Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0731617
Nº Convencional: JTRP00040320
Relator: TELES DE MENEZES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CLÁUSULA EXW
Nº do Documento: RP200704260731617
Data do Acordão: 04/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 715 - FLS. 91.
Área Temática: .
Sumário: I- Posteriormente a 1 de Março de 2002, é o Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, que fornece os critérios de determinação do tribunal competente, em razão da nacionalidade, para dirimir questões emergentes de um contrato de compra e venda celebrado entre uma empresa portuguesa e uma outra domiciliada na Alemanha.
II- Em tal contrato e para o fim enunciado, releva o lugar de Estado-Membro da UE acordado para entrega do bem vendido, o qual não coincide, necessariamente, com o respectivo lugar de destino.
III- A cláusula "EXW" aposta em documento respeitante ao sobredito contrato significa que a única responsabilidade do vendedor é tornar os bens disponíveis nas suas instalações, não sendo responsável pelo carregamento dos bens no veículo fornecido pelo comprador, a não ser que o contrário tenha sido acordado, suportando o comprador, inteiramente, os custos e o risco envolvidos no transporte dos bens das instalações do vendedor para o destino desejado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I.
B……………….., S.A., com sede na Rua ……………, …., …………, Santa Maria da Feira, intentou a presente acção declarativa de condenação, na forma ordinária, contra C…………….., com sede em ………, 10, D-49393 ………., Alemanha, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 69.900,81, acrescida de juros vincendos à taxa de 9,25%, desde a data de introdução do feito em juízo até efectivo pagamento.
Alegou que no exercício da sua actividade de fabrico e comercialização de rolhas de cortiça e outros produtos de cortiça forneceu à Ré, a pedido desta, mercadorias no valor global da quantia pedida, conforme factura que junta, a qual se convencionou que se venceria 30 dias após a data da emissão.
Todas as mercadorias foram entregues pela A. à Ré, a qual não as pagou, apesar de para isso instada.

A Ré contestou, defendendo-se por excepção, afirmando que os tribunais portugueses são incompetentes para conhecerem desta acção, na medida em que a jurisdição competente se determina pelo Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (art. 1.º). Assim, em conformidade com o art. 60.º/1-a) desse diploma, a Ré considera-se domiciliada na República Federal da Alemanha e, por força do art. 2.º, “as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse estado”, só podendo ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do capítulo II do Regulamento (art. 3.º).
Desta forma, segundo o art. 5.º/1-b), no caso de venda de bens, o réu pode ser demandado perante o tribunal do lugar onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, o que sucedeu na Alemanha (art. 4.º da p.i. e doc. n.º 1 junto com esse articulado, onde consta como destination ………/Germany.
É, pois, o tribunal português absolutamente incompetente para a causa (art. 101.º do CPC), o que constitui excepção dilatória (art. 494.º-b)), que conduz à absolvição da instância (art. 288.º/1-a) do CPC).
Pede se julgue procedente a excepção e se absolva a Ré da instância.

A A. respondeu, dizendo que as partes submeteram o contrato ao regime do Incoterm Exw, conforme consta da factura, sendo que os incoterms são regras criadas pela Câmara de Comércio Internacional, significando o incoterm Exw (ex-works) que a mercadoria é entregue no estabelecimento do vendedor, em local designado, recebendo-a o comprador no local da produção, na data combinada. In casu, a Ré recebeu os bens no estabelecimento que a A. tem no Montijo, pelo que, apesar de ser verdade que a mercadoria se destinava a ser enviada para a Alemanha, a sua entrega efectiva ocorreu em Portugal.
Por isso, à luz do Regulamento, o tribunal competente é o português.

II.
Foi proferida decisão que julgou procedente a excepção dilatória da incompetência internacional, declarou o Tribunal de Santa Maria da Feira internacionalmente incompetente, e absolveu a Ré da instância.

III.
A A. recorreu, concluindo como segue:
1. A agravante é uma sociedade comercial de direito português, com sede na Comarca de Santa Maria da Feira, e exerce a actividade de fabrico e comercialização de rolhas em cortiça e outros produtos de cortiça.
2. a agravada é uma sociedade de direito alemão, com sede em ……….., Alemanha.
3. Por contrato de compra e venda de mercadorias, a agravante vendeu à agravada, que lhas comprou, as mercadorias discriminadas na factura n.º F 209298, de 21.4.2003, junta aos autos com a p.i.
4. A agravada recebeu as mercadorias, mas não pagou o preço, tendo, assim, incumprido o contrato, razão pela qual foi demandada pela agravante, que peticiona a condenação daquela no pagamento do preço das mercadorias que recebeu.
5. O contrato de compra e venda de mercadorias celebrado entre agravante e agravada foi submetido ao regime do Incoterm “EXW”.
6. Os incoterms são regras criadas pela Câmara de Comércio Internacional para administrar conflitos oriundos da interpretação de contratos internacionais firmados entre exportadores e importadores concernentes à transferência de mercadorias, às despesas decorrentes das transacções e à responsabilidade sobre perdas e danos, significando o incoterm Exw (ex-works) que a mercadoria é entregue no estabelecimento do vendedor, em local designado. O comprador recebe a mercadoria no local da produção (fábrica, plantação, mina, armazém), na data combinada.
7. A agravada recebeu as mercadorias cujo pagamento a agravante reclama no estabelecimento que esta tem no Montijo, em Portugal – cfr. factura junta com a p.i., onde se pode ler Sale Condit. EXW.
8. Mercadorias essas que depois a agravada levou para a Alemanha, que era o país do destino dos bens.
9. De harmonia com o contrato de compra e venda celebrado, as partes convencionaram que a mercadoria era, como efectivamente foi, entregue pela agravante à agravada em Portugal, local onde, à luz do previsto no Regulamento (CE) n.º 44/2001, foram entregues os bens.
10. A alínea a) do n.º 1 do art. 5.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 prevê que uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro da União Europeia pode ser demandada noutro Estado-Membro em matéria contratual perante o tribunal do lugar onde a obrigação foi ou deva ser cumprida.
11. E a al. b) do mesmo número, dispõe que salvo disposição em contrário, o lugar do cumprimento da obrigação em questão será, no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.
12. Assim, tendo os bens sido entregues pela agravante à agravada, em estrito cumprimento do contrato, em território português, tal como faz parte, aliás, das condições de venda;
13. E tendo a vendedora, aqui agravante, sede na Comarca de Santa Maria da Feira;
14. O Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira é foro para dirimir a matéria em causa, sendo internacionalmente competente para o presente pelito.
15. Ao decidir como decidiu, valorando o local para onde a agravada levou os bens, mas ignorando o local onde a agravante entregou efectivamente os bens à agravada, o tribunal a quo violou o previsto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 5.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001.
Pede a revogação da decisão agravada, julgando-se improcedente a excepção dilatória da incompetência internacional e declarando o Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira internacionalmente competente para julgar a presente acção.

A agravada respondeu, reafirmando, no essencial, que a al. b) do n.º 1 do art. 5.º do Regulamento citado, dispõe que no caso de venda de bens, o réu pode ser demandado perante o tribunal do lugar onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, o que sucedeu na Alemanha; e que os incoterms não têm relevância para aplicação das regras de competência internacional, por apenas visarem regular as obrigações entre comprador e vendedor, nomeadamente no que respeita à regulação do transporte da mercadoria e transferência de riscos; sendo que o local da entrega é o local da entrega efectiva e não o local de entrega como cumprimento da obrigação do vendedor, sendo relevante o local do destino dos bens.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

IV.
Factos a que se atendeu na decisão para decidir a excepção:
1. A A. exerce a actividade de fabrico e comercialização de rolhas em cortiça e de outros produtos de cortiça, com sede na Rua …………, n.º ……, em ………………..
2. A Ré é uma sociedade comercial de direito alemão, com sede em ………, 10, ………., Alemanha.
3. A A. alega que, no exercício da sua actividade comercial, vendeu à Rè, a pedido desta, as mercadorias discriminadas na factura n.º F 209298, de 21 de Abril de 2003, não tendo a mesma procedido ao pagamento do preço no prazo convencionado.
4. A A. alega, na p.i., que todas as mercadorias foram efectivamente entregues à Ré, nos precisos termos convencionados.
5. Na factura n.º F 209298, de 21 de Abril de 2003, junta a fls. 3, consta, como lugar de destino ………/Germany.
6. Na réplica, a A., em resposta à excepção deduzida pela Ré, alega que o contrato de compra e venda foi submetido ao incoterm Exw, tendo, em consequência, a Ré recebido as mercadorias no estabelecimento que a A. tem no Montijo, em Portugal, apesar de tais bens se destinarem a ser enviados para a Alemanha.

A questão suscitada é da competência dos tribunais portugueses para o processamento desta acção.

V.
Remete-se para a decisão recorrida quanto à aplicação ao caso do Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, o qual se impõe a todos os Estados-Membros da UE e prevalece sobre a ordem jurídica interna.

Segundo tal Regulamento, em princípio e em regra, é competente o tribunal do domicílio do réu, de acordo com a disposição contida no seu art. 2.º/1, da qual decorre que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.
No entanto, há regras específicas em determinadas matérias, que afastam a regra geral enunciada.
Assim, logo o art. 5.º estabelece que uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação (al. a)), sendo que, para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação será, no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues (al. b)).

Na sentença, diz-se:
«O Regulamento veio estabelecer um conceito e cumprimento apenas para efeitos de determinar o tribunal competente.
Estabeleceu-se um conceito autónomo de lugar do cumprimento, para atenuar os inconvenientes de recurso às regras de direito internacional privado do Estado do foro. Isto para a venda de bens e para a prestação de serviços.
O local da entrega é o local da entrega efectiva e não o local de entrega como cumprimento da obrigação de vendedor. Trata-se, pois, do local ou do Estado-Membro que era o destino final dos bens. E quanto a isto não pode ser dito que não existe acordo das partes.
É, pois, aplicável a alínea b) do n.º 1 do art. 5.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 e sendo o local da entrega dos bens a Alemanha é a sua jurisdição a competente para dirimir o presente litígio».

Parece estabelecer-se uma equiparação entre destino dos bens e entrega dos bens, que veremos se é defensável.

No documento de fls. 3 consta que o destino dos bens é ………../Germany, que o estabelecimento da A. é no Montijo, que a mercadoria se destina à exportação, e nas condições de venda menciona-se EXW.
Por outro lado, do verso do mencionado documento/factura, constam as condições gerais de venda, em cujo n.º 5 “Risco de transporte”, se estatui que “(…) o risco de perda ou deterioração das mercadorias causadas (sic), culposamente ou não, pelas pessoas encarregadas pelo transporte, corre por conta do comprador. Nós não somos obrigados a segurar as mercadorias”.
E sob o n.º 7, epigrafado “Preços”, diz-se que “(…) os nossos preços são “ex-works”.

Vejamos o são os incoterms.

I N C O T E R M S D E F F I N I T I O N S
Incoterms 2000
Incoterms 2000 describe the responsibilities of seller and buyer in international trade. The full and authoritative definition of each trade term is published in Incoterms 2000, Publication 560, obtainable from the ICC's (find their site at: http://www.iccbooks.com/) Business Bookstore and ICC national committees throughout the world.
EXW EX WORKS
FCA FREE CARRIER
FAS FREE ALONGSIDE SHIP
FOB FREE ON BOARD
CFR COST AND FREIGHT
CIF COST, INSURANCE AND FREIGHT
CPT CARRIAGE PAID TO
CIP CARRIAGE AND INSURANCE PAID TO
DAF DELIVERED AT FRONTIER
DES DELIVERED EX SHIP
DEQ DELIVERED EX QUAY
DDU DELIVERED DUTY UNPAID
DDP DELIVERED DUTY PAID
Incoterms 2000
* ( EXW ) EX WORKS
(... named place) "Ex works" means the seller's only responsibility is to make the goods available at the seller's premises, i.e., the works or factory. The seller is not responsible for loading the goods on the vehicle provided by the buyer unless otherwise agreed. The buyer bears the full costs and risk involved in bringing the goods from there to the desired destination. Ex works represents the minimum obligation of the seller.
(Estes elementos encontram-se disponíveis na Internet).
Assim, a expressão “Ex Works” significa que a única responsabilidade do vendedor é tornar os bens disponíveis nas suas instalações, não sendo responsável pelo carregamento dos bens no veículo fornecido pelo comprador, a não ser que o contrário tenha sido acordado. O comprador suporta inteiramente os custos e o risco envolvidos no transporte dos bens das instalações do vendedor para o destino desejado. Ex Works significa um mínimo de obrigações para o vendedor.
(Fizemos uma tradução sem particular rigor, mas com respeito pelo sentido do texto).

Perante isto, parece inegável que as condições de venda lançam luz sobre o lugar da entrega dos bens, permitindo estabelecer uma diferenciação entre o destino e o lugar em que o vendedor tinha de entregar a mercadoria, que era nas suas instalações, ficando o resto por conta do comprador.
E apesar de o Incoterms prescrever as responsabilidades do vendedor e do comprador no comércio internacional, essas responsabilidades prendem-se com o momento a partir do qual se considera que o vendedor deixa de ser responsável pela mercadoria, por a mesma ter sido entregue ao comprador.

Ora, esta análise impõe que se considere que, embora aplicando-se o disposto no art. 5.º do Regulamento, se chegue a conclusão diversa do decidido.
É que o local da entrega efectiva, precisamente porque o vendedor não ficou encarregado de fazer o transporte até ao destino, tendo entregue as mercadorias no seu estabelecimento, e alijando desde aí a sua responsabilidade, é tipificado como o local do estabelecimento do vendedor.
Afastada fica, pois, a competência dos tribunais alemães.

Face ao exposto, concede-se provimento ao agravo e, revogando-se a decisão recorrida, julga-se competente internacionalmente para conhecer deste pleito o Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira.

Custas pela agravada.

Porto, 26 de Abril de 2007
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira