Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
99/18.3T8OVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
DESPESAS DO CONDOMÍNIO
TRANSMISSÃO DAS FRACÇÕES
OBRIGAÇÕES PROPTER REM
Nº do Documento: RP2020030999/18.3T8OVR-A.P1
Data do Acordão: 03/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A obrigação de pagamento das despesas com partes comuns de um imóvel em regime de propriedade horizontal constitui uma típica obrigação propter rem.
II- Todavia, a sua natureza ambulatória ou não ambulatória nem sempre se apresenta com a mesma linearidade.
III- Assim, quando se trate de despesas relativas à conservação das partes comuns (conservação das coberturas fachadas etc.) do edifício, importa distinguir se as reparações estavam ou não executadas e concluídas à data da alienação da fracção.
IV- No primeiro caso (reparações ainda não executadas ou não concluídas) o encargo das respectivas despesas, na proporção respectiva, deve ser suportado, salvo acordo em contrário, pelo adquirente, pois que, dispunha objectivamente de todos os elementos para se aperceber da existência da obrigação, além de que será ele a retirar proveito do gozo do bem ao qual foi incorporada aquela beneficiação.
V- No segundo caso (reparações já executadas e concluídas) o encargo deve ser suportado, salvo acordo em contrário, pelo alienante, pois que, o adquirente não dispõe agora de quaisquer elementos objectivos que indiciem ou denunciem a existência da obrigação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 99/18.3T8OVR-A.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo de Execução de Ovar
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, residente em …, …, … deduziu embargos à execução que lhe foi movida por Condomínio do Edifício C…, com morada Rua …, n.º …, …, alegando em suma:
- Falta de notificação da convocatória e falta de notificação da ata da reunião da assembleia de condóminos que constitui título executivo;
- Violação do disposto no artigo 1434.º, n.º 2 do Código Civil, na medida em que aquela ata impõe uma penalização superior ao limite máximo estabelecido por lei;
- Que não é sua a responsabilidade pelo pagamento das despesas relativas às obras de reparação no prédio;
- Que Contesta a repartição pelos condóminos das despesas comuns aprovadas naquela ata;
- Que não existe título executivo quanto à exigibilidade de pagamento dos honorários de advogado, bem como quanto à exigibilidade de pagamento da multa pecuniária prevista na alínea c) do ponto quatro da ordem de trabalhos da mesma acta.
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Contestando, o exequente/embargado pugnou pela improcedência das excepções e, no mais, impugnou os fundamentos da oposição nos termos alegados pela executada, tendo ainda alegado o envio da ata que constitui título executivo, para a morada que na altura tinha a executada.
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Após audiência prévia teve lugar a audiência de julgamento que decorreu com observância do legal formalismo.
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A final foi proferida decisão que julgou parcialmente procedentes os embargos do executado e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução para cobrança da quantia liquidada no requerimento executivo, com a excepção do montante de € 246,00 relativos aos honorários do mandatário.
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Não se conformando com o assim decidido veio a executada/embargante interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar:
a)- saber se a executada é, ou não, é responsável pelo pagamento das despesas de condomínio referente à obra de qualificação das fachadas e do terraço nascente/norte do edifício em causa.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
a) A execução foi instaurada em 02.01.2018;
b) O exequente fundamenta a execução na acta da assembleia de condóminos n.º 49 datada de 19 de Abril de 2017, na qual foi aprovado o orçamento para o ano de 2017 do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, n.º …, freguesia …, concelho de Ovar, prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar com o n.º 1911/19940824, com início de vigência a partir de Janeiro de 2017 até Dezembro do mesmo ano, sendo a quota-parte de cada condómino a pagar até ao dia 8 do mês a que respeitar, de acordo com os valores que ficam a constar em anexo àquela acta;
c) Foi ainda aprovada uma despesa com a requalificação das fachadas e terraço nascente/norte, no montante de € 81.854,00 (mais IVA), cabendo à fracção autónoma designada pela letra “O” a quota extra no montante de € 4.631,30, conforme anexo de fls. 33 do requerimento executivo, que podia ser liquidada em tranches até ao dia 31 de agosto de 2017;
d) A fracção “O” do prédio representado pelo exequente encontra-se registada em nome da embargante desde 27.10.1994 (inscrição efectivada mediante a Ap. 13, com a mesma data)–doc. 1 anexo à contestação;
e) A fracção “O” do prédio representado pelo exequente encontra-se registada em nome de D… desde 26.03.2018 (inscrição efectivada mediante a Ap. 1829, com a mesma data)–doc. 6 anexo à contestação;
f) As obras com requalificação das fachadas e terraço nascente/norte ainda não havia sido iniciadas aquando da instauração da execução (incontrovertido);
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A estes factos acrescenta-se ainda este outro:[1]
g)- As referida obras ainda não se tinham iniciado quando ocorreu a transmissão da fracção em Março de 2018.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir e que se prende com:
a)- saber se a executada é, ou não, é responsável pelo pagamento das despesas de condomínio referente à obra de qualificação das fachadas e do terraço nascente/norte do edifício em causa.
Na sentença recorrida entendeu-se que, por tal pagamento, era responsável a executada/embargante não obstante ter ela procedido à venda da fracção de que era proprietária.
Deste entendimento dissente a recorrente alegando, em suma, que não pode ser responsabilizada pelo pagamento das citadas despesas por, entre o momento que mediou a deliberação de realizar as obras e a conclusão da respectiva empreitada, ter ocorrido a transmissão da fracção, além de que, como é evidente já não beneficiou das obras realizadas.
Quid iuris?
Como decorre do artigo 703.º, n.º 1, do C.P.Civil, aí se enumeram quatro espécies de título executivo:
a) -sentença condenatória;
b) -o documento exarado ou autenticado por notário;
c) -os títulos de crédito;
d) -o título executivo por força de disposição especial.
No caso em apreço o título dado à execução é uma acta de reunião da assembleia de condóminos à qual, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, do D. Lei n.º 268/94, de 25.10, lhe é conferida força executiva, encontrando-nos, pois, perante a última das estatuições referidas no normativo citado da lei adjectiva.
Com efeito, dispõe o artigo 6.º nº 1 do citado D. Lei que “a acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte”.
No que à aqui opoente concerne, a execução funda-se no teor na acta da assembleia de condóminos n.º 49 datada de 19 de Abril de 2017, na qual foi aprovado o orçamento para o ano de 2017 do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, n.º …, freguesia …, concelho de Ovar, prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar com o n.º 1911/19940824, e onde foi ainda aprovada uma despesa com a requalificação das fachadas e terraço nascente/norte, no montante de € 81.854,00 (mais IVA), cabendo à fracção autónoma designada pela letra “O” a quota extra no montante de € 4.631,30.
Como resulta da factualidade atrás descrita a opoente foi proprietário da fracção “O” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar com o n.º 1911/19940824, até Março de 2018, data em que a vendeu a D….
Significa, portanto, que o que importa dilucidar é saber se caberá à apelante a responsabilidade pelo pagamento do montante referente a despesas a realizar na execução de obras do edifício, deliberadas em assembleia de condóminos em 19 de Abril de 2017, data em que ainda era proprietário da fracção em questão.
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Analisando.
Na propriedade horizontal coexistem dois tipos de propriedade: a propriedade exclusiva da fracção de certo condómino e a compropriedade de todos os condóminos relativamente às partes comuns.
O que caracteriza a propriedade horizontal e constitui razão de ser do respectivo regime é o facto de as fracções independentes fazerem parte de um edifício de estrutura unitária.
A propriedade horizontal pressupõe a divisão de um edifício através de planos ou secções horizontais, por forma que, entre dois planos se compreendam uma ou várias unidades independentes, ou ainda através de um ou mais planos verticais, que dividam igualmente o prédio em unidades autónomas.
Logo, em alguns casos, a chamada propriedade horizontal, pode ser propriedade vertical. A divisão através de um ou vários planos é a única possível quando se trate de edifícios de um só piso”.[2]
Ora, no regime da propriedade horizontal conflui um feixe de direitos de que é titular o proprietário de fracção autónoma, [sem que tal situação se confunda com a compropriedade]; a titularidade de um direito de propriedade, exclusivo relativamente à fracção autónoma, e compropriedade com os demais condóminos, relativamente às partes comuns.
Oliveira Ascensão[3], depois de alusão histórica ao instituto, afirma acerca da natureza jurídica da propriedade horizontal:
Cremos porém que a qualificação correcta desta situação é a de propriedade especial. Embora se conjuguem propriedade e compropriedade a propriedade é o fundamental, sendo a compropriedade meramente instrumental. Escopo da propriedade horizontal não é criar uma situação de comunhão: é permitir propriedades separadas, embora em prédios colectivos (…).
Sendo assim, há nuclearmente uma propriedade, mas esta é especializada pelo facto de recair sobre parte da coisa e de envolver acessoriamente uma comunhão sobre outras partes do prédio. Estas especialidades levam a que a lei tenha tido a necessidade de recortar um regime diferenciado. Isto é típico justamente das propriedades especiais, de que a propriedade horizontal nos oferece o melhor exemplo…”.
O artigo 1424.º, nº1, do Código Civil estatui:
Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções”.
No caso em apreço estamos perante despesas relativas a realização de obras nas partes comuns do edifício em que se integra a fracção em causa, ou seja, estamos perante uma típica obrigação ob rem ou propter rem, sujeita, portanto, ao regime das obrigações reais.
Na lição do Prof. Antunes Varela[4], a obrigação diz-se real quando é imposta em atenção a certa coisa, a quem for titular dela e isto porque, “dada a conexão funcional existente entre a obrigação e o direito real, a pessoa do obrigado é determinada através da titularidade da coisa”.
A obrigação existe por causa da res, sendo “obrigado quem for titular do direito real, havendo assim uma sucessão do débito fora dos termos normais da transmissão das obrigações”.
A mesma ideia é também salientada, com toda a minúcia, por Manuel Henrique Mesquita[5], na procura da sua caracterização: “Trata-se de vínculos jurídicos por virtude dos quais uma pessoa, na qualidade de titular de um direito real, fica adstrita para com outra (titular ou não, por sua vez, de um ius in re) à realização de uma prestação de dare ou de facere”.
O pagamento de despesas resultantes do uso das partes comuns de um prédio em regime de propriedade horizontal foi, aliás, com toda a profundidade, objecto de estudo e de análise por parte deste último civilista coimbrão na obra citada na nota 4.
Todavia, a maior dificuldade está em saber, ao certo, que tipos de despesas estão em jogo: despesas normais, correntes, ou despesas resultantes de reparações estruturais, de grande monta.
A dificuldade ainda se adensa mais em relação a estas últimas, perspectivando-as no caso de venda de fracções, se equacionarmos o problema da justiça da solução a encontrar, para se saber se as mesmas devem ser postas a cargo do adquirente ou do alienante.
No fundo, trata-se aqui, analisando o caso concreto, podermos chegar à conclusão de que a obrigação em causa (de pagamento da quota-parte) reveste a característica da ambulatoriedade ou não, problema este de difícil solução, a merecer ponderação casuística, como enfatiza o indicado Professor Henrique Mesquita[6] em referência que põe a nu a seguinte realidade: “(…) a ambulatoriedade não é inerente ou característica essencial de todas obrigações propter rem, no sentido de que a transmissão do direito real de cujo estatuto a obrigação emerge implica automaticamente a transmissão desta para o novo titular do uis in re. Se há obrigações em que essa ambulatoriedade se impõe, outras existem, pelo contrário, que devem considerar-se intransmissíveis, por ser essa a solução que melhor se harmoniza com o vários interesses a que importa conferir tutela adequada”.
Ideia com a qual estamos de acordo e que revela a grande preocupação de encontrar a solução justa a partir do caso concreto, e não partindo de pré-juízos puramente conceituais e desfasados da realidade.[7]
Ora, o Prof. Henrique Mesquita, no sentido de encontrar um critério geral que permita todos os casos em que o problema se possa colocar, defende as seguintes soluções:
a)- Devem considerar-se ambulatórias todas as obrigações reais de “facere” que imponham ao devedor a prática de actos materiais na coisa que constitui objecto do direito real (ilustrando depois esta solução como alguns exemplos);
b)- Devem considerar-se não ambulatórias todas as demais obrigações “propter rem”, com excepção daquelas cujos pressupostos materiais se encontrem objectivados na coisa sobre que o direito real incide;
c)- (…).[8]
No âmbito das não ambulatórias este professor ilustre com o exemplo da obrigação de os condóminos de edifícios em regime de propriedade horizontal pagarem, proporcionalmente ao valor das respectivas fracções autónomas, a parte que lhes couber nas despesas, já efectuadas, para os fins indicados no nº 1 do artigo 1424.º do C.Civil (despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum).
Adverte, porém, o mesmo mestre, que importa observar, que no campo das obrigações que não vinculam o devedor propter rem a praticar actos materiais na coisa que constitui o objecto do direito real, são concebíveis situações em que a ponderação dos interesses em jogo impõe que a dívida se transmita juntamente com o direito real de cujo estatuto emerge.
E para ilustrar esta situação dá o seguinte exemplo:
Suponhamos que o telhado de um edifício em regime de propriedade horizontal foi danificado por uma intempérie e que o administrador do condomínio concluiu (…) um contrato de empreitada que tem por objecto as obras de reparação a que é necessário proceder. Suponhamos, ainda, que antes de os condóminos pagarem a parte que lhe compete no preço da empreitada a executar um deles vende a sua fracção autónoma.
Sendo inquestionável que a obrigação propter rem já existia à data da alienação, importa decidir se ela se transmite para o adquirente ou se, pelo contrário, continua a ter como devedor o alienante.”
Ora, nestes casos refere o ilustre Prof. que, a solução mais razoável é a da ambulatoriedade da obrigação real.
Efectivamente, refere: “Pelo que respeita ao alienante, com efeito, não se justifica que ele tenha de contribuir para uma despesa de que nenhum proveito lhe poderá resultar, uma vez que a sua soberania sobre o prédio terminou. Mas já pelo que respeita ao adquirente, há todas as razões para o sujeitar ao pagamento, quer porque é ele que vai beneficiar da despesa em questão, quer porque a necessidade de proceder à reparação no telhado ter-se-á reflectido na determinação do preço da fracção autónoma, quer ainda porque ele dispunha objectivamente, de todos os elementos para conhecer o encargo a que os condóminos estavam expostos, bastando-lhe, para tanto, confrontar o estatuto do condomínio com a situação em que se encontra uma das partes comuns do edifício.
Mas os dados do problema mudam radicalmente se à data da alienação da fracção autónoma, o telhado do edifício se encontra já reparado, não tendo ainda o alienante cumprido a sua obrigação (obrigação propter rem) de contribuir, na parte que lhe competia, para as despesas efectuadas. O adquirente não dispõe agora de quaisquer elementos objectivos que denunciem a existência da obrigação”.
Conclui, assim, aquele Professor, que devem, por conseguinte, “considerar-se ambulatórias, não só as obrigações propter rem que imponham a prática de actos materiais na coisa sobre que incide o direito real, como ainda todas aquelas cuja existência seja denunciada ou indiciada pela situação em que a coisa ostensivamente se encontre”.[9]
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Também a nossa jurisprudência não tem sido unânime no tratamento dado à questão.
Efectivamente, tem sido constante a dualidade de respostas dadas ao problema da alienação de fracções com dívidas ao condomínio.
Há acórdãos em que se afirma, peremptoriamente, que a responsabilidade por tal pagamento continua a incumbir aos alienantes[10] e acórdãos em sentido diametralmente oposto.[11]
Na essência, a nossa jurisprudência tem afirmado que as obrigações contidas no disposto no artigo 1424.º CCivil são obrigações propter rem, ou seja, obrigações do titular do direito de propriedade, seguindo, no entanto, duas correntes opostas:
- A primeira tem entendido que, apesar de se tratar de típicas obrigações propter rem, não têm uma das suas características definidoras, que é a ambulatoriedade.
Comportam as obrigações que decorrem do uso normal do bem, em que o pagamento do condomínio é a contrapartida disso, de forma a fazer face às despesas com a limpeza das partes comuns, manutenção geral e custos de administração. O mesmo não sucede com as obrigações que implicam melhorias, alterações ou reparações, em que é o novo proprietário a tirar proveito delas, mesmo tendo sido o anterior proprietário a deliberar e aprovar as mesmas em assembleia de condóminos;
- A segunda, por seu turno, entende que toda e qualquer obrigação propter rem tem como característica a ambulatoriedade. É essa, até, a sua principal característica, a par da sua titularidade ser definida pela titularidade do direito real.
O proveito é, também, tendo em conta a análise jurisprudencial, um pormenor importante quando se pretende aferir da responsabilidade no pagamento.
Nesta senda, acórdãos existem que entendem que a obrigação de pagamento das despesas de condomínio não se deve transmitir para o novo adquirente de determinada fracção, pois não será justo onerar o novo proprietário com uma despesa que teve a sua origem na utilização de um bem–durante um período de tempo diversos–por outra pessoa (o anterior proprietário). O anterior proprietário foi quem fruiu da fracção durante o período que originou as despesas em causa pelo que deve ser dele a responsabilidade pelo seu pagamento.[12]
Em diferente sentido o Ac. esta Relação de 07/07/2016[13] que entende que relativamente ao pagamento de despesas extraordinárias–reparação de elevadores ou reabilitação do prédio–em que ocorreu no momento que mediou entre a deliberação de realizar essas obras e a conclusão da respectiva empreitada uma transmissão de uma fracção por um determinado condómino, aqueles custos, salvo acordo em contrário, devem ser suportados, na proporção correspondente, pelo novo condómino tendo em conta que será este a retirar proveito do gozo do bem ao qual foi incorporada aquela beneficiação.
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Postos estes considerandos e descendo ao caso concreto cremos, salvo o devido respeito, que a respostas para a questão colocada no recurso não pode ser a que ditou a decisão recorrida.
Analisando.
Como resulta do quadro factual as obras comuns a realizar no edifício em questão diziam respeito realização de obras com a requalificação das fachadas e terraço nascente/norte [cfr. al. c) da fundamentação factual].
Vem também demonstrado nos autos que as obras ainda não se tinham iniciado quer aquando da instauração da execução quer aquando da alienação da fracção [cfr. als. f) e g) da fundamentação factual].
Importa ainda realçar que o que foi aprovado na Assembleia Geral com data de 19 de Abril de 2017, foi o orçamento para o ano de 2017 e uma despesa com a requalificação das fachadas e terraço nascente/norte, no montante de € 81.854,00.
Daqui resulta que a transmissão da fracção operou-se numa altura em que determinados partes comuns do prédio careciam de obras de conservação, pelo que, a regra (tradicional) de que obrigação propter rem-a obrigação, neste caso, de cada condómino contribuir, proporcionalmente ao valor da respectiva fracção autónoma, para as despesas de conservação de uma parte comum do edifício-se transmite juntamente com o direito real não pode suscitar, aqui, qualquer dúvida, pois o adquirente da fracção autónoma dispunha objectivamente de todos os elementos para se aperceber da existência da obrigação, bastando-lhe para isso, confrontar a situação material da coisa com o regime legal do condomínio.
Na verdade, qualquer titular do direito real está sujeito às vinculações e encargos decorrentes do próprio estatuto, sendo que, no caso esse estatuto diz que cada condómino deve contribuir, em proporção do valor da respectiva fracção autónoma, para as despesas de conservação das partes comuns do edifício (cfr. artigo 4º do Regulamento).
Como assim, carecendo o edifício em causa, à data da transmissão da fracção autónoma, de obras de requalificação das fachadas e terraço nascente/norte, o adquirente não podia ignorar o encargo a que ficava sujeito, pelo que, a transmissão não o colhe de surpresa, é um efeito jurídico com que ele devia contar, pois que, decorre directa e imediatamente da aplicação da lei às condições objectivas ou materiais que o edifício se encontrava à data da alienação.
Nenhuma razão se divisa, portanto, para que a obrigação propter rem não vincule o adquirente da fracção autónoma e, portanto, para que a alienante/embargante não fique dela liberto-cfr. Henrique Mesquita, que defende nestes casos que “a solução mais razoável é a da ambulatoriedade da obrigação real”.[15]
Acresce que, não se descortina, neste caso, qualquer justificação em termos de justiça distributiva para que, a apelante, na qualidade de alienante, tenha de contribuir para uma despesa de que nenhum proveito lhe poderá resultar, uma vez que a sua soberania sobre o prédio terminou.
Mas já pelo que respeita ao adquirente, há todas as razões para o sujeitar ao pagamento, porque é ele que vai beneficiar da despesa em questão.
Acresce que, o devedor, na relação estabelecida, é determinado não pessoalmente (em função da pessoa), mas realmente, ou seja, pela titularidade do direito real sobre a coisa.
As obrigações referidas no artigo 1424.º CCivil constituem exemplo típico de obrigações propter rem. O citado artigo prevê a obrigação de todos os condóminos contribuírem com a sua quota-parte para a conservação e administração das partes comuns. As partes comuns, são uma das características definidoras do regime da Propriedade Horizontal e, por isso, são indissociáveis da titularidade de uma dada fracção, pelo que o proprietário desta está adstrito ao cumprimento das obrigações previstas no citado inciso.
Atendendo à natureza jurídica e às características da obrigação em causa, a transmissão da obrigação acontece automaticamente com a transmissão do imóvel.
Se a obrigação de pagar as despesas do condomínio é uma obrigação propter rem, o obrigado determina-se em função da coisa e não, intuitu personae, pelo que dúvidas não podem subsistir quanto a quem deve estar adstrito ao cumprimento da aludida obrigação.
Independentemente de se considerar que o vendedor pode ser (também) responsabilizado por tal pagamento (nomeadamente ao nível das relações internas– comprador/vendedor), conclui-se que tal responsabilidade impende sobre o comprador, como dono actual da fracção, de harmonia com o princípio propter rem que caracteriza as obrigações em questão.
Instado a pagar valores em dívida da sua fracção, que se tenham vencido em momento anterior à sua aquisição, o novo proprietário pode sempre ser ressarcido dos danos e prejuízos causados pelo anterior proprietário, recorrendo ao regime da compra e venda de bens onerados (artigo 905.º e ss. CCivil), ou seja, anulando o negócio efectuado e responsabilizando-o nos termos gerais de direito.
Com efeito, a responsabilização do adquirente por dívidas que poderia eventualmente não conhecer no momento da aquisição, tem um enquadramento perfeito no conceito de “ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria”, presente no citado artigo 905.º.
A resposta à questão colocada está longe de ser pacífica, mas, face ao exposto, perfilha-se a seguinte conclusão: no caso da alienação de fracções com dívidas ao condomínio, este, para reaver o seu crédito coercivamente deve, em princípio, intentar uma acção executiva contra o adquirente da fracção em questão, pois estamos perante uma típica obrigação propter rem e, por isso, ambulatória. Só assim se concretiza uma correta interpretação das normas jurídicas e se prevê o equilíbrio das posições de todos os interessados.
Como salienta José Alberto C. Vieira[16], para quem a transmissão do direito real implica a transmissão da obrigação real “Se a fonte da obrigação propter rem é o direito real, o titular respectivo está investido no dever de a cumprir, mesmo que eventualmente haja adquirido o direito após o vencimento da mesma” (negrito e sublinhados nossos).
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Procedem, desta forma, as conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente por provada e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida determinando-se a extinção da execução em relação à apelante também na parte referente à despesa extraordinária de € 4.631,30 (quatro mil seiscentos e trinta e um euros e trinta cêntimos) bem como da pena pecuniária a ela associada e respectivos juros de mora.
No mais mantém-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelo apelado (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 09/03/2020.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] O referido facto resulta da confissão ficta, pois que tendo a embargante alegado no artigo 13º da sua oposição que pese embora as obras em causa tenham sido decididas e aprovadas em Abril de 2017, as mesmas ainda não havia sido executadas, sendo que a oposição deu entrada em juízo no dia 20/08/2018, tal facto foi aceite pelo condomínio embargado (cfr. artigo 50º da contestação). Neste caso este tribunal da Relação limitou-se a aplicar a regra vinculativa extraída do direito probatório, pois que nos termos do artigo 663.º, nº 2 do CPCivil aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre as quais o artigo 607.º, nº 4, norma segundo a qual o juiz deve tomar em consideração na fundamentação o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.
[2] Henrique Mesquita, RDES, XXIII-84.
[3] In “Direitos Reais”, 3ª edição, págs. 462 e 464.
[4] Direito das Obrigações, vol. I, 8ª edição, pág. 200.
[5] Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 100.
[6] Obra citada pág. 316 a 323.
[7] A mesma opinião parece ter Mário Júlio Almeida Costa, quando, ao abordar o tema das obrigações reais, as define da seguinte forma: “há obrigações ligadas a direitos reais, de maneira que a pessoa do devedor se individualiza pela titularidade do direito real”, para, logo de seguida, as identificar como sendo reais ou ambulatórias- Direito das Obrigações, 9ª edição, pág. 110.
[8] Obra citada pags. 330 e seguintes.
[9] Na nota 74 este autor pág. 343 da obra citada. Refere que: “Sempre que se trate de obrigações cujo vencimento só se verifica depois de o devedor ser interpelado para cumprir (tal é o caso, por exemplo, da obrigação que adstringe os comproprietários a contribuírem para as despesas necessárias à conservação e fruição da coisa comum: artigo 1411.º nº 1 do C.Civil), o credor, mesmo que já houvesse interpelado o alienante do direito real para cumprir, terá de repetir a interpelação em relação ao subadquirente, pois este não dispõe de elementos objectivos que lhe permitam saber se o anterior titular do direito se encontrava numa situação de mora”. [10] Cfr. Ac. da Relação do Porto de 16-12-1997, processo n.º 9720870, disponível em www.dgsi.pt; Ac. da Relação do Porto de 09-07-2007, processo n.º 0753550, disponível em www.dgsi.pt
[11] Cfr. Ac. da Relação do Porto de 29-04-2004, processo n.º 0431329, disponível em www.dgsi.pt; Ac. da Relação de Guimarães de 17-09-2009, processo n.º 836/04.3TBVCT.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 09-07-2007, processo n.º 0753550, disponível em www.dgsi.pt.
[13] In www.dgsi.pt.
[14] Note-se que estas obras nada têm que ver com as importâncias que mensalmente os condóminos pagam para as despesas normais e correntes do condomínio (remunerações do administrador, salários do porteiro e do jardineiro, custo do aquecimento central, da energia eléctrica e da água que se consumo nas partes comuns. Como diz Henrique Mesquita, obra citada, pág. 321, tratando-se de prestações destinadas a custear despesas habituais originadas pela utilização de serviços ou pelo consumo de bens necessários a assegurar a funcionalidade normal do condomínio, seria injusto fazê-las recais sobre o adquirente da fracção, pois que, para além de não dispor de elementos objectivos que revelassem ou indiciassem a existência das dívidas, tais prestações representam, em regra, na economia do instituto, a contrapartida de um uso e fruição (das partes comuns do edifício) que couberam ao alienante e, por conseguinte, só a este deve competir a respectivo pagamento.
[15] Obra citada, pág. 319 e também pág. 342.
[16] In Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pag. 109.