Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1151/17.8T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
LINHAS ELÉCTRICAS
INDEMNIZAÇÃO
DEPRECIAÇÃO DO VALOR DO IMÓVEL
Nº do Documento: RP202306151151/17.8T8AVR.P1
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A servidão de passagem de linhas eléctricas, ainda que exista a possibilidade de afastamento ou substituição dos apoios das linhas, nas situações e dentro do condicionalismo previstos nos arts. 43º e 44º do D.L. nº 43335, de 19/11/1960, importa sempre limitações ao direito de propriedade, dando lugar a indemnização quando a limitação se traduza na depreciação do valor do imóvel.
II - Esta depreciação constitui um dano decorrente do atravessamento do prédio pela linha eléctrica e não da eventual circunstância de o proprietário não requerer a modificação da linha.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1151/17.8T8AVR.P1
(Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Aveiro – Juiz 1)


Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Deolinda Varão
2ª Adjunta: Isoleta Costa

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I AA e esposa, BB, intentaram, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, acção administrativa comum, sob a forma ordinária, contra “A..., S.A.”, actualmente com a denominação “A...”, pedindo a condenação desta a:
A) I – “reconhecer que os AA. são proprietários, donos e legítimos possuidores dos prédios identificados nas als. a), b), c), d) e e) do artº. 1º” da petição inicial;
II – e, “considerando-se provada a sua responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito”:
a) retirar os postes e fios de alta tensão que estão implantados e passam sobre os prédios dos AA., repondo tudo no seu estado anterior;
b) “indemnizar os AA. por todos os danos (prejuízos) patrimoniais e não patrimoniais já liquidados nos artºs. 167º a 189º e 227º” da petição inicial, que ascendem a €104.500,00.
B) Subsidiariamente pedem a condenação da R. a:
I – “reconhecer que os AA. são proprietários, donos e legítimos possuidores dos prédios identificados nas als. a), b), c), d) e e) do artº. 1º” da petição inicial;
II – e, “considerando-se que o acto da Ré não deva ser qualificado como ilícito”, “a título de responsabilidade por acto lícito, à reparação “in natura”, ou seja, à reposição da situação hipotética actual, à reparação de todos os danos emergentes e de todos os lucros cessantes que se venham a provar que têm um nexo de causalidade com o acto lícito danoso, a liquidar em execução de sentença”.
Alegaram para tal que são proprietários dos cinco prédios identificados no art. 1º da petição inicial, que se encontram em zona que permite a afectação à construção de pavilhões ou naves para fins industriais, designadamente armazéns, que diligenciaram pela obtenção de projectos com vista a submeter os referidos terrenos junto dos organismos próprios à apreciação de viabilidade de construção de naves industriais, tendo obtido parecer favorável, e que a R., no âmbito da sua actividade de distribuição de energia eléctrica em regime de concessão de serviço público, avançou com a construção de infraestruturas destinadas a dar suporte a uma linha de alta tensão de 60 kW entre Mourisca do Vouga e Ílhavo, tendo implantado o apoio nº 7 de suporte a essa linha no prédio dos AA. identificado na al. d) do art. 1º da petição inicial, para o que entrou nos prédios dos AA. com pessoal e maquinaria que contratou para o efeito, sem autorização, procedeu ao desbaste e corte de eucaliptos de grande porte ali existentes, destruiu outras árvores em crescimento, desconfigurou o solo dos terrenos e ocupou uma faixa de terreno para colocação daquele apoio, ficando os AA. impossibilitados de continuar a explorar aqueles terrenos para fins de criação e produção de madeira e de implantar naqueles locais unidades industriais, inviabilizando qualquer tipo de utilização futura para toda a área daqueles prédios, inclusive a área não abrangida pelo corte e devassa.
A R. contestou, impugnando os factos alegados pelos AA. para fundamentar a sua pretensão e alegando que possuía licença de estabelecimento e licença de exploração para a linha em causa, encontrando-se o apoio implantado no prédio dos AA. devidamente licenciado pelo órgão do Governo com competência para tal efeito, que efectuou os trabalhos respectivos a coberto e por força da Intimação Administrativa emanada da D.R.E. do Centro, a que teve de recorrer, assim como à Posse Administrativa, para estabelecer uma linha eléctrica de utilidade pública, devido à intransigência do A. marido, e que a madeira cortada ficou nos respectivos terrenos.
Pediu ainda a condenação dos AA. como litigantes de má fé, em multa e indemnização.
Os AA. responderam, mantendo a posição assumida na petição inicial e defendendo não existir litigância de má fé da sua parte, requerendo, por sua vez, a condenação da R. como litigante de má fé, em multa e indemnização.
Foi realizada audiência prévia e foi elaborado despacho saneador, no qual o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro se declarou incompetente para conhecer do pedido subsidiário, decisão que foi confirmada, em recurso, por Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15/07/2016 (fls. 765/782).
Foi remetida, a pedido dos AA., certidão do processo para o Juízo Central Cível de Aveiro, nos termos do art. 99º, nº 2, do C.P.C., para conhecimento do pedido subsidiário formulado, originando a presente acção.
Por despacho de 10/05/2017 foi declarada suspensa a instância até à decisão final do pedido principal no processo do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, por o conhecimento do pedido subsidiário depender da improcedência daquele.
O pedido principal foi julgado improcedente, bem como os pedidos de condenação em litigância de má fé, por sentença de 29/07/2019, transitada em julgado, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.
Prosseguiram então os presentes autos, com dispensa da audiência prévia. Foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e foram elencados os temas da prova.
Procedeu-se seguidamente a julgamento.
Após, foi proferida sentença, em 02/12/2022, na qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar a R. a pagar aos AA. a quantia de €30.791,10, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a partir de 28/03/2017 (data em que os autos deram entrada no Tribunal da Comarca de Aveiro) e até integral pagamento.
De tal sentença veio a R. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões (!), que se transcrevem:
«A. Foi a Recorrente A... S.A. condenada a pagar aos Recorridos AA e BB a quantia global de €30.791,10, acrescida de juros de mora à taxa legal, a título de indemnização emergente de responsabilidade civil por factos lícitos, decorrente do estabelecimento da linha de distribuição de energia elétrica a 60 kV Mourisca-Ílhavo.
B. O presente recurso de apelação limita-se à parte da sentença que contende com a condenação da Recorrente no pagamento aos Recorridos do montante parcial de €30.000,00, referente à perda edificativa de 600 m2 nos terrenos propriedades daqueles, com fundamento no estabelecimento da linha.
C. Esta parte da sentença enferma de erro na apreciação da matéria de facto e de Direito, resultando da prova produzida que a perda da capacidade construtiva não é definitiva, uma vez que os terrenos dos Recorridos podem a todo o tempo recuperar a sua capacidade construtiva plena, não havendo qualquer definitividade na situação atualmente existente.
D. Tal matéria contende diretamente com os pontos 10, 15 e 16 dos factos provados, cuja alteração se impõe, em face da prova produzida em audiência de julgamento.
E. Inexistindo uma perda definitiva da capacidade construtiva, então não haverá qualquer prejuízo atendível a este título, resultando precludido enquadramento de Direito expendido na sentença proferida pelo tribunal a quo.
F. A verdade é que a indemnização fixada pelo tribunal a quo a título de perda de capacidade construtiva tem como consequência única e direta o enriquecimento indevido dos Recorridos, uma vez que lhes é permitido receber esta compensação monetária, sem que lhes seja retirada a possibilidade real e efetiva de restituir a plenitude das capacidades aos terrenos em causa, através de um pedido de modificação de linha, tal como previsto nos artigos 43.º e 44.º do Decreto-Lei n.º 43335 de 19 de novembro de 1960.
G. O ponto 10 dos factos provados deve ser retirado da matéria dada como provada, pois a resposta dada pelos senhores peritos a esta matéria em concreto deve ser apreciada e inserida no teor do relatório globalmente elaborado e, bem assim, nos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento.
H. Desde logo, resulta claramente da resposta aos quesitos 1.º e 2.º que os Recorridos apenas apresentaram junto da Câmara Municipal ... dois pedidos de informação prévia, ambos deferidos pelo Município e válidos por ano, inexistindo nos autos qualquer pedido de licenciamento para construção ou qualquer despacho camarário de indeferimento de um pedido dessa natureza.
I. E assim é uma vez que os Recorridos jamais apresentaram efetivamente qualquer pedido de licenciamento para efeitos de construção naquele local, tendo as suas démarches se limitado à apresentação dos PIP’s e nada mais.
J. Resulta da aplicação conjugada da alínea h), n.º 2 do artigo 4.º, do artigo 14.º e do n.º 3 do artigo 17.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação que o pedido de informação prévia não se confunde com o pedido de licenciamento, tanto mais que tem uma validade de um ano, sendo certo que a apresentação de pedido de licenciamento é obrigatória no caso de obras de construção de imóveis em áreas sujeitas a servidão administrativa, como é o caso dos terrenos versados nestes autos.
K. Sucede que os Recorridos jamais apresentaram junto da Câmara Municipal ... qualquer pedido de licenciamento nos termos e no prazo previstos nos citados normativos do RJUE, motivo pelo qual não poderia o tribunal recorrido ter dado como provado que caso não fosse o apoio n.º 7, seria concedida aos Recorridos licença de construção naquele local, pois nada existe no processo que confirme esta afirmação.
L. Aliás, seria até no âmbito deste pedido de licenciamento de construção que a Recorrente seria consultada pelo Município para se pronunciar quanto a uma eventual incompatibilidade técnica entre a construção projetada e o traçado da linha elétrica, o que nunca aconteceu.
M. Não tendo jamais sido apresentado um pedido de licenciamento, devidamente instruído com plantas, alçados e outros documentos técnicos, nem sequer se chegou a saber em que medida a linha e o apoio efetivamente contenderiam com uma eventual construção.
N. Sendo o pedido de licenciamento um procedimento administrativo que corre termos ao abrigo do RJUE, que tem prazos e formalismos próprios, não pode – sem mais – dizer-se que esse pedido de licenciamento seria indeferido, sem sequer o mesmo ter sido apresentado, pelo que o ponto 10 dos factos provados corresponde a um equívoco do tribunal recorrido e está desprovido de realidade de facto que lhe sirva de fundamento.
O. A inexistência de pedido de licenciamento resulta dos esclarecimentos prestados pelos senhores peritos em audiência de julgamento (ficheiro áudio de 04/07/2022, minutos 00:26:33.6 a 00:28:49.7 e minutos 00:32:23.4 a 00:38:05.5), do depoimento da testemunha CC (ficheiro áudio de 05/07/2022, minutos 00:05:51.5 a 00:10:45.4) e depoimento da testemunha DD (ficheiro áudio de 05/07/2021, minutos 00:08:19.7 a 00:09:04.6.
P. Impõe-se, pois, que o ponto 10. da factualidade dada como provada seja eliminado, pois nada se demonstrou quanto à existência de um pedido de licenciamento apresentado pelos Recorridos, nem nada se provou quanto a um indeferimento camarário desse pedido, muito menos com fundamento no estabelecimento do apoio n.º 7.
Q. Por outro lado, diz a sentença recorrida que “não há garantias de que o apoio nº 7 possa efetivamente ser mudado. Ou seja, o licenciamento pela Câmara Municipal carece de parecer prévio da A... e esta pode dizer que a linha não pode ser mudada”, tendo por força disso o tribunal recorrido dado como provados os pontos 15 e 16 acima citados.
R. Contudo, resulta do cotejamento entre a prova pericial (relatório e esclarecimentos) e a prova testemunhal (depoimentos das testemunhas CC e DD) que a modificação do local do apoio não só está legalmente prevista, como é totalmente possível do ponto de vista técnico, motivo pelo qual devem ser eliminados os pontos 15 e 16 dos factos provados.
S. Da ponderação de toda a prova produzida decorre a possibilidade real e efetiva de modificação do traçado da linha e da localização do apoio, pelo que a perda edificativa da aérea de 600 m2 não é definitiva, não se tratando por isso de um dano efetivo, real e atual.
T. A capacidade construtiva dos terrenos dos Recorridos pode a todo o tempo ser reintegrada na sua plenitude, assim os Recorridos queiram efetivamente construir e apresentem toda a documentação legalmente prevista para esse efeito.
U. Tal resulta da resposta aos quesitos 28.º e 35.º do relatório pericial - onde se ressalva inequivocamente a possibilidade de modificação da linha – e ainda dos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pelos senhores peritos, minutos 00:39:21.0 a 00:40:26.3.
V. No sentido da modificabilidade da servidão também se pronunciaram as testemunhas CC e DD, engenheiros eletrotécnicos e projetistas, que estiveram diretamente envolvidos no estudo, projeto e construção da linha elétrica versada nos autos e que são os técnicos que melhor conhecem a linha e que com maior propriedade se podem pronunciar sobre a viabilidade da sua alteração (ficheiros áudios de 05/07/2022, respetivamente minutos 00:12:10.8 a 00:13:55.6; e minutos 00:08:53.5 a 00:11:37.0, 00:15:22.4 a 00:15:50.5.
W. Ou seja, a prova produzida aponta claramente para a possibilidade de modificação da linha elétrica, estando ferida de erro a apreciação que o tribunal recorrido fez em sentido contrário.
X. Aliás, no ponto II da fundamentação de Direito, a sentença refere inclusivamente que esta servidão é temporária, pelo que jamais poderia o tribunal recorrido ter concluído pelo carácter definitivo da perda da capacidade construtiva.
Y. Ao admitir o pagamento desta indemnização, a decisão permite que os Recorridos sejam compensados pela perda da capacidade construtiva e posteriormente requeiram a modificação de linha, restituindo os terrenos à plenitude das suas aptidões, o que consubstancia um enriquecimento indevido e uma perversão do sentido e alcance dos danos indemnizáveis no âmbito de uma servidão elétrica.
Z. Assim, impõe-se a alteração da redação dos pontos 15. e 16. dos factos provados e, bem assim, a introdução de um novo facto, a saber:
FACTO NOVO O local de implantação do apoio n.º 7 e o traçado da linha elétrica são tecnicamente suscetíveis de alteração pela Ré, pelo que a servidão elétrica é temporária e modificável nas suas características.;
FACTO 15 Nos terrenos não deixou de ser viável a construção de qualquer pavilhão industrial ou armazém em toda a área daqueles prédios, tendo havido uma perda edificativa temporária de 600 m2.;
FACTO 16 A depreciação de valor do terreno para construção de € 30.000,00 não é um dano real, por haver uma efetiva possibilidade de modificação da linha no âmbito de um pedido de construção a apresentar pelos Autores.
AA. Sem conceder, considera a Recorrente que a sentença padece igualmente de erro na aplicação do Direito, designadamente quando dispõe que “O nexo de causalidade – art. 563.º do C. Civil – entre os danos e a conduta da Ré parece-nos manifesta – os prejuízos não teriam existido se a Ré não tivesse construído o Apoio nº 7 e fizesse passar os cabos sobre os terrenos dos AA.
BB. Este juízo de Direito está ferido de erro na sua formulação, uma vez que não se verifica o referido nexo causal.
CC. A servidão elétrica tem carácter temporário, ao contrário da expropriação por utilidade pública, que é de índole permanente, tendo o próprio tribunal a quo reconhecido a especial natureza do ónus que impende sobre os terrenos dos Recorridos.
DD. Sendo temporária, a servidão pode a todo o tempo ser extinta ou modificada, caso ocorra uma remoção total da infraestrutura elétrica ou caso ocorra uma alteração das suas características, como sendo a localização do apoio e/ou o traçado da linha aérea.
EE. In casu, resultou claramente demonstrado que é tecnicamente possível proceder à alteração do traçado da linha, desde que os Recorridos isso requeiram à Recorrente.
FF. Assim, a perda da capacidade construtiva para além de ser temporária, só subsiste enquanto os Recorridos assim pretenderem, pelo que o que dá causa à perda edificativa dos terrenos não é o estabelecimento do ativo elétrico (apoio e linha), mas sim a inexistência de qualquer pedido de modificação para efeitos de alteração da servidão.
GG. Enquanto os Recorridos não apresentarem um pedido de licenciamento camarário para construção do armazém e enquanto os Recorridos não apresentarem um pedido de modificação de linha, a perda da capacidade construtiva não é real, nem atual.
HH. Equivale isto a dizer que a linha e o apoio não são a causa adequada dessa suposta perda, mas sim a inércia dos Recorridos para devolver aos terrenos a sua plena capacidade construtiva.
II. Ou seja, o que a Recorrente pede ao tribunal ad quem é que seja exigida aos Recorridos uma efetiva e real vontade de levar a cabo uma construção naqueles terrenos, pois é apenas do exercício dessa vontade e desse direito que depende a alteração da linha.
JJ. Inexiste, por isso, nexo de causalidade adequada entre o estabelecimento da linha elétrica e a perda da capacidade construtiva, em virtude da real modificabilidade da servidão e da indiscutível possibilidade de alteração da linha.
KK. Inexistindo este nexo causal e, bem assim, inexistindo qualquer dano real e atual, a aplicação do regime de jurídico da responsabilidade civil por facto lícito terá que ser afastada, concluindo-se pela absolvição da Recorrente do pagamento desta indemnização.
PELO QUE, FACE AO QUE SE DEIXA DITO E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE SER JULGADA PROCEDENTE A PRESENTE APELAÇÃO, REVOGANDO-SE PARCIALMENTE A DECISÃO RECORRIDA E ABSOLVENDO-SE A RECORRENTE DO PAGAMENTO DA QUANTIA DE €30.000,00 A TÍTULO DE PERDA EDIFICATIVA.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.».
Os AA. apresentaram contra-alegações, pugnando pelo não provimento do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar:
a) apreciar da alteração da matéria de facto conforme propugnado pela recorrente;
b) averiguar, com base na pretendida alteração da matéria de facto ou independentemente dela, se não há lugar ao pagamento por parte da R. aos AA. de indemnização por perda edificativa de 600 m2 nos terrenos propriedade destes.
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Apreciemos a primeira questão.
O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).
Neste caso, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (nº 1 do art. 640º):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Uma vez que a impugnação da decisão de facto não se destina a que o tribunal de recurso reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, a lei impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
No caso concreto, verifica-se que a recorrente deu cumprimento às referidas exigências, especificando os concretos factos que põe em causa e indicando as razões da sua discordância, nomeadamente por referência aos meios de prova que, em seu entender, sustentam a solução que propugna.
Apreciemos então.
a) Pretende a recorrente que deve ser dado como não provado (embora utilizando a expressão “eliminado”) o facto do ponto 10 do elenco dos factos provados da sentença recorrida, o qual tem o seguinte teor:
“10 - Caso não fosse instalado o apoio nº 7 no prédio acima identificado em 1-d) dos Factos Provados, seria concedido aos AA. licença para ali construírem um armazém.”.
Para o efeito alega que “nada se demonstrou quanto à existência de um pedido de licenciamento apresentado pelos Recorridos, nem nada se provou quanto a um indeferimento camarário desse pedido, muito menos com fundamento no estabelecimento do apoio n.º 7”.
Ou seja, do ponto de vista da recorrente apenas se os AA. tivessem chegado a apresentar pedido de licenciamento e esse pedido fosse indeferido, com fundamento na existência do apoio nº 7, é que se poderia dizer que o licenciamento seria concedido caso não fosse instalado o apoio.
Ora, manifestamente a recorrente está a confundir situações: uma coisa é a circunstância de se verificar que sem a existência do apoio seria concedida licença para construção de um determinado armazém (obviamente que, depois de pedida, posto que as licenças só são concedidas a pedido dos interessados); outra coisa é ter sido pedida a concessão da licença e o pedido ter sido indeferido – são factos diferentes e um não interfere com o outro, embora possam ser interdependentes, nomeadamente se houvesse um indeferimento baseado na existência do apoio.
Com efeito, basta saber os eventuais requisitos de que depende o licenciamento da construção de um armazém com determinadas características nos terrenos dos AA. para perceber se o mesmo seria ou não concedido com a existência do apoio ali instalado. E a partir do momento em que se conclua pela não concessão, nem sequer há interesse em pedir o licenciamento, com os gastos que tal implica, sabendo à partida que a decisão vai ser de indeferimento.
O juízo do facto que consta do ponto 10 é um juízo técnico: saber se é ou não possível o licenciamento no estado actual do prédio, com o apoio nº 7 lá colocado.
E tanto assim é que, conforme decorre da motivação do tribunal, a prova deste facto decorreu do teor do relatório pericial com o resultado da perícia efectuada nos autos, junto em 04/10/2021.
Sendo que, analisado tal relatório, o facto em questão efectivamente resulta do teor das respostas dos Srs. peritos.
Tal facto, como decorre do que se disse, não é infirmado pela circunstância de os AA. não terem chegado a apresentar pedido de licenciamento e não ter havido indeferimento do mesmo (que, aliás, os AA. não alegaram que tivesse sucedido), situação que não é controvertida nos autos, pelo que desnecessário se torna apreciar se da prova indicada pela recorrente tais factos resultam ou não.
Conclui-se, pois, sem necessidade de outras considerações, que o facto do ponto 10 se deve manter no elenco dos factos provados, não podendo obter provimento nesta parte a impugnação da matéria de facto.
b) Defende igualmente a recorrente que deve ser alterada a redacção dos pontos 15 e 16 do elenco dos factos provados da sentença recorrida.
Tais factos têm o seguinte teor:
“15 - Nos terrenos não deixou de ser viável a construção de qualquer pavilhão industrial ou armazém em toda a área daqueles prédios, mas houve uma perda edificativa de 600 m2.
16 – O que perfaz uma depreciação de valor do terreno para construção de €30.000,00.”
Pretende a recorrente que passem a ter a seguinte redacção:
“15 - Nos terrenos não deixou de ser viável a construção de qualquer pavilhão industrial ou armazém em toda a área daqueles prédios, tendo havido uma perda edificativa temporária de 600 m2.”;
“16 A depreciação de valor do terreno para construção de €30.000,00 não é um dano real, por haver uma efetiva possibilidade de modificação da linha no âmbito de um pedido de construção a apresentar pelos Autores.”.
E defende ainda que, em ligação com esta alteração, seja acrescentado o que denomina de “facto novo”, com a seguinte redacção:
“O local de implantação do apoio n.º 7 e o traçado da linha elétrica são tecnicamente suscetíveis de alteração pela Ré, pelo que a servidão elétrica é temporária e modificável nas suas características.”.
Vista a redacção dos pontos 15 e 16 da matéria de facto e a redacção proposta pela recorrentes, verifica-se que esta não põe em causa o que ali consta como provado, apenas pretende que se acrescente a expressão “temporária” no ponto 15 e que do ponto 16 conste que a depreciação “não é um dano real, por haver uma efetiva possibilidade de modificação da linha no âmbito de um pedido de construção a apresentar pelos Autores.”.
Ora, no que respeita à “perda edificativa temporária” e a dizer que a depreciação “não é um dano real”, trata-se de matéria conclusiva e até de direito – na verdade, saber se a perda edificativa é temporária e se a depreciação não é um dano real são conclusões a retirar de factos concretos apurados, para além de que a existência de perdas e danos é também um dos pressupostos da existência de responsabilidade civil (mesmo por factos lícitos, como é a situação em causa nos autos).
Assim, tratando-se esta de matéria conclusiva e de direito e não de matéria de facto, não há lugar à sua inclusão nos factos (provados ou não provados). E nem sequer há que apreciar se a matéria em questão resulta ou não da prova produzida.
O mesmo sucede, adianta-se desde já, quanto à segunda parte da redacção proposta para o facto novo, pois que dizer que “a servidão eléctrica é temporária e modificável nas suas características” é igualmente matéria conclusiva que deve ser retirada dos factos concretos apurados, estando também ligada a um dos pressupostos da indemnização por responsabilidade civil, que é o dano.
Quanto às restantes alterações pretendidas [“por haver uma efetiva possibilidade de modificação da linha no âmbito de um pedido de construção a apresentar pelos Autores” e “o local de implantação do apoio n.º 7 e o traçado da linha elétrica são tecnicamente suscetíveis de alteração pela Ré”], decorre desde logo que terá existido algum equívoco da parte da recorrente, uma vez que o facto que foi efectivamente alegado consta da alínea b) dos factos não provados elencados na sentença recorrida, tendo sido dado como não provado que “o poste nº 7 possa ser mudado”, sem que a recorrente tenha impugnado a inclusão deste facto nos factos não provados.
Assim, por um lado, consta não provado, sem que a recorrente o tenha impugnado, que “o poste nº 7 possa ser mudado”.
E por outro lado, não foi alegado nos articulados, nomeadamente na contestação, que existe uma efectiva possibilidade de modificação da linha (note-se aqui trata-se da linha e não do apoio) no âmbito de um pedido de construção a apresentar pelos AA. e que o local de implantação do apoio n.º 7 e o traçado da linha eléctrica são tecnicamente susceptíveis de alteração pela R.. Não sendo factualidade alegada nos articulados, a mesma não pode agora ser considerada em sede de recurso.
De todo o modo, interpretando-se o recurso da R. nesta parte como pretendendo defender que está provado que o poste nº 7 pode ser mudado, vejamos se essa factualidade resulta ou não da prova produzida – a recorrente indica para o efeito os esclarecimentos prestados pelos Srs. peritos na audiência e os depoimentos das testemunhas CC e DD.
Na motivação constante da sentença recorrida fundamenta-se a resposta à alínea b) dos factos não provados nos seguintes termos:
As testemunhas arroladas pela Ré defenderam, em resumo, que os ora AA., nos termos da legislação em vigor, podem apresentar à Ré um projeto devidamente licenciado pela Câmara Municipal para construção de um edifício e que, se tal acontecer, a Ré é obrigada a alterar o local por onde passa a rede elétrica, designadamente o sítio onde se encontra instalado o apoio nº 7, ficando o proprietário do terreno com o encargo de comparticipar no custo da mudança do apoio na proporção de 50%.
Porém, conjugada toda a prova constata-se que, como resultou dos esclarecimentos prestados pelos Senhores Peritos, por vezes a Câmara Municipal consulta a REN ou a A..., estas informam que o projeto colide com o local por onde passa a rede elétrica e esta informação condiciona depois o licenciamento. Outras vezes para a A... poder alterar a linha de alta tensão é necessário que a REN altere, por sua vez, a linha de muito alta tensão e isso pode não ser possível por causa da estabilidade da linha. Isto é, não há garantias de que o apoio nº 7 possa efetivamente ser mudado. Ou seja, o licenciamento pela Câmara Municipal carece de parecer prévio da A... e esta pode dizer que a linha não pode ser mudada. Por sua vez, o proprietário se quiser vender (em vez de construir) é sempre prejudicado. Só vende por um valor muito mais barato por o comprador não ter a certeza se é ou não possível mudar o apoio.
A testemunha CC disse que o desvio da linha, na pior (mais cara) das hipóteses, ficaria em €50.000,00. Acrescentou que não é um valor exato.
A testemunha DD disse que a alteração do apoio 7, na hipótese de ser necessário colocar três postes (a hipótese mais cara), ficaria em €100.000,00. É um valor indicativo.”.
Ouvidos todos os esclarecimentos dos peritos e todos os depoimentos prestados pelas duas testemunhas em causa (não só os excertos indicados pelas partes), verifica-se que está correcta esta apreciação da prova por parte do tribunal recorrido, acrescentando-se que mesmo quanto às duas testemunhas em causa o que por elas foi dito quanto à mudança do apoio e/ou da linha decorre mais de um seu convencimento pessoal, subjectivo, do que da realidade concreta e objectiva, na medida em que o que defendem se ancora no seu convencimento de que, sendo pedida a mudança, desde que exista um projecto, tal será deferido pela R., mas admitindo que é sempre necessário avaliar em concreto se a mudança é possível. Ademais, a testemunha CC referiu que a R. “não se opõe a fazer um estudo de modificação da linha” – ora, fazer um estudo não é o mesmo que modificar a linha, existindo sempre a possibilidade de esse estudo concluir pela não possibilidade de modificação.
Assim, da prova produzida não resulta que deva considerar-se provada a factualidade da alínea b) dos factos não provados, não resulta que a mesma imponha decisão diversa sobre a matéria de facto (cfr. art. 662º, nº 1, do C.P.C.).
Pelo que, também nesta parte não merece provimento a impugnação da matéria de facto.
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Passemos à segunda questão.
Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão da A. na acção é a que consta dos factos dados como provados na sentença recorrida (transcrição):
«1 - Os AA. são donos e legítimos possuidores dos seguintes prédios rústicos:
a) prédio rústico composto de terreno a mato, sito no ..., freguesia ..., concelho de Águeda, com a área de 900 m2, a confrontar, do norte, com a estrada, do sul, com EE, do nascente, com FF e, do poente, com EE, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...23 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o nº ...08;
b) prédio rústico composto de terreno a mato, sito no ..., freguesia ..., concelho de Águeda, com a área de 2900 m2, a confrontar, do norte, com a estrada, do sul, com caminho, do nascente, com FF e, do poente, com Associação ..., inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...22 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o nº ...17;
c) prédio rústico composto de terreno a mato, sito no ..., freguesia ..., concelho de Águeda, com a área de 3000 m2, a confrontar, do norte, com a estrada, do sul, com GG e outros, do nascente, com Associação ... e, do poente, com caminho, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...20 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda (em conjunto com o artigo ...19) sob o nº ...03;
d) prédio rústico composto de terreno a mato, sito no ..., freguesia ..., concelho de Águeda, com a área de 9000 m2, a confrontar, do norte, com a estrada, do sul, com GG e outros, do nascente com HH e, do poente, com II, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...19 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda (em conjunto com o artigo ...20) sob o nº ...03;
e) prédio rústico composto de terreno a eucaliptal e pinhal, sito no ..., freguesia ..., concelho de Águeda, com a área de 780 m2, a confrontar, do norte, com JJ, do sul, com estrada, do nascente, com KK e, do poente, com LL e outros, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...15 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o nº ...24 (A).
2 - Estes terrenos estão em zona que permite a afetação à construção de pavilhões ou naves para fins industriais, designadamente armazéns (B).
3 - A Ré, enquanto operadora devidamente licenciada, dedica-se à atividade de distribuição de energia elétrica em regime de concessão de serviço público (C).
4 - No âmbito desta sua atividade, a Ré decidiu avançar com a construção de infraestruturas destinadas a dar suporte a uma linha de alta tensão de 60 kv entre Mourisca do Vouga e Ílhavo (D).
5 - Na realização deste projeto implantou o apoio nº 7 de suporte a essa linha de alta tensão no prédio rústico dos AA. inscrito na matriz sob o artigo ...19, acima identificado em A)-d), cujos trabalhos os funcionários da Ré iniciaram a 13/09/2011 (E).
6 - Por efeito do projeto referido, a linha de alta tensão em causa ficou sobreposta, atravessando-os, a todos os prédios acima identificados em 1 dos Factos Provados (F).
7 - A Ré valorou a ocupação dos prédios com a instalação do apoio nº 7 no prédio acima identificado em 1-d) dos Factos Provados e o atravessamento aéreo de todos os prédios pelos cabos de transporte da energia de alta tensão em €1.400,00, indemnização que os AA. recusaram, por insuficiente (G).
8 - Os AA. não recorreram à arbitragem prevista no art. 38.º do D.L. nº 43335 de 19/11/1960 (H).
9 - A Ré possui licença de estabelecimento para a linha de 60 kv denominada Mourisca – Vouga, concedida por despacho de 25/06/2007 da Direção dos Serviços do Ministério da Economia e da Inovação e à qual foi atribuída, depois, licença de exploração por Despacho de 25/11/2011 – fls. 299 e 307 (I).
10 - Caso não fosse instalado o apoio nº 7 no prédio acima identificado em 1-d) dos Factos Provados, seria concedido aos AA. licença para ali construírem um armazém.
11 – O referido armazém seria composto de um piso, a nível de rés-do-chão, e teria uma área de cerca de 2220 m2.
12 – O armazém ficaria com a cota da soleira a 0,50 metros da cota da estrada asfaltada, totalizando a altura de 7,50 metros (7,00 metros + 0,50 metros) – fls. 903.
13 – O armazém destinar-se-ia essencialmente à instalação de naves industriais.
14 – A renda potencial seria de € 1,5 m2 - € 2,00/m2.
15 - Nos terrenos não deixou de ser viável a construção de qualquer pavilhão industrial ou armazém em toda a área daqueles prédios, mas houve uma perda edificativa de 600 m2.
16 – O que perfaz uma depreciação de valor do terreno para construção de €30.000,00.
17 – A perda de rendimento fundiário é de €439,50.
18 - A Ré, para fazer implantação do Apoio nº 7 no meio do prédio acima identificado em 1-d) dos Factos Provados, e para fazer a passagem dos cabos de alta tensão nos cinco prédios cortou diversos eucaliptos de médio e grande porte, outros eucaliptos e pinheiros de pequeno porte e o mato existente nos prédios.
19 – Os eucaliptos foram deixados no terreno e levados por desconhecidos.
20 – O valor dos eucaliptos cortados pela Ré é de €351,60.
21 – Os prédios dos AA., antes da instalação da passagem da nova linha de 60 kV sobre os mesmos, tinham um valor de cerca de €25,00/m2.
22 - Em resultado da passagem dos cabos de alta tensão os AA. estão impossibilitados de explorar os terrenos com criação de eucaliptos e pinheiros e outras árvores e plantas numa área de 293 m2, verificando-se a redução da área da exploração florestal.
23 - As linhas passam sobre os terrenos dos AA., no ponto mais baixo, a uma altura de 7,70 metros.
24 – O poste nº 7 está implantado a cerca de 50 metros da estrema, não se encontrando a meio do terreno.
25 – A área com capacidade construtiva não compreende a totalidade dos prédios dos AA. identificados em 1 dos Factos Provados, projetando-se até cerca de 110 metros de profundidade, medidos desde o caminho municipal a noroeste.».
A pretensão da recorrente alicerça-se em duas ordens de razões: a possibilidade de modificação do apoio, o que se traduziria em inexistência de depreciação dos terrenos, e a não verificação do nexo de causalidade entre o estabelecimento da linha eléctrica e a perda de capacidade construtiva, pois esta situação decorre da inércia dos AA..
Não tem razão a recorrente.
Diga-se desde já que, quanto à questão da possibilidade de modificação do apoio, ela não resultou provada, mas ainda que estivesse provada, isso não altera a situação de que os AA. têm o seu direito de propriedade limitado pela servidão administrativa decorrente da instalação da linha eléctrica nos seus terrenos.
Senão vejamos.
Nos termos do art. 1305º do Código Civil, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
E, de acordo com o disposto no art. 1308º do Código Civil, ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei.
Ora, no que respeita à passagem de linhas eléctricas, a legislação que regula tal matéria impõe ao proprietário o “dever de suportar a servidão de passagem das linhas, mediante justa indemnização dos prejuízos causados”, tendo em conta que “evidentemente, há que respeitar o direito de propriedade, mas há também que subordiná-lo ao interesse público” (Preâmbulo do D.L. nº 43335, de 19/11/1960).
Ou seja, a lei impõe ao proprietário, como restrição ao direito de gozar de modo pleno e exclusivo os prédios que lhe pertencem (veja-se que, de acordo com o art. 1344º, nº 1, do C.C., a propriedade de um imóvel também abrange o espaço aéreo correspondente à superfície), entre outras, a obrigação de suportar a passagem de linhas aéreas de condução de energia eléctrica pelo espaço aéreo dos seus respectivos prédios, apenas mediante as contrapartidas previstas nos arts. 37º a 46º do citado D.L. 43335, de 19/11/1960.
Diz-se no art. 37º deste diploma legal que os proprietários dos terrenos ou edifícios utilizados para o estabelecimento de linhas eléctricas serão indemnizados pelo concessionário ou proprietário dessas linhas sempre que daquela utilização resultem redução de rendimento, diminuição da área das propriedades ou quaisquer prejuízos provenientes da construção das linhas.
Pode ainda haver a possibilidade de afastamento ou substituição dos apoios das linhas, mas sempre nas situações e dentro do condicionalismo previstos nos arts. 43º e 44º.
Ou seja, mesmo que o prédio até mantenha aptidão construtiva, há um condicionamento da forma de concretização dessa aptidão, havendo lugar a adaptações no modo de construção dos edifícios que aí possam ser implantados e sempre dependentes da possibilidade de afastamento do apoio, da modificação que seja passível de ser feita na forma de atravessamento do prédio, bem como da necessidade de formular à concessionária o pedido de modificação, que pode não ser deferido (cfr. § 2º do art. 44º) se for tecnicamente inconveniente, e que implica que o proprietário suporte o pagamento de metade dos custos das modificações.
Esta situação, obviamente e objectivamente, configura uma restrição ao direito de propriedade dos AA., sendo um prejuízo proveniente da passagem das linhas, já que aqueles apenas têm a alternativa de não construir ou de construir sujeitando-se a um processo burocrático de pedido de modificação do apoio e ao pagamento de uma quantia em dinheiro de que até podem ter dificuldade de dispor.
A venda dos terrenos, que poderia surgir como uma terceira solução, fica também afectada pela existência da linha, pois é facto notório que no mercado imobiliário há preferência por adquirir terrenos sem ocupação do seu espaço aéreo.
Na verdade, a situação em causa é objectivamente susceptível de causar uma diminuição no interesse de adquirir os terrenos em questão, podendo levar a que menos pessoas pretendam adquiri-los, bem como de causar uma diminuição do valor de mercado dos mesmos terrenos, pois que as pessoas que se mantenham interessadas nessa aquisição pretenderão seguramente obtê-la por um preço inferior ao que pagariam se os prédios estivessem livres de qualquer limitação, isto é se não houvesse quaisquer linhas de condução de energia eléctrica a atravessá-los.
Toda a descrita situação configura um dano sofrido pelos AA., independentemente da possibilidade de modificação do apoio nº 7, e não há dúvidas de que decorre da existência da linha de energia eléctrica que atravessa os terrenos, não podendo subverter-se a situação pretendendo invocar-se uma suposta inércia dos mesmos – os AA. não têm a obrigação de se sujeitar ao processo de pedido de modificação da linha, com tudo o que isso implica, incluindo de despesas monetárias, para obviar a um prejuízo para o qual em nada contribuíram (apenas estão legalmente obrigados a suportar a servidão…).
Estão, pois, preenchidos no caso os requisitos de que depende a indemnização dos AA. por facto lícito, inclusivamente no que respeita ao dano de depreciação do valor do terreno.
Aliás, note-se que o que decorre da matéria de facto, e o que foi considerado na sentença recorrida como justificando a indemnização, é a existência de uma perda edificativa de 600 m2 e não a completa perda de viabilidade de construção.
Não merece, assim, acolhimento a pretensão da recorrente no sentido da não atribuição de indemnização aos AA. pela depreciação do valor do terreno.
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pela R. e pela consequente confirmação da decisão recorrida.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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Porto 15.6.2023
Isabel Silva
Deolinda Varão
Isoleta Almeida Cardoso