Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1088/21.6T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PERDA DA CAPACIDADE PRODUTIVA
Nº do Documento: RP202304181088/21.6T8MAI.P1
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O dano de perda da capacidade produtiva é indemnizável, quer acarrete para o lesado uma diminuição efectiva do seu ganho laboral, quer lhe implique apenas um esforço acrescido para manter os mesmos níveis dos seus proventos profissionais.
II – A inexistência actual de proventos profissionais, por via da menoridade do lesado, da sua condição de estudante, de uma situação de desemprego, etc., não importa uma desconsideração ou menorização apriorística do referido dano de perda de capacidade produtiva e, por essa via, do valor da respectiva indemnização; quando muito, estas situações poderão introduzir maior complexidade no juízo de equidade que sustenta a fixação do quantum indemnizatório.
III – Nestas situações, o prejuízo pode até ser mais notório, na medida em que o lesado fica desde logo afectado na sua capacidade de obter formação adequada às suas aspirações profissionais, de obter um primeiro emprego ou de retomar uma actividade profissional, em especial num contexto de crise económica e escassez de empregos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 1088/21.6T8MAI.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA, residente na Rua ..., cave direita, ... ... – Maia, intentou a presente acção declarativa comum contra A..., S.A., com sede na Av. ..., Lisboa, actualmente denominada B..., S.A.
Alegou, em essência, os danos de natureza patrimonial e não patrimonial que sofreu em virtude do atropelamento ocorrido no dia 19 de Junho de 2018, em que foram intervenientes a própria autora e o quadriciclo ligeiro com a matrícula ..-LR-.., conduzido pelo seu proprietário, BB, cuja ocorrência imputa à conduta culposa deste último, mais alegando que a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo LR estava transferida para a ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ....
Conclui formulando o seguinte pedido:
«Nestes termos e nos melhores de Direito, deve a presente acção ser julgada provada por procedente, e por via disso, a Ré condenada a pagar à Autora a quantia,
- Correspondente à I.P.P., quantum doloris, dano estético, rebate profissional, pois a Autora vai ter esforço acrescido, repercussão nas atividades desportivas e de lazer e repercussão na atividade sexual, e poderão essas lesões ter agravamento no futuro, até porque pode ser um risco para a Autora engravidar, necessitando de medicação e tratamentos médicos com regularidade e uso de meia elástica de forma permanente, na perna esquerda, e um possível retirar do material que tem na clavícula esquerda, face ao seu corpo o poder vir a rejeitar no futuro, cujas percentagem/valor urge apurar, através de Exame Médico-legal, cujos montantes se apurarão em LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA;
- De 50,00 € (Cinquenta Euros), valor correspondente ao peticionado no artigo 19.º da P.I.;
- De 1.148,66 € (Mil Cento e Quarenta e Oito Euros e Sessenta e Seis Cêntimos), valor correspondente ao peticionado no artigo 21.º da P.I.;
- De 315,00 € (Trezentos e Quinze Euros), valor correspondente ao peticionado no artigo 24.º da P.I.;
- De 600,00 € (Seiscentos Euros), valor correspondente ao peticionado no articulado 62.º da P.I.;
- De 25.000,00 € (Vinte e Cinco Mil Euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais causados;
- Tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento».
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A ré apresentou contestação, aceitando a dinâmica do acidente descrita pela autora, a celebração do contrato de seguro invocado por esta e, consequentemente, a obrigação de indemnizar os danos sofridos pela mesma em consequência do referido acidente, impugnando, todavia, os danos alegados na petição inicial.
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Depois de proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio, enunciados os temas de prova, produzida a prova pericial e designada data para audiência de julgamento, a autora deduziu incidente de liquidação, que concluiu formulando o seguinte pedido:
«Nestes termos e nos melhores de Direito, deve a presente liquidação ser julgada provada por procedente, e por via disso, a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de:
A – 49.500,00 € (Quarenta e Nove Mil e Quinhentos Euros), de acordo com os valores plasmados nos articulados 10.º, 17.º, 30.º, 41.º, 53.º, 57.º e 62.º desta liquidação;
B – Condenar a Ré a pagar à Autora a medicação anticoagulante em posologia a definir pelo médico assistente;
C – Condenar a Ré, a prestar acompanhamento à Autora em consultas de cirurgia vascular, com encaminhamento para os tratamentos e ajustes terapêuticos que se verificarem necessários de acordo com a situação clínica, num mínimo de duas consultas anuais, ou custear os seus custos;
D – Condenar a Ré a custear o uso permanente de meia de compressão grau 2 até à raiz da coxa, com necessidade de substituição a definir pelo médico assistente (conforme desgaste, sendo espectável a necessidade de 2 a 4 unidades por ano);
E – Caso a Autora pretenda engravidar, no futuro, deve a Ré ser condenada a custear avaliação em consulta pré-concecional de ginecologia/obstetrícia, com encaminhamento para os tratamentos que se verificarem necessários e eventual ajuste terapêutico, e custear os mesmos;
F – Ser a Ré condenada a retirar o material, que a Autora possui na clavícula esquerda, existindo tal necessidade, devendo por isso ser reavaliada, caso isso suceda;
G - Tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento».
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A ré respondeu, reiterando a sua contestação e impugnando os factos alegados, excepto na parte em que sejam confirmados pela perícia realizada.
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Veio a realizar-se audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais julgo parcialmente procedente a presente acção e em consequência condeno a Ré a pagar a Autora as seguintes quantias:
i) A quantia de €1.513,66 enquanto dano patrimonial emergente do sinistro;
ii) A quantia de €20.000,00 a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais;
iii) A quantia de €18.000,00 a título de indemnização por dano biológico e danos futuros;
iv) A quantia que se vier a quantificar em liquidação de sentença quanto aos danos descritos nos pontos 46. a 48. dos factos provados.
v) Os juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias referidas em i) a iii) calculados desde a presente data que até efectivo e integral pagamento.
vi) Absolvo a Ré do demais peticionado na presente acção;
vii) As custas serão suportadas pela Autora e pela Ré na proporção do decaimento (art. 527.º, nº1 e n.º 2, do CPC).
Registe e notifique».
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Inconformada, a ré apelou da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«A indemnização pelo dano biológico
1. Não pode ocorrer que, partindo-se da não existência efectiva de perda de rendimentos, se venha a atribuir indemnização que coincida com a que seria devida caso essa perda de rendimentos, ou de capacidade de ganho, existisse de facto.
2. Seguindo os critérios que lançam mão das fórmulas e tabelas que os nossos tribunais habitualmente utilizam para o cálculo de indemnização por perda efectiva de capacidade de ganho decorrente de incapacidade permanente (de que é exemplo o Acórdão do STJ de 04.12.2007, no qual foi Relator o Exmo Senhor Juiz Conselheiro Mário Cruz, disponível em www.dgsi.pt), se essa perda de capacidade de ganho se verificasse – e não se verifica, como vimos – no caso em análise, considerando a idade da recorrida, a sua incapacidade de 5 pontos, um rendimento – ainda que líquido e de todo o modo ficcionado e constituindo valor de referência – anual de € 14.000,00 (€ 1.000,00 x 14 meses/ano) a indemnização a atribuir seria de € 18.000,00 para um período de vida activa de 50 anos.
3. Tendo a indemnização em causa sido fixada na vertente patrimonial do dano biológico, afigura-se à recorrente que os elementos utilizados na sua fixação, designadamente os referentes à prática de actividade desportiva e data da consolidação médico-legal das lesões, consubstanciam duplicação indemnizatória, porquanto são tidos em conta na compensação dos danos não patrimoniais.
4. A indemnização a atribuir à recorrida pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, não deve ser superior a € 12..000,00, até porque se trata de uma quantia a entregar imediatamente e de uma só vez mas que se destina a ressarcir um dano patrimonial futuro.
A compensação a título de dano não patrimonial
5. Analisado o caso dos autos, as decisões jurisprudenciais mais recentes e lançando mão dos preceitos legais para o efeito referidos no corpo destas alegações, considera a recorrente como justo, equilibrado e adequado o arbitramento à recorrida da quantia de € 14.000,00 a título de compensação pelo dano não patrimonial.
6. Na douta sentença recorrida fez-se menos acertada interpretação dos factos e menos correcta aplicação da Lei, designadamente dos art.ºs 496º, 562º, 564º e 566º, todos do CCivil».
Terminou pugnando pela revogação da sentença recorrida.
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A autora respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela total improcedência do recurso interposto e pela consequente manutenção da decisão recorrida.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do CPC, não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes:
1. O valor da indemnização devida à autora pelo dano biológico na sua vertente patrimonial;
2. O valor da indemnização devida à autora pelos danos não patrimoniais.
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III. Fundamentação
A. Decisão sobre a matéria de facto na primeira instância
1. Factos Provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1. No dia 19 de Junho de 2018, pelas 11:30 horas, na Rua ..., junto ao nº de polícia ..., na Freguesia ..., Concelho da Maia, ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes, o seguinte veículo e peão:
- Quadriciclo Ligeiro da marca Aixam, modelo ..., com a matrícula ..-LR.., de cor cinza, conduzido por, e propriedade de, BB;
- O peão, em concreto a aqui Autora.
2. Fruto do acidente deu a Autora entrada no Centro Hospitalar ..., no Porto, com fratura da clavícula esquerda.
3. O local do acidente é uma reta, na Rua ..., Freguesia ..., Concelho da Maia, junto ao nº de polícia ....
4. Era de dia e estava bom tempo.
5. O condutor do veículo, com a matrícula ..-LR-.., circulava no sentido ... - ..., e embateu com a lateral do veículo, do lado do passageiro, na Autora, que se encontrava a atravessar a passadeira, que a dita artéria possui, junto à habitação com o nº de polícia ..., projetando-a ao solo.
6. O condutor do veículo, com a matrícula ..-LR-.., não tomou as devidas precauções que qualquer condutor deve ter, quando se aproxima de uma passadeira, e por via disso, não se apercebeu que a Autora atravessava a passadeira, provocando assim o acidente.
7. Dando por isso causa ao acidente o condutor do veículo com a matrícula ..-LR-...
8. O condutor do veículo com a matrícula ..-LR-.. conduzia de forma desatenta, pois deveria ter visto a Autora a atravessar a passadeira, dar-lhe prioridade e só depois passer.
9. O proprietário do veículo automóvel, com a matrícula ..-LR-.., transferiu a sua responsabilidade civil para a Ré, por contrato de seguro em vigor à data do acidente, a que se refere a apólice nº ....
10. A A. participou o acidente à Ré, tendo a mesma assumido a sua responsabilidade, não tendo sido possível, contudo, obter acordo, quanto aos valores indemnizatórios.
11. Do sinistro resultou para a A., fratura da clavícula esquerda, e quando no dia do sinistro foi transportada para o Hospital ... no Porto, deram-lhe alta, com o braço esquerdo imobilizado, numa tentativa da clavícula solidificar sem intervenção cirúrgica.
12. As peças de vestuário, uma camisola e soutien, no valor de cerca de 50.00€ ficaram rasgadas em consequência do acidente.
13. Em medicamentos, consultas médicas e exames medicos, estadia do acompanhante aquando da intervenção cirúrgica imobilizador clavicular e certidão do acidente, a Autora despendeu a quantia de 1.148,66€.
14. Despendeu ainda a Autora, em transporte para as consultas e exames o valor de 240.00€ (Duzentos e Quarenta Euros), uma vez que era transportada, ora pelo seu pai, ora pela sua mãe, de carro, sendo que em cada deslocação gastava cerca de 20.00€.
15. A Autora efetuou 15 sessões de fisioterapia, onde era transportada de carro, ora pela sua mãe ora pelo seu pai, sendo que em cada deslocação gastava cerca de 5.00€.
16. O facto referido em 11. foi penoso para a adolescente de 15 anos de idade, que sofreu imenso com dores, pois não havia forma da clavícula calcificar, face ao estado em que ficou o osso, em concreto, desfeito na zona da fratura.
17. O acidente deu-se a 19/6/2018 e a 29 de Junho de 2018 o pai da Autora reclamou junto da Ré, de que a filha estava a ser negligenciada clinicamente, e era urgente apoio médico, pois ainda não tinha sido intervencionada cirurgicamente.
18. Foi assim operada no Hospital ... no Porto, no dia 9/7/2018, mais de 20 dias após o acidente.
19. No dia 27/08/2019 a Autora retirou o material que estava a servir de suporte ao osso da clavícula, através de cirurgia, na Casa de Saúde ..., ou seja, nesta altura, já estava a ser acompanhada pelos serviços clínicos da Ré, na convicção que tal osso clavicular estaria solidificado, e teve alta médica, sem qualquer tipo de restrições
20. Na aula de educação física, no dia 27 de Setembro de 2019, após um mês de ter retirado o material, a Autora, ao levantar os braços, num exercício de aquecimento, a clavícula cedeu, pois protagonizou uma Refratura
21. O osso não estaria bem solidificado quando lhe foi retirado o material e os parafusos.
22. A Autora foi intervencionada cirurgicamente, novamente, no Hospital 1..., no dia 6 de Novembro de 2019, para colocar material e parafusos, onde teve de efetuar uma colheita do osso ilíaco, com vista a reconstruir a clavícula.
23. Fruto de complicações pós-operatório, da última intervenção cirúrgica, a Autora padece agora de insuficiência das veias femoral comum e femoral esquerdas, fluxo doppler na veia femoral comum esquerda contínuo, com diminuição da fasicidade respiratória, sugerindo oclusão/estenose hemodinamicamente significativa no setor venoso ilíaco esquerdo.
24. A Autora tem vindo a ser acompanhada, na vertente da Cirurgia Vascular, pela razão de ter desenvolvido uma trombose profunda no membro inferior esquerdo, fruto de complicações no pósoperatório da 3ª operação.
25. Como fator de risco vascular apresentava toma de anticoncetivo oral, que suspendeu de imediato.
26. A Autora fez terapia hipocoagulante durante 6 meses com rivaroxabano 20 mg, oral e por dia, seguindo-se 10 mg oral/dia e uso permanente de meia elástica.
27. De início apresentava apenas edema vespertino esporádico, em relação com o esforço e o ortostatismo e referia aparecimento nos últimos meses de varizes reticulares e tronculares no território supra-púbico e epigástrico.
28. Dado o risco de retrombose pelas alterações anatómicas apresentadas, a Autora tem indicação para terapêutica hipocoagulante permanente bem como uso de meia elástica.
29. A Autora esteve internada, 6 dias, com as três intervenções cirúrgicas de que foi alvo, sendo dois dias por cada intervenção.
30. A Autora esteve ausente da escola durante dois meses, no 11º ano, desde o dia 27/9/2019 até finais de Novembro de 2019, sendo que as notas desceram bastante nesse período e teve transtorno em acompanhar a matéria à distância, pois tinha de socorrer-se dos colegas que lhe davam os apontamentos.
31. A Autora não recebeu qualquer subsídio de doença por parte da segurança social, desde a data do sinistro até à data em que regressou em pleno à escola, nem qualquer quantia por parte da Ré.
32. A Autora sofreu e sofre de dores na clavícula esquerda e na perna esquerda e desconforto na zona das cicatrizes.
33. Os dias seguintes ao acidente foram muito dolorosos, pois esteve vários dias à espera de ser operada, a A. sente dores, não pode fazer esforços, nomeadamente suportar objetos pesados, na mão esquerda.
34. A Autora tem vergonha, pois sente desconforto pelas cicatrizes que apresenta, usando blusas que ocultam as mesmas e tem desconforto com biquínis pela compressão da cicatriz.
35. A Autora era uma entusiasta da prática desportiva, tendo deixado de praticar kickboxing, e desporto no geral, por recomendação médica, fazia natação e deixou de o fazer, pois sente dor com os movimentos repetitivos do ombro.
36. A Autora necessitou de acompanhamento psicológico, para ultrapassar o trauma de andar na rua, e tinha dificuldade em dormir.
37. A Autora tem receio de atravessar a rua e quando o tem de fazer recorda-se no imediato do acidente.
38. A Autora teve necessidade de solicitar o adiamento de exames escolares, sendo que era uma aluna excelente.
39. A Autora necessitou de ter explicações, coisa que até à altura do acidente nunca tinha tido necessidade.
40. Na semana seguinte ao acidente a Autora ia de férias com a sua mãe e já não o pode fazer, pois a mãe teve de cancelar as férias, porque a sua filha necessitava de acompanhamento.
41. A mãe tinha de dormir com a Autora, para lhe dar auxílio, pois a mesma estava muito incapacitada para as mais elementares tarefas, tais como, deslocar-se à casa de banho e tomar banho.
42. No abdómen a Autora apresenta discretos trajectos venosos visíveis no hipogastro.
43. No membro superior esquerdo a Autora tem cicatriz alinhada sobre o maior eixo da clavícula, com 11 cm de comprimento total, com irregularidade do bordo clavicular, notória a distância social e acentuando-se com a protracção e retracção escapular; referência a diminuição da sensibilidade no terço proximal da clavícula e articulação esterno-clavicular; dor referida à palpação do terço distal da clavícula e articulação acrómio-clavicular; .sem assimetrias da região escapular; força muscular e amplitudes articulares do braço preservadas e simétricas.
44. No membro inferior esquerdo a Autora tem cicatriz sobre a crista ilíaca antero-superior, de tipo cirúrgico, ligeiramente hipercrómica, com 3,5 cm de comprimento e discretos trajectos venosos visíveis na face posterior do terço médio da perna.
45. A Autora utiliza meia de compressão grau 2 no membro inferior esquerdo, onde por vezes apresenta edema, e o tornozelo incha, e medica-se permanentemente com Xarelto, sendo terá necessidade de substituição da meia a definir pelo médico assistente, sendo espectável a necessidade de 2 a 4 unidades por ano.
46. A Autora vai necessitar permanentemente de medicação anticoagulante em posologia a definir pelo médico assistente.
47. A Autora necessita de acompanhamento em consultas de cirurgia vascular, com encaminhamento para os tratamentos e ajustes terapêuticos que se verificarem necessários de acordo com a situação clínica,
48. Caso queira a Autora engravidar no futuro, deve a mesma ser avaliada em consulta pré-concecional de ginecologia/obstetrícia, com encaminhamento para os tratamentos que se verificarem necessários e eventual ajuste terapêutico.
49. O relatório pericial efectuado na sequência do exame à Autora apresentou as seguintes conclusões:
- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 03/06/2020
- Período de Défice Funcional Temporário Total sendo assim fixável num período de 9 dias.
- Período de Défice Funcional Temporário Parcial sendo assim fixável num período de 707 dias.
- Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total sendo assim fixável num período total de 108 dias.
- Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial sendo assim fixável num período total de 608 dias.
- Quantum Doloris fixável no grau 4/7.
- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 5 pontos.
- As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Formativa/Profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares
- Dano Estético Permanente fixável no grau 3/7.
- Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 3/7.
50. Do relatório pericial consta que não é possível prever a necessidade de no futuro retirar o material que a Autora tem na clavícula esquerda.
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2. Factos Não Provados
O tribunal recorrido julgou não provados os seguintes factos:
a) A projecção no solo foi violenta
b) A Ré nada fez para acompanhar a Autora nos seus serviços clínicos
c) A Autora usa permanentemente meia elástica, na perna esquerda
d) A vida sexual da Autora foi seriamente afetada, pois não pode fazer grandes esforços, com o braço esquerdo, e com a sua perna esquerda
e) A Autora sente-se muito constrangida na sua vida sexual, até pela cicatriz que apresenta, e pela meia elástica que tem de usar permanentemente.
f) A Autora tem o justo receio que a clavícula esquerda volte a ceder, pois tem uma placa com parafusos, que não sabe se no futuro vai ter de retirar, pois o seu corpo pode vir a rejeitar o material.
g) A Autora recusa-se a ir para a praia.
h) A Autora gostava muito de andar de saia e calções, mas agora recusa-se a a fazê-lo.
i) A Autora prefere andar com roupas que lhe tapem as pernas para poder andar com a meia de compressão.
j) A Autora tem desconforto com a utilização de mochilas e carteiras, no ombro esquerdo, preferindo usar o ombro direito.
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B. Fundamentação de Direito
O presente recurso tem como objecto os pontos ii) e iii) da decisão recorrida, ou seja, a determinação dos montantes indemnizatórios relativos aos danos não patrimoniais e ao danos biológico, na sua vertente patrimonial futura.
O princípio geral vigente nesta matéria é o prescrito no artigo 562.º do CC, nos termos do qual «[q]uem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse veificado o evento que obriga à reparação», devendo dar-se preferência, sempre que possível, à restituição natural (artigo 566.º, n.º 1, do referido código). Quando «não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente oneroso para o devedor», deve fixar-se uma indemnização em dinheiro.
O cálculo desta indemnização em dinheiro deve ser feito nos termos do n.º 2 do mesmo artigo 566.º, ou seja, deve achar-se «a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal (situação real), e a que teria nessa data se não existissem danos (situação hipotética)».
Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, «[s]e não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados».
Por fim, com interesse na economia deste aresto, o artigo 496.º do CC que regula a obrigação de indemnização dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Explanado o quadro geral, vejamos as questões concretas suscitadas pelas recorrentes.
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1. A indemnização pelo dano biológico
A recorrente insurge-se contra a fixação em 18.000,00 € da indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de que a autora ficou a padecer, alegando o seguinte:
- Não existindo uma efectiva de perda de rendimentos, não deve ser atribuída uma indemnização que coincida com a que seria devida caso essa perda de rendimentos ou de capacidade de ganho existisse de facto;
- Tendo a indemnização em causa sido fixada na vertente patrimonial do dano biológico, os elementos utilizados na sua fixação, designadamente os referentes à prática de actividade desportiva e data da consolidação médico-legal das lesões, consubstanciam duplicação indemnizatória, porquanto são tidos em conta na compensação dos danos não patrimoniais;
- A indemnização a atribuir à recorrida pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, não deve ser superior a 12.000,00 €, até porque se trata de uma quantia a entregar imediatamente e de uma só vez mas que se destina a ressarcir um dano patrimonial futuro.
A decisão recorrida fixou o valor indemnizatório em discussão apelando à Portaria n.º 377/20087, de 26 de Maio, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, mas ajustando os valores daí resultantes, que considera subavaliados, ao caso concreto, à luz dos critérios que a jurisprudência vem adoptando.
A propósito do tipo de dano em análise, Laurinda Gemas recorda que se firmou «na jurisprudência o entendimento, quase pacífico, de que a incapacidade permanente parcial representa, em si mesma, um dano patrimonial, não podendo reduzir-se à categoria de danos não patrimoniais, pela inerente afectação da capacidade de ganho que implica».
Mas, acrescenta a mesma autora, «com a publicação da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio [que complementa a o Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, que aprovou a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil], pretendeu-se arrepiar o caminho que vinha sendo traçado, explicando-se, logo no Preâmbulo, que “uma das alterações de maior impacte será a adopção do princípio de que só há lugar à indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional habitual ou qualquer outra. No entanto, ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica”. Esta linha orientadora é desenvolvida nos arts. 3.º, 7.º e 8.º da mesma Portaria, dos quais resulta que só haverá indemnização por danos patrimoniais futuros nas situações de incapacidade permanente absoluta ou de incapacidade para a profissão habitual, ainda que possa haver reconversão profissional – cfr. art. 3.º, al. a).
Significa isto que quando a incapacidade permanente (determinada segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil – aprovada pelo DL n.º 352/2007, de 23 de Outubro) não impeça o lesado de continuar a desenvolver a sua actividade profissional habitual, apenas lhe exigindo esforços acrescidos no desempenho da mesma, já não haverá lugar à atribuição de verba indemnizatória a título de danos patrimoniais futuros, mas apenas a título de danos não patrimoniais, distinguindo-se entre estes o dano biológico e os “danos morais complementares” a que se refere ao art. 4.º da Portaria. (…)
Cumprindo o que se estabelece no n.º 5 do art. 39.º do DL n.º 291/2007, o legislador veio fixar critérios e valores orientadores para a determinação do montante da indemnização dos danos corporais, indicando, no que concerne aos danos futuros, uma fórmula de cálculo, para cuja aplicação se deverá atender aos rendimentos anuais da vítima/lesado» (Laurinda gemas, A indemnização dos danos causados por acidentes de viação – algumas questões controversas, Revista Julgar, n.º 8, Maio-Agosto 2009, pp. 53 a 55).
A este respeito, Sousa Dinis começa por afirmar que os mencionados «“valores orientadores” apenas reflectem a posição de quem está obrigado a indemnizar», acrescentando que «[o]s juízes não devem lançar mão destas tabelas. Quando muito servirão para comparar em situações com o cálculo que antes era feito» (Sousa Dinis, Avaliação e Reparação do Dano Patrimonial e Não Patrimonial, Revista Julgar, n.º 9, Setembro-Dezembro 2009, pp. 30).
O mesmo autor continua a sua análise afirmando o seguinte: «[c]onsiderando o disposto no DL n.º 352/2007 e no relatório preambular da Portaria n.º 377/2008, há duas notas a destacar: a) um dos princípios basilares é que só há lugar à respectiva indemnização quando a situação incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional habitual ou qualquer outra (caso de impossibilidade de reconversão); b) ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial, o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico. Não entendo esta distinção nem para ela encontro justificação. Por isso, repito, os juízes não devem socorrer-se destas tabelas para fixar indemnizações». (cit., pp. 35 e 36).
A jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem fazendo uma abordagem semelhante da questão.
Diz-se o seguinte no sumário do acórdão do STJ, de 06.06.2013 (disponível em www.dgsi.pt, Processo n.º 303/2009.0TBVPA.P1.S1): «O critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações é fixado pelo Código Civil; os que são seguidos pela Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extrajudicial e, se podem ser ponderados pelo julgador, não se sobrepõem àquele».
Por sua vez, diz-se o seguinte no sumário do acórdão do STJ, de 21.03.2013 (disponível em www.dgsi.pt, Processo n.º 565/10.9TBPVL.S1): «I – O dano biológico, dano corporal lesivo da saúde, está na origem de outros danos (danos-consequências) designadamente aqueles que se traduzem na perda total ou parcial da capacidade de trabalho. II – Constituiu dano patrimonial a perda de capacidade de trabalho permanente geral de 15 pontos que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão a justificar, nos termos do art. 564.º, n.º 2, do CC, indemnização correspondente ao acrescido custo de trabalho que o lesado doravante tem de suportar para desempenhar as suas funções laborais. III – Este dano é distinto do dano não patrimonial (art. 496.º do CC) que se reconduz à dor, ao desgosto, ao sofrimento de uma pessoa que se sente diminuída fisicamente para toda a vida».
No mesmo sentido pode ler-se o acórdão do STJ de 21.01.2021.
Em linha com esta jurisprudência, que merece o nosso inteiro acolhimento, afigura-se curial distinguir as consequências patrimoniais do dano biológico das suas consequências não patrimoniais. Nessa medida, assiste razão à recorrente quando afirma que não releva naquela primeira vertente a “Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer”, por se tratar de um dano (consequência) de natureza não patrimonial. Só não seria assim se a autora se dedicasse – ou pretendesse dedicar-se profissionalmente – a uma actividade desportiva, o que não se apurou nem, sequer, foi alegado. Diferentemente, como veremos melhor infra, não assiste qualquer razão à recorrente quando afirma que a data da consolidação das médico-legal das lesões não releva na quantificação dos danos patrimoniais decorrentes do dano biológico, pois essa data é determinante para se calcular a extensão temporal daqueles danos (sem prejuízo de ter igual relevância no âmbito dos danos consequência de natureza não patrimonial).
Em consonância com o exposto, dedicaremos este ponto às consequências patrimoniais do dano biológico, relegando para outro ponto as suas consequências não patrimoniais.
No caso vertente apurou-se que, em consequência do acidente a autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 5 pontos, com repercussão permanente na actividade formativa/profissional, na medida em que as sequelas são compatíveis com o exercício da mesma, mas implicam esforços suplementares (cfr. ponto 49 dos factos provados).
É, assim, claro que, não estando impossibilitada de prosseguir a sua formação e de exercer uma actividade profissional, a autora ficou efectiva e definitivamente afectada ou diminuída enquanto “factor produtivo”.
Como vem sendo afirmado consistentemente pela nossa jurisprudência, designadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, o dano de perda da capacidade produtiva é indemnizável, quer acarrete para o lesado uma diminuição efectiva do seu ganho laboral, quer lhe implique apenas um esforço acrescido para manter os mesmos níveis dos seus proventos profissionais, exigindo tal incapacidade um esforço suplemntar, físico ou/e psíquico para obter o mesmo resultado – vide, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 18.12.07 (Santos Bernardino), proc. 07B3715; de 17.01.08 (Pereira da Silva), proc. 07B4538; de 17.06.08 (Nuno Cameira), proc. 08A1266; de 10.07.08 (Salvador da Costa), proc. 082B111; bem como Conselheiro Sousa Diniz, “Dano Corporal em Acidentes de Viação”, CJ STJ, Ano IX, T. 1, p. 6 e seguintes).
Ao contrário do que parece entender a recorrente, este raciocínio não é minimamente beliscado pela inexistência actual de proventos profissionais, por via da menoridade do lesado, da sua condição de estudante, de uma situação de desemprego, etc. Quando muito, estas situações poderão introduzir maior complexidade no juízo de equidade que sustenta a fixação do quantum indemnizatório. O que não podem, de forma alguma, é importar uma desconsideração ou menorização apriorística do dano real e, por essa via, do valor da respectiva indemnização.
Somos mesmo tentados a afirmar que, nestas situações, o prejuízo tende a ser mais notório, na medida em que o lesado fica desde logo afectado na sua capacidade de obter formação adequada às suas aspirações profissionais ou de obter um emprego compatível com as mesmas. Na verdade, é muito provável que uma pessoa, que padeça de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica e que pretenda candidatar-se ao primeiro emprego ou a um novo emprego, fique, logo à partida, em situação de desvantagem relativamente a outros candidatos que não padeçam do meso défice funcional. Num contexto de crise económica e escassez de empregos, isto pode mesmo inviabilizar ou dificultar seriamente a obtenção de (novo) emprego.
Posto isto, resta determinar o valor indemnizatório adequado para a situação em apreço, o que deverá ser feito com base na equidade, dentro dos limites tidos por provados, em conformidade com os critérios gerais já antes enunciados.
Mas porque o recurso à equidade não significa arbitrariedade, a nossa jurisprudência tem vindo a fazer um esforço de clarificação dos métodos a adoptar para alcançar aquele desiderato, procurando estabelecer critérios de apreciação e de cálculo deste dano que reduzam ao mínimo o subjectivismo do tribunal e a margem de arbítrio, direccionados para o cálculo de uma indemnização que seja equivalente ou que que se aproxime de um capital produtor do rendimento frustrado e que se extinga no final do período provável de vida activa do lesado.
Assim, tem vindo a formar-se um consenso generalizado acerca dos seguintes princípios e ideias:
a) a indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que a vítima não auferirá, ou que apenas auferirá com um esforço acrescido, e que se extinguirá no período provável da sua vida;
b) no cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equidade, implicando o relevo devido às regras de experiência e àquilo que, segundo o curso normal das coisas, é razoável;
c) as tabelas financeiras por vezes utilizadas para o alcance da indemnização devida terão sempre mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo, de modo algum, a devida ponderação judicial com base na equidade;
d) deve sempre ponderar-se que a indemnização será sempre paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, e, assim, considerando-se esses proveitos, deverá introduzir-se um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento abusivo do lesado à custa de outrem (o que estará contra a finalidade da indemnização arbitrada);
e) deve ter-se preferencialmente em conta a esperança média de vida da vítima (actualmente a esperança média de vida à nascença é, em Portugal, de cerca de 81 anos, quase 78 anos para os homens e mais de 83 para as mulheres), pois, mantendo-se o dano fisiológico para além da vida activa, é razoável que, num juízo de equidade sobre o dano ora em causa, se apele à esperança média de vida.
No caso vertente, resulta dos factos provados que a autora tinha 15 anos de idade na data do atropelamento de que foi vítima (19.06.2018) e 17 anos de idade na data da consolidação médico-legal das lesões (03.06.2020) – cfr. pontos 1, 16 e 49 dos factos provados. Mais resulta da factualidade apurada que era estudante – cfr. pontos 20, 30, 31, 38 e 39 – desconhecendo-se se ainda o é ou se aufere algum rendimento. Apurou-se ainda que ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 5 pontos.
Como se escreve no ac. do TRC, de 21.12.2010 (proc. n.º 1601/08.4TBVIS.C1, rel. Falcão de Magalhães), «[n]a ponderação dos vários elementos que concorrem para, em juízo de equidade, se fixar a referida indemnização por danos futuros, não recebendo a vítima, à data do acidente, qualquer remuneração, por ser menor de idade e estar ainda a frequentar o ensino, o valor da remuneração mensal a considerar também deve ser encontrado num juízo de prognose, segundo aquilo que, em circunstâncias semelhantes, as mais das vezes sucede».
No mesmo sentido, afirma-se no ac. do TRG, de 29.10.2015 (proc. n.º 726/12.6TBMDL.G1, rel. Anabela Tenreiro), que «[n]a falta de um valor de natureza retributiva, a referência utilizada no cálculo da indemnização, nestes casos, tem necessariamente de ser ficcionada, com recurso a critérios de probabilidade e de normalidade».
No caso concreto, apurou-se que a autora era uma aluna excelente (cfr. ponto 38 dos factos provados), mas desconhecem-se outros pormenores sobre o seu percurso académico, designadamente se prosseguiu ou pretende prosseguir a sua formação escolar para além do ensino obrigatório, no caso afirmativo qual o curso escolhido e no caso contrário quais são os seus planos e aspirações em termos profissionais, o que naturalmente dificulta aquele juízo de prognose.
É corrente na jurisprudência o recurso, para efeitos de cálculo desta indemnização, ao valor do salário mínimo nacional ou a este valor acrescido de metade, argumentando-se com a segurança deste valor. Outra jurisprudência preconiza o recurso ao valor do salário médio nacional, argumentando que «o salário mínimo, prevenindo um mínimo para a subsistência de quem trabalha, não é a regra nem corresponde às expectativas de quem, dotado de mediana capacidade e aptidão, está em condições de entrar no mundo do trabalho» (cfr. ac. do TRP, de 26.05.2009, proc. n.º 153/06.4TBPNF.P1, rel. Pinto dos Santos).
No caso dos autos, a própria recorrente parece admitir o recurso a um valor de referência de 14.000,00 € anuais (1.000,00 € x 14/ano), o que estará longe de ser excessivo, tendo em conta o sucesso académico da recorrida anterior ao atropelamento de que foi vítima. Ora, partindo deste valor, lançando mão dos restantes critérios que devem balizar o juízo de equidade, antes expostos, obteríamos um valor muito superior a 18.000,00 €, sempre acima dos 30 mil euros. Mas mesmo que partíssemos do valor do salário mínimo nacional à data da consolidação médico-legal das lesões (de 635,00 € x 14/ano) continuaríamos a obter um valor não inferior a 18.000,00 €, sempre acima dos 22 mil euros.
Pelas razões expostas, constata-se que o valor de 18.000,00 € arbitrado na decisão recorrida apenas poderá pecar por defeito.
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1. A indemnização pelos danos não patrimoniais
A recorrente insurge-se também contra a fixação da indemnização devida pelos danos não patrimoniais em 20.000,00 €, pugnando pela sua fixação em 14.000,00 €.
Nestes termos, importa analisar, na sua globalidade, os danos de natureza não patrimonial de que a autora padeceu, padece e/ou irá continuar a padecer.
Tais danos encontram-se descritos nos pontos 2, 11, 15 a 30 e 32 a 50 dos factos provados. Sem sermos exaustivos, destacamos aqui as dores que sofreu em virtude das lesões e dos tratamentos a que foi submetida, avaliadas no grau 4 numa escala crescente de 7 valores, bem como as dores de que continua a padecer, a segunda fractura que sofreu em virtude de retirada precoce do material de osteossíntese, os tratamentos a que foi submetida, com especial destaque para as três cirurgias a que teve de sujeitar, as complicações pós-operatórias subsequentes à 3.ª cirurgia, que determinaram uma insuficiência das veias femorais e o desenvolvimento de uma trombose profunda no membro inferior esquerdo, o longo período, de quase dois anos, decorrido até à consolidação médico-legal das lesões, a necessidade de acompanhamento psicológico para ultrapassar o trauma de andar na rua e a dificuldade em dormir, o receio de atravessar a rua que ainda sente, o período de ausência da escola e os reflexos negativos no seu desempenho académico, as cicatrizes com que ficou, que lhe determina um dano estético avaliado no grau 3 numa escala crescente de 7 valores, a vergonha e o desconforto que as mesmas lhe causam, as demais sequelas de que ficou a padecer, que lhe determinam um défice permanente da integridade físico-psíquica de 5 pontos, com repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer avaliada no grau 3, numa escala crescente de 7 valores, mas que a obrigou a abandonar a prática de kickboxing e de natação, a que se dedicava com regularidade, a necessidade permanente de acompanhamento médico e medicamentoso, o risco de voltar a desenvolver uma trombose, a necessidade de consulta pré-concecional de ginecologia/obstetrícia, com encaminhamento para os tratamentos que se verificarem necessários e eventual ajuste terapêutico, caso queira engravidar.
Todos estes factos configuram danos não patrimoniais, quer se opte pela formulação negativa, que inclui nesta categoria todos aqueles que não atingem os bens materiais do sujeito passivo ou que, de qualquer modo, não alteram a sua situação patrimonial (cfr. De Cupis, Il danno, Teoria Generale della Responsabilità Civile, I, 2ª edição, Milano, 1966, p. 44 e seguintes), quer pela formulação positiva, segundo a qual, o dano não patrimonial ou dano moral, tem por objecto um bem ou interesse sem conteúdo patrimonial, insusceptível, em rigor, de avaliação pecuniária.
Acresce que tais danos são indemnizáveis, porque têm a gravidade bastante para merecer a tutela do direito (artigo 496º, n.º 1, do Código Civil).
A indemnização por danos não patrimoniais não visa ressarcir, tornar indemne, o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido, mas que, por isso mesmo, deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico (vide Ac. STJ, de 16/12/93, CJ, Tomo 3, p. 183).
O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado – art. 494º ex vi art. 496º, nº3, ambos do Código Civil –, aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, etc.
Em concreto, importa situar os danos em apreço no contexto da vida da autora, destacando-se o facto de, no momento do embate, ser uma pessoa muito jovem, o impacto que as lesões sofridas tiveram em diversas vertentes da sua vida e que, em parte, persistirão ao longo da sua vida.
Tudo ponderado, atendendo ainda à prática da jurisprudência, mais uma vez se constata ser muito modesta a indemnização fixada pelo Tribunal a quo, pelo que é manifesta a improcedência do recurso interposto pela ré.
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IV. Decisão
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam totalmente improcedente o recurso e, consequentemente, confirmam a sentença recorrida.
Custas pela recorrente (artigo 527.º do CPC).
Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 18 de Abril de 2023
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró
João Proença