Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1942/18.2T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: RELAÇÃO LABORAL
ACIDENTE DE TRABALHO
COMPETÊNCIA DOS JUÍZOS DE TRABALHO
Nº do Documento: RP201907101942/18.2T8VNG.P1
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 180, FLS 134-137)
Área Temática: .
Sumário: I - Havendo nos contratos de emprego-inserção uma dependência funcional e uma relação jurídica de subordinação por parte do seu beneficiário em relação à entidade promotora na prestação do trabalho socialmente necessário, podemos considerar que existe uma relação laboral sui generis.
II - Sendo o beneficiário de tais contratos de emprego-inserção um trabalhador por contra de outrem em sentido lato, o sinistro ocorrido na execução desse contrato deve ser considerado como um acidente de trabalho, sendo os juízos do trabalho os competentes para conhecer das suas consequências.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 1942/18.2T8VNG.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjuntos: Filipe Caroço; Judite Pires

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1.1 Na presente ação n.º 1942/18.2T8VNG do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, J1 da Comarca do Porto, em que são:

Recorrente/Autor (A): B….

Recorrida/Ré (R): C…, S.A.

foi proferida decisão em 15/fev./2019 mediante a qual julgou aquele juízo incompetente em razão da matéria e competente o Juízo do Trabalho, absolvendo a R. da instância, com custas pelo A.
1.2 O A. tinha proposto esta acção em 01/mar./2018 invocando que encontrando-se na situação de desempregado celebrou em 22/mai/2017 com a Câmara Municipal …, um contrato denominado “Emprego-Inserção” nos termos melhor referenciados no documento que junta, mediante o qual aceitou a execução de trabalho socialmente necessário na área de Auxiliar de Cuidados de Crianças, no âmbito de projeto por si organizado a realizar no correspondente Município e de acordo com o horário legal, durante 35 horas semanais e uma bolsa mensal complementar, no valor de 20% ao Indexante dos Apoios Sociais, acrescido de pagamento de refeição ou subsídio de alimentação, despesas de transporte, assim como um contrato de seguro que cubra os riscos decorrente desse projeto de trabalho socialmente necessário. Mais sustentou que em 21/jun./2017, pelas 14H20 e no exercício dessa atividade, mais precisamente quando ia a subir a rampa da Escola, caiu no recreio com as crianças, tendo tal acidente sido participado à R. Seguradora, ficando incapacitado por um período de 160 dias, sendo assistido nos Serviços de Ortopedia desta última, cabendo-lhe um subsídio diário de € 26,00 por cada um daqueles dias, num total de € 4.160,00, o qual foi sempre recusado ser-lhe pago, pedindo que a A. seja condenada a pagar-lhe tal quantia, acrescida de juros desde a citação e até integral pagamento.
1.3 A R. contestou em 09/abr./2018, aceitando ter celebrado um contrato de seguro de acidentes pessoais com o Município …, tendo o A. como beneficiário, produzindo os seus efeitos entre 22/mai. e 28/jul. de 2017, cessando a partir desta última data os efeitos das coberturas contratadas, pelo que aquele só tem direito a receber a título de incapacidades temporárias entre a data do acidente (21/jun./2017) e aquela segunda data (28/jul./2017). Mais sustentou que o A. entre 22/jun./2017 e 13/jul./2017 recebeu da entidade promotora o valor da respetiva bolsa, e que entre 13 e 28/jul./2017 a R. enviou-lhe um cheque de € 99,20, sendo 12 de subsídio de alimentação (€ 4,52 X 12) e 16 dias de incapacidade temporária (€ 2,81 x 16), atendo o valor da bolsa (€ 84,26 ÷ 30 dias), pugnando pela improcedência da ação.
2. O A. insurgiu-se contra aquela decisão tendo em 25/fev./2019 interposto recurso da mesma pugnando pela sua revogação e a substituição por outra que julgue aquele Juízo Local Cível competente em razão da matéria, apresentando as seguintes conclusões:
1.º - O Autor veio intentar uma acção contra a Companhia de Seguros D…, S.A., exigindo indemnização devido a um acidente em serviço, no âmbito de um CONTRATO “INSERÇÃO-EMPREGO” quando no âmbito da Formação Profissional se encontrava ao serviço da Câmara Municipal ….
2.º Por sua vez a Entidade Beneficiária do Serviço Prestado, tinha os formandos seguros na Companhia de Seguros D…, S.A., para a qual a responsabilidade civil foi transferida no âmbito do acidente de que o autor foi vítima.
3.º Reiterando o devido respeito pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal recorrido.
4.º Entende o Autor, que o referido artigo 71.º n.º 2 do Código de Processo Civil, define a regra geral para determinar a competência do Tribunal, em razão da matéria e do território.
5.º Não estando a presente acção de qualquer excepção dilaptória, que obste a conhecer o Mérito da causa, em razão da matéria e do Território, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia.
6.º Sendo, salvo melhor opinião, nosso entendimento que o Douto Tribunal “a quo” decidiu em violação do disposto no n.º 2 do artigo 71.º do Código Processo Civil.

3. Admitido o recurso, foi o mesmo remetido a esta Relação onde foi autuado em 23/abr./2019, procedendo-se a exame preliminar e cumprindo-se os vistos legais.
4. Não existem questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito do recurso.
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A questão objecto do recurso incide na determinação do tribunal competente para esta ação.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Os tribunais judiciais no exercício da sua função jurisdicional de administração da justiça em nome do povo, têm a sua competência regulada primacialmente pela Constituição, de acordo com a sua categoria e as suas instâncias, podendo estas ser especializadas por matérias (202.º, n.º 1; 209.º; 210.º, 211.º - 214.º todos da Constituição). Logo de seguida surge a Lei Orgânica do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26/ago., sucessivamente alterada, designadamente pela Lei n.º 40-A, de 2016, de 22/dez. e Decreto-Lei n.º 86/2016, de 27/dez. – LOSJ) que faz, como sucedia anteriormente, a correspondente repartição atenta a matéria, o valor, a hierarquia e o território (64.º, 66.º, 67.º - 69.º, 70.º - 95.º NCPC), mas dando primazia àquela LOSJ no caso de infração das regras de competência material (65.º NCPC).
A LOSJ estipula no seu artigo 40.º, n.º 1 que “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, aditando-se no n.º 2 que “A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada”. Tanto os juízos locais cíveis, como os juízos de trabalho, inserem-se naquela ordem, sendo aqueles um desdobramento dos juízos locais e estes juízos de competência especializada, tendo as suas competência características próprias, mas no âmbito dos tribunais comuns (80.º, n.º 2 e 81.º LOSJ), como passaremos a enunciar de seguida.
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A competência juízos de juízos do trabalho em matéria cível está regulada no artigo 126.º, n.º 1, inserindo-se aí a sua alínea c), que diz respeito às “... questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”. Por sua vez, o Código de Trabalho (Lei n.º 99/2003, de 27/ago.) no seu artigo 10.º, considera como contrato de trabalho “aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direcção destas”. Mais adiante no artigo 284.º, n.º 1 consagra a noção de acidente de trabalho, considerando como tal “... o sinistro, entendido como acontecimento súbito e imprevisto, sofrido pelo trabalhador que se verifique no local e no tempo de trabalho”, consagrando-se no subsequente artigo 285.º uma extensão desse conceito para a situações de acidente in itinere (a), execução de certos serviços espontâneos (b), exercício do direito de reunião (c), frequência do curso de formação (d), atividade de procura de emprego aquando da cessão do contrato de trabalho (e) execução de determinados serviços (f).
Por sua vez, a Lei n.º 98/2009, de 04/set., que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais, enumera no artigo 3.º o trabalhador abrangido pela mesma, estipulando-se no n.º 1 que “O regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos” – sendo nosso o negrito. Mais explicita-se no n.º 2 que “Quando a presente lei não impuser entendimento diferente, presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços”. Porém, no subsequente n.º 3 considera que “Para além da situação do praticante, aprendiz e estagiário, considera-se situação de formação profissional a que tem por finalidade a preparação, promoção e actualização profissional do trabalhador, necessária ao desempenho de funções inerentes à actividade do empregador”.
No que concerne aos juízos locais, a sua competência encontra-se delimitada pelo artigo 130.º da LOSJ, enunciando-se desde logo no seu n.º 1, alínea a) que lhe compete “Preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro juízo de instância central ou tribunal de competência alargada”, que nos casos dos juízos locais cíveis dizem respeito à preparação e julgamento das ações declarativas de processo comum de valor até € 50.000, incluindo os procedimentos cautelares correspondentes, por interpretação do artigo 117.º, n.º 1 “a contrario”.
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A mesma LOSJ estabelece no seu artigo 144.º, n.º 1 que “Aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais”, o que está igualmente consagrado pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei 13/2002, de 19/fev., republicada pela Lei 107-D/2003, de 19/fev., com outras alterações – ETAF), através do seu artigo 1.º, n.º 1. Mas será no subsequente artigo 4.º, n.º 1 que encontramos delineado o seu âmbito, excluindo-se da jurisdição administrativa as situações elencadas no seu n.º 4, constando da sua alínea b) “A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não conferem a qualidade de agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público” – sendo nosso o negrito.
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Os contratos de emprego-inserção começaram por ser regulados pela Portaria n.º 128/2009, de 30/jan., sendo posteriormente alterados pelas Portarias n.º 164/2011, de 18/abr., n.º 294/2010, de 31/mai., n.º 164/2011, de 18/abr., 378-H/2013, de 31/dez. e n.º 20-A/2014, de 30/jan., tendo esta última republicado a sua versão consolidada. Como decorre dos seus artigos 1.º e 2.º os contratos de emprego-inserção visam desenvolver “trabalho socialmente necessário”, num duplo sentido: abranger desempregados inscritos no IEFP, sendo estes os seus beneficiários (artigo 5.º-A) (i); desenvolver atividades para satisfazer necessidades sociais ou colectivas temporárias (ii). Podem ser entidades promotoras desses contratos as entidades públicas, como sejam serviços públicos ou as autarquias locais, ou então privadas sem fins lucrativo, como sucede com as entidades de solidariedade social (artigo 4.º, n.º 1), podendo ser extensivo às entidades colectivas privadas do sector empresarial totalmente participadas pelas autarquias (artigo 4.º, n.º 2).
No que concerne à execução do contrato-emprego o artigo 9.º, n.º 1 estabeleceu o comando de que “No exercício das atividades integradas num projeto de trabalho socialmente necessário, é aplicável ao beneficiário o regime da duração e horário de trabalho, descansos diário e semanal, feriados, faltas, segurança e saúde no trabalho aplicável à generalidade dos trabalhadores da entidade promotora”, sendo causa de cessação do contrato a violação dos deveres de assiduidade ou a desobediência às instruções sobre o exercício do trabalho socialmente necessário (artigo 11.º, n.º 2, alíneas b), c) e d) e n.º 3). Por sua vez, a prestação desse trabalho tem como contrapartida os apoios financeiros correspondentes à bolsa mensal (artigo 13.º), assim como subsídios de transporte, alimentação (artigo 14.º, n.º 1 e 2). A entidade promotora deve ainda outorgar um contrato de seguro, abrangendo os riscos dessa prestação de trabalho (artigo 14.º, n.º 3).
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A propósito da fixação da competência dos tribunais para conhecer da ocorrência de acidentes no âmbito da execução de um contrato de emprego-inserção, a jurisprudência começou por excluir essa responsabilidade dos tribunais de trabalho, como sucedeu com o Ac. TRG de 26/fev./2015, segundo o qual “O Tribunal do trabalho não dispõe de competência, em razão da matéria, para conhecer de um acidente sofrido no âmbito de execução de um contrato Emprego Inserção, celebrado ao abrigo da Portaria 128/2009 de 30/01”. No mesmo sentido surgiu o Ac. TRE de 05/nov./2015, mencionando-se no seu sumário que “atento o escopo desses contratos, e celebrado, nessa conformidade, um contrato entre a Autora, beneficiária do rendimento social de inserção, e a Ré, “entidade promotora”, não pode o mesmo ser qualificado como de trabalho para efeitos de reparação prevista na LAT” – ambos os acórdãos, assim como o adiante referenciado são acessíveis em www.dgsi.pt.
No entanto o Ac. do Tribunal de Conflitos de 19/out./2017 veio considerar que “O acidente sofrido por um trabalhador, beneficiário do Rendimento Social de Inserção, a exercer funções de pedreiro, para um município, no âmbito de um contrato emprego-inserção, no tempo e no local de trabalho, deve ser considerado como acidente de trabalho, nos termos dos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro” (I), pelo que “O município, enquanto destinatário do trabalho prestado, é responsável pela reparação das consequências do acidente referido no número anterior, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º da referida Lei” (II). Mais acrescentou que “Não tendo o trabalhador em causa um vínculo para o exercício de funções públicas de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, o acidente em causa não pode ser considerado como acidente em serviço, nos termos do Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro”. Daí que “Nos termos do artigo 4.º, n.º 4, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, incumbe aos tribunais judiciais a competência para conhecer de processo visando a reparação das consequências do referido no número 1.”. Os argumentos decisivos foram os seguintes: (i) a existência de uma relação de trabalho subordinado, porquanto a autarquia definia e enquadrava o trabalhador, controlando a sua prestação efetiva; (ii) a bolsa paga como contrapartida desse trabalho não se confunde com os subsídios de desemprego ou de rendimentos social, tendo aquela uma característica de retribuição. Por isso considerou-se que o acidente ocorrido no decurso da execução desse contrato de emprego-inserção tem as características de um acidente de trabalho. Atenta a força persuasiva que tem um Acórdão do Tribunal de Conflitos, será de seguir o seu posicionamento.
Assim e em suma, havendo nos contratos de emprego-inserção uma dependência funcional e uma relação jurídico de subordinação por parte do seu beneficiário em relação à entidade promotora na prestação do trabalho socialmente necessário, podemos considerar que existe uma relação laboral sui generis. Sendo o beneficiário de tais contratos de emprego-inserção um trabalhador por contra de outrem em sentido lato, o sinistro ocorrido na execução desse contrato deve ser considerado como um acidente de trabalho, sendo os juízos do trabalho os competentes para conhecer das suas consequências.
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Na improcedência do recurso, as custas do mesmo ficam a cargo do Recorrente – 527.º, n.º 1 e 2 do NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, delibera-se negar provimento ao recurso interposto por B… e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas a cargo do recorrente.
Notifique.

Porto, 10 de julho de 2019
Joaquim Correia Gomes
Filipe Caroço
Judite Pires