Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7/22.7SFPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: NULIDADES
PRINCÍPIO ACUSATÓRIO
OBJECTO DO PROCESSO
MEDIDAS DE COAÇÃO
Nº do Documento: RP202206087/22.7SFPRT-A.P1
Data do Acordão: 06/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Em matéria de nulidades, vigoram os princípios da legalidade e da tipicidade – só há nulidade, (seja relativa ou absoluta) nos casos expressamente previstos na Lei Processual-Penal.
II - A estrutura acusatória do Processo Penal (temperada no nosso Ordenamento Jurídico com várias manifestações do princípio do investigatório), não comporta uma definição do objecto do processo no momento do requerimento do M.ºP.º para aplicação de medidas de coacção.
III - O objecto do processo é fixado, após o encerramento do Inquérito, com o proferimento da Acusação."
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 7/22.7SFPRT-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto - Juízo Inst. Criminal - Juiz 5



Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


No Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto - Juízo Inst. Criminal - Juiz 5, Inquérito supra referido, em que é arguido AA, sujeito à medida de prisão preventiva, foi proferido, após requerimento do arguido, Despacho com o seguinte teor:
“A fls. 99 a 102 vem o arguido AA insurgir-se contra o despacho que determinou a sua sujeição a medida coactiva de prisão preventiva, por violação do disposto nos artsº 263º e 264ºdo C.P.P. já que não poderia o JIC alterar a qualificação jurídica constante da indiciação que lhe foi comunicada.
Na verdade, o crime inicialmente imputado (artº 25º do D.L. 15/93 de 22/1 não integra o conceito de criminalidade altamente organizada p.p. pelo artº 1º al. m) do CPP e por via disso, não possibilita a aplicação da prisão preventiva.
O JIC decidiu, sem comunicar previamente essa alteração, uma convolação do artº 25º para o crime p.p. pelo artº 21º do DL 15/93 de 22/1 com a única finalidade de aplicar a prisão preventiva inviabilizando o pleno e efectivo exercício do contraditório do arguido (artº 32º nº5 da C.R.P.).
Ocorreu uma alteração não substancial dos factos (artº 358º do C.P.P.) que teria de ser comunicada o que não sucedeu, verificando-se a nulidade prevista na al. d) do artº 120º do C.P.P., 32º da CRP conjugados com o artº358º do C.P.P. e 120º nº3 al. c) do mesmo diploma legal.
O M.P. pronunciou-se no sentido de não se mostrar verificada a apontada nulidade.
Cumpre apreciar:
Nos presentes autos, o Ministério Público, com os factos e prova indicados no auto de detenção de fls. 1 a 10 promoveu o interrogatório judicial dos arguidos BB e AA, entendendo que tais factos eram susceptíveis de integrar a prática de um crime de tráfico de menor gravidade p.p. pelo artº 25º al. a) do DL-15/93.
Sujeitos a 1º interrogatório judicial, os arguidos não prestaram declarações.
Nessa altura, o Ministério Público voltou a integrar os factos na disposição legal acima referida, mas entendendo, quanto ao arguido AA que existia perigo de continuação da actividade criminosa (para além do perigo de alarme social) e por via disso, entendeu que a única medida que podia afastar o referido arguido da prática do crime, seria a prisão preventiva. Fundamentou legalmente a sua promoção com o disposto nos artºs 202º al. c), por referência à al. m) do artº 1º e 204º al. c), todos do CPP.
O JIC entendeu que os factos fortemente indiciados não eram susceptíveis de integrar a prática do crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade, mas um crime de tráfico de produtos estupefacientes p.p. pelo artº 21º nº1 do DL-15/93, e tendo em conta os perigos acima referidos, decretou a prisão preventiva do arguido. Conforme resulta do nº 2 do artº 194 do C.P.P. na redacção dada por Lei nº 33/2019 de 22-05-2019, “Durante o inquérito, o juiz pode aplicar medida de coacção diversa, ainda que mais grave, quanto à sua natureza, medida ou modalidade de execução, da requerida pelo Ministério Público, com fundamento nas alíneas a) e c) do artigo 204º”, o que não é o caso porque o M.P. até o requereu. Dispõe ainda o nº 4 do citado preceito legal que “A aplicação referida no n.º 1 é precedida de audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no ato de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141º” Finalmente refere o nº6 do citado preceito legal que “A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade: a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime; c) A qualificação jurídica dos factos imputados; d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º Por seu turno o disposto no nº4 do artº 141º do C.P.P. referente ao primeiro interrogatório diz o seguinte: 4- “Seguidamente, o juiz informa o arguido: a) Dos direitos referidos no nº1 do artº 61º explicando-lhos se isso for necessário; b) Dos motivos da detenção; c) Dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; e d) Dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;(…) 6- “Durante o interrogatório, o Ministério Público e o defensor, sem prejuízo do direito de arguir nulidades, abstêm-se de qualquer interferência, podendo o juiz permitir que suscitem pedidos de esclarecimento das respostas dadas pelo arguido.(…)” O JIC podia, no caso aplicar medida mais gravosa que a requerida pelo M.P.
Também a alteração da qualificação jurídica dos factos foi comunicada ao arguido em sede de primeiro interrogatório judicial, obedecendo o despacho de aplicação de medida de coacção ao disposto no artº 141º nº4 do C.P.P. De tal despacho teve conhecimento o arguido assim como o respectivo mandatário, não tendo suscitado qualquer nulidade ou irregularidade. Não ocorreu assim qualquer nulidade. A existir qualquer irregularidade ou nulidade, estas mostram-se supridas já que não foram arguidas tempestivamente. (artsº 120ºnº 3 e 123º nº1 ambos do C.P.P.). ”
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Deste Despacho recorreu o arguido AA, formulando as seguintes conclusões:
“25- Ao arguido foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva
26- Decorre da indiciação constante de fis 1 a 10 que promoveu o 1° Interrogatório judicial dos arguidos BB e AA, que os factos aí imputados integram a prática de um crime p.e.p. pelo artigo 25° do DL 15/93 de 22 de Janeiro, (tal é vertido inclusive no despacho de que se recorre)
27- Tal crime não admite a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, cfr exposto nas motivações de recurso que por uma razão de brevidade se remete
28- Em nenhum momento durante o primeiro interrogatório judicial foi ao arguido comunicada a alteração da qualificação jurídica, apenas e só no despacho que decretou a medida de coacção foi comunicada inovatoriamente essa alteração sem ter sido dada qualquer possibilidade prévia de se pronunciar exercendo assim um pleno contraditório
29- O arguido ciente que o crime imputado não possibilitava a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva exerceu o seu direito ao silêncio, teria uma postura diferente se lhe fosse imputado um crime do artigo 21° do DL 15/93 de 22 de Janeiro ao invés do crime constante na indiciação), cfr se expôs nas motivações de recurso (pontos 3 a 8)
30- Aliás, do próprio despacho que aplicou a medida de coacção resulta a alteração da qualificação jurídica sem prévia comunicação “ Do teor dos elementos de prova constantes dos autos descritos a fis 66/6 7 resultam fortes indícios da prática pelos arguidos, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21° n°1 do DL 15/93 de 22 de Janeiro (e não com o devido respeito de um crime p.e.p. pelo artigo 25° do mesmo diploma, bastando atentar no descrito do auto de notícia e nas fotografias de fis 26 e seguintes)
31- que comunicar os factos pelos quais vem indiciado (ex vi artigo 141° n° 4) é distinto do que comunicar que se entende que os mesmos preenchem crime diverso do imputado! Não se discute que o Juiz de instrução possa aplicar medida coactiva mais grave do que a promovida pelo M.P,
32- Apenas se discute e se síndica que estando o arguido indiciado por um determinado crime, se possa sem prévia comunicação alterar a qualificação jurídica (para crime mais grave) de forma a poder aplicar a medida de coacção de prisão preventiva
33- Deve instruir o presente recurso a indiciação constante a fis 1 a 10, a ata de audição do arguido (e a respectiva gravação), bem como o despacho que aplicou a medida de coacção de forma a corroborar que em nenhum momento foi comunicada qualquer alteração da qualificação jurídica ao arguido,
34- Entende o arguido que tal alteração da qualificação jurídica consubstancia manifesta nulidade violadora do disposto no artigo 1200 n° 3 alínea c) do C.P.P. e ainda do artigo 32° no 5 da C.R.P. uma vez que inviabilizou um contraditório de forma plena,
35- Nulidade que foi arguida tempestivamente,
36- Denote-se que dispõe o artigo 379° n°1 b) do C.P.P por remissão ao disposto no artigo 358° n°3 diz que é nula a sentença que proceder a uma alteração da qualificação jurídica sem prévia comunicação (sendo tal nulidade de conhecimento inclusive após a prolação da sentença),
37- Distinta a posição do arguido perante um crime em que abstractamente é possível a aplicação de prisão preventiva do que a posição perante crime em que tal medida coactiva não é possível de ser aplicada.
38- Entende o arguido que tal alteração serviu única e exclusivamente de forma a suprir o vertido na indiciação e possibilitar a aplicação da medida coactiva mais gravosa
39- Normas jurídicas violadas, a saber artigo 141° n° 4, 263°,
264°, 358°, 120 n° 2 alínea d) e 120° n°3 alínea c) todos do C.P.P. e ainda 32° n°5 da C.R.P.
40- Deve o presente recurso proceder e em virtude decretar-se a nulidade invocada e alterar-se a medida de coacção vigente, substituindo-a por uma menos gravosa.”
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O MºPº em 1ª Instância defendeu a rejeição do recurso, ou a sua improcedência.
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela procedência do recurso, mas com motivação diferente deste, entendendo que o Despacho padece “da nulidade cominada pelo artigo 194º, n.º 6, com efeitos invalidantes do despacho que decretou a prisão preventiva, nulidade que foi tempestivamente arguida, pois, mesmo que se considere tratar-se de nulidade dependente de arguição, ela não podia tê-lo sido no ato, porque o despacho foi proferido fora do ato processual consubstanciado pelo interrogatório e exarado não correspondente auto, mas em documento autónomo”.
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Em resposta ao Parecer, o recorrente reiterou a procedência do recurso.
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Colhidos os vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o recorrente AA pretende que se “decrete” a nulidade do Despacho que aplicou a prisão preventiva e se altere “a medida de coacção vigente, substituindo-a por uma menos gravosa”.
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Dos autos resulta o seguinte:
- Após detenção, foram sujeitos a interrogatório judicial os arguidos AA (aqui recorrente) e BB.
- Findo o interrogatório do segundo, do Auto de audição de arguidos (Interrogatório judicial) e aplicação de medidas de coacção consta o seguinte:
“Seguidamente dada a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público, no uso dela disse:
(…)
O MºPº requer a aplicação ao arguido BB, para já, da medida de coacção prevista no artigo 198.º e a de afastamento dos Bairros conotados com o consumo e tráfico de estupefacientes; relativamente ao arguido AA, ao mesmo deverá ser aplicada a prisão preventiva (tudo cumulado com as obrigações decorrentes do TIR já prestado).”.
Seguidamente foi dada a palavra aos Ilustres Mandatários dos arguidos, tendo sido dito: “nada ter a opor ou a requerer, por ora, relativamente às medidas de coacção promovidas à excepção da medida promovida quanto ao arguido AA que considera excessiva, sendo, em última ratio, de aplicar a OPH.”.
- Foi, em seguida, proferido Despacho, em que após se validar as detenções efectuadas se considerou que “do teor dos elementos de prova constantes dos autos descritos a fls. 66/67 resultam fortes indícios da prática pelos arguidos, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21.º-1, do Dec.– Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (e não, com o devido respeito, de um crime p. e p. pelo art.º 25.º do mesmo diploma, bastando atentar no descrito no auto de notícia e nas fotografias de fls. 26 e seguintes”.
Em relação ao aqui recorrente foi decidido que “aguardará os ulteriores termos do processo em Prisão Preventiva, para além das obrigações decorrentes do termo de identidade e residência já prestado – cfr. arts. 191.º a 193.º, 196.º, 202.º, n.º 1, al. a), e 204.º c), todos do Código do Processo Penal”.
Ordenadas as medidas necessárias para cumprimento da decisão, foi o Auto encerrado.
- Em data posterior, em representação do arguido, foi interposto requerimento alegando a nulidade do Despacho “nos termos dos artigos 379º b) do C.P.P conjugado com o artigo 120º nº 2 alínea d) e 120º nº3 alínea c) ( nulidade que pode ser conhecida e apreciada até ao fim do debate instrutório)”.
- Esse requerimento foi indeferido, considerando-se que “o JIC podia, no caso aplicar medida mais gravosa que a requerida pelo M.P.”, e que “alteração da qualificação jurídica dos factos foi comunicada ao arguido em sede de primeiro interrogatório judicial, obedecendo o despacho de aplicação de medida de coacção ao disposto no artº 141º nº4 do C.P.P. De tal despacho teve conhecimento o arguido assim como o respectivo mandatário, não tendo suscitado qualquer nulidade ou irregularidade”.
Conclui-se não ter ocorrido qualquer nulidade, e a existir já teria sido suprida já que não foi arguida tempestivamente.
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No recurso interposto, refere-se que o mesmo se circunscreve à invocação de uma “nulidade”: “apenas se discute e se síndica que estando o arguido indiciado por um determinado crime, se possa sem prévia comunicação alterar a qualificação jurídica (para crime mais grave) de forma a poder aplicar a medida de coacção de prisão preventiva”.
Alega-se que “tal alteração da qualificação jurídica consubstancia manifesta nulidade violadora do disposto no artigo 120º n° 3 alínea c) do C.P.P. e ainda do artigo 32° no 5 da C.R.P. uma vez que inviabilizou um contraditório de forma plena”.
Acrescenta-se “que dispõe o artigo 379° n°1 b) do C.P.P por remissão ao disposto no artigo 358° n°3 diz que é nula a sentença que proceder a uma alteração da qualificação jurídica sem prévia comunicação (sendo tal nulidade de conhecimento inclusive após a prolação da sentença”)”.
Termina-se pedindo que se decrete “a nulidade invocada” e se altere “a medida de coacção vigente, substituindo-a por uma menos gravosa”.
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Apreciando:
O recurso tem por objecto um Despacho proferido após a decisão que impôs ao recorrente a prisão preventiva, e que indeferiu a arguição de nulidade dessa decisão, insistindo-se na invocação de uma “nulidade”.
Mostra-se, assim, adequado começar por relembrar que em matéria de nulidades, vigoram os princípios da legalidade e da tipicidade – só há nulidade, (seja relativa ou absoluta) nos casos expressamente previstos na Lei Processual-Penal.
E apenas nesses, pois “as normas relativas a nulidades insanáveis ou sanáveis são normas excepcionais, dado o seu carácter taxativo e contrário ao princípio constitucional do Julgamento no mais curto prazo (art. 32º, nº 2, CRP)”, anota o P. P. de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 4ª ed., Univ. Católica, p. 313 e segs.
Então, qual a “nulidade” que surge invocada no recurso?
E a resposta é (como decorre do argumentário acima sintetizado): a violadora do disposto no artigo 120º n° 3 alínea c) do C.P.P. e ainda do artigo 32° no 5 da C.R.P., a que se acrescenta “o artigo 379° n°1 b) do C.P.P por remissão ao disposto no artigo 358° n°3”.
Ora, o art. 120º n° 3 alínea c) do C.P.P, não tipifica uma nulidade, mas sim o modo e tempo de arguição de determinadas nulidades: “tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito”.
Tão pouco o faz, como é evidente, o art. 32º, nº5 da CRP que – como é próprio da Constituição – se restringe à enunciação de princípios, neste caso, o da estrutura acusatória do processo penal.
Quanto ao art. 379º, al. b), do CPP, esse sim, tipifica uma nulidade, mas da Sentença, não do Despacho que fixa medidas de coacção.
As nulidades da Sentença têm – conforme deverá ser sabido – um regime especial, diverso do geral, quer quanto à sua tipificação, quer quanto à forma da sua arguição.
Mostra-se, assim, por completo descabido invocar aqui tal nulidade, cuja norma tipificadora não é aplicável ao caso.
Isto é suficiente para definir a improcedência do recurso.
Sem prejuízo, acrescente-se que a estrutura acusatória do Processo Penal (temperada no nosso Ordenamento Jurídico com várias manifestações do princípio do investigatório), não comporta uma definição do objecto do processo no momento do requerimento do M.ºP.º para aplicação de medidas de coacção.
Mal andaria um Ordenamento Jurídico em que se exigisse a definição do objecto do processo, numa fase inicial do Inquérito, em que ainda se procura reunir toda a prova necessária para o apuramento dos crimes cometidos e o conhecimento dos respectivos autores; o objecto do processo é fixado, após o encerramento do Inquérito, com o proferimento da Acusação.
Paralelamente, e quanto ao respeito pelo princípio do contraditório, e ao momento apropriado para a invocação de eventual “nulidade”, praticada:
Do auto de Interrogatório em causa (e acima referenciado), resulta inequívoco o respeito por tal princípio, tendo sido dada a oportunidade ao representante do recorrente para se pronunciar sobre a medida de coacção promovida pelo M.ºP.º que já era a de prisão preventiva.
E houve oposição, mas apenas por se considerar “excessiva” a prisão preventiva, propondo-se a obrigação de permanência na habitação (que, também, apenas seria aplicável ao crime de tráfico tipificado no art. 21º, nº 1, do DL 15/93).
Quanto ao momento da invocação de eventual “nulidade”, de acordo com o regime estabelecido no artº 120º, nº3 al. a) do CPP, - que é a alínea aplicável e não a pretendida alínea c) - tratando-se de nulidade de acto em que o interessado ou o seu advogado estiverem presentes, essa nulidade deve ser arguida, antes do acto ter terminado, sob pena de se considerar sanada.
E não o foi, como resulta do respectivo auto que faz fé quanto aos termos em que se desenrolou (art. 99º, CPP).
Refira-se, por último, que neste Tribunal, o Sr. Procurado Geral-Adjunto – ao contrário do M.ºP.º em 1ª Instância que defendeu, mesmo, a rejeição liminar do recurso – pronuncia-se pela existência de uma nulidade constante de tipificação diferente da que integra o fundamento do recurso.
Alude ao art. 194º, nº 6, do CPP, onde se estabelece que “a fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
(…)
c) A qualificação jurídica dos factos imputados.”.
Essa é uma nulidade relativa, portanto não do conhecimento oficioso, que não foi tempestivamente invocada pelo interessado, nem faz parte do objecto do recurso (o parecer do Procurador Geral-Adjunto neste Tribunal não tem a virtualidade de alterar o objecto do recurso).
Não obstante, acrescente-se que tal nulidade ainda que invocada pelo interessado, e de forma tempestiva, também não existiria: o Despacho contém a qualificação jurídica dos factos; o que acontece é que ela diverge do constante do requerimento do M.ºP.º que antecedeu o acto de audição do arguido (Interrogatório judicial) e fixação das medidas de coacção, cujo procedimento se encontra previsto nesse art. 194º, do CPP. Mas isso a disposição em causa não tipifica como nulidade, como decorre do acima transcrito, apenas impondo que se não faça uso “de quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição” (nº7 do art. 194º - “sem prejuízo do disposto na alínea b) do número anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 4”).
Refira-se, por último, que para além do já caracterizado respeito pelo princípio do contraditório, também, na parte restante, se não registou qualquer prejuízo para os direitos de defesa: esta poderia ter recorrido do Despacho que aplicou a prisão preventiva, nomeadamente, discordando da qualificação jurídica que esteve na base da sua aplicação.
Não o fez, limitando-se a invocar a sua nulidade, pela forma acabada de apreciar.
Assim, e em conclusão, os fundamentos do recurso não preenchem, nem respeitam, os princípios da tipicidade e legalidade em matéria de nulidades; ainda que de tal imperfeição não padecesse o recurso – e tal como referido no Despacho recorrido –, não foi praticada qualquer nulidade, e a verificar-se já teria sido sanada por não invocada tempestivamente.
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Nos termos relatados, decide-se julgar improcedente o recurso interposto em representação do AA, mantendo-se o Despacho recorrido.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em 3 UC’s.
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Porto, 08/06/2022
José Piedade
Horácio Correia Pinto