou, quis e conseguiu;
71) O arguido YY sabia que o arguido DD pretendia adquirir estupefaciente na cidade do Porto e que não tinha qualquer autorização para a aquisição, detenção, cedência ou venda a terceiros de estupefacientes, designadamente de heroína;
72) Estava ainda o arguido YY ciente que prestava auxílio ao arguido DD na aludida atividade;
73) Não obstante isso, atuou nos termos descritos, conduzindo o arguido DD à cidade do Porto para este adquirir estupefacientes, o que representou, quis e conseguiu;
74) Em todos os sobreditos momentos, os arguidos DD e YY atuaram livre, voluntária e conscientemente, sabendo do caráter ilícito e reprovável das suas condutas;
D
75) EE, no dia 27 de novembro de 2021, detinha, no interior do veículo automóvel da marca Audi, de matrícula ... .... CNL, conduzido por EE, os seguintes bens que lhe foram apreendidos:
– 6 papeis manuscritos com indicações de endereços de correio eletrónico, n.os de telemóveis e n.os de contas bancárias; e
– fotocópia de cartão de cidadão plastificado pertencente a ZZ,
II
A
76) O processo de crescimento e desenvolvimento de do arguido AA decorreu no agregado de origem, composto pelos pais e cinco irmãos mais velhos, num contexto de dificuldades financeiras: o pai constituía-se como o único elemento laboralmente ativo do agregado, decorrente da permanência materna na habitação e gestão familiar, sendo financeiramente coadjuvado, mais tarde, pelos filhos mais velhos à medida que estes iniciavam atividade laboral;
77) O arguido completou o 4.º ano de escolaridade, indiciando dificuldades de adaptação às regras escolares, que culminaram no abandono escolar;
78) Estas características associaram-se, desde cedo, a outras de índole educativa e de supervisão parental, particularmente no que respeita à adaptação social e manutenção de laços antissociais, adotando o arguido uma conduta tendencialmente irreverente e transgressiva, o que gerava sentimentos de instabilidade e insegurança no meio sociofamiliar;
79) O arguido AA iniciou a sua trajetória laboral cerca dos 13 anos, na área da marcenaria, onde o pai trabalhava, aí permanecendo até aos 18 anos;
80) Nesta altura, opta por emigrar para França, motivado por fatores financeiros e familiares, onde se especializou na área da chaparia;
81) No entanto, o arguido AA sofreu um acidente de trabalho, com redução da capacidade visual, o que motivou a atribuição de pensão por invalidez e consequente alteração da área de atividade;
82) Regressou a Portugal após cerca de 8 anos de permanência em França, retomando a atividade laboral na área da marcenaria junto da figura paterna;
83) No entanto, o percurso laboral do arguido AA passou a assumir um carácter mais diversificado e irregular, também mercê do início do consumo de estupefacientes, com gradual vinculação e dependência;
84) Contraiu matrimónio no início da idade adulta, do qual existe um filho, já autonomizado, com quem foi mantendo sempre contacto próximo, mesmo após o divórcio, ocorrido durante a adolescência deste;
85) Estabeleceu segunda união marital, da qual nasceu um segundo filho, o qual foi alvo de institucionalização, com consequente desconhecimento do seu paradeiro;
86) O estilo de vida de AA passou a pautar-se pela frequência de espaços de diversão noturna e eventos relacionados com desportos motorizados, cessando a segunda união, marcada por ténues vínculos afetivos, ressurgindo outras relações afetivas em contextos marginais associados à toxicodependência e prostituição;
87) Em 2008, quando colocado em liberdade após o cumprimento de penas de prisão, regressou à morada de família, localizada em ... – Paredes, onde passou a residir sozinho, contando apenas com a autorização dos irmãos para residir na morada de família, em herança indivisa, dos quais se mantinha distanciado afetivamente;
88) Nesta altura, o arguido AA passou a subsistir da pensão de invalidez de que era beneficiário, à qual associava a prestação de rendimento social de inserção e os proveitos de alguns serviços na área da mecânica;
89) A recaída no consumo de drogas ocorreu alguns meses após a sua libertação, com consequente estilo de vida marginal, tendo nesta fase conhecido a atual companheira, com quem passou a residir em união de facto numa habitação arrendada em ..., Paredes;
90) Foi novamente preso a 9 de agosto de 2012, sendo libertado a 8 de agosto de 2018/08/2018, retomando então a vivência marital com a companheira na morada do casal sita na Rua ..., ..., Paredes, tratando-se de uma habitação arrendada;
91) A companheira de AA aufere pensão de viuvez no valor aproximado de 200 € mensais, realizando ainda trabalhos sazonais em França e Espanha, designadamente nas vindimas, com vista a incrementar os seus rendimentos;
92) O arguido AA deu entrada no Estabelecimento Prisional ... a 29 de novembro de 2021, à ordem do presente processo, em prisão preventiva;
93) Durante a sua permanência em meio prisional, o arguido AA tem demonstrado respeito pelo regulamento interno institucional, não existindo registos de sanções disciplinares;
94) A nível ocupacional, não manifesta motivação para obter colocação, tendo permanecido colocado na carpintaria entre 4 de janeiro e 7 de março de 2022, após o que abandonou alegando problemas de saúde;
95) Beneficia de acompanhamento especializado nas especialidades de Psicologia e Psiquiatria;
96) Continua a receber o apoio da sua companheira, consubstanciado em visitas regulares ao estabelecimento prisional, mostrando-se esta recetiva em voltar a conceder retaguarda habitacional ao arguido aquando da sua restituição a meio livre;
97) Atualmente, a companheira do arguido AA encontra-se em Espanha, a trabalhar temporariamente nas vindimas;
98) O arguido AA não projeta retornar atividade laboral, atendendo à sua idade e condição de saúde, considerando dispor de condições para alcançar um modo de vida financeiramente estável, se afastado de contextos desviantes;
99) Em abstrato, o arguido efetua uma análise crítica relativamente à natureza dos factos imputados, reconhecendo a ilicitude de tais comportamentos, embora os minimize;
100) No meio comunitário de residência, o arguido AA é descrito como cordial no relacionamento interpessoal, sendo, contudo, referenciado por um estilo de vida sem hábitos de trabalho e com comportamentos desviantes, traduzido numa imagem estigmatizada e num sentimento generalizado de desconfiança;
B
101) O arguido DD reside em ..., concelho ..., juntamente com os progenitores, numa habitação propriedade dos pais, situada em meio rural;
102) Tem ainda um irmão mais velho, autónomo, com ele mantendo uma boa relação;
103) A dinâmica familiar é integradora e de suporte entre todos os membros;
104) Tem o 9.º ano de escolaridade;
105) O arguido DD exerce atividade laboral como carteiro nos CTT desde os 19 anos de idade, auferindo mensalmente cerca de 986,42€, valor acrescido de extras;
106) Como despesas fixas mensais, o arguido DD suporta 322€, referentes a crédito pessoal com aquisição de viatura própria (130€), pensão de alimentos da filha estudante (150€), telecomunicações (34€) e medicação (8€), para além de auxiliar nas despesas da economia doméstica;
107) É, desde os 16 anos de idade, consumidor de estupefacientes, iniciando os seus consumos após aproximação a pares do a mesma problemática aditiva;
108) Reconhece o seu problema de adição, tendo efetuado alguns tratamentos, mas sem sucesso;
109) Efetua, atualmente, tratamento na Equipa de Tratamento de ..., tendo as últimas consultas ocorrido a 14.9.2022 e 19.10.2022, com toma regular de metadona;
110) Afastou-se do anterior grupo de pares;
111) O arguido DD apresenta consciência crítica em relação aos factos, reconhecendo vítimas e danos;
112) Na comunidade, não há sinais de rejeição ou hostilidade em relação ao arguido, sendo, apesar de conhecida a sua dependência aditiva, bem referenciado, assim como a sua família;
113) Confessou integralmente e sem reservas os factos;
114) Mostra-se arrependido;
115) Não tem antecedentes criminais;
C
116) O arguido KK é o sétimo de uma fratria de dez elementos, sendo a dinâmica familiar funcional e baseada na vinculação afetiva, sem vivência de precariedade económica e beneficiando de uma educação orientada por referencais normativos;
117) O seu percurso escolar foi marcado pela acentuada desmotivação pelos conteúdos de aprendizagem, nomeadamente a partir do primeiro ano do liceu (atual sétimo ano de escolaridade), tendo sofrido três retenções nesse ano letivo devido ao absentismo registado e inserção de grupos de pares igualmente absentistas;
118) Nestas circunstâncias, os pais colocaram-no a aprender a profissão de entalhador de mobiliário, registando o arguido KK, então, ausência de assiduidade e continuando a conviver com pares sem ocupação, para além manifestar dificuldade no cumprimento das regras paternas;
119) Tal estilo de vida levou à decisão paterna de expulsão da habitação sendo que, após alguns meses, o arguido KK reintegrou o agregado familiar;
120) Incorporou o serviço militar aos 21 anos de idade, contexto em que iniciou o consumo de estupefacientes, tal como cocaína e heroína, do qual se tornou dependente com cerca de 24 anos de idade;
121) Nesta altura, o arguido KK trabalhava por conta própria como entalhador e sem constituição de firma, num espaço cedido pelos pais e com suporte destes em termos do material necessário para o exercício da profissão;
122) Aos 26 anos de idade, contraiu matrimónio, relação conjugal que sempre se apresentou disfuncional, atenta a sua dependência de estupefacientes e incapacidade de assunção das suas responsabilidades familiares e parentais, assumindo ao cônjuge o papel dominante na organização da vida familiar e na garantia da subsistência do agregado, apoiada pela família do arguido;
123) Em termos profissionais, o arguido KK registou instabilidade e irregularidade laboral, concretizando trabalhos pontuais na sequência de algumas solicitações;
124) Com 38 anos de idade, por orientação dos pais e irmãos efetuou o primeiro tratamento ao seu problema aditivo, tendo permanecido quatro anos abstinente;
125) Todavia, sofreu posteriores recidivas e recorreu ao tratamento ambulatório no Centro de Respostas Porto ..., Equipa de Tratamento de ..., onde ainda se encontra em tratamento ambulatório, dadas as recaídas vivenciadas;
126) À data dos factos, o arguido KK vivia com o filho e o cônjuge, esta falecida em setembro de 2021;
127) Atualmente, o arguido KK mantém-se a residir na habitação da família, uma moradia de três pisos, espaço partilhado com o descendente, de maioridade e companheira deste, a ocuparem os pisos diferentes;
128) Mantêm uma interação positiva e adequada;
129) O arguido, no que toca à sua problemática aditiva, mantém acompanhamento clínico no Centro de Respostas Integradas Porto ..., ..., comparecendo com regularidade às consultas agendadas;
130) O filho e companheira do arguido, assim como os irmãos, têm-se constituído o suporte afetivo do mesmo;
131) O arguido subsiste com o valor da pensão de sobrevivência no valor de 166,76 e, acrescida do rendimento social de inserção, no montante de 158€;
132) É o seu descendente que assume as despesas inerentes ao uso da habitação, como eletricidade e outros consumos;
133) O arguido KK ocupa-se diariamente do cultivo e manutenção de produtos hortícolas, nas terras aráveis propriedade da família e, na criação de animais domésticos, atividade que se constitui importante na economia domestica, quer do seu agregado, quer dos irmãos;
134) No último ano, o quotidiano do arguido KK centra-se de modo dominante na família, na execução de tarefas agrícolas e interagindo com outros pares, estes sem problemáticas aditivas;
135) Não sendo o primeiro confronto com o sistema de administração de justiça penal, o arguido KK expressa, em abstrato, censurabilidade face aos factos, que integra em contexto de consumo de estupefacientes;
136) Mostra-se preocupado com o desfecho deste processo e as consequências que para si podem resultar;
137) Sente vergonha pela sua situação processual, nomeadamente perante o descendente e família que sempre se tem configurado uma dimensão protetora no seu percurso;
138) Não tem antecedentes criminais;
D
139) O arguido YY tem o 9.º ano de escolaridade;
140) Após o fim de uma relação conjugal que durou 16 anos e da qual nasceram dois filhos, o arguido contraiu novamente matrimónio, em 2014, agora com uma cidadã de nacionalidade brasileira, relação da qual nasceram 2 filhos de 7 meses e 7 anos;
141) O casal sempre viveu na Suíça, onde trabalhavam, até junho de 2021, data em que o cônjuge se estabeleceu em Portugal com os dois filhos, como forma de adaptação ao país e com o objetivo de o filho mais velho iniciar a escolaridade em território nacional;
142) Residem em moradia com boas condições de habitabilidade;
143) O arguido YY, apesar de reformado por invalidez, continua emigrado na Suíça pelo que regressa a Portugal, para junto do agregado familiar com regularidade;
144) O arguido YY encontra-se, desde os 16 anos de idade, emigrado na Suíça, aí passando pelo exercício de diversas atividades, desde a agricultura, restauração, limpezas, estabilizando como motorista de transportes públicos, atividade que exerceu entre 2005 e 2021;
145) Em 2021, o arguido sofreu uma trombose ocular que lhe retirou temporariamente a visão do olho esquerdo, sendo foi alvo de várias intervenções cirúrgicas que apenas lhe permitiram adquirir cerca de 15/20% da visão, a que acrescem problemas de hipertensão, anemia e depressão, quadro clínico que o impediu de continuar a exercer a sua atividade laboral, sendo reformado por invalidez em maio de 2021;
146) Contudo e porque a situação ainda é recente, mantém-se na Suíça, a fim de continuar a beneficiar quinzenalmente de consultas médicas;
147) O arguido aufere 4.156€ mensais de reforma por invalidez, acrescido de 2 360 e de apoios relativos aos menores;
148) O seu cônjuge encontra-se desempregada desde que regressou da Suíça;
149) Suporta 550€ de renda, 223€ de crédito para a aquisição de automóvel;
150) O arguido é conhecido na comunidade, inexistindo sentimentos de rejeição ou hostilidade à sua pessoa, sendo uma pessoa de comportamento correto, hábitos de trabalho, beneficiando de uma boa imagem;
151) O arguido YY mostra desconforto com s sua situação processual, revelando ansiedade pelo seu desfecho;
152) Não tem antecedentes criminais;

B. Factos não provados
7. Com relevo para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros que estejam em contradição com os dados como provados e, designadamente, não se provaram os seguintes factos:
a) Sem prejuízo do aí descrito, o arguido AA desenvolveu a atividade descrita em 5) a 23) dos factos provados desde abril de 2018 em grande escala;
b) Sem prejuízo do descrito em 6) dos factos provados, o arguido AA abastecia-se de estupefaciente através essencialmente de EE;
c) Sem prejuízo do descrito em 5) a 23) dos factos provados, o arguido AA, na posse do estupefaciente, comercializava-o junto dos seus inúmeros clientes, com uma frequência diária e reiterada, abastecendo-os de quantidades que variavam, essencialmente, entre as 2,5 g e as 20 g por cliente;
d) Sem prejuízo do descrito em 6) e 7) dos factos provados, o arguido AA deslocava-se com regularidade junto da residência do EE, situada na Galiza ou encontravam-se a meio caminho, no acesso de A3, de ..., ou em Paredes de Coura ou ainda na própria residência daquele arguido;
e) A partir do mês de março de 2020, face ao estado de emergência decretado no país, em virtude da pandemia COVID 19, os encontros entre o arguido AA e o EE diminuíram de frequência, pela dificuldade e risco em atravessar a fronteira;
f) Ainda assim, e sem prejuízo do descrito em 6) dos factos provados, no período de restrição da circulação por força da Pandemia Covid 19, o arguido AA continuou a abastecer-se, nomeadamente, de heroína junto de outro fornecedor espanhol conhecido por “AAA”, na zona de Vila Nova de Cerveira, o qual conheceu através de um seu conhecido, JJ;
g) Sem prejuízo do descrito em 12) dos factos provados, o arguido AA vendeu ou cedeu estupefaciente:
– a LL, em 5 ou 6 ocasiões, no ano de 2018;
– a MM, em 3 ou 4 ocasiões, durante o ano de 2019;
– a NN, entre agosto de 2018 e novembro de 2021, uma ocasião a cada semana;
– a OO, até setembro de 2021, 2,5 g de heroína, pelo preço de 75€, de 3 em 3 dias;
– a PP, desde o início de 2020 e até meados de 2021, em média, 5 g de heroína por semana, pelo preço de 150€;
– a QQ, durante cerca de ano a ano e meio, em média, 1,5 gramas de cocaína, pelo preço de 100€, designadamente nos dias 19, 20, 21 e 23 de novembro de 2021;
– a RR, desde data não concretamente apurada, mas situada no início do ano de 2020 e até ao mês de novembro de 2021, pelo preço de 25€ cada 0,5 g de cocaína, de modo irregular, havendo períodos, não concretamente determinados, em que lhe vendia todos os dias e, por vezes, havia semanas que não vendia qualquer quantidade;
– a SS, cocaína pelo preço variável de 10€ a 30€, em 10 ocasiões, no máximo nos meses de outubro e novembro de 2021;
– a UU, desde agosto/setembro até 27.11.2021, numa média de 3 a 4 vezes por semana, entre meia e uma grama em “pó”, pelo preço de 20€ a 30;
– a VV, no ano de 2020 e 2021, 2,5 g a 5 g de heroína, numa média de 3 a 4 vezes por semana, pelo preço, respetivamente, de 75€ a 150€ e, em número de vezes que não foi possível contabilizar, mas de um modo regular, barras de haxixe pelo preço de 25€ cada;
– a WW, desde novembro de 2018, 5 g de heroína por semana;
h) No dia 20 de Maio de 2021, o arguido AA foi buscar produto estupefaciente à Galiza, em quantidades que não foi possível determinar;
i) A atividade descrita em 5) a 23) dos factos provados era a única fonte de rendimentos do arguido;
j) O arguido AA é casado com BBB;
k) A conta bancária do Banco 1... n.º ...56 é titulada pelo arguido AA e por BBB;
l) Nos encontros, conversas e deslocações aludidas em 31) a 44) dos factos provados, o arguido AA, nomeadamente tidas com EE e JJ, adquiriu ou arquitetou a aquisição e entrega de estupefaciente, incluindo a um fornecedor espanhol com o nome ou alcunha de “AAA”, procedeu a pagamentos ou combinou pagamentos relacionados com a atividade de tráfico de estupefacientes;
m) No dia 25 de novembro de 2020, o arguido AA manteve uma conversação via telefone com um indivíduo não identificado, onde lhe disse que ia buscar material melhor e mais caro, querendo referir-se a produto estupefaciente;
n) Ainda nessa chamada, o arguido AA informou o interlocutor que a semana passada tinha ido buscar “branca”, querendo referir-se a cocaína e meio kilo de “castanha”, querendo referir-se a heroína;
o) O indivíduo não identificado informou o arguido AA que preferia a branca e falaram em traçar o produto.
p) O montante de 5.540€ descrito em 15) dos factos provados não pertencia ao arguido AA;
q) A quantia de 450€ apreendida ao arguido AA pertencia à sua companheira e que esta lhe havia entregue no dia 23 de novembro de 2021;
r) O arguido AA, no arco temporal descrito em 5), consumia, semanalmente, 4 a 5 g de cocaína e 1 g de heroína;
s) Parte do estupefaciente que o arguido AA detinha destinava-se ao seu consumo;
t) No período aludido em 5) dos factos provados, o arguido AA ia realizando vários biscates, nomeadamente na área da marcenaria;
u) O montante que foi apreendido ao arguido KK provinha da venda de alguns galos e do rendimento social de inserção que o mesmo auferia;
v) O arguido KK auferia rendimentos da realização de alguns biscates;
w) Sem prejuízo do descrito em 61) a 74) dos factos provados, os arguidos DD e YY deslocaram-se à cidade do Porto com o propósito por ambos estabelecido, de aquisição de produto estupefaciente, o que concretizaram;
x) O arguido YY não sabia que o arguido DD pretendia adquirir estupefaciente quando aceitou transportá-lo à cidade do Porto;
C.
8. O demais — que não consta nem do elenco dos factos provados nem dos não provados — ou constituem considerandos puramente jurídicos ou factos conclusivos ou irrelevantes para a decisão.
D. Motivação
9. O problema da nulidade da prova com recurso a metadados.
9.1. O arguido AA, na sua contestação, invocou a nulidade da prova obtida com recurso a metadados, uma vez que “toda a investigação assentou com primazia e tendo como base as escutas telefónicas, localização celular, IMEI, faturação detalhada com registo de trace-back, etc…”, sendo que o arguido é apenas identificado com recurso a metadados, assim como os seus clientes, prova esta que, sendo nula, não poderá ser utilizada por constituir meio de prova proibido.
9.2. O Ministério Público pronunciou-se, considerando que a recolha de metadados cumpriu o regime legal e, por isso, a prova obtida não enferma de qualquer nulidade.
9.3. Cumpre tomar posição.
9.5. Desde já se adianta que não assiste qualquer razão ao arguido AA e por uma simples, mas básica, razão: não há a utilização de metadados (no sentido que o arguido lhes dá) no âmbito do presente processo.
Expliquemos.
a) A fonte da controvérsia no que diz respeito aos metadados surgiu com a decisão do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 268/2002, de 19de abril, declarando-se o seguinte:
a) a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;
b) a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.
É tendo em conta este juízo de inconstitucionalidade que importa apurar da realidade normativa em que nos movemos2.
2 Para que se não diga que o relator desta decisão se enfeita com penas alheias, deve dizer-se, em nome da honestidade intelectual, que se segue na íntegra a posição expendida pela Sr.ª Dr.ª CCC em trabalho que a mesma teve a gentileza de facultar ao 1.º signatário deste Acórdão.
b) Antes de mais, importa esclarecer o que são dados de base e dados de tráfego, assinalando a diferença no regime da sua obtenção.
Tem-se entendido (neste sentido e a título de exemplo, o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 21/2000, de 16 de junho de 2000, homologado e publicado no Diário da República n.º 198, II Série, de 28 de agosto de 2000 e o Parecer, também do mesmo Conselho Consultivo, n.º 16/94-Complementar, de 2 de Maio de 1994, publicado em Pareceres, edição da Procuradoria-Geral da República, vol. VI, p. 535 e ss., vindo na esteira da doutrina perfilhada por Yves Poullet e Françoise Warren, Noveaux compléments au service teléphonique et protection des donnés: à la recherche d’un cadre conceptuel – in Droit de L’Informatique et des Télécoms, 7.éme année; 1990/91, 1, p. 19 e segs,, apud página oficial da Procuradoria Geral da República, pareceres VII, utilização da informática, disponível em http://www.pgr.pt/pub/Pareceres/VII/2.html.) que existem três espécies de dados ou elementos:
– os dados relativos à conexão à rede, chamado também de dados de base;
– os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede, tais como por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência, e que são chamados de dados de tráfego; e
– os dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, também chamados de dados de conteúdo”.
c) A Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (doravante, Lei do Cibercrime), no artigo 2.º al. c), esclarece que são dados de tráfego “os dados informáticos relacionados com uma comunicação efetuada por meio de um sistema informático, gerados por este sistema como elemento de uma cadeia de comunicação, indicando a origem da comunicação, o destino, o trajeto, a hora, a data, o tamanho, a duração ou o tipo do serviço subjacente.”
A jurisprudência, de seu lado (a título de exemplo, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo n.º 1341/08.4TAVCT, disponível em www.dgsi.pt, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 420/17, proferido no âmbito do processo 917/16, de 13.07.2017, disponível https://blook.pt/caselaw/PT/TC/523118/ e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 487/2009, no âmbito do processo n.º 272/09 da 2.ª Secção, in Diário da República, 2.ª Série, n.º 215, de 5 de novembro de 2009) tem vindo a sustentar que o acesso a dados relacionados a um endereço de IP configura um pedido de dados de tráfego, acolhendo-se na definição prevista no artigo 2.º, n.º 2, al. d) da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto (Lei da proteção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações) que os define como sendo “quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas ou para efeitos de faturação da mesma”, podendo “incluir qualquer tradução desta informação pela rede através da qual a comunicação é transmitida, para efeitos de execução da transmissão.
Os dados de tráfego podem ser, nomeadamente, os relativos ao encaminhamento, à duração, ao tempo ou ao volume de uma comunicação, ao protocolo utilizado, à localização do equipamento terminal do expedidor ou do destinatário, à rede de onde provém ou onde termina a comunicação, ao início, fim ou duração de uma ligação. Podem igualmente consistir no formato em que a comunicação é enviada pela rede” (cf. considerando (15) da Diretiva n.º 2002/58/CE, de 12 de julho de 2002, transposta para o nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º 41/2004).
d) Por seu turno, os dados de base, como vimos, dizem respeito à conexão à rede, independentemente de qualquer comunicação, possibilitando a identificação do utilizador de certo equipamento (nome, morada, número de telefone) (exatamente assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 486/2009, no âmbito do processo n.º 4/09 e disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt).
e) Sempre que estejamos perante dados de base — identificação e morada do utilizador do serviço, elementos necessários ao estabelecimento de uma base para comunicação — cabe ao Ministério Público a competência para realizar o pedido.
Todavia, pretendendo-se obter uma informação mais ampliada na dimensão do tráfego — “necessários ou produzidos pelo estabelecimento da ligação da qual uma comunicação concreta, com determinado conteúdo, é operada ou transmitida, são a direção, o destino (adressage) e a via, o trajeto (routage)” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo 1756/05.2TJLSB.L1, de 20.06.2013, disponível em www.dgsi.pt) — tal informação carece de autorização judicial, porquanto se trata de elementos intrínsecos à própria comunicação, uma vez que permitem identificar, em tempo real ou a posteriori, os utilizadores e seu relacionamento através da rede, a localização, a frequência, a data, hora e a duração da comunicação.
f) Realizado este brevíssimo esclarecimento, importa, em face do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 citado, ter presente o quadro normativo vigente e que o mesmo não afeta um conjunto de normas que, de algum modo, podem contender com a utilização de metadados, nomeadamente:
– a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (a Lei do Cibercrime), especialmente o artigo 14.º;
– o Código de Processo Penal, muito particularmente os artigos 187.º a 189.º;
– a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que transpõe para a nossa ordem jurídica a diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, respeitante à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações;
– a Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto (Lei de Proteção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações), especialmente o seu artigo 6.º; e
– a Lei 5/2004, de 10 de fevereiro (Lei das comunicações eletrónicas).
g) Vejamos sucintamente.
i. Quanto à Lei do Cibercrime, refira-se que define, essencialmente, o âmbito de aplicação dos normativos processuais que se encontram contemplados no referido diploma, sendo que as normas de direito processual materializadas neste diploma legal abrangem não só investigações por crimes previstos no referido diploma legal, como também outos crimes cuja investigação, na prática, apenas é possível se se puder fazer-se uso destes meios de prova especiais, designadamente os crimes cometidos por meio de um sistema informático e os crimes cuja prova esteja guardada em suporte digital ( Pedro Verdelho, A nova Lei do Cibercrime, Scientia Ivridica, Tomo LVIII, N.º 320, Outubro – Dezembro 2009, pp. 733 e 734).
Neste quadro, a Lei do Cibercrime prevê um conjunto de normas processuais penais respeitante à recolha de prova digital dirigido a uma constelação de crimes distintos, consagrando medidas relativas à preservação, revelação, apresentação, pesquisa e apreensão de dados informáticos (artigos 12.º a 17.º) e que se aplicam não só aos crimes informáticos nela previstos, mas também aos que se inserem no âmbito do conceito de “criminalidade informática em sentido lato” e, ainda aos que, em matéria probatória, em geral beneficiem da prova em suporte digital (Pedro Dias Venâncio, Lei do Cibercrime – Anotada e Comentada, Coimbra Editora, 2011, p. 90).
A preservação expedita de dados — sejam estes referentes a transmissões de dados informáticos, sejam os armazenados num sistema informático — prevista no artigo 12.º da Lei do Cibercrime tem uma finalidade cautelar, “não intrusiva, que apenas pretende garantir que informação presumivelmente importante não seja destruída” (exatamente assim, Pedro Verdelho, A nova Lei do Cibercrime, Scientia Ivridica, Tomo LVIII, N.º 320, outubro – dezembro 2009, pp. 736).
Tal dispositivo normativo tem aplicabilidade, como já se deixou referido, ao ilícitos catalogados como crimes graves nos termos da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, mas também a outros que digam respeito a processos relativos a crimes previstos na Lei do Cibercrime e praticados por meio de um sistema informático ou em relação aos quais seja essencial proceder à recolha de prova em suporte eletrónico (artigo 12.º e 11.º da Lei do cibercrime).
A ordem de preservação identifica a natureza dos dados, origem e destino e o período de tempo de preservação é até um máximo de três meses (n.º 3 do artigo 12.º da Lei do Cibercrime).
Deste modo, aquele a quem foi dada a ordem terá, de imediato, que preservar os dados e garantir a confidencialidade da aplicação da medida processual (n.º 4 do artigo 12.º do mesmo diploma legal).
A Lei do Cibercrime, no artigo 14.º, prevê , ainda, a preservação de dados de tráfego, por determinação das autoridades judiciárias, impondo, assim, aos fornecedores de serviço — que nos termos da al. d) do artigo 2.º da aludida Lei, é qualquer entidade, publica ou privada que faculte aos utilizadores dos seus serviços a possibilidade de comunicar por meio de um sistema informático, bem como qualquer outra entidade que trate ou armazene dados informáticos em nome e por conta daquela entidade fornecedora de serviços ou dos respetivos utilizadores — a conservação de dados, que apenas serão utilizados no processo quando esteja em causa criminalidade grave, nos termos previstos no artigo 3.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, dependendo de despacho fundamentado do Juiz.
Note-se, como assinala Pedro Verdelho, que esta norma é “inovadora (…) [sendo que] as razões que lhe estão subjacentes prendem-se com a efetiva dificuldade, sentida por quem investiga, no acesso a informação, quando esta está armazenada em sistemas informáticos, sobretudo em consequência da grande capacidade de armazenamento dos sistemas modernos e da sua enorme complexidade” (Pedro Verdelho, A nova Lei do Cibercrime, Scientia Ivridica, Tomo LVIII, N.º 320, Outubro – Dezembro 2009, pp. 738).
O artigo 14.º da Lei do Cibercrime materializa uma injunção, expressa na ordem emitida pela autoridade judiciária a quem tem disponibilidade sobre determinados dados informáticos (que poderá visar apenas a comunicação ou o acesso aos mesmos) e que não admite a recusa de cooperação, porquanto tal recusa é punida como desobediência (14.º, n.º 1, in fine).
ii. No Código de Processo Penal, de seu lado, também se encontram normas atinentes a estas matérias.
Como explica João Conde Correia é possível verificar, após uma mera leitura ainda que literal do Código de Processo Penal, que o legislador “estendeu”, ainda hoje, o regime previsto para as interceções telefónicas a outras comunicações por qualquer meio diferente do telefone, nomeadamente o correio eletrónico e outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital (artigo 189.º, n.º 1), regulando nos mesmo termos — “por extensão”, refere a lei — a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos de realização de conversações ou de comunicações (artigo 189.º, n.º 2) (cf. João Conde Correia, Prova digital: as leis que temos e a lei que devíamos ter, Revista do Ministério Público, Ano 35, N.º 139, julho – setembro 2014, pp. 31 e 32). Por outras palavras, “apenas será possível proceder à interceção de comunicações eletrónicas não telefónicas nas mesmas condições em que é permitida a realização de interceções telefónicas” (Pedro Verdelho, Técnica no novo C.P.P.: exames, perícias e prova digital, Revista do CEJ, 1.º Semestre 2008, Número 9 – Número especial, p. 164).
Deste modo, ainda que a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, possa ter agravado as dificuldades interpretativas das normas do Código de Processo Penal, o certo é que não existiu qualquer revogação expressa do regime legal constante no artigo 189.º deste código.
E, em todo o caso, ainda que se entenda que a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, revogou implicitamente, no que a esta matéria específica diz respeito, o regime normativo que resulta do Código de Processo Penal, o certo é que a decisão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 cujas consequências estamos a analisar implicaria a repristinação (cf. o artigo 282.º, n.º 1, 2.ª parte, da Constituição da República Portuguesa) do regime legal previsto no Código de Processo Penal.
Por isso, seja por uma ou por outra via, teremos de considerar que o regime de interceções de outras comunicações por qualquer meio diferente do telefone, nomeadamente o correio eletrónico e outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital e a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos de realização de conversações ou de comunicações regulado no artigo 189.º do Código de Processo Penal mostra-se em vigor.
Daqui resultará que a transmissão dos conteúdos previstos no n.º 2 do artigo 189.º do Código de Processo Penal só se admite por despacho fundamentado do juiz, para o catálogo restritivo de crimes, previsto no n.º 1 do artigo 187.º e quando houver fundadas razões para crer ser indispensável tanto para a descoberta de verdade material ou, por outra, quando, de outra maneira, a prova daqueles crimes for impossível ou muito difícil de obter. Há, pois, o apelo a critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade.
Ademais, nos termos do n.º 4 do artigo 187.º do Código de Processo Penal, só podem transmitir-se dados relativos ao suspeito ou arguido, a pessoa que sirva de intermediário e relativamente à qual haja fundada suspeita de receber ou transmitir mensagens destinadas ou provenientes daqueles, ou, mediante consentimento, à própria vítima.
Pese embora o presente regime legal se apresentar, à primeira vista e no seu conjunto limitador da atividade de investigação e da admissibilidade de utilização da prova digital, dúvidas não há de que tal prova é sempre possível em processos de investigação de crimes contemplados no artigo 187.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, excluindo-se a sua utilização noutros processos onde seria fundamental sua utilização.
iii. Olhemos, agora, a Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto.
Os dados normativos até apresentados devem ainda ser conjugados com a Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, regulador da proteção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações.
Este diploma legal, no artigo 2.º distingue entre
– os dados de tráfego: quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas ou para efeitos da faturação da mesma (artigo 2.º, n.º 1, al. d) ); e
– os dados de localização: quaisquer dados tratados numa rede de comunicações eletrónicas ou no âmbito de um serviço de comunicações eletrónicas que indiquem a posição geográfica do equipamento terminal de um utilizador de um serviço de comunicações eletrónicas acessível ao público (artigo 2.º, n.º 1, al. e)).
Sendo assim, em relação aos dados de tráfego, se forem tratados para efeitos de envio de comunicação, poderão os mesmos ser guardados, como é o caso dos IP’s ou localização no estrangeiro e, em relação aos dados de localização relativos a assinantes ou utilizadores das redes públicas de comunicações ou de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público, o tratamento destes dados é permitido apenas se os mesmos forem tornados anónimos (artigo 7.º, n.º 1).
Este diploma legal, no seu artigo 4.º, n.º 2, estatui que “é proibida a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outros meios de interceção ou vigilância de comunicações e dos respetivos dados de tráfego por terceiros sem o consentimento prévio expresso dos utilizadores, com exceção dos casos previstos na lei.”
Por seu turno, o artigo 6.º, n.º 2, permite aos operadores de comunicações conservar alguns dados de tráfego, sendo tal conservação uma opção que os operadores de comunicações exercem ou não. Não constitui, por isso, uma qualquer obrigação. Contudo, logo de seguida, refere-se que apenas é “permitido o tratamento de dados de tráfego necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações”, sendo tal tratamento “lícito até final do período durante o qual a fatura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado”. É o que se pode ler no n.º 3 do artigo 6.º.
Determina ainda o n.º 7 daquela norma que “o disposto nos números anteriores não prejudica o direito de os tribunais e as demais autoridades competentes obterem informações relativas aos dados de tráfego, nos termos da legislação aplicável…”.
Isto posto, não obstante o decidido pelo Tribunal Constitucional, é possível a conservação de alguns dados pelas operadoras de telecomunicações, ainda que apenas um período de seis meses (atenta a conjugação do artigo 6.º, n.º 3, da Lei 41/2004, de 18 de agosto, com o artigo 10.º, n.os 1 e 4, da Lei 23/96, de 26 de julho, esta última respeitante à prestação de serviços públicos essenciais.
É certo que se trata de um conjunto muito restrito de dados cuja recolha, pela sua natureza, não colide com interesses ou direitos fundamentais, como a privacidade, o sigilo de comunicações ou a autodeterminação informacional, mas ainda assim poderá revelar interesse na investigação de ilícitos criminais.
Além do mais, o n.º 4 do artigo 1.º da Lei 41/2004, de 18 de agosto, prevê que “as exceções à aplicação da presente lei que se mostrem estritamente necessárias para a proteção de atividades relacionadas com a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado e a prevenção, investigação e repressão de infrações são definidas em legislação especial” (sublinhado nosso), assim abrindo o flanco a outras possibilidade no uso dos referidos dados, já não ancorados nos interesses das operadoras de telecomunicações, mas na segurança pública, na defesa, na segurança do Estado e na prevenção e repressão de infrações penais.
Deste modo, é de concluir que nesta legislação (especial) subsistem normas com exceções à conservação dos dados de tráfego que têm como fundamento exclusivo a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado e a prevenção, investigação e repressão de infrações penais, normas que não foram contaminadas pelo juízo de inconstitucionalidade decretado no aludido aresto do Tribunal Constitucional.
iv. Por fim, uma palavra relativamente à Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro (Lei das Comunicações Eletrónicas), em especial o seu artigo 48.º, cujo n.º 7 dá conta que “qualquer suporte duradouro, incluindo gravação telefónica, relacionado com a celebração, alteração ou cessação do contrato de comunicações eletrónicas, deve ser conservado pelas empresas pelo período previsto na alínea a) do n.º 5 do artigo 47.º-A”, isto é, durante o período de vigência acordado, inicial ou sucessivo, acrescido do correspondente prazo de prescrição e caducidade.
h) Ora, o juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal Constitucional não abrangeu o quadro normativo supra descrito, nem, acrescente-se incidiu especificamente sobre a localização celular — a localização da célula da BTS utilizada pelo aparelho durante a comunicação — e/ou sobre os registos da realização de conversações ou comunicações, as faturas detalhadas (os chamados dados de tráfego e trace back) emitidas pelas operadoras.
Aliás, sempre se acrescente que o aresto do Tribunal Constitucional nem sequer coloca em causa a prática corrente — porque legalmente fundada — de pedido de informações aos operadores de comunicações pelo Ministério Público”, pelo que, desde que, devidamente autorizados por despacho judicial, nada impede que, mostrando-se relevantes para a prova dos factos em investigação, as operadoras continuem a fornecer dados armazenados sobre localização celular (localização da célula da BTS utilizada pelo aparelho durante a comunicação) ou registos de realização de conversações ou comunicações, faturação detalhada (dados de tráfego e trace back), os quais se encontram para os efeitos do mencionado normativo armazenados licitamente.
Assim, o quadro normativo supra exposto não se encontra, nem tácita nem expressamente, atingido pela decisão proferida no aludido acórdão do Tribunal Constitucional, pelo que, e em síntese, a conservação de metadados das comunicações nas condições de tais normas não constitui ato ilícito e a sua obtenção pelas autoridades judiciárias competente não é também ilícita.
i) Veja-se, portanto, que aos dados considerados de base (v.g., a obtenção da identificação dos IMEI) — e lembre-se aqui que o Recorrente parece não distinguir estes dos demais, razão pela qual não se pronuncia sobre a específica legalidade na obtenção destes — que foram recolhidos em inquérito, deve lembrar-se que está atribuído ao Ministério Público a competência de, independentemente de qualquer prazo, os obter, donde resulta que, sem dependência de qualquer prazo e no âmbito de competência própria, poderia o Ministério Público obter/investigar a identificação do cliente (dados de subscritor – BSI), nos termos do artigos 11.º, n.º 1 e 14.º, n.º 4, al. b), da Lei do Cibercrime, artigo 6.º, n.º 2 e n.º 7, da Lei 41/2004, de 18 de agosto e artigo 48.º, n.º 7, da Lei 5/2004, de 10 de fevereiro).
j) Por outro lado, no que diz respeito ao conteúdo das comunicações que entre os diferentes utilizadores dos aparelhos fizeram, a obtenção de tal meio de prova seguiu as regras que se mostram plasmadas nos artigos 187.º a 189.º do Código de Processo Penal, não se vislumbrando — nem, acrescente-se o arguido sequer identifica que regras foram violadas na obtenção do conteúdo das comunicações — a violação de qualquer norma que importe a proibição de valoração de provas.
Aliás, sempre se acrescente que a obtenção de tais conteúdos — que ocorreu para o futuro, não para o passado porque tais conversações não se encontravam armazenadas em qualquer base de dados detida por qualquer operadora — não se mostra sequer referido no Acórdão do Tribunal Constitucional que o arguido AA invoca.
Assim sendo, estando assente que os dados obtidos relativamente aos IMEI e identificação dos titulares respetivos de aparelhos telefónicos constituem simples dado de base, cai por terra a argumentação do arguido AA para que se considerasse tal prova como nula.
k) Última nota.
O arguido AA fala, no seu requerimento em “localização celular” e “faturação detalhada com registo de trace-back”. Elementos que, simplesmente, não constam do processo.
9.6. Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a invocada nulidade da prova obtida mediante o acesso e leitura dos metadados, tais como a identificação completa do titular, IMEI, localização celular, registo de SMS, MMS, registo de chamadas, trace back e afins.
*
Em termos genéricos, o Tribunal fundou a sua convicção considerando as declarações dos arguidos, os depoimentos das testemunhas, a prova documental e pericial que consta dos autos, analisando todos os elementos probatórios ao dispor do Tribunal em confronto entre si e de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código de Processo Penal).
Concretizemos.
10. Factos provados.
10.1. Factualidade descrita em 1) a 4) dos factos provados.
a) O Tribunal fundou a convicção relativamente a tal matéria considerando o teor do certificado do registo criminal (fls. 2418 a 2427 e fls. 2649 a 2655), em conjugação com os elementos relativos ao processo identificado em 2) dos factos provados que se mostram a fls. 2438 a 2478.
Ainda com relevo, é de assinalar a informação prestada pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais quanto aos períodos de reclusão (fls. 2819 a 2823).
b) No que especificamente diz respeito ao referido em 4) dos factos provados, o Tribunal seguiu as regras da experiência: quem sofre as condenações aludidas em 1) e 2) dos factos provados e, ainda assim e praticamente mal põe um pé fora do estabelecimento prisional reinicia na atividade que se mostra descrita em 5) a 23) dos factos provados.
10.2. Factualidade descrita em 5) a 19) dos factos provados.
Deve dizer-se, em primeiro lugar, que o Tribunal fundou a sua convicção no que diz respeito à factualidade aqui descrita nas declarações do arguido AA que, no essencial, a realização de uma atividade de tráfico de estupefacientes. É certo, e isso não pode deixar de ser expresso, que admitiu uma atividade de tráfico menos intensa e extensa do que aquela que o Tribunal considerou como provado — para além de negar que o dinheiro apreendido era proveniente do tráfico de droga e dar conta que realizava alguns trabalhos que lhe proporcionavam rendimentos — mas reconheceu, de modo inequívoco, a realização de atividades de tráfico de estupefacientes.
b) O Tribunal atendeu, ainda, às declarações dos arguidos DD e KK, estes deixando bem claro que adquiriam estupefaciente ao arguido AA, assim como dando conta da qualidade, quantidade e periodicidade, assim como preços, em que as aquisições eram efetuadas.
i. Refira-se já, que o arguido DD confessou integralmente e sem reservas todos os factos que se mostravam descritos na acusação e que asi diziam respeito, nestes incluindo os que envolviam o arguido AA. As suas declarações mostraram-se credíveis, tanto mais que foi notório que estava ciente que tal postura processual não deixaria de merecer censura penal e, por isso, a aplicação de uma pena.
As declarações deste arguido, juntamente com o depoimento de LL mostraram-se relevantes para determinar o início da atividade de tráfico por parte do arguido AA: este admitiu que se terá iniciado em inícios de 2019, fins de 2018, mas a verdade é que da conjugação das declarações de DD com o depoimento de LL, entendeu-se que o início dessa atividade ocorreu em setembro de 2018.
Neste particular aspeto, esclareça-se que a acusação não era clara na indicação do momento em que o arguido AA reincidiu no tráfico de estupefacientes, dizendo que o mesmo teria sido libertado em abril de 2018 e que ainda nesse ano, depois de sair do estabelecimento prisional, voltou a dedicar-se ao tráfico (cf. o referido em 1 e 2 da acusação), podendo daí retirar-se que reiniciou a sua atividade ainda nesse abril de 2018; acresce que refere igualmente que “em data concretamente não apurada, mas situada após agosto de 2018” (15 da acusação), data que é precisada como sendo desde 1 de setembro no requerimento para a declaração de perda (cf. o ponto 3 de tal requerimento).
Ora, DD, admitindo os factos que lhe dizem respeito, estaria também a reconhecer a aquisição de estupefaciente a AA em setembro (o tribunal não deu como provado o dia 1, até porque isso pareceu uma inferência feita pelo Ministério Público do descrito na acusação), o que vai ao encontro com o depoimento de LL.
ii. É justamente suportado nas declarações de KK que o Tribunal considerou provado o descrito em 12) ii. dos factos provados, dando credibilidade nesta parte às suas declarações em detrimento das prestadas por AA (que reconheceu ter realizados algumas vendas, mas em menor número). As declarações de KK apresentaram-se com maior credibilidade na medida em que, dum lado, não ressaltou das mesmas qualquer animosidade para com o arguido AA e menos ainda qualquer tipo de intenção em apresentar uma versão dos factos que visasse prejudica-lo. Aliás, deve dizer-se que das suas declarações quanto às aquisições resulta também um alargamento da sua (KK) própria atividade de tráfico.
c) Relevante, ainda, para a formação da convicção do tribunal foram os depoimentos dos inspetores da Polícia Judiciária — relevo que não se circunscreveu a esta factualidade, mas também ao descrito em 46) a 60) dos factos provados — merecendo, todos eles, credibilidade: todos pautaram os respetivos depoimentos pela descrição das diligências de prova em que participaram, fazendo-o com objetividade e, sinal disso, tiveram a preocupação de descrever apenas o que diretamente observaram. É certo que aqui e ali não deixaram de emitir a sua opinião, mas sempre que o faziam davam igualmente conta dos concretos elementos probatórios com que sustentavam o seu convencimento — por exemplo, II, inspetor da Polícia Judiciária que teve a seu cargo, de forma mais direta, a investigação dos factos e, por isso, a testemunha mais relevante no contexto que agora estamos a assinalar, assinalou estar convencido de que AA se abasteceria de estupefaciente em Espanha (facto que o Tribunal não considerou provado) por o mesmo fazer muitas viagens a Espanha, sem qualquer razão para tal e ter direto relacionamento com pessoas (tal como EE) a que associava o tráfico de estupefacientes.
Assim, o Tribunal valorou os depoimentos de II (já referido), HH, FF, DDD, EEE e FFF, os quais descreveram as concretas diligências em que participaram, nomeadamente as vigilâncias em que participaram (fls. 557 a 566, fls. 622 a 623, fls. 624 a 625, fls. 787 a 791 [e fotos que as documental], fls. 911 a 925 [com fotos], fls. 1139 a 1147 [com fotos], fls. 1386 a 1395 [com fotos], fls. 1396-1403 [com fotos], fls. 1482 a 1494 [com fotos], fls. 1497 a 1517 [com fotos], fls. 1592 a 1596 [com fotos], fls. 1690 a 1691 e fls. 1716 a 1721) e que confirmaram, assim como as abordagens aos arguidos, buscas e apreensões realizadas (fls. 1722 a 1727, fls. 1727, fls. 1737 a 1741, fls. 1742, fls. 1753 a 1770, fls. 1753 a 1855 e fls. 1882 a 1913, devendo assinalar-se que as apreensões encontram-se igualmente retratadas em fotos)
d) Do que vai dito, fica também claro que o Tribunal atendeu, no exato contexto em que se referiu, também ao teor das vigilâncias efetuadas pelos inspetores da Polícia Judiciária, sendo que algumas delas, como se viu, estão documentadas fotograficamente.
De igual modo, foi também relevante para a formação da convicção do Tribunal, em particular o descrito em 15) a 17) dos factos provados, o teor dos autos de busca e apreensão a que já se aludiu, estando descritos em tais autos o exato modo em que aquelas diligências se desenrolaram e quais os seus resultados no que diz respeito à apreensão de objetos e detenção dos arguidos.
e) Os depoimentos dos diferentes consumidores/adquirentes de estupefacientes ao arguido AA mostraram-se, de seu lado, também relevantes na formação da convicção do Tribunal, nomeadamente permitindo, relativamente a quase todos eles, a indicação do estupefaciente adquirido, assim como a quantidade e o preço oferecido.
i. Importa aqui salientar que, salvo no que toca a alguns adquirentes que não logrou identificar pelo nome (v.g., TT ou UU), o arguido reconheceu ter negócios de tráfico com boa parte das pessoas identificadas em 12) dos factos provados, muito embora, como à semelhança do que noutras matérias, em menor grau do que o Tribunal considerou como provado.
Assim, o Tribunal valorou os depoimentos de LL, MM, NN, OO, PP, a QQ, RR, SS, TT, UU, VV e WW.
ii. Com exceção de VV — e dela se falará —no confronto com as declarações do arguido AA, o Tribunal entendeu merecer mais credibilidade a versão apresentada por estas testemunhas, sendo notório que as mesmas não mostravam qualquer animosidade para com o arguido e, nalguns casos, até procuravam desresponsabilizar ao máximo o arguido, não vendo o Tribunal qualquer razão para, em face de tal atitude, não conferir credibilidade ao que disseram.
Refira-se que na fixação da matéria de facto e quando os mesmos relatavam qualquer aspeto em que manifestavam dúvida, o Tribunal valorou os respetivos depoimentos, como não poderia deixar de ser, sempre em favor do arguido AA. A título de exemplo, veja-se que LL referiu que adquiriu estupefaciente em 3 ou 4 ocasiões, tendo o Tribunal considerado como assente apenas 3 vendas, ou RR ter referido que o preço por que adquiria cocaína era 20 ou 30€.
iii. Quanto a VV, o Tribunal atendeu, em exclusivo às declarações do arguido AA. Este, enquanto ocorria o depoimento daquele VV, mostrou-se de tal modo incomodado com o que estava a ser relatado — por exemplo, que havia adquirido haxixe a AA, o que mais ninguém havia referido e nem sequer constava na acusação — que pediu a palavra, desmentindo categoricamente as afirmações que estavam a ser feitas. Sendo certo, acrescente-se, que após ter AA prestado declarações, já VV “deu o dito por não dito”, num depoimento que, em si mesmo, se apresentou contraditório.
iv. Os depoimentos das testemunhas referidas em i. foi analisado em confronto com outros elementos de prova, nomeadamente as vigilâncias e algumas conversações telefónicas, permitindo estas indicar, nalguns casos, concretos dias em que os mesmos se dirigiam ao arguido AA para adquirir estupefaciente, até porque ressaltou do modo como os depoimentos eram prestados que os encontros e contactos que estabeleciam com tal arguido se prendia exclusivamente com a aquisição de droga. É daqui, por exemplo, que o Tribunal fixou os dias 18, 19, 20 e 23 de novembro como dias em que a testemunha SS adquiriu estupefacientes ao arguido AA.
f) Valorou ainda o Tribunal as conversações telefónicas que foram transcritas, merecendo particular destaque as que constam de fls. 4 a 6, fls. 7 e 8 e 18 a 20 do Anexo 2: é notório que a conversação estabelecida entre AA e EE diz respeito a negócios de droga — aliás, olhada para o seu aspeto puramente literal, as conversas transcritas mostram-se incompreensíveis, sendo destituído de qualquer sentido as declarações prestadas por AA de que diziam respeito a trabalhos de carpintaria/marcenaria até porque em todas as ocasiões em que foi visto, principalmente quando se deslocava a Espanha, onde reside aquele EE, numa transportou ferramentas ou materiais adequados a tais trabalhos — assim como a estabelecida entre AA e KK, sendo também por aqui que o Tribunal confirmou ser este último “provador” de droga.
g) O Tribunal tomou ainda em consideração — e tais elementos probatórios não mereceram a mais pequena contestação — os elementos do registo automóvel que se mostram a fls. 1286 a 1290 e fls. 1529 a 1531, informação da Guarda Nacional Republicana quanto às passagens pela fronteira a fls. 1369 a 1371.
h) Em conjugação com as apreensões, foi relevante na formação da convicção do Tribunal a prova pericial e exames feitos ao estupefaciente apreendido (cf. fls. 2215 a 2216 e fls. 2249 a 2251) e aos telemóveis (fls. 2173, fls. 2174, fls. 2273 a 2278 e fls. 2269 a 2272).
10.3. Factualidade descrita em 20) a 23) dos factos provados.
No que toca a esta factualidade, o Tribunal considerou desde logo, as declarações do arguido AA — em momento algum negou a factualidade que aqui se descreve — sendo certo, além disso, que o modo como prestou declarações é revelador do que aqui se descreve. Acresce, em todo o caso, que tal factualidade corresponde ao normal acontecer em função do descrito em 1) a 19) dos factos provados, bem se podendo dizer que o referido em 20) a 23) se infere do 1) a 19) dos factos provados.
10.4. Factualidade descrita em 24) a 30) dos factos provados.
a) Aqui, o Tribunal atendeu aos elementos que constam do Apenso do Gabinete de Recuperação de Ativos, muito particularmente o extrato bancário que se encontra a fls. 76 a 81.
Refira-se, igualmente, que os demais elementos que constam em 24) a 26) dos factos provados, tais como os montantes declarados à Autoridade Tributária e Aduaneira, foram assumidos pelo arguido AA.
b) Com relevo, no que diz respeito ao descrito em 27) dos factos provados de que o arguido AA não exerceu qualquer atividade remunerada, para além da ausência de qualquer prova documental ou outra nesse sentido — e não seria difícil obtê-la —, atendeu aos depoimentos dos inspetores da Polícia Judiciária a que acima se fez referência, assinalando que das diversas vigilâncias e outras diligências não se aperceberam que o mesmo exercesse qualquer atividade lícita remunerada ou que lhe proporcionasse rendimentos.
Refira-se ainda, no que toca a tal matéria, que GGG, irmão de AA, prestou depoimento, tendo assinalado que desconhecia o que o é que o seu irmão fazia em termos de obter rendimentos o que, sendo irmão, é significativo quanto à factualidade aqui em análise.
c) Quanto à factualidade descrita em 28) a 30) dos factos provados, a mesma encontra suporte probatório nos documentos que se encontram no apenso relativo ao procedimento cautelar (Apenso D):
– a fls. 39 a 42 a decisão de arresto;
– a fls. 55 o auto de arresto;
– a fls. 79 a 82, os autos de apreensão e exame direto e avaliação ao veículo de matrícula ..-..-QV;
– a fls. 83 a 86, os autos de apreensão e exame direto e avaliação ao veículo de matrícula ..-..-IN; e
– fls. 94 a 96 informações prestadas pelo IMTT.
10.5. Factualidade descrita em 31) a 45) dos factos provados.
a) O Tribunal fundou a sua convicção no que toca a esta factualidade — que não foi colocada em causa por quem quer que seja — considerando os depoimentos dos inspetores da Polícia Judiciária a que acima se aludiram em conjugação com as vigilâncias em que participaram e que relataram ao tribunal.
b) O Tribunal atendeu, ainda, à informação que consta de fls. 1369 a 1371.
10.6. Factualidade descrita em 46) a 57) dos factos provados.
O arguido KK admitiu, salvo quanto ao descrito em 51) relativamente ao dinheiro que lhe foi apreendido, a factualidade que aqui se descreve e, por isso, o Tribunal atendeu às suas declarações.
Além destas, outros elementos probatórios foram tidos em conta pelo Tribunal, tais como as declarações do arguido AA quanto ao facto de KK “testar” a qualidade de estupefaciente — o que também ressalta das conversações transcritas que se mostram a fls. 18 a 20 do Anexo 2 — os autos de busca e apreensão que se mostram a fls. 1882 a 1913 (assinalando-se que os inspetores da Polícia Judiciária que participaram em tal diligência conformaram o seu teor), os exames periciais ao estupefaciente apreendido (fls. 2249 a 2252) e os exames aos telemóveis apreendidos (fls. 2259, fls. 2259 v, fls. 2297-2298 e fls. 2279-2280).
10.7. Factualidade descrita em 58) a 74) dos factos provados.
a) O arguido DD confessou, na íntegra e sem reservas, o teor desta factualidade, sendo, por isso e em primeira linha, nas suas declarações que o Tribunal fez assentar a sua convicção.
b) Também não sofreu qualquer contestação o teor dos autos de busca e apreensão que se mostram a fls. 1853 a 1855 (anotando-se que os inspetores da Polícia Judiciária confirmaram na íntegra o seu teor), assim como os exames aos telemóveis nessa diligência apreendidos (fls. 2173, com o CD a fls. 2174, fls. 2176 a 2188, fls. 2260 e fls. 2281 a 2296).
c) A única matéria que suscitou controvérsia no que diz respeito à factualidade que agora curamos, disse respeito à participação do arguido YY nos factos que se mostram descritos em 61) a 64) dos factos provados, sustentado tal arguido que, embora tivesse aceitado dar boleia a DD, desconhecia que este se deslocava à cidade do porto tendo em vista a aquisição de estupefaciente e que até desconhecia que o tivesse adquirido.
Tal versão, contudo, não convenceu o Tribunal.
i. Importa assinalar que o arguido DD foi claro na afirmação de que YY sabia que a deslocação ao Porto se destinava à aquisição de estupefaciente. Declarações que se mostraram credíveis, desde logo porque não se vislumbrou que ao fazê-las, tivesse DD a intenção de prejudicar o coarguido YY. Aliás, tendo sido o primeiro dos arguidos a prestar declarações, estas surgiram como espontâneas, sendo claro que não havia sequer a perceção de que estaria a prejudicar YY, de tal modo que DD foi enfático na afirmação de que o arguido YY desconhecia que tipo de droga iria ser adquirida ou que quantidade, assim como desconhecia a quem seria adquirida. E mais enfático foi na afirmação de que a droga apreendida lhe pertencia em exclusivo e que não iria partilhar qualquer estupefaciente com o condutor do veículo e que este nunca sequer tinha saído do veículo.
Ora, perante o modo como estas declarações foram prestadas — e repete-se que ficou a nítida sensação que ao fazê-las DD estava convencido que estaria, igualmente, isentar de responsabilidade penal YY — mostraram-se credíveis, tanto mais que a assunção integral e sem reservas dos factos que lhe eram imputados dispensava imputar esta “cumplicidade” a YY e, o que também se tornou patente das reações observadas, o seu (de DD) incómodo ao aperceber-se que das declarações prestadas estaria a resultar algum tipo de responsabilidade penal para aquele YY.
ii. Do que vai dito, claro se torna que o Tribunal não conferiu credibilidade às declarações de YY na parte em que deu conta desconhecer que a deslocação ao Porto se destinava à aquisição de estupefaciente e que no regresso transportava o estupefaciente que havia sido adquirido por DD.
Desde logo, é patente que o Tribunal não poderia deixar de valorar as suas declarações sem tomar em consideração que seria — e foi — legítima que procurasse alijar qualquer tipo de responsabilidade.
Por outro lado, não logrou explicar como é que desconhecia, de todo, a intenção que DD tinha ao deslocar-se ao Porto — porque YY também não afirmou que tinha sido enganado, de o DD lhe ter dado uma finalidade para a deslocação que, afinal, não se cumpriu… — principalmente se era conhecedor que o mesmo era consumidor de estupefacientes (facto que admitiu com algum custo…), o que surge estranho ao Tribunal em face das regras da experiência.
d) O Tribunal atendeu ao auto de apreensão que se encontra a fls. 3 do Inquérito n.º 133/22.2PDPRT que foi apenso ao presente processo ainda em fase de inquérito, assim como os depoimentos de HHH e III, agentes da Polícia de Segurança Pública que abordaram os arguidos e que procederam à apreensão do estupefaciente.
Por fim, considerou o Tribunal o relatório do exame pericial ao estupefaciente que foi apreendido e que se encontra a fls. 2389 a 2390.
10.8. Factualidade descrita em 75) dos factos provados.
O tribunal atendeu ao auto de apreensão de fls. 1742.
10.9. Factualidade descrita em 76) a 152) dos factos provados.
Aqui, foi relevante para a formação da convicção do Tribunal os relatórios sociais — os seus conteúdos não foram colocados em causa por ninguém — elaborados por técnicos com especiais habilitações, recorrendo a fontes e seguindo metodologias que temos por adequadas, nomeadamente:
– do arguido AA: fls. 2704-2706;
– do arguido DD: fls. 2714-2715;
– do arguido KK: fls. 2701-2703; e
– do arguido YY: fls. 2709-2712.
Além disso, o Tribunal considerou os certificados do registo criminal dos arguidos DD (fls. 1932), KK (fls. 2646 v.) e de YY (fls. 2647 v.) juntos aos autos.
11. Factos não provados.
11.1. Factualidade descrita em a) a h) dos factos não provados.
Esta factualidade constava do libelo acusatório e, como facilmente se pode ver do simples confronto entre este o que consta do descrito em 1) a 23) dos factos provados, ia além do que se mostra provado.
Relativamente à matéria descrita em a) a h), entendeu o Tribunal que, até pelas razões que se mostram explanadas em 10.1. e 10.2., ou não se produziu prova sobre tal matéria ou os elementos probatórios ao dispor do Tribunal somente permitiram considerar como provado o que se mostra referido em 1) a 23) dos factos provados.
11.2. Factualidade descrita em i) a k) dos factos não provados.
a) A factualidade que aqui se mostra descrita vinha alegada no incidente de liquidação do património incongruente e sobre a mesma não foi produzida prova ou a que foi produzida contrariou-a.
b) No que toca ao referido em i) dos factos não provados, importa assinalar que de acordo com o extrato bancário que se mostra junto ao Apenso do Gabinete de Recuperação de Ativos (fls. 76 a 81), resultando daí que o arguido aufere outros rendimentos para além dos que resultam da atividade descrita em 5) a 23) dos factos provados.
c) Quanto ao descrito em j) e k) dos factos não provados, crê-se que a sua alegação no incidente de liquidação do património incongruente se deve a lapso, porque o que se quereria dizer — e que manifestamente resulta dos elementos que constam no apenso do Gabinete de Recuperação de Ativos — é que o filho do arguido AA (e não o próprio arguido!) é que é casado com BBB e, também ressalta dos elementos bancários que constam no aludido apenso, que esta BBB não é titular de qualquer conta bancária — e não o é seguramente da conta bancária aludida em 24) dos factos provados — com o arguido AA.
11.3. Factualidade descrita em l) a o) dos factos não provados.
a) A factualidade aqui em análise mostrava-se descrita na acusação e sobre ela não foi produzida prova ou a que se produziu não foi suficiente para que o Tribunal a considerasse como provada.
b) No que diz respeito ao referido em l) dos factos não provados — e deve dizer-se que nesta redação em termos relativamente genéricos se procurou condensar um conjunto de atividades descritas na acusação — apesar de em algumas vigilâncias efetivamente se observar o arguido a contactar com o EE ou o JJ ou a deslocar-se a Espanha, a Vila Nova da Cerveira, a verdade é que não se logrou demonstrar que esses contactos tinham a ver, exclusivamente, com a atividade de tráfico de estupefacientes, principalmente porque após esses contactos não se vislumbrou a realização de atividades do arguido AA, ou pelo menos não foi observada (por exemplo, após tais contactos, haver a aquisição de estupefaciente por parte de AA e a sua posterior distribuição por clientes seus), que apontassem para a inferência que surgiu feita na acusação de que tais contactos estavam relacionados com a dita atividade de tráfico.
c) Não se mostra transcrita a conversação a que se alude em m) a o) dos factos não provados e, por isso, não restava outra alternativa que não seja considerar tal factualidade como não provada.
11.4. Factualidade descrita em p) a t) dos factos não provados.
a) Esta factualidade foi alegada em sua defesa pelo arguido AA, ao prestar declarações, mas não mereceram estas, nesta parte, credibilidade.
b) Efetivamente o arguido sustentou em audiência de julgamento que o montante de 5.540€ que foi apreendido nas circunstâncias descritas em 15) dos factos provados não lhe pertencia, admitindo a possibilidade de tal montante ter sido colocado pela companheira de EE na saca onde foi apreendida.
Todavia, não mereceu a mais pequena credibilidade tais declarações, desde logo porque os inspetores da Polícia Judiciária que participaram na diligência deixaram bem claro que foi o arguido AA quem entregou a saca onde foi encontrada aquela quantia, mais esclarecendo o modo como esta (quantia) e encontrava acondicionada, não sendo sequer possível que GG tivesse possibilidade de assim acondicionar tão elevada quantia.
c) Também as declarações do arguido AA de que a quantia de 450€ que lhe foi apreendida pertencia à sua companheira não ofereceram qualquer credibilidade.
Desde logo porque surge como contrário às mais elementares regras da experiência que pertencendo à sua companheira, aquela quantia — e eram 450€, não eram uma 20 ou 30 e que se pede alguém para guardar porque não se tem bolsos… — fosse encontrada justamente no seu (dele!) bolso do casaco. No bolso do casado do arguido AA… sem que surgisse qualquer explicação para que aí estivesse e não à guarda da sua dona.
Em segundo lugar, também não se logra encontrar explicação lógica — avaliando-se esta de acordo com as regras da experiência — que a quantia pertença à companheira do arguido, que esta lho tivesse entregue a 23 de novembro e ainda a 27 de novembro, data em que foi AA detido, este ainda a tivesse guardada no seu bolso. Aliás, mal se compreende igualmente que todo o dinheiro que tivesse sido encontrado ao arguido AA — no bolso do casaco, repete-se… — fosse, todo ele, da sua companheira, não tendo o AA qualquer montante que fosse para poder dispor livremente.
d) Para além das declarações do arguido AA, nenhum elemento probatório foi trazido ao processo que, de algum modo, conferisse credibilidade às suas declarações nesta parte. Bem pelo contrário, a prova produzida apontou justamente em sentido contrário ao de que o arguido AA sequer consumisse estupefaciente e menos ainda as quantidades por ele declaradas. Com efeito, não há uma só testemunha ouvida neste processo que tivesse indicado o arguido AA como sendo, à data dos factos aqui em análise, consumidor de cocaína e de heroína, sendo que não há comportamentos observados que sejam compatíveis com tais consumos nem a apreensão de objetos que, de algum modo, indiciassem tais consumos. Neste contexto, acrescente-se, a testemunha II, inspetor da Polícia Judiciária, é taxativa na afirmação de que o arguido AA não é consumidor de estupefacientes.
e) Por fim, quanto ao descrito em t) dos factos não provados, cabe apenas referira que, para além das declarações do arguido AA, nenhum outros elemento de prova foi trazido ao processo no sentido de afirmar que o mesmo exercia qualquer trabalho ou profissão remunerada, sendo que a prova que foi produzida — tal como se viu em 10.4., principalmente em b), para onde se remete — analisada à luz das regras da experiência, permite considerar como provado coisa bem diversa, isto é, que, afinal, o arguido não exerceu qualquer profissão remunerada durante o arco temporal descrito em 5) a 23) dos factos provados.
11.5. Factualidade descrita em u) e v) dos factos não provados.
A factualidade descrita em u) e v) dos factos não provados surgiu exclusivamente das declarações do arguido KK, não tendo qualquer outro suporte. É bom de ver que o Tribunal não lhes conferiu credibilidade.
Em primeiro lugar, cabe lembrar que o rendimento social de inserção é pago no dia 23 de cada mês, sendo a apreensão realizada a 16 de dezembro, isto é, poucos dias antes de o arguido KK receber a dita prestação social.
Depois, deve também assinalar-se que ninguém surgiu a atestar que havia adquirido galos ao arguido KK — e a ponto de justificar 160€ na sua posse — o que também não seria fácil.
11.6. Factualidade descrita em w) e x) dos factos não provados.
Esta factualidade diz respeito à participação do arguido YY nos factos ocorridos a 5 de abril de 2022.
Ora, pelas razões que se adiantaram em 10.7., alíneas c)e d) — que aqui se devem ter por reproduzidas — nem o descrito na acusação (e referido em w) dos factos não provados) nem a versão apresentada pelo arguido YY em julgamento (referida em x) dos factos não provados) se logrou demonstrar.»

II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1]:
- O Acórdão recorrido padece da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal, por violação do disposto no art. 374º, nº 2 do mesmo dispositivo legal, na medida em que não enumerou no elenco dos factos provados ou não provados factos constantes confissão do arguido ainda que seja parcial ou com reservas e do seu arrependimento, e, por outro lado, também não se pronuncia sobre tais factos quando se debruça sobre a medida da pena a aplicar questão essencial enquanto atenuante a aplicar ou não ao caso concreto;
- Das declarações do arguido decorre o seu arrependimento e uma confissão parcial dos factos que foram relevantes para a decisão do mérito da causa;
- No que concerne ao arguido DD o tribunal a quo verteu nos factos provados nos pontos 113) e 114) a confissão do arguido e o arrependimento;
- O Tribunal a quo considerou na sua fundamentação que a confissão ainda que parcial dos factos foi relevante para a decisão de mérito;
- A atividade descrita em 5) a 19) refere-se ao início de atividade e todas as vendas realizadas, qualidade e quantidade de produto estupefaciente e ainda a quantia monetária da transação. Foi importante a colaboração do arguido para a delimitação do início da atividade delituosa em 2018, uma vez que no presente processo o arguido aqui recorrente só é identificado como suspeito em finais de Fevereiro de 2020;
- A confissão mostrou-se relevante para a decisão de mérito;
- Em sede de fundamentação admite-se que o arguido confessou de modo inequívoco a realização de atividades de tráfico de estupefaciente, sem que, porém, se justifique, em momento algum a ausência da aludida confissão da matéria de facto da matéria dada como provada;
- Deve constar dos factos provados que “o arguido AA confessou os factos, ainda que de forma parcial, e mostra-se arrependido”.
- Foram incorretamente julgados os pontos:
- 6 e 7 dos factos provados, com correspondência no ponto d) dos factos não provados;
- 15 dos factos provados, com correspondência no ponto p) dos factos não provados e ponto 19 dos factos provados;
- R) e S) dos factos não provados;
- Há contradição insanável da fundamentação entre o ponto 7 da matéria de facto e o ponto d) dos factos não provados, porque não se mostra provado que o arguido se encontrava com EE a meio caminho, no acesso de A3, de ..., também não se poderia em sentido inverso dar como provado que em ..., no parque de estacionamento do “café snack bar o ...” o arguido AA tenha adquirido a EE produto estupefaciente de natureza não apurada.
- As declarações do recorrente, do inspetor da Polícia Judiciária FF e do auto de diligência de fls. 1690 e 1691, impõem que os pontos 6 e 7 sejam dados como não provados;
- Quanto aos pontos 15 e 19, o arguido negou que tenha colocado o dinheiro no interior do saco, e o inspetor HH, pois mesmo aceitando que o recorrente tenha entregue o saco plástico, não se percebe o motivo de o tribunal descredibilizar as suas declarações e recorrer a uma presunção natural, não se percebe bem o momento da transação pelo que com o susto da abordagem policial a esposa de EE pudesse tentar dissimular o dinheiro que já trouxesse consigo, e mais incompreensível se torna pelo facto de as 5 gramas que o arguido tinha consigo e as pequenas quantidades que se deu como provado que vendeu que mais de 5 mil euros fossem para pagar tão pequena quantidade de estupefaciente;
- Se a quantia de 5.540,00€ era para pagar o estupefaciente adquirido pelo arguido, não se percebe a qual estupefaciente e comprado em que ocasião o Tribunal a quo se refere, desde logo pela diminuta quantidade de estupefaciente – 5 gramas – que o arguido detinha;
- Se o Tribunal a quo considerou credíveis as declarações do arguido para umas coisas, por exemplo admissão das vendas, não o poderia descredibilizar quando nem se quer é plausível que o arguido entregasse 5.540 euros para pagar 5g de estupefaciente que tinha consigo;
- O Tribunal a quo considera como não provado que o arguido fosse consumidor e que parte do estupefaciente fosse para o seu consumo e, no entanto, no elenco dos factos provados nos pontos 86) e 89) resulta que se deu como provado que o arguido tinha hábitos de toxicodependência e que em certa altura teve uma recaída no consumo;
- Concatenadas as declarações do arguido e o teor da certidão de fls. 2438 a 2478 da
sentença do Tribunal de Vila verde, resulta que o tribunal não podia decidir em desfavor do arguido;
- o Tribunal conheceu e valorou prova nula, por obtenção de metadados;
- Houve recolha e valoração de prova proibida nos presentes autos, violando-se, assim, o disposto no art. 126º, nº 1 do Código de Processo Penal;
- Não se mostram preenchidos os pressupostos da declaração de perda a favor do estado do BMW ... de matrícula ..-..-QQ, porquanto não se demonstra a essencialidade do meio para o fim que é o cometimento do crime;
- O único facto provado é que o arguido se deslocava em várias viaturas sem destrinça das que utilizava mais ou menos e simplesmente o Tribunal a quo escolheu o veículo em causa sem qualquer critério válido. Ora entendemos que tem de ser demonstrada a essencialidade do veículo para o crime, ou seja, o nexo de causalidade;
- Não ficou demonstrado que entre o veículo e a infração intercedesse uma relação de funcionalidade ou instrumentalidade em termos de causalidade adequada. Na verdade, os estupefacientes em causa eram, como foram, facilmente dissimuláveis e, assim, naturalmente transportáveis por qualquer outro meio. Eram de pequena quantidade e quando foi abordado o arguido até tinha as (5g) junto ao seu corpo;
- Os arguidos poderiam ter-se deslocado por qualquer outro meio (em transporte público, à boleia, por exemplo), sem que tal afetasse o cometimento do delito na sua conformação essencial;
- A pena é excessiva e desproporcional, não tendo atendido a todas as circunstâncias a seu favor e em seu desfavor valorou excessivamente antecedentes criminais com mais de três décadas, considerando prova proibida por contrária à Lei 37/2015 de 05 de Maio, que impõe o cancelamento do registo criminal pelo decurso do tempo;
- O modo de execução é simples, e sem nenhuma organização, era o próprio que comprava e vendia diretamente junto dos consumidores em quantidade sempre na ordem das 2,5 gramas, atuando sozinho e sem auxílio de colaboradores;
- Não foram tidas em conta a sua idade e debilidades de saúde, nem a confissão e arrependimento, confissão que foi relevante para os factos provados, especialmente os de 5) a 19);
- O arguido não deveria ser condenado em pena superior a 6 anos.

Vejamos.
Questão prévia.
Em sede de resposta ao parecer do Sr. PGA deste tribunal, o recorrente veio dizer o seguinte:
“O signatário, atento os presentes autos serem de carácter urgente, teve durante as férias judiciais de dezembro de 2022 que minutar o recurso atento e cumprindo as regras processuais e peremptoriedade do prazo de recurso tal como disposto no artigo 411.º, n.º 1, al. b) do CPP.
2. De acordo com o n.º 1 do artigo 413.º do CPP, todos os sujeitos processuais foram notificados em 20 de Janeiro de 2023.
3. Pelo que, o Ministério Público foi, também, notificado do despacho de admissão do recurso em 20 de janeiro de 2023.- cf. notificação de referência citius 90982218
4. Respondeu o Ministério Público em 19 de Março de 2023!!
5. Quer isto dizer que a sua resposta é, pois, manifestamente extemporânea, e como tal não deveria ter sido admitida e teria que ser desentranhada.
6. Infelizmente, não se compreende como a mesma foi sequer admitida em 1.º instância e que ainda conste dos presentes autos.
7. O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, a folhas 13 do mesmo, no ponto D, anotou e grifou a data da resposta, mas lamentavelmente também não enxergou tal vicio, que certamente não será questão de somenos!
8. A resposta do Ministério Público de 1.ª instância foi apresentada 25 dias após o prazo legalmente previsto no artigo 413.º do CPP.
9. Prazo esse que é peremptório para todos os sujeitos processuais.
10. Com efeito, deve antes de mais, pois, ser mandada desentranhar tal peça processual por ser de natureza serôdia.”

Compulsados os autos contata-se que efetivamente o recurso foi admitido por despacho judicial em 18.01.2023 nos termos do art. 414º, n º 1 do CPP e que a resposta do M.P a quo ocorreu em 19.03.23.
Da análise dos autos verifica-se que a secretaria expediu a notificação do despacho, como se pode verificar do registo do CITIUS, em 20.01.23, notificação que não foi assinada pelo M.P., não se considerando por isso ainda notificado daquele despacho.
Verifica-se ainda que a secretaria emitiu nova notificação do despacho de admissão do recurso em 15.02.23 efetivamente cumprida em 19.03.23, data em que foi assinada pelo M.P..
Este apresenta resposta no dia 19.03.23.
Assim sendo, resulta que a resposta é tempestiva em face da documentação junta que não foi questionada em termos de falsidade.
De todo o modo, tendo presente que a admissão da resposta do M.P foi notificada ao recorrente em 22.03.23, o eventual questionamento do despacho de admissão daquela resposta, não mais pode colocar-se em face do decurso dos prazos de recurso. Tratando -se de uma irregularidade de conhecimento não oficioso, porquanto também não abarcada no disposto do art. 414º, n º 3 do CPP, teria que se ter respeitado o prazo do art. 123º do CPP. Não questionada nesse prazo mostrar-se-ia a irregularidade sanada.

Improcede, pois, o pedido de desentranhamento da resposta.


Da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal.

Entende o arguido que o acórdão padece da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, als. a) e c) do Código de Processo Penal, por violação do disposto no art. 374º, nº 2 do mesmo dispositivo legal.
Na perspetiva do arguido o Tribunal a quo não enumerou no elenco dos factos, provados ou não provados, factos constantes da confissão do arguido, ainda que seja parcial, ou com reservas e do seu arrependimento.
Desejando que seja acrescentado aos factos provados “o arguido AA confessou os factos, ainda que de forma parcial, e mostra-se arrependido”.
Em primeiro lugar, como nos parece evidente, uma confissão que possa ser qualificada como “parcial” só pode significar que se refere a uma parte da factualidade dada à acusação.
Logo, a consideração entre os factos provados de uma confissão dita parcial, pecaria por uma falta de rigor, na medida em que de tal “facto” não seria possível destrinçar entre os factos provados, quais deles foram admitidos e quais não foram. Tal matéria deverá ter assento na fundamentação da matéria de facto, o mesmo é dizer que será nesta motivação que o Tribunal explicará a razão da fixação da matéria de facto, nomeadamente que factos foram admitidos pelo arguido e quais não foram.
Da fundamentação da matéria de facto decorre que o Tribunal a quo explicou a razão da fixação da matéria de facto dos pontos 5 a 19: “o Tribunal fundou a sua convicção no que diz respeito à factualidade aqui descrita nas declarações do arguido AA que, no essencial, a realização de uma atividade de tráfico de estupefacientes.
É certo, e isso não pode deixar de ser expresso, que admitiu uma atividade de tráfico menos intensa e extensa do que aquela que o Tribunal considerou como provado – para além de negar que o dinheiro apreendido era proveniente do tráfico de droga e dar conta que realizava alguns trabalhos que lhe proporcionavam rendimentos – mas reconheceu, de modo inequívoco, a realização de atividades de tráfico de estupefacientes.
Daqui decorre que o acórdão cumpre com suficiência o que se lhe exige no art. 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, enumerando os factos provados e não provados, fazendo uma exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, indicando as provas e delas fazendo um exame crítico.
Por sua vez, a admissão de alguns dos factos imputados na acusação, ou a confissão parcial nas circunstâncias e no modo como foi feita, não implica necessariamente o arrependimento. O que significa que os efeitos desencadeados pelo arrependimento também não decorrerão, necessariamente, da confissão parcial. Arrependimento, não no sentido de uma imposição interna de valores através da coação da pena, mas de identificação da pessoa com os princípios e valores que a ordem jurídica consagra (neste sentido, Anabela Rodrigues, A determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, 1995, p. 383). Essa identificação, no caso, não ficou demonstrada, isto é, não ficou demonstrado que o arguido está arrependido, mas, simplesmente que se diz arrependido.
Porém, o tribunal a quo não deu como provado que o recorrente demonstrou arrependimento nem que interiorizou na sua consciência interior um ato de contrição sincera pelos factos que cometeu.
O Acórdão recorrido, na sua fundamentação refere que o arguido confessou parcialmente os factos (com menor intensidade e abrangência), mas não deu como provado o arrependimento «Deve dizer-se, em primeiro lugar, que o Tribunal fundou a sua convicção no que diz respeito à factualidade aqui descrita nas declarações do arguido AA que, no essencial, (admitiu) a realização de uma atividade de tráfico de estupefacientes. É certo, e isso não pode deixar de ser expresso, que admitiu uma atividade de tráfico menos intensa e extensa do que aquela que o Tribunal considerou como provado — para além de negar que o dinheiro apreendido era proveniente do tráfico de droga e dar conta que realizava alguns trabalhos que lhe proporcionavam rendimentos — mas reconheceu, de modo inequívoco, a realização de atividades de tráfico de estupefacientes».
O recorrente, também aqui manifesta uma opinião diferente daquela a que o tribunal recorrido chegou, impugnando a convicção adquirida neste segmento57.
Embora, conceitualmente, não se deva confundir "arrependimento" com "confissão", dificilmente se pode compaginar um arrependimento relativamente a um crime que não seja confessado.
Porém, já é possível vislumbrar uma confissão sem arrependimento- Acórdão do T.R.G. - Tribunal da Relação de Guimarães de 22/02/2021 in www.dgsi.pt:
«III- Nos casos em que a infração é presenciada pelo OPC e o arguido é detido em flagrante delito, a relevância da confissão para efeitos de prova é reduzida, podendo relevar sobretudo na medida em que evidencie arrependimento do arguido. Mas do facto de se verificar confissão, daí não decorre necessariamente que haja arrependimento. Ou seja, a interiorização do desvalor da conduta e o propósito de arrepiar caminho, não voltando a praticar qualquer crime».
A primeira, a confissão traduz-se na verbalização de um juízo público de assunção (total ou parcial) da paternidade pelo cometimento dos factos, assumindo o confitente a responsabilidade pelo sucedido, o que poderá constituir, seguramente, um primeiro passo para um verdadeiro arrependimento.
Aliás consta da fundamentação do Acórdão os seguintes dizeres:
«Deve dizer-se, em primeiro lugar, que o Tribunal fundou a sua convicção no que diz respeito à factualidade aqui descrita nas declarações do arguido AA que, no essencial, (admitiu) a realização de uma atividade de tráfico de estupefacientes. É certo, e isso não pode deixar de ser expresso, que admitiu uma atividade de tráfico menos intensa e extensa do que aquela que o Tribunal considerou como provado — para além de negar que o dinheiro apreendido era proveniente do tráfico de droga e dar conta que realizava alguns trabalhos que lhe proporcionavam rendimentos — mas reconheceu, de modo inequívoco, a realização de atividades de tráfico de estupefacientes».
Acórdão do T.R.G. - Tribunal da Relação de Guimarães de 22/02/2021 in www.dgsi.pt:
«III- Nos casos em que a infração é presenciada pelo OPC e o arguido é detido em flagrante delito, a relevância da confissão para efeitos de prova é reduzida, podendo relevar sobretudo na medida em que evidencie arrependimento do arguido. Mas do facto de se verificar confissão, daí não decorre necessariamente que haja arrependimento. Ou seja, a interiorização do desvalor da conduta e o propósito de arrepiar caminho, não voltando a praticar qualquer crime».
Porém, a confissão ou a declaração de arrependimento podem ser meramente convenientes ou puramente oportunistas quando obedecem a uma mera estratégia processual com o objectivo exclusivo de tirar dividendos em proveito do agente confitente- Acórdão do T.R.G. - Tribunal da Relação de Guimarães de 26/04/2022 in www.dgsi.pt:
«IV - A verificação do arrependimento de um arguido não constitui efeito automático da existência de confissão integral e sem reservas, bem podendo dizer-se que, não raras vezes, em situações em que a prova da culpabilidade é manifesta (como sucede nos casos de flagrante delito), a asserção da sua verificação apenas significa mera "estratégia de defesa", nem sempre correspondendo à interiorização da censurabilidade do ilícito criminal praticado e do sério propósito revelado pelo agente de que, no futuro, não reiterará a conduta criminosa.
V - Na situação em apreço, não configura qualquer contradição, nos termos do citado artº 410º, nº 2, al. b), do Código de Processo Penal, a circunstância de o tribunal a quo ter dado como assente que o arguido “confessou integralmente e sem reservas a prática dos factos” e de, em sede de fundamentação, ter referido que o mesmo “não assumiu espontaneamente qualquer arrependimento”».
Sendo o arrependimento um ato pessoalíssimo não tem sentido convocar aqui um argumento sem valência relativo ao facto de o tribunal recorrido ter dado como assente o arrependimento de outro arguido, do DD, pois trata-se de circunstâncias incomunicáveis que apenas dizem exclusivamente respeito e relevam em relação ao confitente.
Com o arrependimento exige-se mais do que isso e implica um genuíno juízo de autocensura pelo cometimento dos factos.
O arrependimento juridicamente relevante é um ato pessoal fidedigno situado na arena interior da consciência individual que seja de tal forma intenso e credível que venha a “tocar” na convicção ou múnus decisório do julgador.
A demonstração desse estado de contrição tem de ser ativa, assumida e visível.
O agente tem de revelar com autenticidade que rejeitou o mal inerente ao tipo legal de crime que praticou, de modo a convencer o tribunal que se no futuro vier a ser confrontado com uma situação idêntica, não voltará a delinquir.
No caso em concreto, tal não aconteceu.
O recorrente não logrou convencer o tribunal desse estado interior.
Como bem refere o Digno PGA no seu parecer A demonstração da sinceridade do arrependimento passa, nomeadamente, pela interiorização da culpa e pela assunção clara dos factos in judicium acompanhada daquele estado de alma.
Ora, o tribunal recorrido não conseguiu perscrutar no arguido qualquer arrependimento e por conseguinte, de forma coerente, não o fez constar dos factos provados nem o valorou como o recorrente pretende - Acórdão do S.T.J. – Supremo Tribunal de Justiça de 09/03/2023 in www.dgsi.pt:
«III- O facto de o tribunal não dar a mesma relevância que o arguido pretendia quanto às circunstâncias atenuantes que se apuraram, não significa que tivesse feito uma avaliação errada ou incorreta. O que se passou é que o arguido/recorrente parte de pressupostos errados, inclusive de factos não apurados e sobrevaloriza circunstâncias a seu favor indevidamente e de forma subjetiva, portanto, sem razão».
Também como se disse no Acórdão do T.R.C. - Tribunal da Relação de Coimbra de 15/02/2011 in www.dgsi.pt que se respiga na parte relevante e que ora interessa, com inteira aplicação ao caso concreto:
«…Não é toda e qualquer confissão que releva positivamente para a determinação da medida da pena.
A confissão, enquanto atitude colaborante do arguido, pode traduzir-se ou não numa circunstância atenuante de carácter geral, influindo directamente na determinação da medida concreta da pena, ou relevando indirectamente, ao nível da valoração das exigências de prevenção especial, se no contexto em que for feita transmitir indicações positivas relativamente à atitude/personalidade do agente.
O seu valor processual, em termos práticos, acaba por variar na razão directa da sua relevância, podendo assumir um vasto leque de graduações que vão da confissão extremamente relevante (a que permite ultrapassar acentuadas dúvidas ou ter como assentes factos para os quais não existe outra prova) à confissão absolutamente irrelevante (a título de exemplo, a confissão feita após concluída a produção da prova, quando todos os factos confessados se oferecem já como manifestamente provados; a confissão do óbvio, quando tiver havido prisão em flagrante delito), podendo ainda ser subjectivamente valorada na determinação da atitude interna do agente relativamente aos factos praticados e à interiorização da gravidade da sua conduta.

À luz destes princípios há que convir que a limitadíssima confissão do arguido não se reveste do relevo que este pretende ver-lhe atribuída, se este se limita à confissão do óbvio, que foi precisamente aquilo que o arguido, na sua estratégia de defesa, optou por assumir, certamente por ser difícil de negar por forma credível em função das circunstâncias concretas do caso, resultando manifestamente, não de um sentido e sincero arrependimento, mas da expectativa de minorar as consequências penais da sua actuação, revestindo-se, por essa razão, de nulo valor atenuativo…» (sic).
Improcede, pois, a invocada nulidade.

Da impugnação da matéria de facto.
Como se sabe e de uma forma muito sintética, a impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410.º nº 2 do Código de Processo Penal, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou através do recurso amplo ou efetivo em matéria de facto, previsto no art. 412.º, nºs 3, 4 e 6 do citado dispositivo legal.
No primeiro caso, a discordância traduz-se na invocação de um vício da sentença ou acórdão, decorrente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum; no segundo, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar, cumprindo os ónus de impugnação previstos no art. 412.º, nº 3 do CPP.
Na sua motivação indica o recorrente que se mostram incorretamente julgados os factos provados sob os pontos 6 e 7 com correspondência no ponto d) dos factos não provados.
Vejamos (transcrevendo-se, também o ponto 5, para mero efeito de enquadramento dos pontos impugnados):
«5) Em data concretamente não apurada, mas situada em setembro de 2018 e até 27 de novembro de 2021, data em que foi detido, o arguido AA, sem que para tal tivesse qualquer autorização legal, administrativa ou médica para o efeito, dedicou-se à aquisição, venda e cedência de produtos estupefacientes, designadamente heroína e cocaína, a terceiros residentes na região do Vale do Sousa, Peso da Régua, Resende e Cinfães;
6) Para o efeito, o arguido abastecia-se previamente de estupefaciente em vários locais, designadamente e desde meados de novembro de 2021 a um indivíduo de nacionalidade espanhola e nesse país residente chamado EE, encontrando-se com este indivíduo em diversos locais;
7) Assim, no âmbito do descrito em 6) e no dia 17 de novembro de 2021 cerca das 14.50 horas, após contactos telefónicos entre ambos estabelecidos no dia anterior e nesse dia, o arguido AA abasteceu-se de produto estupefaciente de natureza concretamente não apurada no Parque de estacionamento do estabelecimento denominado “Café Snack Bar ...”, sito em ..., concelho de Ponte de Lima, junto de EE;
Dos factos não provados:
d) Sem prejuízo do descrito em 6) e 7) dos factos provados, o arguido AA deslocava-se
com regularidade junto da residência do EE, situada na Galiza ou encontravam-se a meio caminho, no acesso de A3, de ..., ou em Paredes de Coura ou ainda na própria residência daquele arguido;»
Entende o arguido que os factos provados estão em contradição com a factualidade dada como não provada, nomeadamente o ponto 7 dos factos provados, com o ponto d) dos factos não provados.
Ora, o vício de contradição insanável entre factos provados e não provados consiste na afirmação de factos animados de sinal contrário, cuja verificação simultânea é impossível, sendo a sua coexistência inexoravelmente inconciliável.
Diz o arguido que não se mostrando provado que se encontrava com o EE a meio caminho, no acesso de A3, de ..., também não se poderia em sentido inverso dar como provado que em ..., no parque de estacionamento do “café snack-bar o ...” o arguido AA tenha adquirido a EE produto estupefaciente de natureza não apurada.
Invoca em seguida que assim decorre das suas declarações, das do inspetor FF, e ainda do auto de diligência de fls. 1690 a 1691.
Cumpre esclarecer, desde logo, que para a demonstração do aludido vício o recorrente extravasa o texto da decisão recorrida, isto é, invoca a prova que no seu entender (não) foi produzida, o que não pode fazer.
Do texto da decisão não decorre tal vício. Como é evidente os factos dados como provados sob o ponto 7. referem-se a uma data específica, e a um local específico, onde o recorrente se encontrou com EE, o sendo que do ponto d) resulta que se deu como não provado que o recorrente se deslocava com regularidade (sublinhado nosso) junto da residência deste, ou que se encontravam em ... ou em Paredes de Coura.
Este facto não invalida que não se provando essas deslocações, com regularidade, não tenha ocorrido um encontro nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no ponto 6. Simplesmente não se provou que os encontros entre ambos sucediam com regularidade com a finalidade de traficar estupefacientes.
Improcede, pois a alegada contradição, vício de natureza lógica a ser detetado somente com recurso ao texto da decisão.

Por outro lado, invoca o arguido as suas declarações, que nesta parte transcreve, bem como as do Sr. Inspetor FF e ainda o auto de diligência de fls. 1690 e 1601.
Como se disse, sem valia para a invocação dos aludidos vícios da matéria de facto, porquanto se recorre a elementos externos ao texto do próprio acórdão, como sejam a análise da prova, resta saber se se lhe encontra algum préstimo que determine a existência de um erro de julgamento, isto é, se a prova indicada impõe (que não apenas permite) decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo.
O recorrente apenas transcreve o trecho do mencionado auto de diligência na parte que manifestamente lhe interessa, sendo que omite que do mesmo também consta “(…) sendo que os suspeitos saem dos veículos e dirigem-se para a traseira do veículo utilizado por este último [AA], que se encontrava com a mala aberta. Permaneceram junto a este veículo cerca de 5 minutos, tendo depois fechado a mala e dirigiram-se os dois suspeitos [AA e EE] para junto do veículo automóvel utilizado pelo suspeito EE. Cerca das 15.00 H dirigiram-se novamente para junto do veículo automóvel utilizado pelo AA e pelas 15H05 cada um dos suspeitos acede ao interior do veículo que utilizava, sendo que após acedem ao ramal de acesso à A3. É certo que não se referencia qualquer transação.
Porém, é exercício que se impõe ao julgador que a prova seja apreciada na sua globalidade, concatenada e examinada em confronto de todos os meios de prova. E dos autos de vigilância, para além do mais, resulta a existência de inúmeros contactos do aqui recorrente com EE, sem que se encontre outra explicação para além da que, pelas razões constantes da fundamentação, se explicita na matéria provada. Resta, ainda, trazer à colação a matéria de facto constante dos pontos 31 e ss., da qual resultam provados inúmeros contactos entre o recorrente e EE.
No que concerne aos pontos 15 e 19 dos factos provados, e p) dos factos não provados
“15) No dia 27 de novembro de 2021, entre as 16.40 horas e as 16.55 horas, nas proximidades do café restaurante B..., sito na Estrada Nacional n.º ..., em ..., Paredes, o arguido AA entregou a GG, que então acompanhava, EE, um saco azul contendo no seu interior umas botas de senhora e, ainda, 5.540€ em notas, dentro de um saco de papel pardo, quantia que lhe foi apreendida;
19) As quantias monetárias que detinha e lhe foram apreendidas eram produto da venda de estupefacientes a terceiros, destinando-se a quantia de 5.540€ apreendida a pagar estupefaciente por ele adquirido;”
“p) O montante de 5.540€ descrito em 15) dos factos provados não pertencia ao arguido AA”
O arguido recorrente aceitando ter entregado o saco plástico, entende, porém, que não resultou provado que tenha colocado o dinheiro no interior do referido saco, e que se deverá admitir que “com o susto da abordagem policial a esposa de EE pudesse tentar dissimular o dinheiro que já trouxesse consigo.”.
A este respeito fazemos nossa a fundamentação quanto ao facto dado como não provado sob o ponto p) exarada no douto acórdão: ”Todavia, não mereceu a mais pequena credibilidade tais declarações, desde logo porque os inspetores da Polícia Judiciária que participaram na diligência deixaram bem claro que foi o arguido AA quem entregou a saca onde foi encontrada aquela quantia, mais esclarecendo o modo como esta (quantia) e encontrava acondicionada, não sendo sequer possível que GG tivesse possibilidade de assim acondicionar tão elevada quantia.”.
Por outro lado, diga-se que defende o arguido que a decisão se torna incompreensível atendendo a que apenas tinha consigo 5 gramas de estupefaciente, e que se tenha dado como provado que mais de 5 mil euros fossem para pagar tão pequena quantidade de estupefaciente.
Como nos parece evidente, dos factos provados não resulta que aquela quantia se destinasse a pagar aquela quantidade de estupefaciente, o que seria obviamente, um absurdo. O que resultou provado foi que aquela quantia se destinava a pagar estupefaciente por si adquirido, sendo que, tal como resulta provado no ponto 6., o arguido abastecia-se previamente de estupefaciente em vários locais, designadamente e desde meados de novembro de 2021 a um indivíduo de nacionalidade espanhola e nesse país residente chamado EE, encontrando-se com este indivíduo em diversos locais. Quer isto dizer que se deu como provado que aquela quantia se destinava ao pagamento de estupefaciente que EE lhe havia fornecido, e não apenas ao pagamento de estupefaciente fornecido naquela data.
Por fim entende o arguido que, contrariamente se deverão dar como provados os factos considerados não provados nos pontos r) e s), em suma que o recorrente consumisse 4 a 5 gramas de cocaína e 1 grama de heroína por semana, e que parte do estupefaciente que lhe foi apreendido se destinava ao seu consumo.
Reitera-se, aqui, o constante da fundamentação “Para além das declarações do arguido AA, nenhum elemento probatório foi trazido ao processo que, de algum modo, conferisse credibilidade às suas declarações nesta parte. Bem pelo contrário, a prova produzida apontou justamente em sentido contrário ao de que o arguido AA sequer consumisse estupefaciente e menos ainda as quantidades por ele declaradas. Com efeito, não há uma só testemunha ouvida neste processo que tivesse indicado o arguido AA como sendo, à data dos factos aqui em análise, consumidor de cocaína e de heroína, sendo que não há comportamentos observados que sejam compatíveis com tais consumos nem a apreensão de objetos que, de algum modo, indiciassem tais consumos. Neste contexto, acrescente-se, a testemunha II, inspetor da Polícia Judiciária, é taxativa na afirmação de que o arguido AA não é consumidor de estupefacientes.
Ressalte-se, ainda que os factos constantes dos pontos 86 e 89, da matéria de facto provada, realçados pelo recorrente em abono da sua tese, devem ser lidos sequencialmente, nomeadamente com o ponto 87 em que expressamente se liga a recaída no consumo de drogas alguns meses após a sua libertação, à data de 2008, sendo que depois de nova prisão a 9 de Agosto de 2012 e até 8 de Agosto de 2018 (ponto 90), inexiste uma única referência a consumos de estupefacientes que seja contemporânea dos factos pelos quais foi aqui julgado, sendo que, tal como consta da fundamentação, não se ouviu uma única testemunha que tenha referenciado o consumo de estupefacientes por parte do recorrente.
Desta forma improcede qualquer alteração à matéria de facto por inexistir erro de julgamento.

Da nulidade da prova com recurso a metadados.
O arguido AA, na sua contestação, invocou a nulidade da prova obtida com recurso a metadados, uma vez que “toda a investigação assentou com primazia e tendo como base as escutas telefónicas, localização celular, IMEI, faturação detalhada com registo de trace-back, etc…”, sendo que o arguido é apenas identificado com recurso a metadados, assim como os seus clientes, prova esta que, sendo nula, não poderá ser utilizada por constituir meio de prova proibido.
O Ministério Público pronunciou-se, considerando que a recolha de metadados cumpriu o regime legal e, por isso, a prova obtida não enferma de qualquer nulidade.
O tribunal a quo a este propósito referiu o seguinte e que se transcreve:
“Desde já se adianta que não assiste qualquer razão ao arguido AA e por uma simples, mas básica, razão: não há a utilização de metadados (no sentido que o arguido lhes dá) no âmbito do presente processo.
Expliquemos.
a) A fonte da controvérsia no que diz respeito aos metadados surgiu com a decisão do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 268/2002, de 19de abril, declarando-se o seguinte:
a) a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;
b) a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.
É tendo em conta este juízo de inconstitucionalidade que importa apurar da realidade normativa em que nos movemos.
2 Para que se não diga que o relator desta decisão se enfeita com penas alheias, deve dizer-se, em nome da honestidade intelectual, que se segue na íntegra a posição expendida pela Sr.ª Dr.ª CCC em trabalho que a mesma teve a gentileza de facultar ao 1.º signatário deste Acórdão.
b) Antes de mais, importa esclarecer o que são dados de base e dados de tráfego, assinalando a diferença no regime da sua obtenção.
Tem-se entendido (neste sentido e a título de exemplo, o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 21/2000, de 16 de junho de 2000, homologado e publicado no Diário da República n.º 198, II Série, de 28 de agosto de 2000 e o Parecer, também do mesmo Conselho Consultivo, n.º 16/94-Complementar, de 2 de Maio de 1994, publicado em Pareceres, edição da Procuradoria-Geral da República, vol. VI, p. 535 e ss., vindo na esteira da doutrina perfilhada por Yves Poullet e Françoise Warren, Noveaux compléments au service teléphonique et protection des donnés: à la recherche d’un cadre conceptuel – in Droit de L’Informatique et des Télécoms, 7.éme année; 1990/91, 1, p. 19 e segs,, apud página oficial da Procuradoria Geral da República, pareceres VII, utilização da informática, disponível em http://www.pgr.pt/pub/Pareceres/VII/2.html.) que existem três espécies de dados ou elementos:
– os dados relativos à conexão à rede, chamado também de dados de base;
– os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede, tais como por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência, e que são chamados de dados de tráfego; e
– os dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, também chamados de dados de conteúdo”.
c) A Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (doravante, Lei do Cibercrime), no artigo 2.º al. c), esclarece que são dados de tráfego “os dados informáticos relacionados com uma comunicação efetuada por meio de um sistema informático, gerados por este sistema como elemento de uma cadeia de comunicação, indicando a origem da comunicação, o destino, o trajeto, a hora, a data, o tamanho, a duração ou o tipo do serviço subjacente.”
A jurisprudência, de seu lado (a título de exemplo, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo n.º 1341/08.4TAVCT, disponível em www.dgsi.pt, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 420/17, proferido no âmbito do processo 917/16, de 13.07.2017, disponível https://blook.pt/caselaw/PT/TC/523118/ e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 487/2009, no âmbito do processo n.º 272/09 da 2.ª Secção, in Diário da República, 2.ª Série, n.º 215, de 5 de novembro de 2009) tem vindo a sustentar que o acesso a dados relacionados a um endereço de IP configura um pedido de dados de tráfego, acolhendo-se na definição prevista no artigo 2.º, n.º 2, al. d) da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto (Lei da proteção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações) que os define como sendo “quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas ou para efeitos de faturação da mesma”, podendo “incluir qualquer tradução desta informação pela rede através da qual a comunicação é transmitida, para efeitos de execução da transmissão.
Os dados de tráfego podem ser, nomeadamente, os relativos ao encaminhamento, à duração, ao tempo ou ao volume de uma comunicação, ao protocolo utilizado, à localização do equipamento terminal do expedidor ou do destinatário, à rede de onde provém ou onde termina a comunicação, ao início, fim ou duração de uma ligação. Podem igualmente consistir no formato em que a comunicação é enviada pela rede” (cf. considerando (15) da Diretiva n.º 2002/58/CE, de 12 de julho de 2002, transposta para o nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º 41/2004).
d) Por seu turno, os dados de base, como vimos, dizem respeito à conexão à rede, independentemente de qualquer comunicação, possibilitando a identificação do utilizador de certo equipamento (nome, morada, número de telefone) (exatamente assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 486/2009, no âmbito do processo n.º 4/09 e disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt).
e) Sempre que estejamos perante dados de base — identificação e morada do utilizador do serviço, elementos necessários ao estabelecimento de uma base para comunicação — cabe ao Ministério Público a competência para realizar o pedido.
Todavia, pretendendo-se obter uma informação mais ampliada na dimensão do tráfego — “necessários ou produzidos pelo estabelecimento da ligação da qual uma comunicação concreta, com determinado conteúdo, é operada ou transmitida, são a direção, o destino (adressage) e a via, o trajeto (routage)” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo 1756/05.2TJLSB.L1, de 20.06.2013, disponível em www.dgsi.pt) tal informação carece de autorização judicial, porquanto se trata de elementos intrínsecos à própria comunicação, uma vez que permitem identificar, em tempo real ou a posteriori, os utilizadores e seu relacionamento através da rede, a localização, a frequência, a data, hora e a duração da comunicação.
f) Realizado este brevíssimo esclarecimento, importa, em face do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 citado, ter presente o quadro normativo vigente e que o mesmo não afeta um conjunto de normas que, de algum modo, podem contender com a utilização de metadados, nomeadamente:
– a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (a Lei do Cibercrime), especialmente o artigo 14.º;
– o Código de Processo Penal, muito particularmente os artigos 187.º a 189.º;
– a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que transpõe para a nossa ordem jurídica a diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, respeitante à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações;
– a Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto (Lei de Proteção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações), especialmente o seu artigo 6.º; e
– a Lei 5/2004, de 10 de fevereiro (Lei das comunicações eletrónicas).
g) Vejamos sucintamente.
i. Quanto à Lei do Cibercrime, refira-se que define, essencialmente, o âmbito de aplicação dos normativos processuais que se encontram contemplados no referido diploma, sendo que as normas de direito processual materializadas neste diploma legal abrangem não só investigações por crimes previstos no referido diploma legal, como também outos crimes cuja investigação, na prática, apenas é possível se se puder fazer-se uso destes meios de prova especiais, designadamente os crimes cometidos por meio de um sistema informático e os crimes cuja prova esteja guardada em suporte digital ( Pedro Verdelho, A nova Lei do Cibercrime, Scientia Ivridica, Tomo LVIII, N.º 320, Outubro – Dezembro 2009, pp. 733 e 734).
Neste quadro, a Lei do Cibercrime prevê um conjunto de normas processuais penais respeitante à recolha de prova digital dirigido a uma constelação de crimes distintos, consagrando medidas relativas à preservação, revelação, apresentação, pesquisa e apreensão de dados informáticos (artigos 12.º a 17.º) e que se aplicam não só aos crimes informáticos nela previstos, mas também aos que se inserem no âmbito do conceito de “criminalidade informática em sentido lato” e, ainda aos que, em matéria probatória, em geral beneficiem da prova em suporte digital (Pedro Dias Venâncio, Lei do Cibercrime – Anotada e Comentada, Coimbra Editora, 2011, p. 90).
A preservação expedita de dados — sejam estes referentes a transmissões de dados informáticos, sejam os armazenados num sistema informático — prevista no artigo 12.º da Lei do Cibercrime tem uma finalidade cautelar, “não intrusiva, que apenas pretende garantir que informação presumivelmente importante não seja destruída” (exatamente assim, Pedro Verdelho, A nova Lei do Cibercrime, Scientia Ivridica, Tomo LVIII, N.º 320, outubro – dezembro 2009, pp. 736).
Tal dispositivo normativo tem aplicabilidade, como já se deixou referido, ao ilícitos catalogados como crimes graves nos termos da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, mas também a outros que digam respeito a processos relativos a crimes previstos na Lei do Cibercrime e praticados por meio de um sistema informático ou em relação aos quais seja essencial proceder à recolha de prova em suporte eletrónico (artigo 12.º e 11.º da Lei do cibercrime).
A ordem de preservação identifica a natureza dos dados, origem e destino e o período de tempo de preservação é até um máximo de três meses (n.º 3 do artigo 12.º da Lei do Cibercrime).
Deste modo, aquele a quem foi dada a ordem terá, de imediato, que preservar os dados e garantir a confidencialidade da aplicação da medida processual (n.º 4 do artigo 12.º do mesmo diploma legal).
A Lei do Cibercrime, no artigo 14.º, prevê , ainda, a preservação de dados de tráfego, por determinação das autoridades judiciárias, impondo, assim, aos fornecedores de serviço — que nos termos da al. d) do artigo 2.º da aludida Lei, é qualquer entidade, publica ou privada que faculte aos utilizadores dos seus serviços a possibilidade de comunicar por meio de um sistema informático, bem como qualquer outra entidade que trate ou armazene dados informáticos em nome e por conta daquela entidade fornecedora de serviços ou dos respetivos utilizadores — a conservação de dados, que apenas serão utilizados no processo quando esteja em causa criminalidade grave, nos termos previstos no artigo 3.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, dependendo de despacho fundamentado do Juiz.
Note-se, como assinala Pedro Verdelho, que esta norma é “inovadora (…) [sendo que] as razões que lhe estão subjacentes prendem-se com a efetiva dificuldade, sentida por quem investiga, no acesso a informação, quando esta está armazenada em sistemas informáticos, sobretudo em consequência da grande capacidade de armazenamento dos sistemas modernos e da sua enorme complexidade” (Pedro Verdelho, A nova Lei do Cibercrime, Scientia Ivridica, Tomo LVIII, N.º 320, Outubro – Dezembro 2009, pp. 738).
O artigo 14.º da Lei do Cibercrime materializa uma injunção, expressa na ordem emitida pela autoridade judiciária a quem tem disponibilidade sobre determinados dados informáticos (que poderá visar apenas a comunicação ou o acesso aos mesmos) e que não admite a recusa de cooperação, porquanto tal recusa é punida como desobediência (14.º, n.º 1, in fine).
ii. No Código de Processo Penal, de seu lado, também se encontram normas atinentes a estas matérias.
Como explica João Conde Correia é possível verificar, após uma mera leitura ainda que literal do Código de Processo Penal, que o legislador “estendeu”, ainda hoje, o regime previsto para as interceções telefónicas a outras comunicações por qualquer meio diferente do telefone, nomeadamente o correio eletrónico e outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital (artigo 189.º, n.º 1), regulando nos mesmo termos — “por extensão”, refere a lei — a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos de realização de conversações ou de comunicações (artigo 189.º, n.º 2) (cf. João Conde Correia, Prova digital: as leis que temos e a lei que devíamos ter, Revista do Ministério Público, Ano 35, N.º 139, julho – setembro 2014, pp. 31 e 32). Por outras palavras, “apenas será possível proceder à interceção de comunicações eletrónicas não telefónicas nas mesmas condições em que é permitida a realização de interceções telefónicas” (Pedro Verdelho, Técnica no novo C.P.P.: exames, perícias e prova digital, Revista do CEJ, 1.º Semestre 2008, Número 9 – Número especial, p. 164).
Deste modo, ainda que a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, possa ter agravado as dificuldades interpretativas das normas do Código de Processo Penal, o certo é que não existiu qualquer revogação expressa do regime legal constante no artigo 189.º deste código.
E, em todo o caso, ainda que se entenda que a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, revogou implicitamente, no que a esta matéria específica diz respeito, o regime normativo que resulta do Código de Processo Penal, o certo é que a decisão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 cujas consequências estamos a analisar implicaria a repristinação (cf. o artigo 282.º, n.º 1, 2.ª parte, da Constituição da República Portuguesa) do regime legal previsto no Código de Processo Penal.
Por isso, seja por uma ou por outra via, teremos de considerar que o regime de interceções de outras comunicações por qualquer meio diferente do telefone, nomeadamente o correio eletrónico e outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital e a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos de realização de conversações ou de comunicações regulado no artigo 189.º do Código de Processo Penal mostra-se em vigor.
Daqui resultará que a transmissão dos conteúdos previstos no n.º 2 do artigo 189.º do Código de Processo Penal só se admite por despacho fundamentado do juiz, para o catálogo restritivo de crimes, previsto no n.º 1 do artigo 187.º e quando houver fundadas razões para crer ser indispensável tanto para a descoberta de verdade material ou, por outra, quando, de outra maneira, a prova daqueles crimes for impossível ou muito difícil de obter. Há, pois, o apelo a critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade.
Ademais, nos termos do n.º 4 do artigo 187.º do Código de Processo Penal, só podem transmitir-se dados relativos ao suspeito ou arguido, a pessoa que sirva de intermediário e relativamente à qual haja fundada suspeita de receber ou transmitir mensagens destinadas ou provenientes daqueles, ou, mediante consentimento, à própria vítima.
Pese embora o presente regime legal se apresentar, à primeira vista e no seu conjunto limitador da atividade de investigação e da admissibilidade de utilização da prova digital, dúvidas não há de que tal prova é sempre possível em processos de investigação de crimes contemplados no artigo 187.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, excluindo-se a sua utilização noutros processos onde seria fundamental sua utilização.
iii. Olhemos, agora, a Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto.
Os dados normativos até apresentados devem ainda ser conjugados com a Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, regulador da proteção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações.
Este diploma legal, no artigo 2.º distingue entre
– os dados de tráfego: quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas ou para efeitos da faturação da mesma (artigo 2.º, n.º 1, al. d) ); e
– os dados de localização: quaisquer dados tratados numa rede de comunicações eletrónicas ou no âmbito de um serviço de comunicações eletrónicas que indiquem a posição geográfica do equipamento terminal de um utilizador de um serviço de comunicações eletrónicas acessível ao público (artigo 2.º, n.º 1, al. e)).
Sendo assim, em relação aos dados de tráfego, se forem tratados para efeitos de envio de comunicação, poderão os mesmos ser guardados, como é o caso dos IP’s ou localização no estrangeiro e, em relação aos dados de localização relativos a assinantes ou utilizadores das redes públicas de comunicações ou de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público, o tratamento destes dados é permitido apenas se os mesmos forem tornados anónimos (artigo 7.º, n.º 1).
Este diploma legal, no seu artigo 4.º, n.º 2, estatui que “é proibida a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outros meios de interceção ou vigilância de comunicações e dos respetivos dados de tráfego por terceiros sem o consentimento prévio expresso dos utilizadores, com exceção dos casos previstos na lei.”
Por seu turno, o artigo 6.º, n.º 2, permite aos operadores de comunicações conservar alguns dados de tráfego, sendo tal conservação uma opção que os operadores de comunicações exercem ou não. Não constitui, por isso, uma qualquer obrigação. Contudo, logo de seguida, refere-se que apenas é “permitido o tratamento de dados de tráfego necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações”, sendo tal tratamento “lícito até final do período durante o qual a fatura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado”. É o que se pode ler no n.º 3 do artigo 6.º. Determina ainda o n.º 7 daquela norma que “o disposto nos números anteriores não prejudica o direito de os tribunais e as demais autoridades competentes obterem informações relativas aos dados de tráfego, nos termos da legislação aplicável…”.
Isto posto, não obstante o decidido pelo Tribunal Constitucional, é possível a conservação de alguns dados pelas operadoras de telecomunicações, ainda que apenas um período de seis meses (atenta a conjugação do artigo 6.º, n.º 3, da Lei 41/2004, de 18 de agosto, com o artigo 10.º, n.os 1 e 4, da Lei 23/96, de 26 de julho, esta última respeitante à prestação de serviços públicos essenciais.
É certo que se trata de um conjunto muito restrito de dados cuja recolha, pela sua natureza, não colide com interesses ou direitos fundamentais, como a privacidade, o sigilo de comunicações ou a autodeterminação informacional, mas ainda assim poderá revelar interesse na investigação de ilícitos criminais.
Além do mais, o n.º 4 do artigo 1.º da Lei 41/2004, de 18 de agosto, prevê que “as exceções à aplicação da presente lei que se mostrem estritamente necessárias para a proteção de atividades relacionadas com a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado e a prevenção, investigação e repressão de infrações são definidas em legislação especial” (sublinhado nosso), assim abrindo o flanco a outras possibilidade no uso dos referidos dados, já não ancorados nos interesses das operadoras de telecomunicações, mas na segurança pública, na defesa, na segurança do Estado e na prevenção e repressão de infrações penais.
Deste modo, é de concluir que nesta legislação (especial) subsistem normas com exceções à conservação dos dados de tráfego que têm como fundamento exclusivo a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado e a prevenção, investigação e repressão de infrações penais, normas que não foram contaminadas pelo juízo de inconstitucionalidade decretado no aludido aresto do Tribunal Constitucional.
iv. Por fim, uma palavra relativamente à Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro (Lei das Comunicações Eletrónicas), em especial o seu artigo 48.º, cujo n.º 7 dá conta que “qualquer suporte duradouro, incluindo gravação telefónica, relacionado com a celebração, alteração ou cessação do contrato de comunicações eletrónicas, deve ser conservado pelas empresas pelo período previsto na alínea a) do n.º 5 do artigo 47.º-A”, isto é, durante o período de vigência acordado, inicial ou sucessivo, acrescido do correspondente prazo de prescrição e caducidade.
h) Ora, o juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal Constitucional não abrangeu o quadro normativo supra descrito, nem, acrescente-se incidiu especificamente sobre a localização celular — a localização da célula da BTS utilizada pelo aparelho durante a comunicação — e/ou sobre os registos da realização de conversações ou comunicações, as faturas detalhadas (os chamados dados de tráfego e trace back) emitidas pelas operadoras.
Aliás, sempre se acrescente que o aresto do Tribunal Constitucional nem sequer coloca em causa a prática corrente — porque legalmente fundada — de pedido de informações aos operadores de comunicações pelo Ministério Público”, pelo que, desde que, devidamente autorizados por despacho judicial, nada impede que, mostrando-se relevantes para a prova dos factos em investigação, as operadoras continuem a fornecer dados armazenados sobre localização celular (localização da célula da BTS utilizada pelo aparelho durante a comunicação) ou registos de realização de conversações ou comunicações, faturação detalhada (dados de tráfego e trace back), os quais se encontram para os efeitos do mencionado normativo armazenados licitamente.
Assim, o quadro normativo supra exposto não se encontra, nem tácita nem expressamente, atingido pela decisão proferida no aludido acórdão do Tribunal Constitucional, pelo que, e em síntese, a conservação de metadados das comunicações nas condições de tais normas não constitui ato ilícito e a sua obtenção pelas autoridades judiciárias competente não é também ilícita.
i) Veja-se, portanto, que aos dados considerados de base (v.g., a obtenção da identificação dos IMEI) — e lembre-se aqui que o Recorrente parece não distinguir estes dos demais, razão pela qual não se pronuncia sobre a específica legalidade na obtenção destes - que foram recolhidos em inquérito, deve lembrar-se que está atribuído ao Ministério Público a competência de, independentemente de qualquer prazo, os obter, donde resulta que, sem dependência de qualquer prazo e no âmbito de competência própria, poderia o Ministério Público obter/investigar a identificação do cliente (dados de subscritor – BSI), nos termos do artigos 11.º, n.º 1 e 14.º, n.º 4, al. b), da Lei do Cibercrime, artigo 6.º, n.º 2 e n.º 7, da Lei 41/2004, de 18 de agosto e artigo 48.º, n.º 7, da Lei 5/2004, de 10 de fevereiro).
j) Por outro lado, no que diz respeito ao conteúdo das comunicações que entre os diferentes utilizadores dos aparelhos fizeram, a obtenção de tal meio de prova seguiu as regras que se mostram plasmadas nos artigos 187.º a 189.º do Código de Processo Penal, não se vislumbrando — nem, acrescente-se o arguido sequer identifica que regras foram violadas na obtenção do conteúdo das comunicações — a violação de qualquer norma que importe a proibição de valoração de provas.
Aliás, sempre se acrescente que a obtenção de tais conteúdos — que ocorreu para o futuro, não para o passado porque tais conversações não se encontravam armazenadas em qualquer base de dados detida por qualquer operadora — não se mostra sequer referido no Acórdão do Tribunal Constitucional que o arguido AA invoca.
Assim sendo, estando assente que os dados obtidos relativamente aos IMEI e identificação dos titulares respetivos de aparelhos telefónicos constituem simples dado de base, cai por terra a argumentação do arguido AA para que se considerasse tal prova como nula.
k) Última nota.
O arguido AA fala, no seu requerimento em “localização celular” e “faturação detalhada com registo de trace-back”. Elementos que, simplesmente, não constam do processo.
9.6. Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a invocada nulidade da prova obtida mediante o acesso e leitura dos metadados, tais como a identificação completa do titular, IMEI, localização celular, registo de SMS, MMS, registo de chamadas, trace back e afins.”

Antes de mais importa referir que o próprio arguido recorrente admitiu, no essencial, a realização de uma atividade de tráfico de estupefacientes. E para além do mais percorrida com atenção a fundamentação não vislumbramos que tenha sido valorada qualquer prova obtida com recurso a metadados, nem, aliás, como bem se destrinça no acórdão em crise, há, pura e simplesmente utilização de metadados - os dados obtidos relativamente aos IMEI e identificação dos titulares respetivos de aparelhos telefónicos constituem simples dados de base.
A confissão do arguido relativamente à essencialidade da atividade de tráfico de estupefacientes tornaria redundante a utilização de supostos metadados para prova daquilo que o arguido confessou por outro lado não estamos perante metadados. Na verdade apenas e tão só se ligou um número de telemóvel ao número de telemóvel utilizado pelo então suspeito EE. O número de telemóvel do aqui recorrente – ...02 – estabeleceu contacto com o telemóvel de EE, para negócio ligado ao tráfico de estupefacientes, dando, aí, origem a que também este fosse colocado sob escuta.
De todo o modo, sempre se dirá o seguinte e socorrendo-nos do que se discorreu a propósito dos metadados em recente acórdão desta Relação proc. nº47/22.6PEPRT-Z.P1 da 1ª secção em que foi relatora a Dr.ª Joana Grácio e do qual o signatário foi 1º adjunto e que se transcreve nas partes relevantes e a propósito:
“A resposta a esta questão não prescinde de um relance sobre a evolução legislativa relativamente à concreta questão da obtenção de dados de tráfego e de localização celular já existentes para efeitos de investigação criminal, isto é, que não sejam gerados concomitantemente aos dados de conteúdo interceptados, pois esses, como se referiu, beneficiam do regime destes, estando salvaguardados da declaração de inconstitucionalidade inscrita no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 que expressamente os excepcionou.
(…)
Com efeito, este diploma visa regular, e regula, a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes (art. 1.º).
Por crimes graves para efeitos da Lei 32/2008, de 17-07, deve entender-se, segundo se enuncia no seu art. 2.º, n.º 1, al. g), crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou de títulos equiparados a moeda, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atos preparatórios da contrafação e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
As noções de terrorismo, criminalidade violenta e criminalidade altamente organizada devem ser conjugadas com o disposto no art. 1.º, als. i), j) e m) do CPenal, segundo as quais, respectivamente, integram o conceito de terrorismo as condutas que incluem os crimes de infrações terroristas, infrações relacionadas com um grupo terrorista, infrações relacionadas com atividades terroristas e financiamento do terrorismo, o de criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos e o de criminalidade altamente organizada as condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência, participação económica em negócio ou branqueamento.”
(…)
Os «”metadados das telecomunicações” são os dados das mesmas que não são comunicados: são os dados sobre os dados comunicados; são os dados gerados antes e durante o processo de comunicação, que estão na posse dos fornecedores desses serviços (doravante, apenas FS). Não são o conteúdo comunicado: o som (incluindo a voz), a imagem (estática ou dinâmica), o texto, os dados informáticos em geral.»[2]
Os metadados das comunicações são meio de prova que podem assumir diferentes formas, podem traduzir-se numa factura detalhada (em papel ou formato digital) ou no registo de informação sobre uma determinada comunicação, nomeadamente a localização geográfica da sua ocorrência.
O problema subjacente à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas da Lei 32/2008, de 17-07, não está na possibilidade de recurso a metadados em si como meio de prova, está antes na possibilidade de conservação desses dados, dessas informações, e de acesso aos mesmos para que sejam utilizados como meio de prova no âmbito do processo penal.
Na verdade, se a própria intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas, prevista e regulada pelos arts. 187.º a 190.º do CPPenal, não suscita por si mesma qualquer juízo de inconstitucionalidade, representando esta ingerência o mais elevado grau de intromissão na vida privada e no sigilo das comunicações, dificilmente se compreenderia que a utilização de dados de tráfego ou de localização celular como meio de prova, que representam, reconhecidamente, um nível de intromissão sensivelmente menos relevante, pudesse justificar um tal juízo.
Atente-se que, conforme se indicou no pedido de declaração de inconstitucionalidade apresentado pela Provedora de Justiça de que emergiu o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022[3], de 19-04, e neste se reconheceu, a declaração de invalidade da Directiva 2006/24/CE[4] do Parlamente Europeu e do Conselho, de 15-03-2006, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no acórdão de 08-04-2014, teve por fundamento a violação do princípio da proporcionalidade pela restrição que a Directiva opera dos direitos ao respeito pela privacidade da privada e familiar e à protecção de dados pessoais, consagrados nos artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), isto apesar de o TJUE ter reconhecido que as medidas previstas na Directiva - relativas à imposição do dever de conservação de dados de tráfego e de localização gerados no contexto de comunicações electrónicas e ao dever da sua transmissão às autoridades competentes para efeitos de investigação, detecção e repressão de crimes graves - eram em si mesmas, medidas legítimas e adequadas ao fim visado.
Sobre esta matéria, afirma-se no mencionado acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional que a Diretiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, que disciplina o direito à privacidade no setor das telecomunicações, regula as condições em que podem os Estados-Membros adotar medidas de intrusão nos dados cuja confidencialidade é prescrita: quando «constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações eletrónicas» (artigo 15.º da Diretiva 2002/58/CE). Deste modo, concluiu o Tribunal de Justiça que as medidas nacionais de conservação de metadados relativos a comunicações eletrónicas se encontram sob o âmbito de aplicação do direito da União Europeia (Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Tele 2, proc. C-203/15 e C-698/15, n.º 78), bem como as medidas de transmissão desses dados às autoridades públicas, para fins de investigação e repressão da criminalidade (Acórdão de 6 de outubro de 2020, La quadrature du net, procs. C-511/18, C-512/18 e C-520/18, n.º 58).
No fundo, tendo o TJUE declarado a invalidade da Diretiva n.º 2006/24/CE (Acórdão de 8 de abril de 2014, Digital Rights Ireland, proc. C-293/12 e C-594/12) - que harmonizava as medidas de conservação de dados relativos a comunicações e sua transmissão às autoridades com competência criminal -, nem por isso se excluíram tais medidas do âmbito de aplicação do direito europeu. Simplesmente, não mais os Estados-Membros se encontram obrigados a adotar as providências que aquela impunha; embora as medidas nacionais que permitam ou visem uma intromissão nas comunicações eletrónicas fiquem sujeitas às obrigações decorrentes do disposto no artigo 15.º da Diretiva 2002/58/CE, só sendo conformes ao direito europeu quando «constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações eletrónicas”» (artigo 15.º da Diretiva 2002/58/CE). Tais normas traduzem «justamente uma concretização da exceção facultativa ao regime-regra da privacidade em matéria de comunicações eletrónicas admitida no artigo 15.º, n.º 1, da Diretiva n.º 2002/58», razão pela qual «nenhuma dúvida existe de que também as medidas nacionais que concedam o acesso aos dados previamente conservados se enquadram no âmbito de aplicação daquele preceito» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 464/2019).
Neste quadro, as medidas adotadas pelos Estados-Membros que estabeleçam tais intromissões — sejam elas adotadas em transposição da Diretiva 2006/24/CE, entretanto declarada inválida; ou, ao invés, ao abrigo das exceções à inviolabilidade das comunicações eletrónicas permitidas pelo artigo 15.º da Diretiva 2002/58/CE — situam-se no âmbito de aplicação do direito europeu. O que implica a conclusão de que o Estado está vinculado à norma do artigo 15.º da Diretiva 2002/58/CE e, igualmente, à CDFUE (cfr. n.º 1 do artigo 51.º da CDFUE).

O reconhecimento deste contexto é essencial na procura de uma solução para o vazio que aparentemente se criou, pois permite perceber que o problema da Lei 32/2008, de 17-07, está na extensão da autorização de intromissão e restrição de direitos fundamentais e não na possibilidade em si mesma dessa restrição para fins de investigação criminal e combate à criminalidade, que é aceite e consagrada.

Retrocedendo um pouco no tempo, tendo presente o contexto enunciado, e acompanhando o retrato da evolução legislativa sobre o acesso e utilização de metadados conservados como meio de prova efectuado por Rui Cardoso[5], que aqui acolhemos, podemos enunciar o desenvolvimento que passamos a descrever.
Até à reforma do CPPenal em 2007, com a Lei 48/2007, de 29-08, não estava expressamente prevista neste diploma qualquer regulamentação sobre o acesso e a utilização de dados de tráfego e localização celular. Ainda assim, era admitida a sua obtenção, mediante autorização judicial, com fundamento na apreciação conjugada dos arts. 187,º, 190,º e 269,º, n.º 1, al. c), do CPPenal (redacção então vigente), respeitantes às escutas telefónicas[6].
Nesse período entrou em vigor a Lei 41/2004, de 18-08, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12-07, a cujo art. 15.º já aludimos supra, que passou a prever pela primeira vez no âmbito da legislação interna o regime de tratamento de dados pessoais no contexto da prestação de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público em redes de comunicações públicas que sirvam de suporte a dispositivos de recolha de dados e de identificação, especificando e complementando as disposições da Lei 67/98, de 26-10 (Lei da Protecção de Dados Pessoais) – art. 1.º.
Também pela primeira vez se previa a conservação de metadados de comunicação pelas empresas que prestavam os serviços respectivos, e bem assim o acesso e utilização como meio probatório em processos judiciais.
No âmbito de decisões judiciais proferidas nos nossos tribunais, este diploma fundamentava a conservação de metadados de comunicação, mantendo-se o recurso aos apontados preceitos do CPPenal para justificar o acesso aos mesmos e a respectiva utilização como meio de prova em processos penais.
Os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 17-05-2006, relatado por Orlando Gonçalves no âmbito do Proc. n.º 1265/06[7], e do Tribunal da Relação de Évora de 26-06-2007, relatado por Guilhermina Freitas no âmbito do Proc. n.º 843/07-1, são exemplo dessa orientação.
Ou seja, mesmo antes das alterações introduzidas pela Lei 48/2007, de 29-08, ao CPPenal, os tribunais não se inibiram de admitir como meios de prova susceptíveis de serem acedidos e utilizados em processos crime os metadados de comunicação, equiparando o regime dos dados de contexto aos de conteúdo.
Neste sentido, aliás, se pronunciou o Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 486/2009[8], de 28-09, concluindo que «encontrando-se o acesso à facturação detalhada e a localização celular compreendidas no real conteúdo das técnicas de ingerência nas telecomunicações expressamente previstas pelo legislador no artigo 187.º, do C.P.P./87, não se revela que a interpretação normativa sindicada desrespeite o princípio da legalidade consagrado no artigo 34.º, n.º 4, da C.R.P., pelo que deve o recurso interposto ser julgado improcedente.»
Neste aresto pode ainda ler-se que «a decisão recorrida não foi propriamente inovadora quanto ao sentido da interpretação normativa adoptada, sendo possível detectar a existência de outras decisões de tribunais superiores que perfilharam a mesma solução hermenêutica por referência à mesma disposição legal, sendo ainda de realçar que nestes casos o pomo da discórdia incidia mais sobre a determinação da autoridade judiciária competente para a autorização destes tipos de intromissão nas telecomunicações – Ministério Público ou juiz de instrução – do que propriamente sobre a possibilidade legal de realização dessas intromissões (Vide, por exemplo, Ac. TRC de 14-3-2001 (Barreto do Carmo), na CJ, Ano XXVI, tomo II, p. 44; Ac. TRL de 23-6-2004 (Clemente Lima); Ac. TRG de 10-1-2005 (Francisco Marcolino); Ac. TRC de 17/5/2006 (Orlando Gonçalves); Ac. TRL de 27/9/2006 (João Sampaio); Ac. TRC de 15/11/2006 (Jorge Dias), todos disponíveis em www.dgsi.pt).»

Com a reforma do processo penal em 2007, o art. 189.º do CPPenal, com a epígrafe “Extensão”, passou a ter a seguinte redacção:
«1 - O disposto nos artigos 187.º e 188.º é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes.
2 - A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo.»

A verdadeira extensão do regime de intercepção e gravação de escutas telefónicas decorrente dos arts. 187.º e 188.º do CPPenal centra-se no n.º 1 do art. 189.º do mesmo diploma legal, relativamente às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone e às comunicações entre presentes, respeitando o seu n.º 2 a dados de tráfego e localização celular já existentes, ou seja, dados conservados, e não aos produzidos em tempo real.
Daí se mencionar a obtenção e junção aos autos e não a intercepção desses dados. E também por isso não se mencionam os procedimentos de controlo previstos no antecedente art. 188.º, destinados à intercepção de comunicações, e se preveja a autorização judicial em qualquer fase do processo. Em fase de julgamento pode fazer sentido a obtenção de dados de tráfego e localização celular conservados, mas já não faz sentido a realização de intercepção desses dados em tempo real, pois a prova do julgamento respeita a factos pretéritos, os descritos na acusação. E como também invoca Rui Cardoso[9], caso aquele n.º 2 do art. 189.º do CPPenal respeitasse à intercepção de comunicações, seria obvia a ineficácia da medida em fases em que o processo não se encontra já em segredo de justiça.
A obtenção e junção aos processos de natureza criminal de dados de tráfego e de localização celular estava, e está, apenas limitada pela exigência de despacho judicial a determinar ou autorizar essas acções, que estão circunscritas aos crimes de catálogo do n.º 1 do art. 187.º do CPPenal e relativamente às pessoas referidas no n.º 4 deste preceito.
Assim, entre a Lei 48/2007, de 29-08 e a Lei 32/2008, de 17-07, o fundamento para conservar dados de comunicação residia na Lei 41/2004, de 18-08, encontrando-se a base legal para a respectiva obtenção e junção aos autos no âmbito do processo penal no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal.
Transpondo esta análise para o caso dos autos, diríamos que até esta data nada obstava neste regime do CPPenal à obtenção e junção aos autos dos dados de tráfego e localização celular, desde que conservados à luz da Lei 41/2004, de 18-08, uma vez que está em causa crime de catálogo do art. 187.º, n.º 1, do CPPenal e os visados integram a previsão da al. a) do seu n.º 4.
Cerca de um ano depois da Reforma do Processo Penal de 2007, entrou em vigor a Lei 32/2008, de 17-07, que visou regular a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes[10], transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações – art. 1.º, n.º 1.
Este diploma, quanto a nós, nada veio alterar ao regime base até aí vigente para intercepção e gravação de comunicação (dados de conteúdo), cuja conservação, aliás, é proibida no art. 1.º, n.º 2, do diploma, e para obtenção e junção aos autos de dados de contexto, incluindo dados de tráfego e de localização celular. Este diploma apenas visou criar um mecanismo directo e de maior eficácia de acesso a dados de comunicação de contexto pretéritos quando estavam em causa fins de investigação criminal de crimes graves, que o próprio diploma especifica quais são, e que, como vimos, não são coincidentes na sua totalidade com a previsão do art. 187.º, n.º 1, do CPPenal.
O primeiro argumento para defendermos esta posição é o da total incoerência do sistema, inclusive à luz da jurisprudência, incluindo constitucional, que se foi sedimentando sobre a matéria, se assim não se entender, permitindo-se a existência de um catálogo de crimes menos apertado para situações de maior ingerência na vida privada e no sigilo das comunicações, isto é, quando está em causa a intercepção e gravação de comunicações em tempo real, a que será aplicado o regime dos arts. 187.º a 190.º do CPPenal, e um catálogo de crimes mais restrito, o previsto no art. 2.º, n.º 1, al. g), da Lei 32/2008, de 17-07, para situações de menor restrição de direitos e de ingerência na vida privada e no sigilo das comunicações, isto é, nas situações em que se pretende obter dados de contexto pretéritos, conservados.
Não desconhecemos que a jurisprudência se dispersou quanto às ilações a retirar da entrada em vigor daquele diploma, defendendo-se que nos crimes fora do catálogo da Lei 32/2008, de 17-07, não era possível a obtenção de dados de tráfego ou localização celular pretéritos à luz do art. 189.º, n.º 2, e tendo por base os dados guardados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18-08, ou até que o art. 189.º, n.º 2, apenas se aplicava à obtenção de dados de contexto em tempo real. Remetemos nesta parte para a extensa indicação jurisprudencial efectuada por Rui Cardoso[11].
Pela nossa parte, alinhamos com os que entenderam que nos crimes abrangidos pelo catálogo do art. 187.º, n.º 1, do CPPenal, mas que se encontravam fora do catálogo previsto no art. 2.º, n.º 1, al. g), da Lei 32/2008, de 17-07, era possível a obtenção e junção aos processos de natureza criminal de dados de contexto, como dados de tráfego e de localização celular, com fundamento no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, e no âmbito dos dados conservados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18-08, que se mantém em vigor e, saliente-se, cuja validade não foi posta em causa, nem pelo Tribunal Constitucional nem pelo TJUE.
Neste sentido, apelamos à fundamentação dos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28-01-2010, relatado por Isabel Valongo no âmbito do Proc. n.º 222/09.9GBETR-A.C1[12], e de 01-06-2022, relatado por Alcina da Costa Ribeiro no âmbito do Proc. n.º 152/21.6GGCBR-A.C1[13], do Tribunal da Relação de Évora de 28-02-2012, relatado por Sénio Alves no âmbito do Proc. n.º 15/11.3JALRA-B.E1[14] ou do Tribunal da Relação de Guimarães de 05-07-2021, relatado por Teresa Coimbra no âmbito do Proc. n.º 3225/18.9T9GMR.G1[15], onde se defendeu, na sequência do perfilhamento da posição que aqui também se segue, «que enquanto não ocorrer a reclamada alteração do CPP nesta matéria ( Cfr. Costa Andrade in Bruscamente no Verão passado – RLJ, nº 3951 e Conde Correia in Cibercriminalidade e prova digital ( CEJ), 34), é às normas vigentes do CPP que o aplicador da lei terá de recorrer relegando as leis 32/2008 e 109/2009 para as questões nelas particularizadas, justificantes das transposições de cada uma das Diretivas que estiveram na sua génese.»
Uma vez que a Lei 109/2009, de 15-09, chamada Lei do Cibercrime (LCC) não tem, quanto a nós, aplicação directa ao caso em apreço, designadamente através dos seus arts. 12.º, 14.º ou 18.º, passaremos ao lado da sua compatibilização com a legislação que temos vindo a analisar, temática cujos contornos, mais uma vez, pela completude do estudo, remetemos para o texto de Rui Cardoso[16].

Do que se expôs resulta que com a entrada em vigor do DL 32/2008, de 17-07, e na ausência de qualquer revogação expressa, na prática, deixou de se recorrer, no âmbito de processos de natureza criminal respeitantes a crimes de catálogo daquele diploma, à obtenção e junção de dados de comunicação de contexto conservados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18-08, e com fundamento no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, pela simples razão de que no âmbito daquele primeiro diploma (Lei 32/2008) estava autorizado o mesmo acesso e os dados eram guardados pelo dobro do tempo que a Lei 41/2004 permitia, aqui 6 (seis) meses após a prestação do serviço[17], ali 1 (um) ano a contar da data da conclusão da comunicação, e a extensão de dados guardados era também de maior dimensão, veja-se, por exemplo, os dados de localização, cuja anonimização constitui a regra na Lei 41/2004, limitando-se por essa via o efectivo acesso a esses elementos[18].
Bem visto o fundamento e conteúdo das Leis 41/2004 e 32/2008 há que reconhecer que estamos perante bases de dados diferentes, quer fisicamente – como resulta expressamente do art. 3.º, n.º 3, deste último diploma legal -, quer ao nível do conteúdo dos dados armazenados, como se viu, bases de dados que prosseguem finalidades diferentes, no primeiro caso o necessário ao funcionamento das empresas de prestação de serviços de comunicação e às interacções com os clientes, no âmbito dos respectivos contratos, no segundo exclusivamente fins de investigação e repressão de crimes graves, com timings de conservação diversos, como também se assinalou.
E apesar de ocorrer sobreposição parcial da previsão legal quanto à permissão de obtenção de metadados no âmbito das referidas leis, no caso da Lei 41 /2004, de 18-08, com fundamento no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, e no da Lei 32/2008, de 17-07, com fundamento nela mesma, não se afigura que esta última anule a validade da totalidade daquele conjunto normativo, designadamente da extensão do art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, precisamente porque têm diferentes planos de funcionamento.
Mas ainda que se entendesse existir uma qualquer derrogação do art. 189.º do CPPenal pela Lei 32/2008, de 17-07, a verdade é que, como salienta Rui Cardoso[19], «nos termos prescritos no n.º 1 do artigo 282.º da CRP, com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do art. 9.º da Lei 32/2008 a norma do n.º 2 do artigo 189.º foi repristinada na sua plenitude e o artigo 189.º, n.º 2, do CPP passou a constituir (o único) fundamento normativo para obtenção de dados de tráfego/localização.

Desaparecida a possibilidade de conservação de dados de contexto no âmbito das comunicações ao abrigo da Lei 32/2008, de 17-07, atenda a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral dos seus arts. 4.º, em conjugação com o art. 6.º, e 9.º, consideramos que se mantém a possibilidade de conservação de metadados de comunicação que resulta da Lei 41/2008, de 18-08, com as limitações já assinaladas, mas, ainda assim, constituindo um conjunto muito significativo de informação, nomeadamente de dados de tráfego, essencialmente, mas também de localização celular se imprescindíveis à facturação dos serviços prestados (cf. art. 7.º)
E é sobre esta base de dados conservados, existente para fins estritamente de prestação de serviços de comunicações electrónicas, que actua o art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, como fundamento legal da restrição de direitos fundamentais, sem necessidade de qualquer outro diploma habilitante para além do CPPenal, como acontece, aliás, com a possibilidade de intercepção e gravação de comunicações em tempo real, e da ponderação dos princípios da proporcionalidade e da necessidade, de acordo com o art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Não pode nesta avaliação olvidar-se que a repressão e prevenção criminal são fins a prosseguir por qualquer Estado de Direito, em cumprimento de um interesse público de uma Justiça Penal eficaz, pelo menos no que concerne aos crimes de maior gravidade, como ocorre com aqueles que compõem o catálogo previsto no art. 187.º, n.º 1, do CPPenal.
Como bem realça Rui Cardoso[20], não tem de haver, nem há, expressa previsão legal para todos os meios de prova que possam ser utilizados em processo penal. «Não é necessário que, em cada sector da sociedade, da vida social, política, económica, desportiva, etc., em que são gerados documentos (que, quase inevitavelmente, contêm dados pessoais), exista lei que expressamente preveja a possibilidade de posterior utilização probatória dos mesmos em processo penal para que tal possa suceder. Se assim fosse, basicamente nenhuma prova documental seria admissível.»
Ora, como também salienta o mesmo Autor, «os metadados são prova documental/digital. No caso dos conservados ao abrigo da Lei 41/2004 são documentos que existem independentemente do processo penal – não há qualquer especial meio que seja necessário prever para a sua obtenção. Poderiam ser obtidos por busca e apreensão de dados informáticos, por injunção (ordem), cabendo à lei determinar que meios podem ser utilizados, o que, quanto à injunção, está feito no artigo 189.º, n.º 2 do CPP.»

Nesta apreciação, e na escolha de uma solução que permite o acesso a metadados conservados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18-08, e com fundamento no art. 189.º, n.º 2, do CPPenal, não pode ser desvalorizado, sendo mesmo de fundamental importância, o facto de o acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das apontadas normas do DL 32/2008, de 17-07, tornando-o imprestável para os fins para que foi gizado, não se ter pronunciado em momento algum sobre a conservação de metadados de comunicação à luz da Lei 41/2004, de 18-08, isto é, para efeitos de facturação, e sobre a possibilidade da sua utilização em processo penal.
A análise do Tribunal Constitucional incidiu sobre a conformidade constitucional e à luz do Direito da União Europeia de um diploma que criou uma obrigação generalizada, «sistemática, contínua e sem nenhuma excepção», nas palavras da Provedora de Justiça, de os operadores de telecomunicações conservarem todos os dados de base, de tráfego e de localização gerados no âmbito dessa actividade, respeitantes a todos os utilizadores e assinantes, obrigação que se reflectia na existência de uma base de dados própria, com o objectivo exclusivo de utilização para fins de prevenção e repressão criminal, e cujo conteúdo devia ser mantido por tempo relativamente dilatado (um ano), tendo concluído pelo excessiva desproporcionalidade de uma tal previsão de conservação face a outros direitos previstos na lei fundamental e à ausência de salvaguarda dos mesmos (arts. 18.º, 20.º, 26.º e 35.º da Constituição da República Portuguesa).

E sendo realidades e finalidades tão diferentes as que são tratadas na Lei 41/2004, de 18-08, por um lado, e Lei 32/2008, de 17-07, por outro, como se viu, dificilmente se podem extrapolar as reservas colocadas à conformação constitucional e perante o Direito da União Europeia desta para aquela. Diríamos mesmos que tal tarefa é impossível, pois não podemos comparar ou que não é comparável, sendo certo que até hoje nenhuma reserva se suscitou autonomamente (não por decorrência da mencionada declaração de inconstitucionalidade de preceitos da Lei 32/2008) no que concerne à validade e conformação perante o direito interno e o direito da União Europeia quanto à previsão de conservação de dados no âmbito da Lei 41/2004, de 18-08, e à possibilidade de restrição de direitos fundamentais ao abrigo dos arts. 187.º a 190.º do CPPenal, concretamente a possibilidade de acesso, obtenção e junção aos autos de metadados.
Importa também salientar que o Regulamento Geral Sobre a Protecção de Dados (RGPD), isto é, Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27-04, 2016, relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, e também a Lei 58/2019, de 08-08, que aprovou as regras relativas ao tratamento de dados pessoais para efeitos de prevenção, deteção, investigação ou repressão de infrações penais ou de execução de sanções penais, transpondo para o direito interno a Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, devem ser a chave para a resposta a possíveis óbices que a validade jurídica o entendimento propugnado suscita, reafirmando-se, uma vez mais, agora quanto a estas específicas matérias, que as questões da localização das bases de dados ou do cumprimento de notificações para conhecimento ao visado de que os dados pessoais foram acedidos para fins de investigação criminal não necessitam de estar previstos em cada um dos múltiplos diplomas que possam abarcar esta temática.

Revertendo tudo quanto se expôs para a situação dos autos, dir-se-á que, em abstracto, havendo dados validamente conservados ao abrigo da Lei 41/2004, de 18-08, e estando em causa crimes de catálogo nos termos do art. 187.º, n.º 1, do CPPenal, posto que punidos com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos, e bem assim visados previstos no n.º 4, al. a), deste preceito, nada obsta, tanto mais que já foi autorizada a intercepção e gravação de comunicações, que se determine que seja solicitada informação sobre os dados de tráfego e localização indicados na promoção do Ministério Público.
Porém, como se deixou enunciado, a conservação de dados no âmbito da Lei 41/2004, de 18-08, está limitada ao período de 6 (seis) meses após a prestação do serviço.”

Assim, o quadro normativo supraexposto não se encontra, nem tácita nem expressamente, atingido pela decisão proferida no aludido acórdão do Tribunal Constitucional, pelo que, e em síntese, a conservação de metadados das comunicações nas condições estabelecidas em tais normas não constitui ato ilícito e a sua obtenção pelas autoridades judiciárias competente não é também ilícita.
Como bem refere a decisão a quo aos dados considerados de base (v.g., a obtenção da identificação dos IMEI) - e lembre-se aqui que o Recorrente parece não distinguir estes dos demais, razão pela qual não se pronuncia sobre a específica legalidade na obtenção destes - que foram recolhidos em inquérito dentro dos seis meses e no âmbito de competência própria, poderia o Ministério Público obter/investigar a identificação do cliente (dados de subscritor – BSI), nos termos do artigos 11.º, n.º 1 e 14.º, n.º 4, al. b), da Lei do Cibercrime, artigo 6.º, n.º 2 e n.º 7, da Lei 41/2004, de 18 de agosto e artigo 48.º, n.º 7, da Lei 5/2004, de 10 de fevereiro).
No que diz respeito ao conteúdo das comunicações que entre os diferentes utilizadores dos aparelhos fizeram, a obtenção de tal meio de prova seguiu as regras que se mostram plasmadas nos artigos 187.º a 189.º do Código de Processo Penal, não se vislumbrando - nem, acrescente-se o arguido sequer identifica que regras foram violadas na obtenção do conteúdo das comunicações - a violação de qualquer norma que importe a proibição de valoração de provas.
Aliás, sempre se acrescenta que a obtenção de tais conteúdos - que ocorreu para o futuro, não para o passado porque tais conversações não se encontravam armazenadas em qualquer base de dados detida por qualquer operadora - não se mostra sequer referido no Acórdão do Tribunal Constitucional que o arguido AA invoca.
Assim sendo, estando assente que os dados obtidos relativamente aos IMEI e identificação dos titulares respetivos de aparelhos telefónicos constituem simples dados de base, cai por terra a argumentação do arguido AA para que se considerasse tal prova como nula.
Por sua vez, o arguido AA fala, no seu requerimento em “localização celular” e “faturação detalhada com registo de trace-back”. Elementos que, simplesmente, não constam do processo.
Em apoio da tese defendida no Acórdão recorrido e na resposta do Digníssimo magistrado do Ministério Público junto da 1.ª instância acrescentamos os seguintes arestos, socorrendo-nos do parecer do M.P.:
No âmbito do processo n.º 2748/22.0JAPRT-A.P1 da 4.ª Secção deste T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto foi proferido o Acórdão datado de 01/02/2023 in www.dgsi.pt :
«I – Os fundamentos de inconstitucionalidade declarada, com força obrigatória geral, no ac TC n.º 268/2022, de 19.04, não têm aplicação na interceção de dados de tráfego, incluída localização celular, em tempo real durante a investigação.
II – A interceção de dados de tráfego, como a faturação detalhada, onde constem as chamadas efetuadas e recebidas (trace-back), as localizações celulares e a identificação dos números que os contactem e as comunicações em roaming, quando obtidas em tempo real, durante a investigação, em relação a suspeitos ou arguidos (nº 4, al.a) do art.187º, do CPP), não implica uma ingerência desproporcional nos direitos fundamentais ao respeito pela vida privada e familiar e à proteção de dados pessoais previstos nos art.ºs 7.º e 8.º da C.D.F.U.E., bem assim nos nºs 1 e 4 do art.35.º e do n.º 1 do art.26.º, da C.R.P.
III – À semelhança dos dados de conteúdo (escutas telefónicas), a interceção de dados de tráfego, incluídas localizações celulares, em tempo real, durante a investigação, pressupõe a interceção ou monitorização dos mesmos, à semelhança das escutas telefónicas, e não o recurso a base de dados de conservação ou armazenamento das operadoras relativas a todos os assinantes e utilizadores registados, situação, única, a que se refere o Ac TC 268/2022 e a Lei nº32/2008, de 17 de julho.
IV – Permitir o acesso e valoração no processo penal de metadados obtidos e tratados para efeitos de faturação entre cliente e operadora é o mesmo que consentir na sua utilização para uma finalidade diferente daquela para a qual foram conservados, defraudando o âmbito de regulamentação prevista na Lei 41/2004, de 18 de agosto, para acudir à investigação criminal.
V – Relativamente aos dados de tráfego, incluídas localizações celulares, em tempo real, o regime de extensão contido no artigo 189.º, nº2, continua a ter a aplicação aos crimes de catálogo previsto no art.187º, nº1, ambos do Código Processo Penal. Nesse caso, também o regime especial do art.18º, nº1 e 3, da Lei n.º 109/2009, de 05.09 (Lei do Cibercrime) continua a ter a aplicação aos crimes de catálogo previstos nesse normativo.
VI – O arguido ou suspeito, cujos dados de trafego e dados de localização virão a ser intercetados, beneficia das garantias de controlo estabelecidas para as escutas telefónicas nos art.s 187º e 188º, do CPP, aqui aplicáveis mutatis mutandi, não havendo razão para impor à interceção de dados de tráfego, em tempo real, uma comunicação que é dispensada na interceção de dados de conteúdo (escutas telefónicas), a pretexto do direito à autodeterminação informativa e tutela jurisdicional efetiva previstos no n.º 1 do art.35.º e do n.º 1 do art.20.º, da C.R.P.
Também o Acórdão do T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto de 18/01/2023 in www.dgsi.pt : «I - Os fundamentos de inconstitucionalidade declarada, com força obrigatória geral, no ac TC n.º 268/2022, de 19.04, não têm aplicação na interceção de dados de tráfego, incluída localização celular, em tempo real durante a investigação.
II – A interceção de dados de tráfego, como a faturação detalhada, onde constem as chamadas efetuadas e recebidas (trace-back), as localizações celulares e a identificação dos números que os contactem e as comunicações em roaming, quando obtidas em tempo real, durante a investigação, em relação a suspeitos ou arguidos (nº 4, al. a) do art.187º, do CPP), não implica uma ingerência desproporcional nos direitos fundamentais ao respeito pela vida privada e familiar e à proteção de dados pessoais previstos nos art.ºs 7.º e 8.º da C.D.F.U.E., bem assim nos nºs 1 e 4 do art.35.º e do n.º 1 do art.26.º, da C.R.P.
III - À semelhança dos dados de conteúdo (escutas telefónicas), a interceção de dados de tráfego, incluídas localizações celulares, em tempo real, durante a investigação, pressupõe a interceção ou monitorização dos mesmos, à semelhança das escutas telefónicas, e não o recurso a base de dados de conservação ou armazenamento das operadoras relativas a todos os assinantes e utilizadores registados, situação, única, a que se refere o ac TC 268/2022 e a Lei nº 32/2008, de 17 de julho.
IV – Permitir o acesso e valoração no processo penal de metadados obtidos e tratados para efeitos de faturação entre cliente e operadora é o mesmo que consentir na sua utilização para uma finalidade diferente daquela para a qual foram conservados, defraudando o âmbito de regulamentação prevista na Lei 41/2004, de 18 de agosto, para acudir à investigação criminal.
V - Relativamente aos dados de tráfego, incluídas localizações celulares, em tempo real, o regime de extensão contido no artigo 189.º, nº 2, continua a ter a aplicação aos crimes de catálogo previsto no art.187º, nº1, ambos do Código Processo Penal. Nesse caso, também o regime especial do art.18º, nº 1 e 3, da Lei n.º 109/2009, de 05.09 (Lei do Cibercrime) continua a ter a aplicação aos crimes de catálogo previstos nesse normativo.
VI – O arguido ou suspeito, cujos dados de trafego e dados de localização virão a ser intercetados, beneficia das garantias de controlo estabelecidas para as escutas telefónicas nos art.s 187º e 188º, do CPP, aqui aplicáveis mutatis mutandi, não havendo razão para impor à interceção de dados de tráfego, em tempo real, uma comunicação que é dispensada na interceção de dados de conteúdo (escutas telefónicas), a pretexto do direito à autodeterminação informativa e tutela jurisdicional efetiva previstos no n.º 1 do art.35.º e do n.º 1 do art.20.º, da C.R.P.».
Também o Acórdão do T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto de 08/02/2023 in www.dgsi.pt :
«I - Haverá que distinguir entre a prova proveniente dos dados de tráfego conservados, previstos pela Lei número 32/2008 de 17 de julho e a prova proveniente de dados de tráfego intercetados, e conhecidos em tempo real, prevista no artigo 189.º n.º 2 do Código de Processo Penal, sendo que somente a primeira está abrangida pela declaração de inconstitucionalidade resultante do acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional.
II - A recolha de dados de tráfego intercetados e conhecidos em tempo real e o seu fornecimento às autoridades judiciárias para efeitos de investigação criminal, desde que verificados os demais pressupostos legais não colide com a inconstitucionalidade declarada relativamente aos artigos 4°, 6° e 9° da Lei n.º 32/2008 de 17 de julho».
No mesmo sentido os Acórdãos do S.T.J. – Supremo Tribunal de Justiça de 08/11/2022 e de 06/09/2022 in www.dgsi.pt.

Portanto toda a informação obtida em tempo real no período em que está a decorrer a investigação e para futuro está protegida ao abrigo das disposições legais suprarreferidas e o seu acesso não é inconstitucional, sendo legítimo o seu acesso para efeitos de investigação criminal e nomeadamente no que diz respeito ao tráfico de estupefacientes.
O acesso a dados de comunicação, por si, não é inconstitucional, sendo apenas questionadas a duração da conservação de tais dados e a sua abrangência pessoal.

Diz o recorrente na sua resposta ao parecer do M.P. nesta instância que “o ponto 45) da matéria de facto dada como provada foi assente única e exclusivamente nos elementos constantes de folhas fls. 1369 a 1371 dos autos – referente aos registos de passagens das viaturas do arguido nas fronteiras de Portugal com Espanha no período início do ano de 2020 até maio de 2021, indubitavelmente estes são dados de tráfego.
18. E mais, são dados de tráfego para o passado, isto é para uma data em que o arguido não estava identificado e nem sequer era suspeito nos presentes autos!”
Deu-se como provado no ponto 45 dos factos assentes “Entre o dia 1 de janeiro de 2020 e 21 de maio de 2021, os veículos indicados em 11) passaram a fronteira de Valença em 16 ocasiões, com maior incidência no primeiro semestre de 2021”
Tal matéria foi dada por provada com base nos elementos constantes de fls. 1369 a 1371 dos autos e nas vigilâncias dos Srs. Inspetores da Polícia Judiciária e respetivos depoimentos.”

Ocorre que os registos de passagens nas fronteiras de veículo automóveis não são dados de comunicação e portanto não estão abrangidos pelas disposições legais suprarreferenciadas e muito menos pela declaração de inconstitucionalidade a qual se refere, como já tivemos oportunidade de dizer, à obrigação de retenção de dados de comunicação e não de todos, atendendo à natureza diferente dos mesmos, incidindo concretamente sobre os mencionados artigos 4°, 6° e 9° da Lei n.º 32/2008 de 17 de julho, onde não se incluem, além dos dados base, os registos de passagem nas fronteiras, podendo investigar-se sem limitação temporal, até porque se trata de saber da passagem de veículos e não de pessoas em concreto e não olvidando que o recorrente é suspeito desde, pelo menos, abril de 2020.
Acresce que mesmo que por hipótese se admitisse serem considerados dados de comunicação, que não são, pelo menos os registos das passagens ocorridos no ano de 2021 reportado à data do seu pedido poderiam ser considerados para efeitos de prova, porquanto dentro dos seis meses em que é possível guarda-los nos termos das disposições legais atrás mencionadas.

Assim, a questão dos metadados, neste caso, é meramente académica, porque sem qualquer repercussão jurídica nestes autos, não tem qualquer relevância.

Pelo exposto, julga-se improcedente a invocada nulidade da prova.

Da perda de instrumentos, nomeadamente do veículo de matrícula ..-..-QQ.

Insurge-se o recorrente contra a declaração de perda do veículo mencionado em epígrafe, entendendo que o único facto provado é que o arguido se deslocava em várias viaturas sem destrinça das que utilizava mais ou menos e escolheu o veículo em causa, não se demonstrando a essencialidade do veículo para o crime.
A este propósito o tribunal a quo discorreu:
“Os instrumentos do crime
60. Olhemos agora para os bens apreendidos que devem ser considerados instrumentos do crime e, nessa sequência e caso tal se mostre legítimo, declará-los perdidos a favor do Estado.
Por força do já referido artigo 35.º, n.º 1 acabado do referir, devem ainda ser declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infração relacionada com o tráfico ou mesmo o consumo de produtos estupefacientes, o que deve suceder mesmo que “nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto” (n.º 3).
61. Esta norma constitui norma especial relativamente ao artigo 109.º do Código Penal.
Na verdade, nesta última, o critério determinante para aferir da necessidade de declarar a perda dos objetos está relacionado com a sua perigosidade, isto é, com a suscetibilidade de os mesmos poderem voltar a servir a prática de crimes.
a) Diz-se no artigo 109.º, n.º 1, que “são declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.”
Acrescenta o n.º 2 que “o disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.”
Da simples leitura dos preceitos acabados de citar, mostra-se que são razões exclusivamente preventivas que fundamentam que os objetos perigosos (rectius, criminalmente perigosos) sejam declarados perdidos favor do Estado. Aliás, é à luz desta finalidade que deve ser interpretado e aplicado aos casos da vida.
São, pois, requisitos de que depende a declaração de perda de objetos, a verificação de um facto ilícito típico, a perigosidade do objeto e a proporcionalidade da perda (neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências cit., pág. 619 a 623; entre tantos outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27.4.1999, Coletânea de Jurisprudência, II, págs. 282 e 283; e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6.11.2001, Coletânea de Jurisprudência, V, pág. 279).
Como ponto de partida para a aplicação do artigo 109.º do Código Penal, deve avaliar-se a perigosidade de um ponto de vista objetivo (olhando a coisa em si e independentemente da pessoa que a detém). Sendo certo, todavia, que só as pessoas tornam os objetos perigosos, pois “o objeto mais anódino (um lençol, uma meia de seda, um lápis, ou uma caneta) pode tornar-se em objeto hoc sensu «perigoso» quando detido por um indivíduo perigoso” — aliás, diz-se mesmo que até a “palavra é (ou pode ser) uma arma… - mas “declarar a perda em tais casos significaria procurar atalhar a perigosidade do agente” e não, “como é a finalidade do instituto, a perigosidade do objeto”. E “para atalhar a perigosidade do agente a lei dispõe de outros institutos que nada têm a ver com a perda dos instrumenta e dos producta sceleris” (Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências cit., pág. 622).
Contudo, a perigosidade do “objeto não deve ser avaliada em abstrato, mas em concreto, isto é, nas concretas condições em que ele possa ser utilizado” ¯ a lei fala em “pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso” ¯ aqui podendo existir uma “referência ao próprio agente” (Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências cit., pág. 623; no sentido supra apontado, pode ver-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27.4.1999, Coletânea de Jurisprudência, II, págs. 282 e 283).
Mas, além do que vai dito, é necessário atender que o decretamento da perda do objeto só deverá ter lugar “se a providência se revelar proporcionada à gravidade do ilícito-típico perpetrado e à perigosidade do objeto.
Na verdade, “a perda dos instrumenta e dos producta sceleris colhe o seu fundamento nas exigências, individuais e coletivas, de segurança e na perigosidade daqueles — que não na perigosidade do agente do facto ilícito-típico praticado (daí que não possa ser considerada uma medida de segurança) ou na culpa deste ou de terceiro (o que obsta a que possa ser entendida como pena acessória).” “E porque tem como pressupostos de aplicação a prática de um facto ilícito-típico e a perigosidade… referida ao objeto” — visando obstar ao risco de cometimento de novos factos ilícitos-típicos, através do mesmo instrumento… — a perda de instrumentos configura-se como uma providência similar à das medidas de segurança”, flui desta natureza jurídica do instituto (que ressalta da ausência de qualquer ligação entre este e a culpa do agente) “que a perda de instrumentos e produtos não pode ser decretada independentemente da gravidade do facto ilícito-típico” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6.11.2001, Coletânea de Jurisprudência, V, pág. 279).
62. Já quanto aos crimes de tráfico de estupefacientes, justamente por aplicação do citado artigo 35.º, n.º 1, basta-se que os objetos tenham servido ou se destinem a servir a prática de crimes de tráfico ou mesmo o simples consumo de produtos estupefacientes.
a) Reconhece-se que há quem não partilhe desta nossa opinião e que entenda que o artigo 35.º da Lei da Droga não apresenta qualquer especialidade em relação ao artigo 109.º do Código Penal.
i. Defende-se, então, que só aparentemente “a regra geral é mais exigente do que a norma especial pois que esta, literalmente, apenas exige que os objetos em causa tenham «servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infração prevista no presente diploma» ao passo que a norma do Código Penal dispõe que esse perdimento apenas tem lugar, «quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos», já que “os requisitos devem ser comuns num e noutro caso”, porquanto “em causa estará um princípio de «essencialidade», traduzida na circunstância de o automóvel em causa ser necessário ao surgimento do delito ou, pelo menos, à sua manifestação de determinado modo”, de tal modo que o objeto só deva ser declarado perdido a favor do Estado naquelas situações em que surja como condição sine qua non do crime ou da sua caraterização (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.1.2015, www.dgsi.pt).
ii. Não é este, todavia, o nosso entendimento.
Dum lado, importa ter presente, como reconhece, aliás, o Acórdão acima citado, a diferente redação entre o artigo 109.º do Código Penal e o artigo 35.º da Lei da Droga, sendo que nenhuma explicação é dada para que o legislador da Lei da Droga tenha, afinal, legislado nos termos constantes do artigo 35.º da Lei da Droga. Aliás, mal se compreende que o legislador tenha redigido a norma constante do artigo 35.º da Lei da Droga em termos substancialmente diferentes do artigo 109.º do Código Penal se pretendesse reproduzir-lhe o regime e a intencionalidade normativa. E se assim fosse, para quê o artigo 35.º na Lei da Droga (relembre-se, por exemplo, o Regime Jurídico das Armas e Suas Munições não tem qualquer norma similar, antes o legislador se satisfaz com o regime geral constante do artigo 109.º) e, para mais, dando-lhe uma redação tão diferente?
Por outro, é necessário ter presente que a Lei da Droga será um dos casos em que o legislador procurou regular globalmente o destino a dar aos bens e rendimentos que, de algum modo, estivessem ligados ao crime. E tendo em mente tal propósito, compreende-se que o legislador tivesse necessidade de afastar o regime consagrado no Código Penal, nomeadamente por considerar que o mesmo — impondo a perigosidade do objeto em si como requisito primacial ao decretamento da perda — deixasse largas margens de impunidade relativamente a bens que, sendo utilizados no ilícito, afinal não representavam, em si mesmo, perigo da prática de novos ilícitos similares. Por isso, bastou-se o legislador que os objetos tenham servido ou se destinem a servir a prática de crimes de tráfico ou mesmo o simples consumo de produtos estupefacientes.
Por fim, acaso o legislador tivesse como intenção normativa que o objeto fosse condição sine qua non do crime ou da sua caraterização, por certo que não deixaria de o ter expresso na letra da lei, ainda que de modo imperfeito. O legislador apenas exige, como tem sido acentuado pela jurisprudência, é que entre o crime e o objeto exista uma relação de funcionalidade ou de instrumentalidade, em termos de causalidade adequada, para a realização da infração, de tal modo que a utilização do objeto não seja “meramente circunstancial” da prática do crime (por exemplo, o traficante que guarda o estupefaciente no seu corpo, embora se faça transportar num automóvel).
b) Em face do que vai dito, entendemos, pois, que não é necessária qualquer “relação de essencialidade” em termos de se poder afirmar que o objeto só pode ser declarado perdido a favor do Estado naquelas situações em que é “essencial” a prática do crime ou que “sem ele o crime se não daria”.
Em todo o caso, temos entendido que é necessário que entre o crime e o objeto exista uma relação de funcionalidade ou de instrumentalidade, em termos de causalidade adequada, para a realização da infração (assim, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2006, www.dgsi.pt).
c) Ademais, deve existir uma relação de proporcionalidade entre a gravidade do ilícito (devendo este ser olhado globalmente e atender à “contribuição” do objeto para a sua realização) e o efeito da declaração de perda, de modo que se possa dizer que a declaração de perdimento do objeto em favor do Estado é adequada, necessária e não surge como desproporcionada (neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.3.2002, Coletânea de Jurisprudência, I, pág. 234; de 21.10.2004, Coletânea de Jurisprudência, III, págs. 202 e 203; de 25.11.2004, Coletânea de Jurisprudência, III, págs. 238 a 240; e 22.3.2007, Coletânea de Jurisprudência, I, pág. 226).
63. Apontado o critério geral, torna-se mais fácil apurar quais os concretos bens que, à luz deste artigo 35.º da Lei da Droga devem ser declarados perdidos a favor do Estado.
a) Comecemos pelos bens apreendidos ao arguido AA.
i. Inequivocamente — porque são bens que eram utilizados na atividade de tráfico a que se dedicava, tal como expressamente consta do referido em 18) dos factos provados — devem ser declarados perdidos a favor do Estado os seguintes bens:
á. que lhe foram apreendidos no bolso do casaco (descritos em 16) dos factos provados):
– um telemóvel da marca NOKIA 105 (...), com o IMEI ...56 e ...55, ligado;
– um talão multibanco com extrato bancário relativo à conta n.º ...56;
– um talão comprovativo de pagamento por cartão bancário da A...; e
– oito pedaços de papeis com manuscritos de diversos nomes e números;
â. no interior do automóvel da marca BMW:
– o telemóvel, da marca ALCATEL, modelo 2053D, com o IMEI ...72 e ...80;
ã. no interior da sua habitação, sita na Rua ..., ..., Paredes:
– um pequeno frasco plástico da marca Alifar contendo no seu interior uma pequena embalagem plástica com 6 g de fenacetina;
– sete caixas de plástico com resíduos de cocaína e heroína;
– um copo plástico de cor branca;
– um frasco de vidro com resíduos de cocaína e heroína;
– um frasco de plástico da marca Vencilab, com resíduos de cocaína e heroína;
– uma lata da marca Lapiara, contendo resíduos de cocaína e heroína;
– uma pequena embalagem plástica contendo diversos tipos de comprimidos;
– um frasco de plástico intacto de bicarbonato de sódio;
– uma embalagem de 500,712 g de creatina da marca Aptonia;
– três tesouras, com cabos plásticos de cor verde, preta e laranja com resíduos de cocaína e heroína;
– um x-ato com resíduos de cocaína e heroína;
– uma balança digital, com resíduos de cocaína e heroína;
– cinco x-atos transparentes;
– vários rolos de fita adesiva, de vários tamanhos e cores;
– vários rolos de sacos de plástico transparentes;
– uma embalagem de elásticos;
– vários papeis manuscritos alusivos a contas e contactos;
– restos de plásticos, alguns envoltos em fita adesiva castanha; e
– vários recortes de embalagens plásticas transparentes;
ii. Maiores problemas se colocam relativamente aos veículos automóveis.
Já dissemos o que entendíamos relativamente aos bens que, à luz da Lei da Droga, devem ser declarados perdidos a favor do Estado: basta que os mesmos tenham servido à prática do crime (isto é, exista uma relação de instrumentalidade ou funcionalidade do objeto, à realização do crime, sem necessidade de qualquer juízo de “essencialidade” à sua prática), embora temperado por um juízo de proporcionalidade entre a gravidade do ilícito e o efeito da declaração de perda.
Ora, mostra-se provado que o arguido utilizava os veículos Mercedes..., modelo ..., de cor ..., de matrícula ..-..-IN, o BMW, modelo ..., de cor ... de matrícula ..-..-QQ, o Renault, modelo ..., de cor preta, de matrícula ..-..-VJ e o Nissan, modelo ..., de cor branca, de matrícula ..-..-QV (cf. o descrito em 11) dos factos provados).
á. Olhando, então, para o primeiro critério apontado para a declaração de perda, crê-se que nenhuma dúvida subsiste de que os factos provados apontam para que estes veículos tenham sido efetivamente utilizados pelo arguido AA na prática dos crimes, sendo certo que a atividade de tráfico desenvolveu-se numa área geográfica alargada, seja para se abastecer, seja para distribuir o estupefaciente (cf. especialmente o descrito em 5) a 12) dos factos provados).
Assim, considerando este enquadramento factual, teremos então de concluir que estes automóveis apreendidos efetivamente serviram à prática do crime e, olhando exclusivamente o teor do artigo 35.º, n.º 1, da Lei da Droga, deverão ser declarados perdidos a favor do Estado.
â. Importa, agora, aferir da proporcionalidade da declaração de perda a favor do Estado. Relembre-se que a atividade de tráfico desenvolvida pelo arguido AA se prolongou por 3 anos, socorrendo-se de 4 veículos automóveis — um deles apreendido e três arrestados, sendo que a dois deles (o ... de matrícula ..-..-IN e o Nissan de matrícula ..-..-QV) foi efetuada a efetiva apreensão (e não o mero registo do arresto…) quando se encontravam na residência de AA e este tinha cancelado as respetivas matrículas quando se encontravam em bom estado de conservação (cf. o descrito em 28) a 30) dos factos provados) — devendo assinalar-se que desenvolvia o tráfico de estupefacientes (cocaína e heroína) por uma área que deveremos considerar alargada (região do Vale do Sousa, Peso da Régua, Resende e Cinfães), vendendo a várias pessoas e obtendo um rendimento superior a 86.000€.
Perante estes dados, não se vê que seja desproporcional a declaração de perda de um veículo automóvel.
ã. Todavia, deve aqui ter-se presente que se a utilização do veículo automóvel se mostrava necessária à realização da atividade de tráfico que o mesmo desenvolvia, deve também reconhecer-se que a utilização dos quatro veículos se mostra ocasional. Dito de outro modo: reconhecendo-se que o arguido AA efetivamente utilizava os quatro veículos referidos em 11) dos factos provados, a verdade é que a atividade delituosa se realizaria apenas com a utilização de um veículo, já que, ressalta dos factos provados, apenas o arguido conduzia os aludidos veículos e isso ocorria em cada um dos veículos de cada vez.
Assim sendo — e ponderando que o juízo de proporcionalidade também, deve atender à contribuição dos bens para a realização do ilícito, embora dispensando-se qualquer juízo de essencialidade - entende-se que surge como desproporcional a declaração de perda de todos os veículos ao arguido AA.
Olhando-se os factos provados, não se lobriga qualquer particular critério associado à atividade delituosa que permita “escolher” qual dos veículos deve ser declarado perdido a favor do Estado, nomeadamente, uma maior utilização de um dos veículos no tráfico. Sendo certo, deve aqui deixar-se bem claro, que os factos provados permitem afirmar que não haverá qualquer juízo de desproporcionalidade qualquer que seja o veículo utilizado pelo arguido no tráfico.
Em todo o caso, estão “habilitados” à perda quatro veículos automóveis, sendo que um deles foi apreendido e os outros estão arrestados (sendo que só dois deles efetivamente colocados na disponibilidade fáctica do poder público…), entende-se que deve ser declarado perdido a favor do Estado o veículo apreendido, a saber, o BMW modelo ..., de matrícula ..-..-QQ.
ä. Os demais veículos continuarão arrestados até que se mostrem pagas as quantias que vão ser declaradas perdidas a favor do Estado a título de vantagem obtida pelo arguido AA com a sua atividade delituosa.”
No essencial perfilhamos a posição defendida no acórdão a quo.
Resultou provada a seguinte factualidade:
«5) Em data concretamente não apurada, mas situada em setembro de 2018 e até 27 de novembro de 2021, data em que foi detido, o arguido AA, sem que para tal tivesse qualquer autorização legal, administrativa ou médica para o efeito, dedicou-se à aquisição, venda e cedência de produtos estupefacientes, designadamente heroína e cocaína, a terceiros residentes na região do Vale do Sousa, Peso da Régua, Resende e Cinfães;
6) Para o efeito, o arguido abastecia-se previamente de estupefaciente em vários locais, designadamente e desde meados de novembro de 2021 a um indivíduo de nacionalidade espanhola e nesse país residente chamado EE, encontrando-se com este indivíduo em diversos locais;
7) Assim, no âmbito do descrito em 6) e no dia 17 de novembro de 2021 cerca das 14.50 horas, após contactos telefónicos entre ambos estabelecidos no dia anterior e nesse dia, o arguido AA abasteceu-se de produto estupefaciente de natureza concretamente não apurada no Parque de estacionamento do estabelecimento denominado “Café Snack Bar ...”, sito em ..., concelho de Ponte de Lima, junto de EE;
8) Depois de se abastecer e para que o mesmo não fosse detetado por agentes de investigação criminal ou por terceiros, o arguido AA dissimulava e escondia o estupefaciente em diversos locais, nomeadamente em terrenos baldios, o que aconteceu, entre outras, no dia 8 de julho de 2021, pelas 9.33 horas e pelas 16.05 horas, num descampado defronte à confeitaria denominada “C...”, sita na Avenida ..., em ...;
9) Para vender e ceder o estupefaciente, o próprio arguido AA deslocava-se para diversos locais, tais como, entre outros, a zona da Rotunda de acesso à Autoestrada n.º ..., no Marco de Canaveses, a zona entre ... (Amarante) e Mesão Frio ou ... (na freguesia ..., Peso da Régua) e, ainda, junto da saída de ..., mais próximo da sua casa e, inclusivamente, junto das residências dos clientes;
10) Para contactar com os seus clientes, o arguido AA fazia uso do seu telemóvel, onde operava com vários números, nomeadamente o n.º ...42, o n.º ...02, o n.º ...26, o n.º ...08, o n.º ...62, o n.º ...39, o n.º ...50, o n.º ...92, o n.º ...54, o n.º ...96, o n.º ...94, o n.º ...15, ...68, o n.º...02 e o n.º ...89, que ia mudando com muita frequência, para dificultar a detenção e investigação das suas atividades pelas entidades policiais;
11) Além disso, na aludida atividade, o arguido AA utilizava vários veículos automóveis, designadamente:
– Mercedes..., modelo ..., de cor ..., de matrícula ..-..-IN;
– BMW, modelo ..., de cor ... de matrícula ..-..-QQ;
– Renault, modelo ..., de cor preta, de matrícula ..-..-VJ; e
– Nissan, modelo ..., de cor branca, de matrícula ..-..-QV;
12) Neste circunstancialismo e no arco temporal referido em 5) dos factos provados, o arguido AA vendeu ou cedeu estupefaciente a várias pessoas, designadamente:………
16) Ainda no dia 27 de novembro de 2021, o arguido AA detinha os seguintes objetos e dinheiro que lhe foram apreendidos:
………………
ii. o veículo automóvel da marca BMW, modelo ..., de matrícula ..-..-QQ, que se encontrava estacionado próximo do café restaurante B..., sito na Estrada Nacional n.º ..., em ..., Paredes;
iii. no interior do veículo que também lhe foi apreendido, da o telemóvel, da marca ALCATEL, modelo 2053D, com o IMEI ...72 e ...80, igualmente ligado;………
20) O arguido AA conhecia a natureza e características das substâncias estupefacientes que adquiria, guardava, cedia e vendia a terceiros, sabendo tratar-se de heroína e cocaína, estando ciente de que a sua aquisição, detenção, cedência ou venda a terceiros lhe estava vedada por lei;
21) Sabia ainda que não tinha qualquer autorização legal, administrativa ou médica para adquirir, guardar, ceder ou vender tais substâncias;
22) Todavia, conhecendo os efeitos nefastos na saúde humana dos produtos estupefacientes adquiridos, detidos, vendidos ou por qualquer forma cedidos, o arguido agiu nos termos descritos, adquirindo, guardando, cedendo e vendendo heroína e cocaína, o que representou, quis e conseguiu;
23) Em todos os sobreditos momentos, o arguido AA atuou livre, voluntária e conscientemente, sabendo do caráter ilícito e reprovável das suas condutas...»
Resulta dos factos provados que o arguido utilizava, no exercício da sua atividade de tráfico de estupefacientes, os veículos Mercedes..., modelo ..., de cor ..., de matrícula ..-..-IN, o BMW, modelo ..., de cor ... de matrícula ..-..-QQ, o Renault, modelo ..., de cor preta, de matrícula ..-..-VJ e o Nissan, modelo ..., de cor …, de matrícula ..-..-QV.
Resulta, ainda, que a atividade de tráfico se desenvolvia numa área territorial relativamente alargada – região do Vale do Sousa, Peso da Régua, Resende e Cinfães, e que tal lhe trouxe um rendimento superior a 86.000,00€.
Entende-se, a exemplo do douto acórdão que à luz da Lei da Droga para a declaração de perda a favor do Estado basta que os mesmos tenham servido à prática do crime (isto é, que exista uma relação de instrumentalidade ou funcionalidade do objeto, à realização do crime, sem necessidade de qualquer juízo de essencialidade à sua prática), embora temperado por um juízo de proporcionalidade entre a gravidade do ilícito e o efeito da declaração de perda.
Mas ainda que se entenda que terá que ficar demonstrada a essencialidade, não vemos de que forma se pode defender que tal não era essencial à sua deslocação em tal extensão territorial, lembrando, ainda, que se deu como provado que o arguido se deslocou, pelo menos uma vez a Ponte de Lima para uma aquisição de estupefaciente a EE. Não se vê de que forma, utilizando transportes públicos, de boleia ou deslocando-se a pé, cobriria tamanha distância.
Sufragamos, do mesmo modo, o entendimento de que seria desproporcional a declaração de perda de todos aqueles veículos automóveis, pelo que não surge como desproporcional a declaração de perda daquele veículo específico.
Como afirma o Sr. PGA “é impensável e inexequível que (num período alargado de tempo) o arguido não tenha adquirido, escondido e vendido em diversas localidades distanciadas por centenas de quilómetros as substancias estupefacientes sem os imprescindíveis préstimos dos veículos automóveis que utilizou, pois demonstram as regras da experiência comum que estando o país servido de uma rede rodoviária que permite a fácil ligação entre Portugal e Espanha e a fácil deslocação dentro das regiões do Minho e Douro Litoral o arguido não tenha recorrido a essas vias de comunicação utilizando aqueles veículos automóveis, designadamente o BMW. Também é impensável e quase anedótico puder conjecturar que o arguido se deslocou de transportes públicos ou pelo seu pé para o exercício dessa actividade.
Este facto, ao classificar o recorrente como traficante de droga e ao nomear que utilizou diversas viaturas nessa atividade, onde se incluiu o BMW (que foi apreendido), juntamente com outros e ao dar como assente que efetuou diversas viagens e estendia a sua atividade por uma área geográfica considerável durante um largo período de tempo, também comporta necessariamente em si o juízo de que esse veículo se revelou essencial e instrumental para a prática do crime.
Aliás, no Acórdão recorrido deixou-se escrito:
«….Ora, mostra-se provado que o arguido utilizava os veículos Mercedes..., modelo ..., de cor ..., de matrícula ..-..-IN, o BMW, modelo ..., de cor ... de matrícula ..-..-QQ, o Renault, modelo ..., de cor preta, de matrícula ..-..-VJ e o Nissan, modelo ..., de cor branca, de matrícula ..-..-QV (cf. o descrito em 11) dos factos provados).
á. Olhando, então, para o primeiro critério apontado para a declaração de perda, crê-se que nenhuma dúvida subsiste de que os factos provados apontam para que estes veículos tenham sido efetivamente utilizados pelo arguido AA na prática dos crimes, sendo certo que a atividade de tráfico desenvolveu-se numa área geográfica alargada, seja para se abastecer, seja para distribuir o estupefaciente (cf. especialmente o descrito em 5) a 12) dos factos provados).
Assim, considerando este enquadramento factual, teremos então de concluir que estes automóveis apreendidos efetivamente serviram à prática do crime e, olhando exclusivamente o teor do artigo 35.º, n.º 1, da Lei da Droga, deverão ser declarados perdidos a favor do Estado…».
Porém, considerando desproporcional e excessiva a declaração de perda dos 4 veículos e ponderando que os factos provados permitiam afirmar que não haveria qualquer juízo de desproporcionalidade qualquer que fosse o veículo utilizado pelo arguido no tráfico, o tribunal recorrido declarou perdido a favor do Estado o veiculo BMW, face à paridade e relação de equivalência que este possuía com os demais veículos, uma vez que todos eles foram instrumentais na atividade delituosa.
Assim, a decisão do Tribunal não se afigura contrária às regras da lógica e experiência comum pois estribou a sua convicção na globalidade da prova produzida, apreciando-a segundo as regras de experiência comum e sua livre convicção, explicando de forma clara e lógico-dedutiva os motivos pelos quais entendeu estarem provados os factos já enumerados, conforme podemos constatar da leitura do douto acórdão, pelo que não se vislumbra o vício invocado pelo recorrente.

Assim, também aqui se julga recurso improcedente.

VALORAÇÃO DOS AVERBAMENTOS DO C.R.C. - CERTIFICADO DO REGISTO CRIMINAL OU DOS ANTECEDENTES JUDICIÁRIOS.

Alega ainda o recorrente que se encontra reabilitado em termos e para efeitos de valoração dos antecedentes criminais e o tribunal recorrido não podia ter valorado as suas anteriores condenações, muito antigas ou temporalmente distantes.
Com efeito, em defesa da sua dama alegou ipsis verbis:
«89. Por fim, não se conforma ainda o recorrente com a medida da pena, por considerar a mesma excessiva e desproporcional, não tendo atendido a todas as circunstâncias a seu favor e em seu desfavor valorou excessivamente antecedentes criminais com mais de três décadas, considerando prova proibida por contrária à lei 37/2015 de 05 de maio.
90. A Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio no seu artigo 11.º impõe o cancelamento do registo criminal pelo decorrer do tempo. Pelo que ao tribunal a quo estava vedado conhecer e valor registos tão antigos».
Não se verifica uma unanimidade de opiniões sobre os efeitos resultantes da valoração dos averbamentos constantes dos C.R.C. - Certificado do Registo Criminal ou dos Antecedentes Judiciários que se encontrem ou estejam caducos.
Com efeito, estabelecendo a lei o cancelamento dos registos criminais e prazos perentórios para o efeito, à primeira vista o Tribunal não pode valorar algumas das condenações que por imperativo legal já não deviam constar do certificado do registo criminal.
O tribunal “a quo” somente poderia eventualmente valorar os antecedentes criminais constantes do certificado de registo criminal cujo cancelamento ainda não devia ter ocorrido.
Consequentemente, por se tratar de uma verdadeira proibição de prova, está o Tribunal impedido de ter em conta as referidas condenações, pelo que tais factos devem ser retirados dos factos provados.
Em favor alinha-se, entre outros, os seguintes arestos:
Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 11/05/2021 in www.dgsi.pt:
«I - O decurso de certo tempo, sem interferência de outras condenações, faz cessar a vigência das decisões inscritas no registo criminal, tal significando que as mesmas deixam de poder ser consideradas contra o condenado, independentemente de se ter ou não procedido à realização material do seu cancelamento.
II - Decorridos os prazos previstos no artigo 11.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, contados nos termos ali expressamente referidos, o condenado tem de ser considerado integralmente reabilitado e os seus antecedentes criminais, ainda que permaneçam (indevidamente) visíveis (acessíveis) no registo criminal, deverão considerar-se inexistentes, na medida em que deles se não poderá retirar nenhum efeito»
Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 24/01/2023 on www.dgsi.pt:
«I. O decurso de certo tempo releva para que se possam ter em conta os antecedentes criminais registado. Decorrido o tempo previsto na lei sem interferência de outras condenações, as decisões inscritas cessam a sua vigência por caducidade.
II. Decorridos que sejam os prazos previstos na lei, contados nos termos ali expressamente referidos, o condenado tem de ser considerado integralmente reabilitado e os seus antecedentes criminais, ainda que permaneçam (indevidamente) visíveis (acessíveis) no registo criminal, independentemente de se ter ou não procedido à realização material do seu cancelamento, deverão considerar-se inexistentes, na medida em que deles se não poderá retirar nenhum efeito».
Acórdão do T.R.C. - Tribunal da Relação de Coimbra de 02/03/2022 in www.dgsi.pt:
«I – A consideração de um certificado de registo criminal que contemple decisões que, nos termos legais, dele já não deveriam constar, constitui uma verdadeira proibição de prova.
II – Verificando-se que o tribunal violou essa proibição de valoração de prova, daí resultará a necessidade de repensar e, eventualmente, reformular, quer a escolha quer a medida da pena em que o arguido foi condenado, expurgando da respectiva fundamentação todas as decisões inscritas no certificado de registo criminal cujos prazos de vigência já tenham cessado»
Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 24/01/2023 in www.dgsi.pt :
«I. O decurso de certo tempo releva para que se possam ter em conta os antecedentes criminais registado. Decorrido o tempo previsto na lei sem interferência de outras condenações, as decisões inscritas cessam a sua vigência por caducidade.
II. Decorridos que sejam os prazos previstos na lei, contados nos termos ali expressamente referidos, o condenado tem de ser considerado integralmente reabilitado e os seus antecedentes criminais, ainda que permaneçam (indevidamente) visíveis (acessíveis) no registo criminal, independentemente de se ter ou não procedido à realização material do seu cancelamento, deverão considerar-se inexistentes, na medida em que deles se não poderá retirar nenhum efeito».
Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 10/01/2023 in www.dgsi.pt :
«Pese embora na sentença do processo sumário a enunciação dos factos provados e não provados se baste com a sua indicação “sumária”, a narração factual acolhida na decisão recorrida é manifestamente insuficiente, desde logo por não revelar se as condenações em causa (que provadas foram dadas com alicerce no certificado do registo criminal do arguido junto aos autos) deveriam ou não deste certificado constar, mormente por legalmente se impor o seu cancelamento (nos termos do artigo 11º, da Lei nº 37/2015, de 05/05) e, neste caso, estar vedado terem influência na determinação da medida da pena, não se podendo delas retirar qualquer efeito – cfr., por todos, o Ac. R. de Évora de 27/09/2022, Proc. nº 570/20.7GBLLE.E1, que pode ser lido em www.dgsi.pt.
Importa em relação a cada condenação a menção dos elementos relativos ao crime ou crimes, data de cometimento, pena aplicada, datas da respetiva condenação e do trânsito em julgado da sentença ou acórdão, por fundamental para a dosimetria da pena.
Porém, a não descrição destes elementos não implica a nulidade da pena acessória aplicada, como almeja o recorrente, mas a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a), in fine, cumprindo ao julgador da 1ª instância a reparação desta enfermidade
Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 21/09/2021 in www.dgsi.pt:
«Independentemente de constarem da acusação, os antecedentes criminais, por princípio e por força do artigo 71.º, n.º 2, alínea e) do CP, deverão ser conduzidos aos factos provados, por tal matéria interessar à boa decisão da causa. Não o poderão ser, contudo, quando as penas já tiverem caducado, pois nesse caso as decisões inscritas no registo criminal cessam a sua vigência, ou seja, são dele apagadas como se nunca tivessem existido.
Por outras palavras, a lei ordena o cancelamento do registo em certas circunstâncias e quando estas se verifiquem, o arguido tem de ser considerado reabilitado, encontrando-se vedado ao Tribunal a quo valorar esses antecedentes criminais».
Acórdão do T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto de 10/02/2021 divulgado via S.I.M.P. pela P.G.R.P.:
«Não podem ser valorados para efeitos da escolha e determinação da medida da pena os registos de decisões condenatórias constantes do certificado de registo criminal que, nos termos do artigo 11º, n 1 – a), b) e g) , nº 2 e nº 3 da Lei 37/2015, de 5 de Maio, devam considerar-se definitivamente cancelados».
Acórdão do T.R.C. - Tribunal da Relação de Coimbra de 13/09/2017 in www.dgsi.pt:
«1 – O cancelamento dos registos é uma imposição legal. A lei (n.º 57/1998 e, depois, a n.º 37/2015) veio a ser inequívoca ao determinar o cancelamento dos registos criminais por decurso de determinados prazos sobre a data da extinção das penas sem que o arguido volte a delinquir.
2 – O CRC visa dar conhecimento ao tribunal e informação ao processo, sobre o passado criminal do arguido, e se a lei ordena o cancelamento do registo, nessas circunstâncias o arguido tem de ser considerado reabilitado.
3 – Um certificado do registo criminal que certifique decisões que, nos termos legais, dele já não deveriam constar, implica uma verdadeira proibição de valoração de prova, estando vedado ao Tribunal ter em conta tais decisões.
4 – Apesar de o cancelamento não ter sido averbado, o mesmo deve produzir efeitos ipso facto, ou seja, desde a extinção efetiva da pena, independentemente do seu registo/averbamento no CRC.».
Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 10/05/2016 in www.dgsi.pt:
I. A lei (n.º 57/1998 e, depois, a n.º 37/2015) é inequívoca ao determinar o cancelamento dos registos criminais por decurso de determinados prazos sobre a data da extinção das penas sem que o arguido tenha delinquido nesses prazos.
II. O “cancelamento dos registos” significa que as sentenças canceladas se consideram extintas no plano jurídico, não se lhes ligando quaisquer efeitos, designadamente quanto à medida da pena.
III. Uma vez verificada a hipótese determina o cancelamento, o registo da condenação deixa de poder ser considerado contra o arguido, assim sucedendo independentemente da circunstância de se ter ou não procedido prontamente à real efetivação do cancelamento.
IV. O aproveitamento judicial de informação que por inoperância do sistema se mantenha no CRC é ilegal, e viola ainda o princípio constitucional da igualdade, pois permite distinguir um arguido de um outro que, nas mesmas condições, tenha o CRC devidamente “limpo”.
V. Se o CRC visa informar o tribunal do passado criminal do condenado, e se a lei ordenou o cancelamento dos registos, o arguido tem de ser considerado integralmente reabilitado e os seus antecedentes criminais que indevidamente permaneçam “ativos”, são de tratar como inexistentes e de nenhum efeito.
VI. Também ao sistema de registo preside a intenção de restringir a estigmatização social do delinquente e o conteúdo dos certificados de registo criminal limita-se ao que é verdadeiramente essencial ao processo e ao direito penal conhecer».
Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 27/04/2021 in www.dgsi.pt:
«Os factos criminosos, em análise no presente recurso, ocorreram em 20-8-2020 e tendo as penas de multa referentes a processos anteriores consideradas extintas, respectivamente, em 15-6-2012 e 1-8-2014, conforme consta do respectivo CRC, verificam-se os pressupostos da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º da citada Lei da Identificação Criminal, pelo que tais decisões já cessaram a sua vigência no registo criminal.
As mesmas devem manter-se em ficheiro informático próprio, distinto do CRC, durante um período de três anos, mas apenas para os efeitos previstos no mencionado n.º 6, do art.º 11.º (reposição de registo indevidamente cancelado ou retirado), e findo aquele prazo máximo são canceladas de forma irrevogável. É, pois, óbvio, que os aludidos antecedentes criminais, consignados, ainda (apesar do decurso do prazo de cinco anos), no CRC, não poderem ser consideradas.
Um certificado do registo criminal que certifique decisões que, nos termos legais, dele já não deveriam constar, implica uma verdadeira proibição de valoração de prova, estando vedado ao Tribunal ter em conta tais decisões».
Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 27/04/2021 in www.dgsi.pt:
«Após o cancelamento definitivo de uma condenação no registo criminal, não pode tal condenação ser considerada em processo criminal para nenhum efeito».
Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 21/09/2021 in www.dgsi.pt:
«Independentemente de constarem da acusação, os antecedentes criminais, por princípio e por força do artigo 71.º, n.º 2, alínea e) do CP, deverão ser conduzidos aos factos provados, por tal matéria interessar à boa decisão da causa. Não o poderão ser, contudo, quando as penas já tiverem caducado, pois nesse caso as decisões inscritas no registo criminal cessam a sua vigência, ou seja, são dele apagadas como se nunca tivessem existido.
Por outras palavras, a lei ordena o cancelamento do registo em certas circunstâncias e quando estas se verifiquem, o arguido tem de ser considerado reabilitado, encontrando-se vedado ao Tribunal a quo valorar esses antecedentes criminais».
Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 21/02/2017 in www.dgsi.pt:
«1. O cancelamento dos registos no CRC é uma imposição legal.
2. Uma vez verificada a hipótese contemplada na previsão da norma que determina o cancelamento, o registo da condenação deixa de poder ser considerado, a qualquer título, contra o arguido, assim sucedendo independentemente da circunstância de se ter ou não procedido prontamente à real efectivação desse cancelamento.
3. Qualquer aproveitamento judicial de uma informação que só por anomalias do sistema se mantém no CRC, além de ilegal, viola o princípio constitucional da igualdade ao permitir distinguir esse arguido de um outro cujo CRC, nas mesmas condições, se encontra devidamente “limpo”.
4. Se o CRC visa dar conhecimento ao tribunal (informação ao processo) sobre o passado criminal do arguido, e se a lei ordena o cancelamento do registo, o arguido tem de ser considerado, para todos os efeitos, inteiramente reabilitado».
Acórdão do T.R.G. - Tribunal da Relação de Guimarães de 11/03/2019 in www.dgsi.pt:
«I) O certificado de registo criminal está sujeito aos princípios gerais do direito processual penal onde o cancelamento para fins judiciais constitui verdadeira proibição de prova.
II) Verificando-se uma situação como a dos autos em que decisões inscritas no CRC haviam cessado a sua vigência por terem caducado, uma vez que nos cinco anos posteriores à extinção daquelas penas não ocorreu qualquer outra condenação, impõe-se considerar que o registo dessas condenações não produza quaisquer efeitos designadamente quanto à medida da concreta pena a aplicar».
Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 24/09/2020 in www.dgsi.pt:
«I – Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provadas condenações constantes do Certificado do Registo Criminal, junto aos autos, que dele já não deviam constar».
Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 23/03/2021 in www.dgsi.pt:
«1 - Dando-se como provado que o arguido regista antecedentes criminais, no caso de as penas em que foi condenado terem sido declaradas extintas, a omissão, na sentença, das datas da extinção de tais penas, por se tratar de um elemento decisivo para aquilatar se as condenações anteriormente sofridas pelo arguido podem ou não ser consideradas e valoradas, atento o disposto no artigo 11º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, integra o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a), do CPP, que é de conhecimento oficioso e pode ser sanado pelo Tribunal da Relação, dado que dispõe dos elementos necessários para o efeito (cf. artigos 426º, n.º 1 e 431º, n.º 1, al. a), ambos do CPP), na medida em que as datas da extinção daquelas penas constam do CRC do arguido junto aos autos.
2 - A reabilitação legal ou de direito do ex-condenado decorrente do cancelamento definitivo do registo criminal, nos termos previstos no artigo 11º da Lei n.º 37/2015, tem subjacente o critério da prevenção especial e a ressocialização do individuo, a qual se deduz do «decurso de um longo espaço de tempo da vida em liberdade sem praticar novos crimes».
Assim sendo, estando em causa num determinado processo a prática de crime no decurso do período de cinco anos subsequentes à extinção de uma pena de multa por que o arguido foi condenado noutro processo, não pode operar o cancelamento definitivo dessa condenação, nos termos previstos no artigo 11º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 37/2015, sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP.
A previsão do n.º 6 do artigo 11º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio – que dispõe que «As decisões cuja vigência haja cessado são mantidas em ficheiro informático próprio durante um período máximo de três anos, o qual apenas pode ser acedido pelos serviços de identificação criminal para efeito de reposição de registo indevidamente cancelado ou retirado, e findo aquele prazo máximo são canceladas de forma irrevogável» – tem em vista acautelar situações como a supra referida.
3 - Ao dar como provada a condenação sofrida pelo arguido e ao valorar o respetivo CRC, na parte referente a essa condenação, verificando-se o fundamento que impõe, obrigatoriamente, a cessação da vigência no registo criminal da inscrição dessa decisão, nos termos previstos no artigo 11º, n.º 1, alíneas b) e g), da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, o tribunal a quo valorou prova que lhe estava vedado valorar, em violação do disposto na citada norma legal.
4 - Ainda que se reconheça poderem existir situações em que a incorreta valoração do CRC poderá integrar o erro notório na apreciação da prova, entendemos que a indevida valoração do CRC relativamente a decisões condenatórias que dele constam quando, por imposição legal, dele já não deviam constar, não integra o vício do erro notório na apreciação da prova, antes implica uma proibição de prova. Com efeito, sendo o cancelamento definitivo da inscrição das decisões condenatórias no registo criminal, pelo decurso dos prazos previstos no artigo 11º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, sobre a data da extinção da pena, sem que o arguido volte a delinquir, uma imposição legal, verificados que sejam esses pressupostos e ainda que não tenha havido lugar ao efetivo cancelamento daquelas decisões condenatórias, continuando as mesmas a constar, indevidamente, do CRC, tal acarreta uma verdadeira proibição de valoração de prova, estando vedado ao Tribunal ter em conta tais decisões condenatórias.».
Acórdão do T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto de 22/06/2022 in www.dgsi.pt:
«O artº 11º da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio ao impor como condição de cancelamento do CRC que “entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;”, e não exigindo que não tenha ocorrido a prática de novo crime, abrange na sua previsão a efetivação de cúmulo jurídico das penas parcelares que transforma a condenação em pena única, pois apenas esta pena pode vir a ser declarada cumprida ou extinta e não qualquer uma das penas parcelares, e é a partir da data desse cumprimento da pena que se conta o prazo de 5, 7 ou 10 anos para o cancelamento do registo criminal».
Ora, o cancelamento definitivo do registo criminal ocorre após o decurso do prazo, ininterrupto, previsto no artigo 11º da Lei nº 37/2015, de 5 de maio (5, 7 ou 10 anos), conforme a medida concreta da pena pelo qual o cidadão foi condenado se, entretanto, não for novamente condenado por crime de qualquer natureza.
Artigo 11.º
Cancelamento definitivo
1 - As decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal nos seguintes prazos: a) Decisões que tenham aplicado pena de prisão ou medida de segurança, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena ou medida de segurança, se a sua duração tiver sido inferior a 5 anos, entre 5 e 8 anos ou superior a 8 anos, respetivamente, e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;
No Acórdão recorrido foi dado como provado que o recorrente foi condenado:
«i. No âmbito do processo de querela n.º 1414/82, da 2.ª Secção do 1.ª Juízo do Tribunal de Vila Nova de Famalicão, por decisão de 26.11.1982, pela prática de:
– um crime de furto, previsto e punido pelo ao artigo 310.º, n.º 1 do Código Penal ao tempo em vigor, na pena de 21 meses de prisão; e
– um crime de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 3.º, n.º 1, al. d) e 4.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão;
ii. No âmbito do processo correcional n.º 4/84, da 2.ª Secção do 2.ª Juízo do Tribunal de Paços de Ferreira, por decisão de 18.1.1985, pela prática de um crime de furto de veículo, previsto e punido pelo artigo 1.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 44 939, de 27.3.1967, na pena de 6 meses de prisão e 45 dias de multa a taxa diária de 250$00;
iii. No âmbito do processo correcional n.º 111/85, da 1.ª Secção do 2.º Juízo do Tribunal de Santo Tirso, por decisão de 29.1.1986, pela prática de um crime de introdução em casa alheia, previsto e punido pelo artigo 380.º, § 1.º, do Código Penal de 1886, na pena de 6 meses de prisão, substituídos por multa a taxa diária de 200$00;
iv. No âmbito do processo de querela da 1.ª Secção do 1.º Juízo do Tribunal de Santo Tirso, por decisão de 26.11.1986, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 296.º e 297.º, n.º 1, do Código Penal então em vigor, na pena de 15 meses de prisão;
v. No âmbito do processo comum coletivo n.º 84/95, do Tribunal de Círculo de Paredes, por decisão de 26.10.1995, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 18 meses de prisão;
vi. No âmbito do processo comum coletivo n.º 34/96, do Tribunal de Círculo de Paredes, por decisão de 10.10.1996, pela prática, em 1994 e 1995, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 7 anos de prisão;
vii. No âmbito do processo comum coletivo n.º 81/02.2TBMTS, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Matosinhos, por decisão de 29.4.2003 transitada em julgado a 29.3.2004, pela prática a 28.2.1999, como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. h), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 8 anos de prisão…….
3) O arguido AA sofreu os seguintes períodos de privação da liberdade
– entre 10 de maio de 1982 e 17 de dezembro de 1982;
– entre 30 de setembro de 1995 e 30 de setembro de 2008, à ordem do processo comum coletivo n.º 34/96, do Tribunal de Círculo de Paredes, em cumprimento da pena única de 8 anos de prisão englobando as penas em que foi condenado nesse processo e no processo comum coletivo n.º 84/95, do Tribunal de Círculo de Paredes; ……».
A reabilitação legal ou de direito do condenado decorrente do cancelamento definitivo do registo criminal, nos termos previstos no artigo 11º da Lei n.º 37/2015, tem subjacente o critério da prevenção especial e a ressocialização do individuo, a qual se deduz do decurso de um longo espaço de tempo da vida em liberdade sem praticar novos crimes.
Posto isto, revertendo ao caso concreto desde logo se pode afirmar que relativamente aos processos nº 1414/82, com decisão de 26.11.82 e extinção em 26.09.05, proc. 4/84, com decisão em 18.01.85, extinção por amnistia imediata, proc. 111/85, com decisão em 29.01.86 e extinção em 10.06.86, proc. 977, com decisão em 26.11.86, imediatamente perdoada e com extinção em 26.11.86, estando todos interligados na medida em que entre a extinção e a data da condenação não haviam decorrido mais de 05 anos, atendendo a que se tratava em cada um deles de penas de prisão inferiores a 05 anos, viram estes processos interrompida a cadeia quando entre o proc. 977 e o processo subsequente nº 84/95, com decisão de condenação em 26.10.95, decorreram mais de 05 anos entre a data da extinção e a data da condenação transitada em julgado do segundo
Assim sendo, todos os registos das penas acima descritas até ao proc. 977 devem considerar-se definitivamente cancelados e não deveriam constar do C.R.C. - Certificado do Registo Criminal ou dos Antecedentes Judiciários do arguido e deverão ser banidos dos factos assentes, por serem prova proibida.

Desta forma ao dar como provadas as condenações supradescritas e ao possibilitar a valoração destes antecedentes nas partes referentes a essas condenações, verificando-se o fundamento que impõe, obrigatoriamente, a cessação da vigência nos registos criminais da inscrição dessas decisões, nos termos previstos no artigo 11º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, o tribunal a quo colocou-se em posição de valorar prova que lhe estava vedado valorar, em violação do disposto na citada norma legal.

Este raciocínio já não se aplica aos demais processos.
Efetivamente o proc. 84/85, com decisão e condenação transitada em julgado em 26.10.95, com pena de prisão de 18 meses está dentro do prazo de 05 anos entre a data da condenação e a condenação do proc. 34/96, decisão transitada em julgado em 10.10.96, que fez o cúmulo da pena de 07 anos com a pena do proc. 84/95, fixando a pena de prisão única não suspensa de 08 anos. A decisão de cúmulo ocorreu em 20.12.98, o que significa que o prazo da extinção passou a ser de 7 anos.
Donde decorre que a data da extinção da pena terá ocorrido após cumprimento daquela pena, ou seja, pelo menos em outubro de 2004, partindo do pressuposto, versão mais favorável ao arguido, que já estaria em cumprimento de pena a quando da decisão do cúmulo.
Assim sendo entre a decisão do proc. 34/96 e o proc. subsequente n º 81/02, com decisão transitada em julgado em 29.03.04, pena 08 anos de prisão efetiva e data de extinção em 03.09.12, não decorreram mais de 07 anos.
Entre este e o proc. subsequente nº 310/12, com decisão de condenação transitada em julgado em 06.05.13, com prisão efetiva de 06 anos e respetiva data de extinção em 08.08.18, também não decorreram mais de 07 anos.
Finalmente entre este processo e o anterior proc. nº 310/12, também se não conclui que tenham decorrido 07 anos entre a data da extinção e os factos ocorridos neste com decisão e condenação na 1ª instância em 09.12.22.
Portanto, todos estes processos estão em cadeia, sem interrupções pelo decurso do prazo do art. 11º supracitado.
Neste circunspeto o recorrente vem praticando sucessivamente crimes de diferente jaez conforme se pode constatar do seu longo certificado do registo criminal, arredando, em concreto, o preenchimento do pressuposto material contido na disciplina normativa prevista do artigo 11.º n.º 1 alínea a) da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio, consubstanciado na exigência substantiva «desde que entretanto não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza».
Esta abstenção ou omissão criminosa por parte do agente constitui assim um requisito medular que impede a valoração dos antecedentes criminais e harmoniza-se com os pressupostos de ressocialização que estiveram na base da estatuição legal, considerando que a assunção de uma conduta reiterada conforme ao Direito revela por parte do agente uma desnecessidade em considerar a sua vida passada em seu desfavor ao mesmo tempo que também revela um juízo positivo premial por parte do legislador, fazendo jus ao velho proverbio popular «o que lá está já lá vai».
Ora, fácil é de ver que este pressuposto não se verifica no caso concreto relativamente a estes últimos processos, que constituem prova válida e a considerar a título de antecedentes criminais.
Por estas razões procede em parte o recurso com eliminação da als. i., ii., iii. e iv.do ponto A da matéria dada como provada, mas que, como veremos, sem repercussões na ponderação da pena concreta.

Da medida da pena.

Insurge-se o arguido contra a pena de 8 anos de prisão que lhe foi cominada pelo facto de a achar excessiva.
Pugna o arguido pela aplicação de pena não superior a 6 anos.
Importa anotar que a págs. 71 do acórdão, se valoraram parte dos antecedentes criminais do arguido (com exceção do processo nº 84/95 do Tribunal de Círculo de Paredes), levando-se em linha de conta que esteve preso de 30 de Setembro de 1995 a 30 de Setembro de 2008 e de 9 de Agosto de 2012 e 8 de Agosto de 2018, período abrangido pelos antecedentes considerados nesta decisão válidos em termos de prova.
A valoração dos antecedentes criminais incidiu sobretudo nas als. vi., vii. , 2) dos factos assentes, não tendo pesado de forma relevante os demais antecedentes, que não poderiam considerar-se como acima se disse.
Por outro lado, pouco nos resta acrescentar ao decidido no douto acórdão quanto ao carácter grave da culpa, à conexão geográfica alargada, à natureza do estupefaciente (cocaína e heroína), ao modo de desenvolvimento da atividade (vários veículos automóveis, troca constante de telemóveis, utilização de esconderijos difíceis de determinar, o prolongamento da atividade por mais de três anos, e por fim as elevadíssimas exigências de prevenção especial (pelo menos as quatro condenações por tráfico de estupefaciente), sem descurar os 19 anos que o arguido permaneceu recluso, e em que o crime pelo qual aqui foi condenado inicia o seu curso pouco tempo volvido após o cumprimento da pena de prisão (6 anos).
O arguido invoca em seu favor:
- o modo simples de execução e sem nenhuma organização – era o próprio que comprava e vendia diretamente aos consumidores, em quantidades sempre na ordem das 2,5 gramas;
- atuava sozinho e sem auxílio de colaboradores;
- foi-lhe apreendida uma quantidade de cerca de 8 gramas, demonstrativa dos negócios de pequena monta que fazia;
- o arguido tem 69 anos pelo que a sua idade e as suas debilidades de saúde não foram tidas em conta, pelo que uma pena de 8 anos face à esperança média de vida pode significar que o arguido pouco tempo tenha para gozar de liberdade, até podendo falecer em meio prisional;
- não foi considerada a confissão e o arrependimento do arguido.
Tal como já se adiantou, e atendo-nos, somente às condenações pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes:
- no processo comum coletivo n.º 84/95, do Tribunal de Círculo de Paredes, na pena de 18 meses de prisão;
- no processo comum coletivo n.º 34/96, do Tribunal de Círculo de Paredes, na pena de 7 anos de prisão;
- em cúmulo jurídico destes, 8 anos de prisão;
- no processo comum coletivo n.º 81/02.2TBMTS, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Matosinhos, na pena de 8 anos de prisão e - no âmbito do processo comum coletivo n.º 310/12.4JABRG, do 1.º Juízo do Tribunal de Vila Verde, na pena de 6 anos de prisão.
Tendo em conta que o arguido passou mais de um quarto dos seus 69 anos de vida privado da liberdade, pela prática de diversos crimes, fácil será de concluir que nenhuma das anteriores penas serviu ao arguido para arrepiar caminho, o que coloca a fasquia das necessidades de prevenção especial num nível particularmente elevado. Se é certo que se deve levar em conta a sua idade, não é menos acertado considerar que as longas privações de liberdade impunham necessariamente que o arguido na sua atual idade já tivesse enveredado pela via do cumprimento do direito, ainda para mais pouco depois de ter sido colocado em liberdade – o que, aliás, aconteceu repetidamente com as anteriores reclusões.
Quanto à forma de organização apenas se traz à colação o ponto 8 dos factos provados, os 15 números diferentes de telemóvel usados ao longo dos três anos de atividade delituosa (ponto 10) em análise nos presentes autos, os quatro veículos automóveis por si usados (ponto 11) e o facto de fazer da venda de estupefacientes o seu modo de vida. Para além do mais, o arguido que foi condenado pela forma reincidente, e que, ainda assim a pena se ateve aos 8 anos de prisão.
A moldura penal reincidente situava-se entre os 05 anos e 04 meses de prisão e os 12 anos e o tribunal considerou adequada a pena de 09 anos de prisão, que depois reduziu a 08 anos atendendo ao disposto no art 76º, n º1, 2ª parte.
Como se vê não foram essencialmente relevantes para o apuramento da pena concreta as agora eliminadas als. i., ii., iii. e iv. do ponto A da matéria dada como provada.

Para aqui chegar o tribunal a quo explicou corretamente o seu raciocínio e ponderou adequadamente todos os requisitos legais dizendo: “Refira-se, prosseguindo, então, o nosso caminho, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (n.º 1 do artigo 71.º), devendo o tribunal, “na determinação concreta da pena”, atender a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (n.º 2 do dito artigo 71.º).
Lembre-se que o crime de tráfico de estupefacientes é punível com pena de prisão de 4 a 12 anos, nos termos do artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, sendo dentro desta moldura que se deve fixar a pena a aplicar ao arguido.
Pesam, desde logo e muito significativamente contra o arguido AA, as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo de criminalidade (tráfico de estupefacientes), muito frequente e fortemente associado ao sentimento de insegurança, porque ligado ao perigo de degradação da pessoa e a outras manifestações delituosas, causador, por isso, de alarme social a exigir uma reação enérgica para restabelecer a confiança na validade e vigência da norma violada.
Acresce que, apesar de todos os recursos alocados ao combate a este tipo de criminalidade, a análise dos dados associados ao tráfico de estupefacientes (e sem prejuízo dos períodos de maior contenção com a pandemia) mostra um aumento de apreensões de estupefaciente (em 2020: 10 159,6 kg de cocaína e 42,2 kg. de heroína; em 2021: 10 023,1 kg de cocaína e 73,6 kg de heroína) e, ainda, um aumento em 14,8 % no que toca à criminalidade relacionada com o tráfico de estupefacientes.
Em sede de culpa, enquanto juízo de censura dirigido ao agente por se ter determinado a agir em desconformidade com o direito e, por isso, contrariamente ao que seria uma determinação adequada aos valores vigentes e constituintes da sociedade, reveladora da atitude pessoal, interna íntima particularmente indiferente ou de desprezo em relação ao dever-ser jurídico-penal, deve dizer-se que a conduta do arguido é reveladora grande indiferença ou inimizade para com os valores propostos (e até impostos) pela ordem jurídica, já saiu terminou o cumprimento de pena justamente pela prática de crime de tráfico de estupefacientes e mal tinha decorrido um mês e já desenvolvia atividades de tráfico de estupefacientes.
Acresce que agiu sempre com dolo direto — devendo aqui lembrar-se que o dolo, embora não se confunda inteiramente com a culpa, tem elementos que a esse nível relevam enquanto manifestação, no facto, de uma atitude interior de indiferença (ou até desprezo) pelos valores propostos (e impostos) pela ordem jurídica vigente.
Relativamente ao ilícito, são vários os considerandos a atender.
Em primeiro lugar, é de atender que há uma conexão geográfica alargada no que diz respeito à sua atividade, seja ao nível dos fornecimentos, seja na distribuição: veja-se, a este propósito, o descrito em 5) e 6) dos factos provados.
A natureza do estupefaciente (cocaína e heroína) traficada, sua qualidade, bem como a quantidade de pessoas e quantidades que fornecia aos seus clientes — anotando-se que, nalguns casos, seria para revenda — são também fatores a atender.
O modo como desenvolvia a sua atividade, com recurso a vários veículos automóveis, troca constante de telemóveis para confundir as autoridades, assim como a utilização de esconderijos difíceis de determinar, é, também de considerar para efeitos de determinação da medida da pena.
Por fim, terá ainda de se atender, em desfavor de AA, o facto de a sua atividade delituosa se ter prolongado por mais de três anos.
No que diz respeito às exigências de prevenção especial, estas mostram-se elevadíssimas: basta, para o efeito, assinalar que tem várias condenações pela prática de ilícitos criminais que não estão relacionados com o tráfico de estupefacientes e, quanto a estes, tem já quatro condenações, ademais com reclusão, sem que isso lhe mitigasse o desejo de prosseguir com a sua atividade delituosa.
Acresce que — e tal aspeto não pode deixar de ser assinalado nesta sede — o arguido reiniciou a sua atividade criminosa de tráfico de estupefacientes escasso tempo após o cumprir pena de prisão pela prática de crime de tráfico de estupefacientes. Sem que, anote-se, evole dos factos provados no mais pequeno sinal de que tenha tentado sequer uma integração social afastado de práticas delituosas.
Em seu abono, pouco se pode aduzir: apenas o apoio que a sua companheira ainda lhe faculta e o facto de parecer bem integrado em meio prisional (sem registo de infrações) o que, bem vistas as coisas, também pode sinalizar que, afinal, o arguido revela escassas competências para viver em liberdade, ao contrário do que sucede em reclusão…
Tudo sopesado, (sem considerar, ainda, os efeitos da reincidência) o arguido AA deveria ser punido com a pena de 8 anos de prisão.
43. Tendo-se concluído pela verificação dos pressupostos materiais e formais da reincidência, nomeadamente quanto à condenação em pena de prisão efetiva superior a 6 meses, temos de prosseguir com as demais operações de determinação da pena na reincidência.
Assim, e num segundo momento, verificados que estão os pressupostos formais e material da reincidência, “o tribunal vai construir a moldura penal da reincidência, a qual tem como limite máximo o limite máximo previsto pela lei para o respetivo crime e como limite mínimo o limite mínimo legalmente previsto para o tipo elevado de um terço, em razão do desrespeito pela advertência contida na condenação ou condenações anteriores” (Maria João Antunes, Consequências cit., 2013, pág. 53).
No caso concreto, por mera operação aritmética e sabendo-se que o limite mínimo para a pena de prisão no caso do crime de tráfico de estupefacientes, previsto no artigo 21.º, n.º 1, da Lei da Droga é de quatro anos de prisão, este limite agrava-se para 5 anos e 4 meses de prisão.
44. Fixada a moldura penal da reincidência — no caso concreto, sendo o limite mínimo da pena de prisão cinco anos e quatro meses e o máximo de doze anos de prisão — cabe determinar a medida concreta da pena dentro daqueles limites dados pela moldura penal da reincidência.
O modo como se processa esta operação é, no dizer do Professor Jorge de Figueiredo Dias (As Consequências cit., pág. 272) claro: “com total observância dos critérios gerais de [determinação] da medida da pena”.
Por isso, importa levar em conta: “por um lado, que a moldura penal com que agora se trabalha está reduzida — talvez melhor: estreitada — por efeito da elevação do limite mínimo em um terço; por outro lado, que o limite máximo de pena concreta consentido pela culpa poderá ser mais alto, devido à intensidade da censura ao agente de se não ter deixado motivar pela advertência resultante da condenação ou condenações anteriores; finalmente, que as exigências de prevenção se encontrarão muito provavelmente acrescidas — e, na verdade, não só as de prevenção especial, em função de uma maior perigosidade, como as de prevenção geral positiva, em virtude de a estabilização das expetativas comunitárias na validade da norma violada se revelar mais difícil de alcançar” (Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências cit., pág. 272).
De todo o modo, “o fator que, verdadeiramente, ganha relevo autónomo nesta operação de determinação da pena, por referência aos que já relevaram na primeira operação, é o que tem que ver com o grau de desrespeito pela condenação ou condenações anteriores” (Maria João Antunes, Consequências cit., 2013, pág. 53).
Por isso, não se estranha que “o resultado de todas estas considerações conduzirá a que a pena da reincidência seja inevitavelmente mais elevada do que seria se a reincidência se não verificasse” (Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências cit., pág. 272).
45. Voltando, novamente ao caso sub iudice, valem aqui as considerações tecidas em 41., nomeadamente quanto às exigências de prevenção geral presentes no caso dos autos, a culpa, a ilicitude e, também, as exigências de prevenção especial.
Ora, neste particular aspeto, evola dos factos provados que AA revela um elevado grau de desrespeito pelas condenações anteriores: são, considerando apenas as condenações relativas a tráfico de estupefacientes relevantes para efeitos da reincidência, 3 condenações pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes, um deles agravado, em penas de prisão que elevadas: 7, 8 e 6 anos de prisão.
Tudo, portanto, aponta, no sentido de serem muito elevadas as exigências de prevenção especial.
Assim sendo, é adequado condenar o arguido AA na pena de 9 anos de prisão.
46. Falta, ainda, verificar se está respeitado o limite imposto na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 76.º à agravação da pena por força da reincidência.
Com efeito, o artigo 76.º, n.º 1, 2.ª parte estatui que “a agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores”.
Trata-se de um limite “absoluto e externo” imposto pela ideia de proporcionalidade, justificada pelo “desejo compreensível de evitar que uma condenação anterior numa pena possa, por efeito da reincidência, ir a ter a consequência de agravar desproporcionadamente a medida da pena pelo crime anterior” e que até poderá levar a que a medida concreta do reincidente fique aquém do limite mínimo da moldura penal da reincidência, o que, por favorecer o agente reincidente, é permitido (Jorge de Figueiredo Dias, As consequências cit., págs. 273 e 274; em sentido idêntico quanto ao modo de funcionamento deste limite, e advertindo que existindo uma circunstância modificativa atenuante da pena, como a tentativa, dever esta funcionar em primeiro lugar e, só depois, a reincidência).
No caso em apreço, sendo aplicada ao arguido a pena de 8 anos de prisão sem considerar a reincidência e 9 anos de prisão considerando-a, é por demais evidente que aquele limite absoluto não foi ultrapassado.
47. Conclui-se, assim, que o arguido AA vai condenado pela prática, como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 8 anos de prisão.”
Embora o tribunal devesse ter valorado a favor a confissão parcial dos factos sem a intensidade comprovada dos autos conforme resulta da motivação, a mesma não foi essencial ao apuramento dos factos, a não ser quanto ao inicio da atividade, atendendo ao conjunto das provas angariadas no processo, a começar pelos depoimentos das autoridades policiais, registos de vigilância com reportagens fotográficas, material apreendido e a acabar nas escutas e demais prova mencionada na decisão a quo.
De todo o modo, ainda que a considerasse não tinha a mesma força suficiente para reduzir a pena concreta nos termos pretendidos.
Não sobra qualquer dúvida que o arguido agiu com dolo direto, persistente, continuado e intenso, uma vez que quis praticar os factos, sabendo que ofendia bens jurídicos tutelados criminalmente, praticando o tráfico durante um considerável período de tempo, reincidido na carreira criminosa pouco tempo depois de sair da cadeia, por diversas localidades e com a intenção de obter de modo fácil e rápido contrapartidas de natureza patrimonial, sem se importar com a danosidade e perigosidade da sua conduta, desvalorizando a saúde alheia e em completo alheamento pelo alarme social que efetivamente provocou e que tem antecedentes criminais relevantes e pesados pela prática do mesmo tipo de crime.
Assim, não nos merece qualquer censura a fixação da pena em 8 anos de prisão, que se situa a apenas 02 anos e 08 meses do limite mínimo e a 04 anos do limite máximo da moldura abstrata da pena da reincidência e aquém da sua metade.

É patente que o Tribunal a quo teve em consideração para a escolha e medida da pena aplicada ao arguido todos os critérios referidos no DL nº15/93, de 22/1 e nos artigos 40º, 41º, 71º, 75º e 76º, do Código Penal, conjugados com os factos que se provaram em audiência de julgamento.
A decisão sob recurso quanto à determinação da pena mostra-se, pois, fundamentada e adequada ao conjunto dos factos apurados.
Por outro lado, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo há muito que «Em matéria de medida concreta da pena, apesar de se mostrar hoje afastada a concepção da medida da pena concreta, como a «arte de julgar» substituída pela de autêntica aplicação do direito, aceitando-se a sindicabilidade da correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa e a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada.»[21]

No mesmo sentido, entre outros, entendeu-se no acórdão da Relação de Coimbra de 05-04-2017[22] que:
«I - No quadro da moldura penal abstracta, a fixação [da pena] estabelece-se entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente: entre estes limites satisfazem-se as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
II - Relativamente à determinação do quantum exacto de pena [só] será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou se se verificar desproporção da quantificação efectuada.»

Esta jurisprudência reflete a ideia, que perfilhamos, de que a alteração da medida concreta da pena em sede de recurso deve respeitar a zona de liberdade do julgador em 1.ª Instância ao fixar o quantum da pena, desde de que se situe entre os referidos limites que satisfazem as necessidades de prevenção especial (o mínimo necessário à salvaguarda das expectativas comunitárias e o máximo balizado pela culpa do agente) e não ocorra violação das regras da experiência comum ou manifesta desproporção na pena aplicada.

No caso concreto nenhuma censura deve recair sobre a fixação da medida concreta da pena pelas razões indicadas.
Em face de tudo o que ficou enunciado impõe-se concluir que a decisão recorrida fez uma correta aplicação do direito ao qualificar juridicamente os factos e ao fixar a medida concreta da pena, não tendo ocorrido violação que qualquer preceito legal ou constitucional, devendo improceder totalmente o recurso nesta parte.
Sopesando em conjunto as enunciadas circunstâncias, designadamente a concreta forma de execução do facto, a motivação do arguido e o contexto da sua atuação, bem como o comportamento anterior aos factos, não merece qualquer censura a concreta fixação da pena de prisão aplicada ao arguido, a qual se considera ser a pena justa, adequada e necessária.
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Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, eliminando as als. i., ii., iii. e iv. do ponto A da matéria dada como provada.
Negar total provimento ao demais, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça (arts. 513.º, n.ºs. 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa), porquanto aquela eliminação não teve qualquer repercussão sobre o dispositivo a quo que se manteve.

Sumário da responsabilidade do relator.
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Porto, 24 de maio de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)


Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, vejam-se os acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Ibidem.
[3] Publicado no DR n.º 108/2022, Série I, de 03-06-2022.
[4] Que a Lei 32/2008, de 17-07, transpôs para a ordem jurídica nacional.
[5] Ob. cit.
[6] Cf. ainda antes da vigência da Lei 41/2004, de 18-08, os acórdãos do TRL de 10-12-2003, relatado por Maria Isabel Duarte no âmbito do Proc. n.º 8673/2003-3, acessível in www.dgsi.pt, e de 23-06-2004, relatado por Clemente Lima no âmbito do Proc. n.º 5845/2004-3, acessível in https://blook.pt/caselaw/PT/TRL/292649/, ambos com indicação de outra jurisprudência e pareceres da Procuradoria-Geral da República que perfilhavam a mesma orientação.
[7] Acessível in www.dgsi.pt.
[8] Relatado por Cura Mariano e acessível in www.tribunalconstitucional.pt.
[9] Ob. cit.
[10] Realce da relatora.
[11] Ob. cit., pág. 46.
[12] Acessível in https://blook.pt/caselaw/PT/TRC/175683/.
[13] Acessível in www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê:
«I - A investigação dos crimes elencados no n.º 1 do artigo 187.º do CP – não previstos no catálogo do artigo 2.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 32/2008, de 17-07 –, não admite o recurso aos ficheiros criados ao abrigo do último dos dois diplomas referidos, conservados durante 1 (um) ano após o termo da comunicação.
II - No âmbito dessa investigação apenas é permitida a utilização da base de dados das empresas fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas referida no artigo 6.º da Lei n.º 41/2004, de 18-08, mas só quando não tenha decorrido, após o termo da comunicação em causa, o prazo de 6 (seis) meses, período esse determinante da eliminação dos dados de tráfego.»
[14] Acessível in www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê:
«I. Para a investigação e repressão dos crimes elencados no artº 187º, nº 1 do CPP e não previstos na al. g) do nº 1 do artº 2º da Lei 32/2008 não é possível lançar mão dos ficheiros criados ao abrigo deste último diploma legal, conservados durante 1 ano após o termo da comunicação.
II. Para tal investigação é apenas possível (posto que verificado o condicionalismo previsto nos artºs 189º, nº 2 e 187º, nº 1 do Cod. Proc. Penal) recorrer à base de dados da empresa prestadora dos serviços (a que se refere o artº 6º da Lei 41/2004); tal possibilidade, porém, só é efectiva nos 6 meses subsequentes ao termo da comunicação em causa, porquanto findo tal prazo os referidos dados de tráfego são eliminados.»
[15] Acessível in www.dgsi.pt.
[16] Ob. cit.
[17] Cf. arts. 4.º, n.º 2, e 6.º da Lei 41/2004, de 18-08, e 1.º, n.º 2, al. d), e 10.º, n.º 1, da Lei 23/96, de 26-07.
[18] Como observa Rui Cardoso no estudo que vimos acompanhando, a Lei 41/2004, por um lado, proíbe de forma expressa o armazenamento de comunicações e dos respectivos dados de tráfego por terceiros sem o consentimento prévio e expresso dos utilizadores, devendo esses dados ser eliminados ou tornados anónimos quando deixem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação, mas, por outro, permite (mas não obriga) aos FS gue tratem (o que inclui a conservação) aqueles necessários à facturação dos assinantes e ao pagamento de interligações até final do período durante o qual a factura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado.
[19] Ob. cit..
[20] Ob. cit.
[21] Cf., entre muitos outros, acórdão de 11-10-2007, Proc. n.º 07P3171, acessível in www.dgsi.pt.
[22] Cf. Proc. n.º 47/15.2IDLRA.C1, acessível in www.dgsi.pt.