Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
757/17.0Y2VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOS PRAZERES SILVA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÕES RODOVIÁRIAS
PROCESSO
Nº do Documento: RP20180124757/17.0Y2VNG.P1
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º745, FLS.279-288)
Área Temática: .
Sumário: O processamento em matéria de contra-ordenações rodoviárias obedece ao estatuído nos artºs 170º e ss. Do Código da Estrada, e só subsidiariamente é aplicável o RGCO.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 757/17.0Y2VNG.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO:
Nos presentes autos o arguido B… deduziu impugnação judicial da decisão proferida pela autoridade administrativa que lhe aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias, pela prática da contraordenação prevista e punida nos artigos 69.º, n.º 1, alínea a), e 76.º, alínea a) do Regulamento de Sinalização de Trânsito; artigos 138.º e 146.º, alínea l), Código da Estrada.
Após o legal contraditório foi proferido despacho judicial que declarou a irregularidade da decisão administrativa e ordenou o arquivamento dos autos.
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso para esta Relação, formulando, para o efeito, as seguintes
CONCLUSÕES:
1- A decisão administrativa no âmbito de um processo contraordenacional deve conter a identificação do arguido, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão, a coima e as sanções acessórias, sendo certo que nesta fase não é de exigir o rigor formal como se em processo penal estivéssemos.
2- Tal exigência deve respeitar apenas a de uma narração, ainda que sintética, devido à simplicidade e celeridade que norteiam a fase administrativa, e que permita ao arguido efectuar um juízo de oportunidade sobre a conveniência ou necessidade de impugnar judicialmente a decisão e posteriormente, já em sede de impugnação judicial, possibilitar ao tribunal conhecer e aferir sobre o processo lógico da formação da decisão administrativa e respectivos fundamentos (cfr. Ac. da Relação de Coimbra de 06-02-2013, proferido no processo n.º 77/12.6TBAVZ, disponível no site da dgsi).
3- A decisão administrativa que fundamenta o presente recurso de contraordenação obedece aos requisitos enunciados no artigo 58.º, do RGCO, não padecendo de irregularidade.
4- A decisão administrativa não é omissa quanto ao elemento subjectivo e enuncia os critérios que fundamentam a imputação a título de negligência da contraordenação em causa.
5- A decisão administrativa enuncia minimamente os critérios que ocasionaram a fixação concreta da sanção acessória de inibição de conduzir e a determinação da respectiva suspensão.
6- A decisão administrativa em causa nestes autos obedece aos requisitos mínimos referidos no artigo 58.º, do RGCO.
Termos em que se afigura que o presente recurso deverá ser julgado procedente e, por via dessa procedência, deverá ser revogada a douta decisão em causa e determinada a sua substituição por outra que não declare a irregularidade da decisão administrativa.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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Nesta Relação o Ministério Público emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO:
A. Decisão recorrida:
I - Relatório
Nos presentes autos de recurso de contra ordenação veio o arguido B…, recorrer da decisão da autoridade administrativa que lhe aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias, pela prática dos factos referidos na decisão de fls. 5 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, onde se lhe imputa a contraordenação prevista no artigo 28.º, n.º 1, alínea b) do Código da Estrada.
O arguido veio impugnar a contraordenação, invocando:
- a nulidade da decisão administrativa por não conter a descrição precisa dos factos;
- a impugnação em si da matéria de facto.
Conclui, assim, requerendo seja declarada a nulidade da decisão administrativa com a consequente absolvição do arguido ou, caso assim não se entenda, seja aplicada a dispensa ou suspensão da aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, nos termos previstos no artigo 141.º do Código da Estrada ou, por último, a atenuação especial da sanção acessória.
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II - Saneamento
O tribunal é competente.
As partes têm legitimidade.
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- Da invocada nulidade da decisão administrativa
Invoca o arguido a nulidade da decisão, invocando nada de concreto constar em termos de descrição dos factos imputados.
Apreciando, cumpre sumariamente referir que, não obstante se concordar com a argumentação expendida quanto à ausência de concretização dos elementos, quer objetivos, quer subjetivos da prática da infração, no entender do Tribunal tal não consubstancia ou acarreta a nulidade da decisão administrativa, tendo, ao contrário, a consequência que infra se retirará.
Assim sendo, face ao exposto, de acordo com o referido e sem necessidade de mais considerações, improcede a invocada nulidade da decisão administrativa.
Notifique.
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Não existem quaisquer nulidades, exceções ou questões prévias que impeçam o conhecimento do mérito da causa.
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III - Dos Factos
De acordo com os documentos juntos aos autos, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 16 de fevereiro de 2015, pelas 10 horas e 31 minutos, no local Rua …, …, Vila Nova de Gaia, o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula NX - .. - .., desrespeitou a obrigação de parar imposta pela luz vermelha de regulação do trânsito.
2. O arguido prestou depósito, que se converteu automaticamente em pagamento voluntário da coima respetiva.
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De resto não se provaram outros factos com relevância para a boa decisão da causa.
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IV - Motivação da Decisão de Facto
A convicção do Tribunal para dar como provados os factos supra descritos resultou da apreciação crítica e seletiva de toda a prova produzida e designadamente, com base na análise dos documentos juntos aos autos, sendo o auto de contraordenação de fls. 1, o registo de condutor de fls. 3 e 4, os quais não mereceram qualquer reparo.
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V - Do Direito
O Código da Estrada prevê no seu artigo 55.º, n.º 1, que "As decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são susceptíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou das pessoas contra as quais se dirigem", bem como no artigo 59.º, n.º 1, 2 e 3 do mesmo diploma legal, consagra que "As decisões das autoridades administrativas que aplicam uma coima são susceptíveis de impugnação judicial, por meio de recurso, interposto pelo arguido ou pelo seu defensor, por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões".
Nos termos do artigo 18.º do RGCOC, "a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que retirou da prática da contra-ordenação".
Essa determinação constitui uma operação cuja responsabilidade se reparte entre o legislador e o aplicador da coima, seja a autoridade administrativa ou o juiz.
Assim, enquanto ao primeiro cabe estabelecer, um mínimo e um máximo para as molduras abstratas aplicáveis a cada um dos tipos legais de ilícitos de contraordenações descritos na legislação avulsa, à autoridade administrativa ou ao juiz caberá, respeitando as balizas fixadas pelo legislador, dizer, em concreto, qual a pena que, no caso em apreço deve ser aplicada.
Assim, no que toca à gravidade da contraordenação, deve atender-se:
- ao grau de violação ou perigo de violação dos bens jurídicos e interesses ofendidos;
- ao número de bens jurídicos e interesses ofendidos e às suas consequências,
- à eficácia dos meios utilizados.
No que toca à culpa do agente:
Quanto ao papel que cabe à culpa na determinação concreta da sanção a doutrina tem apontado três teorias: da sanção exacta no acto de determinação da sanção; do valor de emprego ou de graus e da margem de liberdade.
Conforme resulta dos artigos 71.º e 72.º, ambos do Código Penal (subsidiariamente aplicáveis, na medida em que não são contrariados pelo artigo 18.º do RGCOC), entre nós adaptou-se a teoria da margem de liberdade, entendendo-se ser "claro que, em absoluto, a medida da pena é uma certa: simplesmente que ela seja exactamente, é coisa que não poderá determinar-se, tendo, pois, o aplicador que remeter-se a uma aproximação que, só ela, justifica aquele "Spielraum", dentro do qual podem ser decisivas considerações derivadas da pura prevenção", BMJ, n.º 149, pág. 172.
Para determinação da sanção o aplicador "deve ter em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de contra-ordenação, deponham a favor ou contra o agente", C…, D… e E…, in Contra-Ordenações, E.S.P, pág. 30 e António Joaquim Fernandes, Regime Geral das Contra-Ordenações, Notas práticas, Ediforum Edições Jurídicas, Lda., Lisboa 1998, pág. 43.
Assim, deve atender-se:
- ao grau de violação dos deveres impostos;
- ao grau de intensidade da vontade de praticar a infração;
- aos sentimentos manifestados no cometimento da contraordenação;
- aos fins ou motivos determinantes;
- à conduta anterior ou posterior;
- à personalidade do agente.
No que toca à situação económica deve atender-se à situação pessoal do agente.
No que se reporta ao benefício económico que o agente retirou da prática da contraordenação, deve atender-se não só ao valor do dano causado, que é considerado na gravidade da contraordenação, mas ao benefício obtido.
Ora, analisando a decisão administrativa é manifesto que a mesma é omissa quanto às condições económicas e benefício económico retirado pelo arguido e quanto aos critérios seguidos e discriminados quanto à fixação da sanção acessória concreta aplicada, sendo certo que, obviamente, tratando-se de processo contraordenacional não compete ao arguido fazer prova das condições económicas ou alegar factualidade que leve a concluir pelo tempo de inibição de conduzir a que deve ficar sujeito, mas antes à entidade administrativa averiguar dessas mesmas condições e demais factualidade. Em conclusão, a autoridade administrativa proferiu a decisão sem fundamentar os critérios que estiveram posteriormente na base da sanção acessória aplicada, ou seja, não foram apontados o processo lógico e/ou as circunstâncias que basearam a aplicação da sanção acessória.
Daí que, o que não pode é, como fez, deixar a averiguação desses elementos à mercê do que vier a ser dito pelo arguido ou mesmo, e aqui merecedor de maior censura, do que o Tribunal, em sede de impugnação judicial, vier a apurar.
Acresce que, relativamente à implícita imputação a título de negligência, se desconhece o processo lógico que levou a autoridade administrativa a considerá-la, quais as circunstâncias em que se baseou para concluir pela sua verificação.
Assim, dispõe o artigo 58.º do RGCOC que:
«1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a)A identificação dos arguidos;
b)A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c)A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.
2- Da decisão deve ainda constar a informação de que:
a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º;
b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho.
3- A decisão conterá ainda:
a) A ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão;
b) A indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima."
Ora, o elemento subjetivo do tipo de ilícito, para além de não se encontrar elencado no local destinado à descrição da factualidade provada, não contém em si mesmo qualquer factualidade suscetível de se a ele se subsumir, e, por conseguinte, a decisão não se encontra devidamente fundamentada. Note-se que se dão como provados os factos constantes do auto de contraordenação (ponto 5) e só posteriormente se faz alusão à prática da contraordenação a título de negligência (ponto 6).
Os requisitos da decisão da autoridade administrativa enunciados no citado artigo 58.º do RGCOC visam assegurar ao arguido a possibilidade do exercício efetivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente a decisão.
Ora, no caso dos presentes autos, verifica-se que inexiste qualquer descrição factual relativa ao elemento subjetivo da infração em causa devidamente sustentada e fundamentada que legitime a aplicação da sanção em causa.
Os advérbios, os adjetivos e as afirmações conclusivas não constituem "factos".
Estes são os acontecimentos ou eventos da vida real, do mundo natural, físico ou psicológico. Facto jurídico é todo o acontecimento ou evento que produz efeitos jurídicos.
A falta daqueles elementos factuais e, bem assim, da fundamentação que tenha conduzido à sua prova, compromete um cabal exercício do direito de defesa por parte do arguido, direito este que se encontra constitucionalmente consagrado (artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa).
Sendo certo que a decisão administrativa é proferida no domínio de uma fase administrativa sujeita, por conseguinte, às características da celeridade e simplicidade, o dever de fundamentação assume uma dimensão menos intensa em relação a uma sentença. Não obstante, para que seja respeitado aquele direito de defesa constitucionalmente consagrado, deverão ser patentes para o arguido as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial, ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa.
Consequentemente, é nula a decisão administrativa que não contiver a devida fundamentação, tanto mais quanto se se atender à pujante expansão do direito contraordenacional e à agravação notória das sanções típicas, o que obrigou à consagração constitucional dos direitos de defesa e audiência.
A não descrição in casu minimamente fundamentada do processo que levou à aplicação de uma sanção acessória a título de negligência, bem como a ausência de qualquer referência às condições económicas e benefício económico retirado pelo arguido, tem a consequência que de seguida se analisará.
Das consequências da falta de fundamentação da decisão da entidade administrativa ou de uma fundamentação deficiente:
O artigo 58.º do RGCOC não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação dos elementos ali previstos.
De acordo com o artigo 41.º, n.º 1 do RGCOC, são os preceitos reguladores do processo criminal (e não do direito administrativo) "devidamente adaptados", que constituem, neste particular, o direito subsidiário - neste sentido, Teresa Beleza, in Direito Penal, AAFDL, VoI. I, 2.a edição, pág. 131.
Contrariamente ao defendido por Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in Contra-Ordenações Anotações ao Regime Geral, 2.ª Edição, Vislis Editores, Lisboa, 2003, pág. 334, António de Oliveira Mendes, José dos Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 154 e Sérgio Passos, in Contra-Ordenações Anotações ao Regime Geral, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 383, entendemos que não se devem aplicar, subsidiariamente, os preceitos do processo criminal relativos às decisões condenatórias, nomeadamente o disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (requisitos da sentença) e no artigo 379.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do mesmo diploma (nulidades da sentença) uma vez que, se o arguido interpuser recurso da decisão condenatória, esta mesma decisão, nos termos do artigo 62.º, n.º 1 do RGCOC, converter-se-á em acusação.
Encontramo-nos no domínio de uma fase administrativa, sujeita às características de celeridade e simplicidade processual, pelo que o dever de fundamentação deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal.
Por seu turno, tal como advoga António Beça Pereira, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas Anotado, 6.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 109 e António Leones Dantas, in Revista do Ministério Público, n.º 61, pág. 118 e seguintes, também não se deve recorrer ao disposto no artigo 283.º, n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal (requisitos da acusação), visto que, se não for interposto recurso da decisão condenatória, esta não chega, sequer, a assumir a natureza de acusação.
E se estivéssemos perante o vício da nulidade cominado nos aludidos preceitos, então o respetivo regime teria que ser só um; ele não poderia variar consoante fosse ou não interposto recurso da decisão condenatória da autoridade administrativa.
Apesar de não recorrermos aos normativos que se reportam à fundamentação da sentença, deve fazer-se apelo ao dever de fundamentação das decisões de natureza constitucional (artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa). O que deve resultar claro para o arguido são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação por forma a que o mesmo possa fazer um juízo de oportunidade sobre a conveniência da apresentação da impugnação judicial e, posteriormente, caso tal aconteça, permitir ao Tribunal conhecer, sem se substituir na investigação do ilícito àquela entidade administrativa, do processo lógico da formação da decisão.
Tal fundamentação será suficiente desde que a entidade administrativa justifique as razões pelas quais, atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas, é aplicada a sanção ao arguido, de modo que este, após uma leitura da decisão, de acordo com os critérios de normalidade de entendimento, perceba as razões pelas quais é condenado e, consequentemente, possa impugnar tais fundamentos.
Ora, não estando expressamente prevista, como não está, a consequência processual decorrente da falta de fundamentação da decisão da entidade administrativa a que alude o artigo 58.º do RGCOC, e não sendo de aplicar, nos termos já referidos supra, as cominações previstas pelo legislador em relação à acusação ou à sentença, o sistema processual penal português, enquanto direito subsidiário, impõe que se apliquem, com as devidas adaptações, as regras da irregularidade, enquanto figura de carácter residual (artigo 123.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
Será, pois, segundo as regras desta figura que se deverá apurar da possibilidade de aproveitamento (ou não) do processado desde a decisão administrativa (assim, entre outros, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 19 de fevereiro de 1997, BMJ, 464.º, pág. 614 e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de julho de 1998, BMJ, 479.º, pág. 723).
Da possibilidade do conhecimento oficioso da irregularidade quando a mesma não é, sequer, referida nas conclusões da impugnação judicial:
O ato irregular está sujeito à regra prevista no artigo 123.º do Código de Processo Penal.
Dispõe o preceito:
"1- Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiver assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
2- Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado ".
Apesar de minoritária, perfilhamos a opinião de Gil Moreira dos Santos, in Noções de Processo penal, O Oiro do Dia, Porto, pág. 208, que considera que, apesar da sua aparente menor relevância, o legislador consagrou o conhecimento oficioso das irregularidades, uma vez que a ideia do máximo aproveitamento dos atos processuais não cede face à ideia da verdade material. Os entendimentos divergentes, sempre fazendo uso do falso argumento da parca relevância do vício, cuja arguição entendem estar a cargo dos interessados, tornam inócua a norma do n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal.
Do aproveitamento dos atos processuais:
A figura da irregularidade apesar de não ter muito interesse do ponto de vista dogmático, acaba por ter grande importância, em particular, em sistemas taxativos como o Português. Com a redução das nulidades aos casos previstos na lei, o legislador reconduz à mera irregularidade os restantes vícios processuais: salvo, é claro, quando se tratar de atos inexistentes. Rectius, o regime aumenta a frequência da figura e sobretudo a sua versatilidade.
Segundo alguma doutrina, as irregularidades são pequenos defeitos dos atos processuais que, apesar de suficientes para o tornar imperfeito, não afetam a sua validade, nem a sua eficácia, justificando a sua necessidade, tão só, para impor aos sujeitos e participantes processuais o respeito pelo princípio da máxima aderência às regras do processo penal (assim, João Conde Correia, in Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA IVRIDICA, n.º 44, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pág. 111, Paulo de Sousa Mendes, As proibições de prova no processo penal, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 132, e Juan Alfonso Santamaria Pastor, in La nulidad de pleno derecho de los actos administrativos, Madrid, Instituto de Estúdios Administrativos, 1972, pág. 144).
Não perfilhamos esse entendimento. Do ponto de vista morfológico, as irregularidades consubstanciam verdadeiras violações da lei.
Reputar um ato processual regular simboliza, portanto, uma resposta positiva com a respetiva norma jurídica. Mutatis mutandis, classificar um ato irregular traduz uma resposta negativa naquele confronto. À semelhança dos atos inválidos também os atos irregulares são imperfeitos, não integrando a respetiva fattiscipecie - assim, Vicent Grelliêre , in Nullités de L'Instruction et bonne administration de la justice pénale, AUSST, 1980, pág. 121, apud João Conde Correia, ob cit, pág. 171, nota de rodapé 396.
Efetivamente, apesar da rigidez e do aparente formalismo, o processo penal comporta uma margem de liberdade. A grande variedade de casos que na vida real se podem deparar é inimiga da catalogação. Não se pode excluir, a priori, a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de grande gravidade, como no caso decidendo, suscetíveis de afetar direitos fundamentais dos sujeitos processuais.
E, tal como refere Maia Gonçalves, in Código do Processo Penal Anotado, 10.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pág. 312, dai decorre grande margem de apreciação que se dá ao julgador, nos n.º 1 e 2, que vai desde o considerar a irregularidade inócua e inoperante até à invalidade do ato inquinado pela irregularidade e dos subsequentes que possa afetar, passando-se pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente com ponderação pelos interesses em equação, maxime as premências de celeridade, de economia processual e os direitos dos interessados.
Ora, in casu, as irregularidades cometidas, e já referidas supra, invalidam a própria decisão administrativa e, segundo um critério cronológico, os seus termos (note-se, não os atos). Na verdade, na medida em que nada é referido de concreto quanto às condições económicas, ao beneficio económico retirado pelo arguido e a falta de indicação dos factos relativos ao elemento subjetivo do ilícito, aliado à não descrição minimamente fundamentada do processo que levou à aplicação de uma sanção acessória a título negligente não foi dada a hipótese ao arguido de conhecer todos os elementos relativos à infração, o que o impediu de perceber as razões que a alicerçaram (ou não) e, consequentemente, de impugnar tais fundamentos.
Para além do mais, não compete ao Tribunal averiguar, neste âmbito, suprindo a inércia da entidade administrativa, quais as condições económicas do arguido, o beneficio económico por este retirado, ou indicar os factos relativos ao elementos subjetivos do ilícito, pois caso contrário não estaria, como lhe compete, a apreciar o mérito da decisão da entidade administrativa ... mas sim, o que não é possível, a conhecer de matéria nova e a coartar ao arguido, pelo menos, uma instância de recurso.
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VI - Decisão:
Assim, face a todo o exposto, decide-se:
- declarar, por omissão dos factos conducentes às condições económicas do arguido B…, ao benefício económico por ele retirado, a falta de enunciação dos critérios que fundamentam a imputação a título de negligência e falta de critérios discriminados quanto à fixação da sanção acessória de inibição de conduzir, a irregularidade da decisão da entidade administrativa e, na sequência, arquiva-se o presente processo.
Sem custas por não serem devidas (artigo 93.º, n.º 3 do RGCOC).
Deposite e notifique.
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B. Apreciação do recurso:
Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as matérias que sejam de conhecimento oficioso.
No concernente ao recurso da sentença ou despacho judicial que aprecie a impugnação de decisão da autoridade administrativa importa ter presente que a impugnação apenas pode versar matéria de direito, nos termos do artigo 75.º, n.º 1, do RGCO.
No presente caso suscita o recorrente a questão de saber se a decisão administrativa cumpre os requisitos legais ou padece da irregularidade declarada no despacho judicial recorrido.
Vejamos.
Em primeiro lugar, cumpre assinalar que o despacho recorrido convoca as normas gerais do Ilícito de Mera Ordenação Social, instituído pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, desconsiderando o regime especial que decorre do Código da Estrada e que é aplicável no caso, sem prejuízo das remissões legais para o regime geral, uma vez que a contraordenação imputada ao arguido é de natureza rodoviária.
Assim, o processamento em matéria de contraordenações rodoviárias obedece ao estatuído nos artigos 170.º e seguintes do Código da Estrada.
No presente processo foi elaborado auto de contraordenação relativamente a infração rodoviária punível com coima e sanção acessória de inibição de conduzir, tendo o arguido prestado depósito da quantia correspondente ao mínimo da coima aplicável, como garantia do pagamento da coima, nos termos do artigo 173.º, n.º 1, do Código da Estrada. Entretanto, decorrido o prazo legal sem que o arguido tivesse apresentado defesa, o depósito converteu-se em pagamento voluntário da coima, por força do disposto no n.º 6 do citado preceito legal, com os correspondentes efeitos previstos no n.º 4, do artigo 172.º, do Código da Estrada (o pagamento voluntário da coima determina o arquivamento do processo, salvo se à contraordenação for aplicável sanção acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma, ou se for apresentada defesa).
Em conformidade com tais disposições legais, o processo prosseguiu com vista à imposição da sanção acessória, tendo sido proferida decisão condenatória, pela autoridade competente, que aplicou a inibição de conduzir pelo período de 30 dias.
Inconformado com tal decisão, o arguido deduziu impugnação judicial que foi decidida pelo despacho judicial objeto do presente recurso.
Neste último despacho o tribunal a quo julgou verificada irregularidade da decisão administrativa por:
- omissão dos factos conducentes às condições económicas do arguido B… e ao benefício económico por ele retirado;
- falta de enunciação dos critérios que fundamentam a imputação a título de negligência;
- falta de critérios discriminados quanto à fixação da sanção acessória de inibição de conduzir.
Irresignado com o decidido, o Ministério Público defende a conformidade da decisão administrativa com as normas legais e sustenta que não se verificam as causas de irregularidade apontadas pelo tribunal a quo.
Ora, examinada a decisão da entidade administrativa verifica-se que assiste inteira razão ao recorrente.
Como decorre da tramitação enunciada e de harmonia com os preceitos legais citados, face ao comprovado pagamento voluntário da coima a intervenção da entidade administrativa deveria restringir-se à aplicação da sanção acessória. Assim sucedeu, pois, a decisão administrativa impugnada efetivamente limitou-se a proceder à imposição ao arguido da sanção de inibição de conduzir.
Depois, a decisão em causa observa todos os requisitos impostos por lei, pois, cumpre os requisitos estabelecidos no artigo 181.º, do Código da Estrada[1], sob a epígrafe «Decisão condenatória», no qual se exige, sob o n.º 1, que a decisão inclua:
«a) A identificação do infrator;
b) A descrição sumária dos factos, das provas e das circunstâncias relevantes para a decisão;
c) A indicação das normas violadas;
d) A coima e a sanção acessória;
e) A condenação em custas.».
Mais esclarece o preceito que, no caso de não ter sido exercido o direito de defesa, a fundamentação, aludida na alínea b) do n.º 1, pode ser feita por simples remissão para o auto de notícia. Por seu turno, o artigo 170.º, n.º 1, do Código da Estrada, define o conteúdo obrigatório do auto de notícia.
No caso concreto, a decisão, para além da identificação do arguido, descreve os factos que lhe são imputados e que resultam do auto de notícia «No dia 2015-02-16, pelas 10:31 minutos, no local RUA …, …, VILA NOVA DE GAIA, conduzindo o veículo Ligeiro de Passageiros, com matrícula NX - .. - .., praticou a seguinte infracção: Desrespeitou a obrigação de parar imposta pela luz vermelha de regulação do trânsito.», sendo tais factos que considera provados, mais declarando: «Com a conduta descrita o (a) arguido(a) revelou desatenção e irreflectida inobservância das normas de direito rodoviário, actuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e no momento se lhe impunham, agindo de forma livre e consciente, bem sabendo que a conduta descrita nos autos é proibida e sancionada pela lei contra-ordenacional.»
Com base nos factos descritos e provados a entidade administrativa conclui que a infração foi cometida com negligência, nos termos do artigo 133.º, do Código da Estrada.
Face ao descrito, a decisão condenatória contém narração completa da materialidade da infração e suficiente descrição da vertente subjetiva da conduta infratora.
Além disso, a decisão também inclui menção sobre o comportamento anterior do arguido, explicitando que não tem averbado no seu registo de condutor a prática de qualquer contraordenação grave ou muito grave.
Acresce que está indicado também que os factos provados resultam do auto de notícia e do registo individual de condutor.
Mostra-se assim integralmente cumprida a fundamentação de facto exigida pela alínea b), do n.º 1, do artigo 181.º, do Código da Estrada (A descrição sumária dos factos, das provas e das circunstâncias relevantes para a decisão). Muito embora se possa considerar que a exposição factual não obedece à mais adequada técnica jurídica, o que se admite, certo é que permite ao arguido perceber cabalmente quais os concretos factos que lhe são imputados e em face deles deduzir impugnação[2]. Aliás, conforme tem entendido a jurisprudência não é exigível que a decisão administrativa obedeça ao rigor de fundamentação semelhante ao da sentença penal[3].
Por outro lado, a decisão também consigna as normas jurídicas violadas pelo descrito comportamento do arguido, explicita a moldura abstrata da sanção acessória e indica os fatores atendíveis para a determinação da medida concreta da sanção acessória, procedendo à efetiva fixação da medida da inibição de conduzir.
Por conseguinte, a decisão administrativa satisfaz todos os requisitos discriminados no n.º 1, do artigo 181.º, do Código Estrada.
Contudo, o despacho recorrido aponta à decisão condenatória omissões/falhas que, no entender do tribunal a quo, afetam a validade da mesma.
Ora, analisado o despacho impugnado não pode deixar de se assinalar que a matéria de direito é abordada de forma genérica e abstrata, o que dificulta a perceção exata das imperfeições apontadas à decisão administrativa, as quais surgem diluídas na densa exposição teórica adotada.
Assim, sumariamente ressalta o seguinte:
Inicia-se com a exposição das normas do RGCO (indicando por lapso o Código da Estrada) relativas à recorribilidade das decisões das autoridades administrativas, em processo contraordenacional, e em particular sobre a forma e prazo de recurso de decisões que aplicam uma coima, prossegue-se com a indicação da norma relativa à determinação da medida da coima, tecendo, de seguida, considerações gerais sobre essa operação. Então procede-se, pela primeira vez, a menção do caso concreto: «Ora, analisando a decisão administrativa é manifesto que a mesma é omissa quanto às condições económicas e benefício económico retirado pelo arguido e quanto aos critérios seguidos e discriminados quanto à fixação da sanção acessória concreta aplicada (…). Em conclusão, a autoridade administrativa proferiu a decisão sem fundamentar os critérios que estiveram posteriormente na base da sanção acessória aplicada, ou seja, não foram apontados o processo lógico e/ou as circunstâncias que basearam a aplicação da sanção acessória». Mais adiante declara-se: «Acresce que, relativamente à implícita imputação a título de negligência, se desconhece o processo lógico que levou a autoridade administrativa a considerá-la, quais as circunstâncias em que se baseou para concluir pela sua verificação».
Prossegue-se depois com a transcrição do artigo 58.º do RGCO e relativamente ao caso concreto afirma-se: “Ora, o elemento subjetivo do tipo de ilícito, para além de não se encontrar elencado no local destinado à descrição da factualidade provada, não contém em si mesmo qualquer factualidade suscetível de se a ele se subsumir, e, por conseguinte, a decisão não se encontra devidamente fundamentada. Note-se que se dão como provados os factos constantes do auto de contraordenação (ponto 5) e só posteriormente se faz alusão à prática da contraordenação a título de negligência (ponto 6)».
Após menção das finalidades visadas pela imposição dos requisitos da decisão administrativa, o tribunal a quo declara: «Ora, no caso dos presentes autos, verifica-se que inexiste qualquer descrição factual relativa ao elemento subjetivo da infração em causa devidamente sustentada e fundamentada que legitime a aplicação da sanção em causa». Prossegue com exposição teórica sobre o conceito de factos e em geral sobre as consequências da falta de fundamentação da decisão administrativa, concluindo que deve sujeitar-se tal omissão às regras da irregularidade, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, do Código Penal. Debate, ainda, a possibilidade de conhecimento oficioso de tal irregularidade e do aproveitamento dos atos processuais, procedendo, então, à derradeira menção sobre o caso concreto: «Ora, in casu, as irregularidades cometidas, e já referidas supra, invalidam a própria decisão administrativa e, segundo um critério cronológico, os seus termos (note-se, não os atos). Na verdade, na medida em que nada é referido de concreto quanto às condições económicas, ao beneficio económico retirado pelo arguido e a falta de indicação dos factos relativos ao elemento subjetivo do ilícito, aliado à não descrição minimamente fundamentada do processo que levou à aplicação de uma sanção acessória a título negligente não foi dada a hipótese ao arguido de conhecer todos os elementos relativos à infração, o que o impediu de perceber as razões que a alicerçaram (ou não) e, consequentemente, de impugnar tais fundamentos.
Para além do mais, não compete ao Tribunal averiguar, neste âmbito, suprindo a inércia da entidade administrativa, quais as condições económicas do arguido, o benefício económico por este retirado, ou indicar os factos relativos ao elementos subjetivos do ilícito, pois caso contrário não estaria, como lhe compete, a apreciar o mérito da decisão da entidade administrativa ... mas sim, o que não é possível, a conhecer de matéria nova e a coartar ao arguido, pelo menos, uma instância de recurso.»
Perante o exposto, importa, agora, enfrentar as concretas falhas detetadas na decisão administrativa.
Ao nível factual, o tribunal a quo aponta a omissão de factos conducentes às condições económicas do arguido e ao benefício económico por ele retirado.
Ora, efetivamente da decisão administrativa nada consta sobre tais aspetos, porém, não se trata de omissão relevante, contrariamente ao defendido na decisão recorrida.
A factualidade considerada provada satisfaz a exigência legal que decorre do artigo 181.º, n.º 1, alínea b), do Código da Estrada, como já referido.
Por outro lado, não se impõe o apuramento de factos relativos àquelas matérias para a determinação da sanção que foi objeto da decisão condenatória, posto que a norma do artigo 18.º, do RGCO, com a epígrafe «Determinação da medida da coima», a que alude o despacho recorrido, não tem aplicação no caso concreto, porquanto existe regime especial que prevalece sobre o regime geral.
Na verdade, relativamente às contraordenações rodoviárias regem as normas do Código da Estrada, diploma que procede, no artigo 138.º, à classificação das contraordenações como leves, graves e muito graves, distinguindo as sanções que lhes correspondem, mais estabelece, no artigo 139.º, os critérios de determinação da medida das sanções aplicáveis a tais infrações.
Sucede que «a situação económica do infrator» (mesmo assim com a indicação expressa de: «quando for conhecida»), constitui fator a atender para a determinação da coima, nos termos do n.º 2, do citado artigo 139.º, mas já não é relevante para a fixação da medida concreta da sanção acessória. No concernente à determinação da inibição de conduzir importam antes a gravidade da contraordenação e da culpa, bem como os antecedentes do infrator relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos, de acordo com o estatuído no n.º 1, do mencionado artigo 139.º, sendo ainda indicados no n.º 3 do mesmo preceito legal, específicos critérios para o caso de a contraordenação ser praticada no exercício da condução.
No caso concreto, conforme decorre do explanado supra, à entidade administrativa competia apenas a aplicação da sanção acessória, por já estar consumado o pagamento voluntário da coima.
Por conseguinte, o não apuramento de factos relativos às condições económicas do arguido nenhuma interferência produz na validade da decisão administrativa, assim como a apontada omissão de factos referentes ao benefício económico por ele retirado da infração, sendo certo que, no caso concreto, a infração em causa não é propiciadora de benefícios para o infrator, como sucederá noutro tipo de contraordenações, mormente com reflexos no património do infrator.
Conexa com esta matéria, embora sob a vertente da aplicação do direito, está a última deficiência apontada à decisão administrativa. Trata-se da invocada falta de discriminação dos critérios que presidiram à fixação da sanção acessória de inibição de conduzir.
Decorre do que já se declarou que a decisão administrativa inclui a explicação da operação de fixação da medida da sanção acessória, contendo a informação de que a contraordenação praticada pelo arguido é classificada como muito grave e que lhe corresponde inibição de conduzir que pode ser fixada entre 2 a 24 meses, mais explicitando, no ilustrativo segmento reproduzido na motivação do recurso, que foram «ponderados os elementos determinantes da medida de sanção constantes nos artigo 139º do Código da Estrada (nomeadamente, o facto de o arguido não ter averbado no seu registo de condutor a prática de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave),» e ainda que, ao abrigo do disposto do artigo 140.º, do Código da Estrada, se procedeu à atenuação especial da sanção acessória de inibição de conduzir.
Portanto, a decisão administrativa não padece da indicada deficiência na fundamentação da medida da sanção acessória.
Finalmente, no que concerne à vertente subjetiva da contraordenação imputada ao arguido[4] é apontada omissão ora ao nível da descrição factual ora como falta de fundamentação de facto, como se extrai das passagens seguintes: «o elemento subjetivo do tipo de ilícito, para além de não se encontrar elencado no local destinado à descrição da factualidade provada, não contém em si mesmo qualquer factualidade suscetível de se a ele se subsumir, e, por conseguinte, a decisão não se encontra devidamente fundamentada»; «verifica-se que inexiste qualquer descrição factual relativa ao elemento subjetivo da infração em causa devidamente sustentada e fundamentada que legitime a aplicação da sanção em causa»; e depois no dispositivo consta «falta de enunciação dos critérios que fundamentam a imputação a título de negligência».
Do modo descrito, a censura dirigida à decisão administrativa, quanto à matéria do elemento subjetivo da contraordenação, revela-se confusa e desfasada da concreta decisão impugnada.
Com efeito, não indica especificamente e por referência à concreta decisão qual o momento ou segmento decisório que padece de anomalia, além do que trata como sendo uma mesma deficiência a omissão do facto e a omissão da justificação do facto, depois, ao que parece, afronta a matéria sob o prisma do conceito de direito.
Ainda assim, verifica-se que a decisão condenatória considera demonstrados factos que revelam a negligência, sem prejuízo da falha de rigor técnico acima assinalada, indica que tal matéria resulta da materialidade da conduta infratora e da prova que decorre do auto de notícia, por força do disposto no artigo 170.º, n.º 4, do Código da Estrada, mais reporta o normativo legal onde se prevê a punição a título de negligência, conforme resulta da passagem seguinte: «Face aos elementos existentes no processo, consideram-se provados os factos constantes do auto de contra-ordenação.
Com a conduta descrita o (a) arguido (a) revelou desatenção e irreflectida inobservância das normas de direito rodoviário, actuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e no momento se lhe impunham, agindo de forma livre e consciente, bem sabendo que a conduta descrita nos autos é proibida e sancionada pela lei contra-ordenacional.
Assim, os factos descritos e provados levam a concluir que com a infracção foi praticada a título de negligência, nos termos do art. 133º do Código da Estrada, porquanto o arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado».
Assim sendo, a decisão administrativa não padece de qualquer uma das deficiências referentes ao elemento subjectivo da contraordenação, que o tribunal a quo aponta nos termos indicados.
Por seu turno, a decisão recorrida revela insuficiência factual, porquanto não integra todos os factos relevantes para a decisão de direito, sendo evidente a falta de menção dos factos relativos à vertente subjetiva da conduta, ou seja, não se encontram discriminados no segmento respetivo (ponto III-Dos Factos) e inexiste também qualquer menção na motivação da decisão de facto (ponto IV-Motivação da Decisão de Facto); além de também omitir a referência sobre o comportamento anterior do arguido, quanto à prática de contraordenações graves ou muito graves, em sede de matéria de facto (ponto III-Dos Factos), apesar de mencionar na motivação da decisão de facto (ponto IV-Motivação da Decisão de Facto), que a convicção do tribunal se baseou no registo de condutor de fls. 3 e 4.
Por conseguinte, impõe-se revogar a decisão recorrida e determinar que a mesma seja substituída por outra, que não declare a irregularidade da decisão administrativa, devendo ainda ser supridas as indicadas omissões da matéria de facto, e aprecie os demais fundamentos do recurso de impugnação judicial.
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III. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam a sua substituição por outro, nos termos supra enunciados.
Sem custas.
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Porto, 24-01-2018
Maria dos Prazeres Silva
Borges Martins
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[1] Sendo inegável a similitude com a norma geral prevista no artigo 58.º do RGCO.
[2] Vd. Acórdão da Relação de Coimbra de 29-02-2012, proc. 125/11.7TBFCR.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] cfr. Acordão do STJ de 21-9-2006, proc.06P3200, acessível em www.dgsi.pt.
[4] A que despacho recorrido se refere como implícita imputação a título de negligência.