Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1730/14.5T2OVR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
FALECIMENTO DE PARTE
Nº do Documento: RP202010261730/14.5T2OVR.P2
Data do Acordão: 10/26/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A deserção da instância depende da verificação dos seguintes pressupostos:
a) Paragem do processo por mais de seis meses, por ter sido omitida a prática do acto de que dependia o seu prosseguimento (respeitante ao próprio processo, ou a incidente de que dependia o prosseguimento da acção principal);
b) Ser essa omissão devida à negligência da parte que tinha o ónus da sua prática, isto é, dever o acto ser praticado por si e ter a sua omissão um carácter censurável.
II - A apreciação da negligência revelada pela parte deve ser feita objectivamente em face dos dados conferidos pelo processo.
III - Sempre que o impulso processual dependa da parte, esta tem o ónus e o interesse em informar o tribunal acerca da existência de algum obstáculo e, se for o caso, solicitar a concessão de alguma dilação.
IV - Nos casos de falecimento de uma das partes pode ocorrer deserção de instância em caso de inércia imputável às partes na interposição do correspondente incidente de habilitação de herdeiros, mas tal deserção de instância não pode ocorrer quando a parte alegue dificuldades na identificação daqueles (herdeiros) ou na obtenção da necessária documentação dentro do referido prazo de 6 meses ou de outro prazo que resulte de alguma prorrogação, pois que nessas circunstâncias não se pode imputar o decurso de prazo à inércia negligente da parte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO Nº 1730/14.5T2OVR.P2
Comarca de Aveiro - Juízo Local Cível de Ovar
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto.
I. RELATÓRIO.
Recorrente(s): - B… e marido C… (Autores);
Recorrida: D…
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B… e marido C… instauraram acção declarativa de condenação com processo comum contra D…, pedindo que: a) Seja declarado que os AA são donos e legítimos proprietários do poço de consumo existente no prédio identificado no art.1º da p. i., propriedade dos AA; b) Condenar-se a R a abster-se de utilizar a água do poço de consumo; c) Condenar a R a, no prazo de 30 dias, retirar e demolir a estrutura de cobertura, a cabine de tijolos e o motor que colocou no poço.
Contestou a R. impugnando os factos alegados pelos AA., concluindo pela improcedência da acção e deduziu reconvenção pedindo que se declare a existência de duas servidões que oneram o prédio dos AA – o poço de captação de água para consumo e a colocação da cabine e o motor, com a respectiva electrificação.
Replicaram os AA., excepcionando a ilegitimidade da R, a ineptidão da reconvenção, a impossibilidade da constituição de servidão e impugnando os factos alegados na reconvenção, concluíram no sentido de a mesma ser improcedente.
Foi requerida a intervenção principal provocada dos restantes herdeiros da herança aberta por óbito de E… e F…, por os prédios em questão pertencerem à herança, o que foi admitido por despacho de 11.12.2015 (cfr. Fls.156 a 162).
A R. respondeu às excepções colocadas pelos AA na réplica.
Foi designada audiência prévia (cfr. Fls.223).
Tendo falecido o interveniente principal G…, admitido a intervir ao lado da reconvinte, o tribunal a quo, em 4.10.2016, declarou suspensa a instância reconvencional. (cfr. fls. 230).
Em 31.10.2016, foi realizada a audiência prévia, onde foi requerida a suspensão da instância por 30 dias, para deduzir o incidente de habilitação de herdeiros do interveniente principal G…, o que foi concedido. (cfr. Acta de audiência prévia a fls.237e 238)
Em 25.11.2016 foi deduzido, por apenso, o incidente de habilitação de herdeiros do referido G….
Por sentença de 1.06.2017 foi decidido: “julgo habilitados, para prosseguir os ulteriores termos da causa principal: a) H…, b) I…, c) J…, d) K…, e) L… e f) M…, melhor identificados a fls. 4 e 5 dos autos, que passam a ocupar a posição do falecido Chamado a título principal, no que respeita a instância reconvencional, G….”
Em 29.11.2017, foi proferido despacho saneador admitindo-se a reconvenção deduzida pela R.” na parte atinente à declaração de existência de uma servidão de aproveitamento das águas do “poço de consumo” existente no prédio dos autores”.
Foi dispensada a audiência prévia, conhecidas as excepções invocadas, as quais foram julgadas improcedentes, fixado o objecto do litigio e os temas de prova. (cfr. Fls273 a 277).
Em 21.02.2018 foi dado conhecimento ao Tribunal e junta a certidão de óbito do interveniente principal N… (cfr. Fls287 e 289).
Em 22.2.2018 foi proferido o seguinte despacho:
“Da certidão de fls. 289 e 290 resulta que o réu N… faleceu na pendência da presente acção, em 25.11.2017.
Declaro suspensa a instância, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 269.º e no n.º 1 do artigo 270.º do Código de Processo Civil.
Consequentemente, dou sem efeito a audiência de julgamento agendada para 01.03.2018.
Aguardem os autos o impulso das partes (habilitação dos sucessores, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 351.º do Código de Processo Civil).
Notifique. “
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Este despacho foi notificado às partes em 23.02.2018.
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Em 17.04.2018 os AA. dirigiram um requerimento aos autos do seguinte teor:
«1. Por douto despacho de fls. … foi declarada a suspensão da instância, ficando a mesma a aguardar o impulso das partes (habilitação de herdeiros).
2. Ora, e salvo o devido respeito, entenda a ora Exponente que o impulso processual em causa (habilitação de herdeiros) incumbe/interessa aos Reconvintes porquanto a habilitação de herdeiros em falta apenas se mostra necessária para assegurar a legitimidade Activa na instância reconvencional e não na acção principal.
3. Sendo que a acção principal está em condições de prosseguir os seus termos.
4. Pelo que, e não tendo os Reconvintes até à presente data dado aquele impulso processual, não podem, nem devem, os AA. sair prejudicados, donde deve a instância no que respeita à acção principal seguir os seus termos.
Termos em requer a V. Ex.ª se digne ordenar o prosseguimento da acção principal.»
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Em 24.04.2018 respondeu a R dizendo:
«1.Os AA. vieram por requerimento de fls. dos autos requerer a prossecução dos autos.
2. Alegam para tanto, que a habilitação de herdeiros interessa a aqui R., enquanto reconvinte, e a sua ausência não impede que os autos principais prossigam.
3. Salvo o devido respeito por melhor opinião, não pode a R. concordar com tal posição.
4. Desde logo cumpre esclarecer que os autos principais não podem prosseguir de forma independente da reconvenção,
5. Por outro lado, se a R. tem interesse na realização da habilitação de herdeiros em causa, também é verdade que os AA. também têm interesse na sua realização, quanto mais não seja para que os autos possam prosseguir.
6. Por fim, apenas esclarecer, que a R. ainda não requereu a habilitação de herdeiros porque tem tido dificuldade em identificar todos os herdeiros, respectivos cônjuges e correspondentes moradas.
7. Contudo, tem desenvolvido esforços junto de familiares no sentido de obter esses elementos.
8. Estando neste momento a ponderar avançar com os elementos que possui e contra os herdeiros que conhece, na expectativa de que os mesmos ao serem citados para o procedimento venham aos autos identificar os restantes herdeiros.»
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Em 9.05.2018 foi proferido o despacho:
“Requerimento de 17.04.2018 e resposta de 24.04.2018: O tribunal já proferiu decisão, em 22.02.2018, sobre os efeitos do falecimento do réu N… (fundamentada de facto e de direito, e notificada às partes), estando esgotado o poder jurisdicional relativamente a essa questão – cf. o n.º 1 do artigo 613.º do Código de Processo Civil, aplicável analogicamente. Notifique.
Aguardem os autos nos termos determinados nesse despacho.”
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Este despacho foi notificado às partes.
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E em 11.09.2018, foi proferido o seguinte despacho:
“Tendo em conta o teor do despacho de 22.02.2018, notificado às partes, e a circunstância de terem decorrido seis meses sem as mesmas darem impulso ao processo, sem contraditório prévio, por manifesta desnecessidade (cf. o n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil), declaro deserta a instância, nos termos previstos na alínea c) do artigo 277.º e no n.º 1 do artigo 281.º do mesmo Código. Registe e notifique. “
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Desta decisão os Recorrentes interpuseram Recurso, o qual veio a merecer acolhimento, tendo o Tribunal da Relação do Porto proferido a seguinte decisão:
“… Nestes termos, acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente declarar nulo o despacho recorrido, ordenando-se a baixa dos autos à 1ª instância para cumprimento do principio do contraditório e prosseguimento dos ulteriores termos”.
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Prosseguindo os autos na Primeira Instância, foi cumprido o determinado pelo Acórdão:
“Tomei conhecimento do acórdão de fls. 313 e segs.
Em cumprimento do determinado nesse acórdão, concedo às partes o prazo de 10 dias para, querendo, se pronunciarem sobre a deserção da instância, por falta de impulso processual – cf. o despacho de 22.02.2018, bem como o disposto no n.º 3 do artigo 3.º, na alínea c) do artigo 277.º e no n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Civil” – despacho proferido em 9.4.2019.
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Na sequência, vieram os Recorrentes pronunciar-se (em 16.4.2019), defendendo, em síntese, que:
- “… pelo exposto, não estão reunidos os pressupostos necessários para determinar a extinção da instância por deserção” (…).
- “Destarte, a haver qualquer deserção (o que não se admite), a mesma será apenas da instância reconvencional (uma vez que só esta está impedida de prosseguir os seus trâmites normais) e não já da instância principal (uma vez que esta está em condições de prosseguir os seus trâmites normais)”.
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Nessa mesma data, deduziram o incidente de habilitação de herdeiros.
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De seguida, em 13.5.2019, foi proferida a seguinte decisão:
“(…) declaro deserta a instância e sem efeito o incidente de habilitação de herdeiros deduzido pela 1.ª autora em 16.04.2019 (…).”
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É justamente desta decisão que os Recorrentes vieram interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“Conclusões:
I – Os Recorrentes discordam da decisão proferida porquanto a instância não está deserta e, a estar deserta, o que apenas por mera hipótese académica se admite, apenas a instância reconvencional o estaria e não já a instância principal que, assim, deveria prosseguir os seus termos, devendo tal ser oficiosamente decretado pelo Tribunal “a quo” no âmbito dos poderes de gestão e de cooperação que lhe estão acometidos.
II - Os Recorrentes discordam do Tribunal “a quo” quando o mesmo entende que, e cita-se, “… o fundamento da deserção da instância é pois objectivo, reconduzindo-se à inércia durante o período de tempo fixado na lei (seis meses). Ou seja, ao contrário do que entendem os autores, o n.º 1 do artigo 281 do Código de Processo Civil não faz depender a deserção de uma inacção por negligência das partes”.
III - O n.º 1º do art.º 281º do Código de Processo Civil (Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, doravante designado por CPC) que determina que “1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses” (negrito e sublinhado nossos).
IV - não podendo olvidar-se a oração que se encontra expressamente intercalada por vírgulas, por negligência das partes, como o faz o Tribunal ”a quo”, para daí retirar as conclusões tal qual o faz este mesmo Tribunal e com as quais não se concordam.
V - Se se conhece o sentido em que alguns autores interpretam tal oração, mormente O… (citado na sentença de que se recorre), a verdade é que a mesma tem que ser interpretada como uma inércia imputável às partes que, tendo possibilidade de praticar um acto judicial que lhes compete em ordem ao prosseguimento dos autos, não o fazem deliberadamente, o que não sucede no caso dos autos na medida em que:
VI - se trata de um processo com inúmeros intervenientes e em que, tendo falecido um destes se torna necessária a habilitação dos seus herdeiros, cuja identidade e identificação completa se desconhece;
VII - a Ré D… vem, em tempo útil e oportuno, justificar ao tribunal a sua omissão e a razão pela qual ainda não promoveu o referido incidente, e, se é verdade que nada requer expressamente, a verdade é que todos os intervenientes processuais têm que saber ler e interpretar para além do que está escrito, o que se exige em nome do princípio da colaboração e da verdade material,
VIII - donde, e salvo o devido respeito por opinião diversa seria curial que o Tribunal “a quo”, antes de decidir o processo por apego a um elemento meramente formal, notificasse a R. D… para vir informar se já possuía os elementos necessários para praticar o acto em falta. É entendimento dos Recorrentes e pelo qual se pugna que, só após tal notificação e em caso de qualquer ausência de resposta, podia o Tribunal “a quo” considerar a instância deserta.
IX - Do exposto decorre que, para que haja deserção é necessário que estejam reunidos dois pressupostos: um de natureza objectiva – decurso de 6 meses – e outro de natureza subjectiva – inércia imputável a negligência das partes (posto que, podendo praticar o acto não o fez) -, sendo que e no que a este pressuposto respeita, a decisão recorrida é totalmente omissa, não permitindo aos Recorrentes apreender em que medida foram as partes negligentes e em que factos se baseou o Tribunal para formar essa convicção.
X - Se caso há que imponha um dever de fundamentação da decisão tomada (que aliás é sempre exigida), o dos autos era um desses posto que no decurso dos 6 meses há dois requerimentos das partes que explicam e justificam as suas atitudes processuais ou alegada falta delas, pelo que se impunha ao Tribunal “a quo” que fundamentasse a razão, de facto e de direito, pela qual considera negligente a inércia das partes e permitisse assim aferir a bondade da sua decisão.
XI - Todas as situações têm de ser analisadas casuisticamente e a sua tramitação deve ser adequada às especificidades próprias de cada uma, sendo essencial a existência de uma coerência processual em ordem a permitir às partes saberem o que esperar, donde este dever de fundamentação impunha-se como obrigatório no caso em apreço, não só pelo já aduzido, mas também pela própria coerência do processado e da convicção criada às partes ao longo do mesmo, pois que,
XII - em diversos momentos processuais é feita a destrinça entre instância principal e instância reconvencional (veja-se a este propósito o referido nos pontos 4, 6, 7, 8 e 9 da II – Fundamentação supra), o que criou nos Recorrentes a convicção de que, nada sendo feito pelos Reconvintes, a reconvenção cairia, mas a instância principal prosseguiria.
XIII - Não pode é, sob pena de total insegurança e instabilidade, admitir-se interpretações diversas e contraditórias ao logo de um só e mesmo processo.
XIV - Por outro lado, temos que a instância não está deserta, pois que nenhum dos pressupostos necessários para o efeito e referidos no n.º 1 do art.º 281º do CPC está preenchido: não só não decorreu o prazo de 6 meses legalmente previsto como não estamos perante uma situação de inércia imputável a negligência de qualquer uma das partes.
XV - A existir qualquer deserção (o que não se admite), sempre esta seria da instância reconvencional e nunca da instância principal, pois, que nada havia que impedisse o prosseguimento da instância principal e a habilitação de herdeiros em falta apenas interessava e relevava para a prossecução da instância reconvencional sendo que os incidentes de cada uma apenas a essa própria devem respeitar.
XVI - A decisão tal qual proferida vem beneficiar a parte sobre quem incidia o ónus de promover o incidente de habilitação e que, não obstante, não o fez. Aceitar-se tal interpretação é abrir-se a porta para que, de futuro, muitos processos venham a ser considerados extintos, o que, em nome do Estado de Direito e da justiça não pode aceitar-se.
XVII - Ao decidir como decidiu o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” decidiu manifestamente contra a lei em clara violação do disposto nos arts. 6º, 7º e 607º do CPC. 14/15 13 Termos em que nos melhores de Direito deve dar-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar-se a decisão em crise, substituindo-a por outra que ordene o prosseguimento dos autos, com as legais consequências.”
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Foram apresentadas contra-alegações pela Recorrida D…, onde pugna pela improcedência do recurso (sem fundamentação).
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, os Recorrentes colocam a seguinte questão que importa apreciar:
- saber se se pode entender que decorreu o prazo de deserção estabelecido no art. 281º do CPC.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
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Os factos relevantes para a apreciação e decisão do presente recurso são os que constam do relatório elaborado.
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B) - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Já se referiu em cima qual é a questão que importa aqui decidir.
Tal questão deve ser apreciada em função do estado em que o processo se encontrava no momento em que foi proferida a primeira decisão de deserção de instância, pois que, após ter sido interposto recurso dessa decisão, não se pode imputar às partes qualquer negligência no sentido de promover o andamento do presente processo.
Como decorre do teor da sentença recorrida, o Tribunal de Primeira Instância, ponderando o decurso do prazo de deserção, desde a data em que foi proferido o despacho que ordenou a suspensão da instância em razão do óbito de uma das partes (22.2.2018), voltou a proferir sentença a julgar extinta a instância por deserção (por considerar que em 11.09.2018 já teria decorrido o prazo de 6 meses de deserção de instância).
Tal decisão foi proferida porque, no entendimento do Tribunal Recorrido, as partes não vieram impulsionar os presentes autos, e apesar de terem sido notificadas (em 9.4.2019) para exercer o princípio do contraditório (na sequência do Acórdão proferido por esta Relação), as razões invocadas pelos AA. não merecem acolhimento, entendendo o Tribunal Recorrido que:
- apesar dos requerimentos apresentados pelas partes no decurso do prazo de deserção (de 17.4.2018 e 24.4.2018), o tribunal apreciou esses requerimentos no despacho de 08.05.2018, indeferindo-os, e referindo, além do mais, expressamente nesse despacho que os autos ficavam a aguardar nos termos determinados no despacho de 22.02.2018. Daí que, nada tendo depois disso as partes dito ou requerido, em 11.09.2018 foi proferido despacho declarando deserta a instância, nos termos previstos na alínea c) do artigo 277.º e no n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Civil, por terem decorrido seis meses sem as partes darem impulso ao processo.
- (na sequência da pronúncia dos Recorrentes em sede de princípio de contraditório) O fundamento da deserção da instância é objectivo, reconduzindo-se à inércia durante o período de tempo fixado na lei (seis meses). Ou seja, ao contrário do que entendem os autores, o n.º 1 do artigo 281 do Código de Processo Civil não faz depender a deserção de uma inacção por negligência das partes.
- não se tendo verificado qualquer circunstância que, nos termos da lei, permitisse suspender, interromper ou prorrogar esse prazo, o mesmo completou-se em 27.08.2018 pelo que ficou, por isso, deserta a instância.
- Em 16.04.2019, já depois de ter decorrido o prazo de deserção, a 1.ª autora veio deduzir incidente de habilitação dos herdeiros do réu falecido. Todavia, esse acto não afecta a deserção, uma vez que o despacho que julga deserta a instância é meramente declarativo de uma realidade já verificada.
Ora, é justamente contra esta decisão que se insurgem os Recorrentes e, a nosso ver, com razão.
Como já ficou dito no anterior Acórdão proferido neste mesmo processo, a deserção constitui um dos fundamentos da extinção da instância (art.º 277º, al. c) do CPC).
Sem prejuízo do que o nº 5 do art.º 281º do CPC dispõe para o processo de execução - aqui não aplicável - a instância considera-se deserta quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses (nº 1 do mesmo preceito legal).
Diferentemente do nº 5, que prevê expressamente a deserção da instância “independentemente de qualquer decisão judicial”, o nº 1 do citado preceito legal não dispensa expressamente o despacho declarativo da deserção, sendo que o nº 4 do mesmo artigo, vertendo sobre os anteriores nºs 1, 2 e 3, determina que “a deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator”; ou seja, no caso do nº 1, aqui aplicável, a deserção pressupõe um julgamento, um exame, uma valoração, uma apreciação crítica, em despacho judicial.
Afastou-se, assim, o actual art. 281º do CPC, quer do anterior art. 291º do CPC revogado, na versão dada pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto que previa, sob o nº 1, que se considerasse “deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos”, quer mesmo da Proposta de Lei que deu origem ao presente Código, segundo a qual os efeitos fixados nos n.ºs 1, 2 e 3 deste artigo verificavam-se de forma automática, ou seja, “independentemente de qualquer decisão judicial”, sem que à parte fosse dada a oportunidade de alegar e provar não ter incorrido em negligência censurável.
Na redacção final do actual art. 281º do CPC foi suprimido, naqueles n.ºs 1, 2 e 3 o aludido inciso, e acrescentados os n.ºs 4 e 5, tornando excepcional a desnecessidade do juiz ou relator fundamentar a deserção, agora circunscrita ao processo de execução.
No CPC anterior, a instância considerava-se deserta quando estivesse interrompida durante dois anos, mas existia a figura da interrupção da instância que pressupunha a negligência das partes em promover os termos processuais (art. 285º do anterior Código de Processo Civil).
Com a extinção da figura da interrupção da instância, o requisito da negligência das partes em promover o impulso processual transitou para a deserção de instância, mas tendo por manifestamente injustificado o abandono da lide pelos seus sujeitos durante largos meses ou anos, o prazo de deserção da instância, foi fixado em 6 meses.
No anterior Acórdão decidiu-se, como questão prévia, que, nestas situações, o legislador impõe que o Tribunal faça um julgamento sobre a situação de deserção, pois que importa dar como preenchido o requisito da negligência das partes em promover os termos do processo, o que pressupõe, como se referiu, um exame crítico ao comportamento das partes no processo e, para o efeito, impõe-se, assim, a sua audição prévia de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas ou de ambas.
Como aí ficou dito:
“Com a reforma da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, a deserção da instância deixou de ser automática, ou seja, independentemente de qualquer decisão judicial, mas a inércia das partes continua a ter consequências: considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses ou, tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, este se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses, por negligência das partes, sendo a deserção julgada no tribunal onde se verifique a falta, por despacho do juiz ou do relator, continuando a deserção a determinar a extinção da instância – artigos 281.º e 277.º, alínea c), do Código de Processo Civil).
A deserção da instância, enquanto causa da extinção da instância, deixou de ser automática, carecendo de ser julgada por despacho do juiz, ao contrário do que acontecia no sistema anterior no qual a instância ficava deserta independentemente de qualquer decisão judicial”, pelo que, como se escreve no ac. desta Relação de 7.07.2016, proc.1058.0TBFLG.P1, citando o ac. da RL de 26.02.2015, proc. 2254/10.5TBABF.L1-2, ambos disponíveis in www.dgsi.pt “no despacho que julga deserta a instância o julgador tem de apreciar se a falta de impulso processual se ficou a dever à negligência das partes, o que significa que terá de fazer uma valoração do comportamento destas, por forma a concluir se a falta de impulso em promover o andamento do processo resulta efectivamente da sua negligência, pelo que, num juízo prudencial, deverá o julgador ouvir as partes por forma a avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas, ou de ambas, e por força do princípio da cooperação, reforçado no nCPC, alertar as partes para as consequências gravosas que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo decorrido que seja o prazo fixado na lei, agora substancialmente mais curto (…)”.
Ora, não há dúvidas que tal questão prévia – de cumprimento do princípio do contraditório (art. 3º do CPC) - se mostra, agora, cumprida pelo Tribunal Recorrido.
Sucede que aquele Tribunal, após cumprimento do que havia sido determinado no anterior Acórdão (audição prévia), voltou a concluir que se encontravam verificados os requisitos que permitiriam concluir pela deserção de instância.
No entanto, se compulsarmos os fundamentos invocados podemos facilmente constatar que o Tribunal Recorrido não teve em consideração o comando legal – referido também no Acórdão que tinha que cumprir - que impõe que o Tribunal faça um julgamento sobre a situação de deserção, pois que importa dar como preenchido o requisito da negligência das partes em promover os termos do processo, o que pressupõe, como se referiu, um exame crítico ao comportamento das partes no processo.
Diga-se que o tribunal recorrido chega mesmo a afirmar que “ao contrário do que entendem os autores, o n.º 1 do artigo 281 do Código de Processo Civil não faz depender a deserção de uma inacção por negligência das partes”.
Ora, salvo o devido respeito pela opinião contrária, é justamente o contrário o que resulta expressamente do art. 281º do CPC:
“…considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo de encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses” (nº 1).
Nesta conformidade, a deserção de instância não decorre do simples decurso do prazo de 6 meses, mas implica, bem pelo contrário, que esse decurso do prazo de deserção possa ser imputável, a titulo de negligência, às partes (em promover o andamento do processo).
Como se refere no ac. do STJ de 20.9.2016, disponível em dgsi.pt “Claro que a deserção não se verifica automaticamente pelo decurso do prazo. Pelo contrário, demanda também uma decisão judicial e um juízo acerca da existência de negligência da parte. Simplesmente, a negligência de que fala a lei é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objectivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inacção se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência”.
Aqui chegados, podemos assim concluir que a deserção da instância depende da verificação dos seguintes pressupostos:
a) Paragem do processo por mais de seis meses, por ter sido omitida a prática do acto de que dependia o seu prosseguimento (respeitante ao próprio processo, ou a incidente de que dependia o prosseguimento da acção principal);
b) Ser essa omissão devida à negligência da parte que tinha o ónus da sua prática, isto é, dever o acto ser praticado por si - e não pela parte contrária, pela secretaria, pelo juiz, ou por terceiro -, e ter a sua omissão um carácter censurável.
“A apreciação da negligência ou do grau de negligência revelado pela parte deve ser feita em face dos dados conferidos pelo processo. Assim sempre que o impulso processual dependa da parte, esta tem o ónus e o interesse em informar o tribunal acerca da existência de algum obstáculo e, se for o caso, solicitar a concessão de alguma dilação”[1].
Vejamos então a situação concreta.
Em primeiro lugar, no que concerne ao despacho proferido em 8.5.2018, constata-se que, apesar do Tribunal recorrido se ter pronunciado sobre os requerimentos apresentados quanto à questão “da acção principal poder estar em condições de prosseguir os seus termos” – indeferindo-a - a verdade é que não se pronuncia sobre a relevância (para o decurso do prazo de deserção) das também invocadas dificuldades de identificação de todos os herdeiros, respectivos cônjuges e correspondentes moradas invocadas pela Ré (alegando que “ Contudo, tem desenvolvido esforços junto de familiares no sentido de obter esses elementos. Estando neste momento a ponderar avançar com os elementos que possui e contra os herdeiros que conhece, na expectativa de que os mesmos ao serem citados para o procedimento venham aos autos identificar os restantes herdeiros”).
Ora, salvo o devido respeito pela opinião contrária, tendo a Ré apresentado tal requerimento em 24.4.2018 e sendo tais dificuldades perfeitamente compreensíveis, atenta a complexidade sucessória existente, julga-se que, tendo sido apresentada essa justificação plenamente compreensível, não se pode imputar às partes a existência da exigida negligência em promover os termos do processo (tendo em conta a explanação atrás efectuada).
Com efeito, a invocação da existência de dificuldades na identificação e na reunião dos elementos probatórios necessários para o efeito, constitui um caso típico de actuação não negligente das partes em promover o andamento do processo, impondo-se nessas situações que o tribunal, em face desse requerimento, concedesse um prazo (e a prorrogação do prazo concedido, se tal não viesse a ser suficiente) para o efeito de a parte poder conseguir deduzir o incidente de habilitação de herdeiros.
Como já se referiu, a negligência de que fala a lei é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objectivamente no processo (negligência processual ou aparente)[2].
Ora, ela só ocorre quando a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, nem nada existe no processo que inculque a ideia de que a inacção se deve a causas estranhas à vontade da parte.
Já se a parte, como sucedeu no caso concreto, justifica a demora na interposição do incidente de habilitação de herdeiros, com a invocação de estar com dificuldades na identificação dos herdeiros, está apoditicamente comprovada a inexistência de uma situação em que não se lhe pode imputar objectivamente qualquer actuação negligente.
Nesta medida, e contrariamente ao defendido pelo Tribunal recorrido, foram invocadas circunstâncias perfeitamente fundamentadas que impunham a interrupção do prazo de deserção, não se podendo, assim, aceitar que os fundamentos invocados no requerimento da Ré em 24.4.2018 não consubstanciassem uma actuação não negligente das partes na promoção do andamento do processo.
Acresce que, apesar de os Autores, tal como agora o fazem nesta sede de Recurso, logo terem chamado a atenção para o facto – inequívoco - de que o Interveniente principal falecido (e não o Réu, como incorrectamente considera o Tribunal Recorrido) apenas tem intervenção na acção reconvencional como Reconvinte (interveniente principal activo da acção reconvencional) - não sendo, pois, Réu da acção primitivamente interposta pelos AA. – a verdade é que o Tribunal Recorrido nunca se apercebeu dessa nuance processual.
É certo que esta questão já mereceu implicitamente pronúncia do Tribunal recorrido – ainda que, ao que parece, partindo de pressupostos errados - , pois que, na decisão proferida em 22.2.2018, sobre os efeitos do falecimento do interveniente principal activo da acção reconvencional (e não do Réu como mais uma vez incorrectamente o Tribunal recorrido mencionou nessa decisão) N…, declarou suspensa a instância na sua totalidade (acção e reconvenção), pelo que, em face dessa decisão (que não foi objecto de recurso), ficou suspensa tanto a instância principal como a instância reconvencional.
No entanto, não deixa de ser relevante para o caso concreto essa circunstância, pois que, efectivamente, isso implica que, de facto, quem tinha maior interesse em promover o andamento do processo era a Ré (Autora do pedido reconvencional), o que, como já vimos, terá justificado que foi justamente ela que, de uma forma avisada, procurou instruir o incidente de habilitação de herdeiros, bem ciente de que o falecido era co-autor do pedido reconvencional deduzido inicialmente por si, de forma desacompanhada dos demais intervenientes principais (activos da acção reconvencional).
Independentemente disso, a verdade é que, no essencial (e principalmente) o que sucede é que não se pode acompanhar a afirmação do Tribunal Recorrido quando considera que a deserção deve ser aferida de uma forma objectiva, não sendo necessário o preenchimento do requisito da negligência da actuação das partes na promoção do andamento do processo.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa[3]: “…Salvo o devido respeito pela orientação doutrinária e jurisprudencial reflectida no acórdão, o disposto no art. 281º, nº 1 e 4, CPC impede qualquer automatismo entre a inércia da parte e a deserção da instância e não permite a interpretação de que a negligência está demonstrada por essa própria inércia. Se assim fosse, a referência à negligência da parte no art. 281.º, n.º 1, CPC seria tautológica, um ponto de partida interpretativo que o art. 9.º, n.º 3, CC proíbe”.
Afigura-se, pois, ao presente Tribunal que, por todo o exposto, não se mostram verificados os requisitos que permitiriam ao Tribunal Recorrido decretar a Deserção da presente Instância.
Com efeito, os factos invocados pela Ré no requerimento de 24.4.2018 (dificuldades na identificação dos herdeiros e na obtenção dos elementos necessários à sua identificação) são enquadráveis numa conduta não negligente na promoção do andamento do processo, impeditivas, a nosso ver, da verificação de uma situação de negligência imputável às partes da presente acção[4].
Não se pode, pois, afirmar, em face dos elementos que o processo revela, que exista uma situação de negligência objectiva e imediatamente espelhada (negligência processual ou aparente) por parte dos Autores, da Ré e dos Intervenientes principais.
Assim, impendendo sobre as partes que sobreviveram ou qualquer dos sucessores o ónus do impulso processual, e cumprindo-lhes o dever de levar ao processo as circunstâncias que devem levar o Tribunal a considerar que ocorre situação justificativa de que não se considere verificada inércia negligente[5], a verdade é que os Recorrentes lograram cumprir esses ónus, quando evidenciaram a situação processual já por mais de uma vez referida (e que, no fundo, respeita à alegação das circunstâncias invocadas pela Ré no seu requerimento de 24.4.2018).
Aqui chegados, não pode, pois, o presente Tribunal, em face do exposto, retirar outra conclusão que não seja a de que a decisão proferida não se pode manter, por não estarem verificados os requisitos legais de afirmação de uma situação de deserção de instância.
Pelo exposto, e sem necessidade de mais alongadas considerações, julga-se totalmente procedente o Recurso interposto e revoga-se a decisão recorrida.
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Sumário:
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III - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta procedente, e, em consequência, revogar a decisão recorrida.
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Custas pela Recorrida – sem prejuízo do apoio judiciário (art. 527º do CPC).
Notifique.
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Porto, 26 de Outubro de 2020
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
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[1] A. Geraldes/P: Pimenta/Luís Sousa, in “CPC anotado”, Vol. I, pág. 330.
[2] “Da lei resulta que, decorrido esse prazo, sem que nada seja requerido nos autos, o Tribunal não pode deixar de considerar verificada ipso facto uma situação de negligência e isto porque o Tribunal, para proferir a decisão, apenas se pode socorrer dos elementos que estão nos autos (quod non est in actis non est in mundo) e não dos elementos que os interessados podiam ter apresentado no processo que pudessem então viabilizar ao juiz considerar que, não obstante o decurso do prazo de seis meses, não ocorria situação de negligência” - ac. do STJ de 14.12.2016 in dgsi.pt
[3] In Blog do IPPC comentário de 02/10/2020 Jurisprudência 2020 (65), disponível na internet.
[4] V. neste sentido, A. Geraldes/P: Pimenta/Luís Sousa, in “CPC anotado”, Vol. I, pág. 329 “(Nos casos de falecimento das partes pode ocorrer deserção de instância em caso de inércia imputável às partes) a não ser que a parte revele dificuldades na identificação daqueles (sucessores) ou na obtenção da necessária documentação dentro do referido prazo de 6 meses ou de outro prazo que resulte de alguma prorrogação…”.
[5] v., neste sentido, por exemplo, os acs. do STJ de 20.9.2016 (relator: José Rainho) e de 14.12.2016 (relator: Salazar Casanova), in dgsi.pt;