Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0334928
Nº Convencional: JTRP00036547
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
ATRAVESSADOURO
Nº do Documento: RP200310230334928
Data do Acordão: 10/23/2003
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Tribunal Recorrido: T J AMARANTE 2J
Processo no Tribunal Recorrido: 162/02
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - A distinção entre caminho público e atravessadouro não pode ser retirada do Assento de 19 de Abril de 1989;
II - Nem a ideia – ainda que exacta - de que o atravessadouro constitui parte integrante do prédio onde se situa e o caminho público não, pode servir de elemento distintivo.
III - A distinção há-de ser encontrada na integração ou não na rede viária, ligando caminhos entre si (presumindo-se, na afirmativa, tratar-se dum caminho público e na negativa, conduzindo a imóvel determinado, dum atravessadouro).
IV - Em todo o caso, será sempre de ponderar a relevância sob o ponto de vista de interesse colectivo que caracteriza o caminho público e não o atravessadouro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I –
JOAQUIM ANTÓNIO ..... casado, residente no lugar de ....., Amarante, veio intentar contra:
A JUNTA DE FREGUESIA DE F....., a presente acção sumária, pretendendo que:
Se declare que:
Ele é proprietário do prédio que identifica;
Constitui parte integrante deste o caminho que descreve;

E se condene a R. a tal reconhecer e a abster-se de violar tal direito.
Contestou esta, sustentando, no essencial, que o caminho é público.

A acção prosseguiu a sua normal tramitação e, na altura própria, a Srª Juíza proferiu sentença que a julgou totalmente procedente.
Entendeu a Ilustre Magistrada que o apelidado “caminho” era um “atravessadouro”, estando, assim, extinto.

II –
Desta decisão interpôs a Junta de Freguesia a presente apelação.
Conclui as alegações do seguinte modo:

a) Não se provou que o leito do caminho descrito nos pontos 9º, 10º e 11º da petição inicial faz parte integrante do prédio rústico denominado “C.....”;
b) Não se provou que o A. seja dono do referido leito do caminho;
c) Incumbe ao A. o ónus da prova de que o referido leito do caminho faz parte integrante do referido prédio e de que é dono do mesmo;
d) A douta sentença violou, entre outros, o disposto nos artºs 342º, n.ºs 1,2 e 3, 1311º e 1316º do Código Civil.

Contra-alegou a parte contrária, pugnando pela manutenção do decidido.

III –
Tendo em conta o texto das conclusões das alegações e o que nelas está necessariamente contido, a questão que se nos depara consiste em saber se estamos perante um atravessadouro ou perante um caminho público.

IV –
Da 1ª instância vem provado o seguinte [Mantém-se a enumeração vinda de tal instância porque há remissões que, de outro modo, não se entenderiam perfeitamente]:

5.1. A presente acção teve como preliminar o processo cautelar de ratificação de embargos extrajudicial, que correu termos pelo 2º Juízo deste Tribunal com o nº .....-... e que foi julgado procedente por decisão proferida em 18 de Fevereiro de 2002 – Alínea A) dos factos assentes;
5.2. Em processo de partilha subsequente ao divórcio foi adjudicado ao autor o seguinte prédio rústico: «C.....», cultura, videiras, ramada, oliveiras, fruteiras, castanheiro, pinhal e mato, pastagem e dependências agrícolas, sito no Lugar de ....., freguesia de M....., deste Concelho, com a área de 65 500 m2, inscrito na matriz sob o art. .... e descrito na Conservatória sob a ficha ...../....., inscrito a favor do autor pela inscrição .... – Alínea B) dos factos assentes.
Factos provados oriundos das respostas à base instrutória:
5.3. O requerente, por si e antepossuidores, há mais de 20, 30 e 50 anos, sempre esteve no uso e fruição do dito prédio, nele lavrando e cultivando e colhendo os respectivos frutos, cortando matos e árvores, efectuando obras de conservação nas dependências agrícolas, muros e exploração de águas, pagando as respectivas contribuições, enfim dele retirando todas as utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar– Resposta ao ponto 1º da B.I..
5.4. O que vem fazendo com a exclusão de outrem, continuadamente, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, com a intenção de exercer direito próprio e na convicção de não lesar direito alheio– Resposta ao ponto 2º da B.I..
5.5. No dia 5 de Dezembro, o autor teve conhecimento que a ré se preparava para entrar com a máquina de terraplanagem, no prédio dito em B), para alegadamente proceder à reparação do caminho que o atravessa – Resposta aos pontos 3º e 4º da B.I..
5.6. Esse caminho atravessa o prédio dito em B), no sentido Nascente-Poente, flectindo depois de Norte para Sul, com a largura média de 3 [ A referência a 300 metros constante da resposta ao quesito deveu-se certamente a lapso. Os 300 metros seriam a extensão do caminho no prédio do A] metros, sempre ao longo do identificado prédio do autor_ Resposta ao ponto 5º da B.I..
5.7. O autor e antes dele os seus antepossuidores, acede às diversas parcelas – leiras, campos de cultivo e terreno de mato – através do mencionado caminho, para elas e delas transportando matos, estrumes, sementeiras, adubos e colheitas, a pé ou com carros de bois e agora com tractor– Resposta ao ponto 6º da B.I..
5.8. Há cerca de ano e meio aquele Albano pediu ao autor se lhe permitia o arranjo daquele caminho, junto à confrontação de ambos, alegando que a sua filha havia obtido, há pouco tempo, carta de condução, não tinha experiência e o acesso por aquele local era-lhe mais fácil, por ter menos declive– Resposta ao ponto 14º da B.I..
5.9. Ao que o autor acedeu – Resposta ao ponto 15º da B.I..
5.10. Até por volta do ano de 1955, era frequente aquele caminho ser utilizado por pessoas a pé, designadamente procedentes de outros lugares da freguesia de M..... e que, se dirigiam para a então Vila de Amarante – Resposta ao ponto 21º da B.I..
5.11. Nessa altura, quem vinha de M....., entrava primeiro num carreiro e só depois no caminho dito em 5.5., para aceder à então Vila de Amarante– Resposta ao ponto 22º da B.I..
5.12. Tal caminho permitia ás pessoas que se dirigiam naquele tempo a pé de e para outros lugares da freguesia de M....., encurtar distâncias, visto que o caminho por onde se fazia o trânsito de carro, levava muito mais tempo a percorrer – cfr. ponto 24º da B.I..
5.13. Sensivelmente, a partir da data dita em 5.10., a utilização daquele caminho começou a escassear– Resposta ao ponto 25º da B.I..
5.14. O caminho dito em 5.5. existe há mais de 100 anos– Resposta ao ponto 29º da B.I..
5.15. E foi utilizado para trânsito a pé desde tempos que ultrapassam a memória dos homens, sensivelmente até á data dita em 5.10. – Resposta ao ponto 30º da B.I..
5.16. E esteve afecto ao uso directo e imediato do público em geral e das populações que o mesmo serve, designadamente nos habitantes do lugar de S..... e A...... e de outros lugares das freguesias de F.... e M..... – Resposta ao ponto 31º da B.I..
5.17. E assim foi considerado pelo autor e seus antecessores – Resposta ao ponto 32º da B.I..
5.18. Por terem surgido melhores alternativas de acesso, o caminho deixou de ser utilizado pelo público em geral, sensivelmente a partir da data dita em 5.10..– Resposta ao ponto 34º da B.I..

V –
Nos factos provados alude-se sempre a “caminho”. Mas trata-se duma designação factual que não pode invadir a esfera da classificação jurídica.
Nada resulta, portanto, de tal terminologia, que nos leve a tomar posição entre “caminho público” e “atravessadouro”.

VI –
Nos termos do Assento de 19 de Abril de 1989, publicado no Diário da República de 2.6.89: “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.”
Esta fixação jurisprudencial pode-nos servir para, se concluirmos que estamos perante um caminho, chegarmos à dominialidade pública.
Mas não serve para traçarmos qualquer linha demarcadora entre as figuras que temos em confronto.
Visou, efectivamente, o aresto a tomada de posição sobre os requisitos necessários para se considerar um caminho como público (nomeadamente resolver a dúvida sobre a necessidade ou não de construção, apropriação ou conservação por entidade administrativa), mas partiu logo da ideia de que se tratava dum caminho.
E, podendo incidir sobre um atravessadouro o uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais, nada nos adianta nesta problemática [Cfr-se, a este propósito, prof. Ascensão, Direitos Reais, 5ª ed. 509].

VII –
É entendimento uniforme que o atravessadouro constitui parte integrante do prédio atravessado, enquanto o caminho público não.
Mas isto não pode servir para linha demarcadora das figuras, sob pena de tautologia.
O que pretendemos é saber se estamos perante uma ou outra delas e, do que entendermos, resulta a integração ou não no prédio. Esta constitui um dado consequencial, logicamente posterior e não pode servir de causa (Neste sentido, prof. O. Ascensão, O Direito, Ano 123, 543).

VIII –
A diferenciação terá de se estabelecer noutros pontos.
Têm-se considerado que atalho e atravessadouro são a mesma coisa (Veja-se, por todos, Carvalho Martins, Caminhos Públicos e Atravessadouros, 59).
As palavras não são, porém, sinónimas.
A primeira encerra a ideia de comparação, de confronto entre dois percursos, um mais longo e outro mais curto que a outra não comporta necessariamente.
Mas, se se entende que juridicamente se identificam, então temos, que a primeira ideia a recolher no conceito de atravessadouros, é de que constituem um percurso mais breve de que outro.
Foi a essa ideia que se agarrou a M.Mª Juíza “a quo” para, partindo dos factos vertidos em 5.12, chegar ao conceito de “atravessadouro”.

IX – Mas isto não chega.
Muitos caminhos encurtam percursos de outros. Até muitas vezes as entidades administrativas constróem caminhos novos que se destinam precisamente a evitar que quem por eles transite tenha de “ir à volta”.
A solução mais curial parece-nos ser a apresentada pelo dito professor (loc. citado, 544):
“O caminho público, é aquele que se integra na rede viária, sendo nos casos normais reconhecível pelo traço ostensivo de ligar caminhos entre si.
Com esta base, podemos firmar uma presunção, aplicável a todas as figuras de passagem no uso directo e imediato do público. As passagens entre vias presumem-se caminhos públicos; as passagens para imóveis determinados presumem-se atravessadouros”.

Paredes meias com esta posição, temos a assumida no AC. do STJ de 10.11.93 (BMJ n.º431, 300):
Estaremos perante um caminho público se for destinado à satisfação de relevantes interesses colectivos. Se visar apenas o encurtamento não significativo das distâncias será um atravessadouro.

X –
Chegados aqui, passemos ao caso dos autos:
Já vimos que se provou que o caminho permitia às pessoas encurtar distâncias.
Mas também se provou que era utilizado frequentemente pelas pessoas que se dirigiam para a então vila de Amarante (n.º 5.10) e para outros lugares da freguesia de M..... . Não iam para qualquer imóvel determinado, antes se dirigindo – segundo se pode presumir – para os caminhos que entravam na vila ou na dita aldeia. E tinha uma utilização – pode-se inferir – socialmente relevante.
Cremos, então, que estamos perante a categoria jurídica de “caminho”.

XI –
Esta posição, aliás, coaduna-se bem mais com muitos dos outros factos provados.
Conforme se referiu no Ac. da RC de 3.2.61, aludido por Carvalho Martins (ob. cit., 106), os “atravessadouros constituem um abuso, um verdadeiro atentado contra o direito do proprietário, nascido da simples tolerância e por isso é que já na legislação pombalina se providenciou no sentido de lhes pôr cobro”.
Ora, mal se compreenderia que dum acto de abuso, conseguido por mera tolerância, resultasse um caminho de cerca de 3 m de largura, que se segue a um carreiro e pelo qual transitam carros de bois e tractores. (cfr-se n.ºs 5.6, 5 . 7 e 5.8).

XII –
Tratando-se dum caminho, do mencionado Assento, conjugado com os factos provados, resulta a dominialidade pública.
E dela a procedência do recurso, mantendo-se apenas a declaração de que o A. é proprietário do prédio que refere, essa, aliás, não posta em causa.

XIII –
Assim, em provimento da apelação, revoga-se a decisão em apreço, na parte em que declarou que o leito do caminho faz parte do prédio do A., absolvendo-se a R. deste pedido.
Custas, em ambas as instâncias, pelo A.
Porto, 23 de Outubro de 2003
João Luís Marques Bernardo
António José Pires Condesso – (voto decisão nº 1 com o fundamento de que os factos provados não permitem afirmar a profundidade do auto sobre a faixa de terreno que apelidam de “caminho” nada que tal propriedade era o caso de pedir).
Gonçalo Xavier Silvano