Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17583/18.1T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO PIRES SALPICO
Descritores: PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RP2023051017583/18.1T9PRT.P1
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO NO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não obstante a forte indiciação da acusação, a projeção do princípio da presunção de inocência transforma o seu objeto em factos meramente afirmados, sendo “ex novo” o juízo probatório formulado em audiência.
II - O legislador constitucional com o princípio da presunção de inocência desfez todas as presunções legais de culpa, e porque está dotado do in dúbio pro reo, exige um compromisso de prova muito elevado.
III - O princípio in dúbio pro reo, constitui um refinamento da presunção de inocência, enquanto regra de prova, dando corpo ao standard da prova em processo penal. A par da probabilidade elevada exigida pelo juízo de prova, não pode essa probabilidade competir com parâmetros de dúvida fundados em hipóteses alternativas. A dúvida aferirá não apenas o grau de probabilidade da acusação, como o grau de probabilidade das versões alternativas que constam da defesa.
IV -  Casos há em que, muito embora a prova produzida contenha probabilidades muito elevadas a favor da hipótese da acusação, no entanto, por si só, essas probabilidades não excluem, ou podem não excluir, a dúvida suscitada nas hipóteses alternativas de facto.”
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 17583/18.1T9PRT.P1
X X X
Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1 – Nos autos de processo comum com intervenção de Tribunal Coletivo que correu termos no Juízo Central Criminal do Porto, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi proferida acórdão julgando-se:
“Em face de todo o exposto, acordam as Juízas que compõem este Tribunal Colectivo em julgar improcedente, por não provada, a acusação pública/pronúncia e, em consequência:
a) absolvem a arguida AA da prática, na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º1 e 4, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (por referência, à data dos factos, ao artigo 3.º, al. a) e c), 5.º, n.º 1, 6.º, al. d), 8.º e 17.º, n.º 1, da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e ao artigo 64.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária), bem como por referência ao artigo 35.º, n.º4 da Constituição da República Portuguesa), em concurso aparente com dois crimes de acesso indevido, p. e p., à data da prática dos factos, pelo artigo 44.º, n.ºs 1 e 2, al. b), da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e atualmente pelo artigo 47.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais), por referência ao artigo 10.º desta Lei de Proteção de Dados Pessoais, e com dois crimes de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º com referência ao artigo 386.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por referência aos artigos 35.º, n.º 4, 266.º e 269.º da Constituição da República Portuguesa, artigo 73.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, o Código de Conduta dos Trabalhadores da ATA (Pontos 1, 2, 3 e 4), aprovado pelo Conselho de Administração da ATA em 23/07/2015, Política de Segurança da Informação da ATA (Ponto 1), aprovada pelo Conselho de Administração da ATA em 23 de Julho de 2015), bem como por referência, à data dos factos, ao artigo 3.º, al. a) e c), 5.º, n.º 1, 6.º, al. d), 8.º e 17.º, n.º 1, da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e ao artigo 64.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária);
b) Absolvem a arguida AA da pena acessória de proibição de exercício de função, prevista no artigo 66º do Código Penal.”.
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Não se conformando com a sentença o Ministério Público veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes CONCLUSÕES:
Violação do princípio de presunção de inocência/in dubio pro reo
4.1. Princípios de presunção de inocência e in dubio pro reo
Como referimos e resulta da motivação da decisão de facto quanto aos factos não provados, o Tribunal recorrido, decidiu ter tais factos como não provados invocando o princípio do in dubio pro reo. Julgamento que, no entender do Ministério Público, merece censura, que pretende obter desse Venerando Tribunal. Daí que se imponha abordar, embora sinteticamente, esse princípio e as suas repercussões no caso sujieto. Como tivemos ocasião de referir noutro local , com o princípio da presunção de inocência, até haver uma decisão penal condenatória, com trânsito em julgado, todo o arguido se presume inocente, não recaindo sobre ele, por isso, o ónus de provar que não é responsável pela prática do facto ilícito típico que porventura lhe seja imputado, antes cabendo à acusação fazer prova de que o cometeu e assim merece ser censurado. Este princípio é uma das grandes conquistas da Humanidade, tendo sido legado pela França e depois transposto para a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em cujo art.° 11.°, n.° 1, se dispõe que “toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”. A lei portuguesa também não o esqueceu a nível constitucional (art.° 32.°, n.° 2), onde se prescreve que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. Em resumo, pois, o modelo adoptado para o direito processual penal oferece um sistema que repousa na presunção de inocência e nunca na presunção de culpa. Como corolário do anterior princípio da presunção de inocência apresenta-se o princípio “in dubio pro reo”, que obriga a que, instalando-se e permanecendo dúvida acerca de factos referentes ao objecto do processo (existência dos factos, forma de cometimento e responsabilidade pela sua prática) essa dúvida deve sempre ser desfeita em benefício do arguido relativamente ao ponto ou pontos duvidosos, podendo mesmo conduzir à sua absolvição. «Um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz ... que omita a decisão ... – tem de ser sempre valorado a favor do arguido», sendo «com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo» (FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, I Vol., pág. 213) Adverte, no entanto, este Autor: «... O princípio in dubio pro reo vale só, evidentemente, em relação à prova da questão-de-facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito: aqui a única solução correcta residirá em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto. Relativamente, porém, ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude ... e de exclusão da pena ..., bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas “modificativas” ou simplesmente “gerais”» (loc. cit. pág. 215).
Decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. de 25-05-2006, proc. n.° 1389/06-5): “(III) – O princípio in dubio pro reo, constitui um princípio probatório, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto, tem de ser sempre valorada favoravelmente ao arguido, traduzindo o correspectivo do princípio da culpa em direito penal, a dimensão jurídicoprocessual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena. (IV) – Este princípio não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro reo não se inclui, uma vez que este tem reflexos exclusivamente ao nível da apreciação da matéria de facto – sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. (V) – Estando em causa a qualificação jurídica de uma determinada conduta, questão de direito que envolve a interpretação das normas que tipificam a conduta em causa, não é lícito recorrer ao princípio in dubio pro reo, ou a eventual decorrência substantiva do mesmo, tanto mais quando nenhuma dúvida expressaram as instâncias, nem resulta da matéria de facto provada.” «Quando se trata de factos justificativos ou circunstâncias desculpantes bastará criar no espírito do julgador a dúvida sobre a sua ocorrência para que devam ser considerados a favor do arguido em virtude do princípio da presunção da inocência» Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal III, p. 214, citado, no mesmo sentido, por Francisco Marcolino de Jesus, Os Meios de Obtenção de Prova em Processo Penal, Almedina, pág. 100. Figueiredo Dias, critica o Ac. do STJ de 14-7-1971, BMJ 209/69 que decidiu que «tratando-se de uma circunstância justificative do facto, circunstância dirimente da responsabilidade criminal é ao réu que cabe alegá-la e prová-la e por forma a ver afastado o dolo na sua actuação ilícita» (loc. cit., pág. 216).
4.2. A presunção de inocência e o in dubio pro reo e as causas justiticativas ou de desculpa As duas referências que antecedem conduzem-nos à questão-cerne do presente recurso e na qual, com o devido e todo respeito, o douto Tribunal recorrido não terá atentado na sua devida extensão. Com efeito, o Tribunal recorrido teve como não provados, invocando o princípio do in dubio pro reo, factos que se reportam a causa de justificação e não aos elementos materiais dos crimes imputados. Questão que tem de ser ponderada de forma específica, em relação a esta última, apesar do princípio lhe ser também aplicável. Vejamos, pois, pela mão de Germano Marques da Silva, o regime aplicável a tal situação: «Uma outra questão convém ser ponderada: respeita à prova das circunstâncias justificativas ou de desculpa. Entendem alguns que compete ao arguido a prova das circunstâncias justificativas e de desculpa por si alegadas10. Também este entendimento viola o princípio da presunção de inocência pois poderia conduzir à condenação de uma pessoa por um facto que talvez pudesse não ser punível, por diversas circunstâncias, isto é, um facto que em qualquer das suas manifestações resultava duvidoso por falta de prova. Entendemos, com a generalidade da doutrina portuguesa, que a presunção de inocência opera também nos casos em que subsista dúvida acerca da concorrência de um facto impeditivo ou extintivo da responsabilidade e, por consequência, o arguido deve também nesses casos ser absolvido. Importa esclarecer, porém, que isso não significa que o tribunal tenha de demonstrar uma a uma todas as circunstâncias ou que a mera alegação das mesmas pelo arguido implique a necessidade de provar a sua ausência. O que exige o princípio da presunção de inocência é a absolvição em caso de dúvida pelo que o tribunal pelo conjunto das provas praticadas está convencido da inexistência de circunstâncias justificativas, de culpa ou de outras excludentes da responsabilidade poderá condenar com base na prova dos factos constitutivos do crime, não basta, por isso, a mera alegação pela defesa da ocorrência de circunstâncias excludentes da responsabilidade, importa criar a dúvida no espírito do julgador sobre a sua existência. Com efeito, só se for introduzida no processo uma qualquer prova atinente a um facto excludente da responsabilidade da responsabilidade é que o juiz tem o dever de se pronunciar sobre ela em conformidade com o princípio da presunção de inocência. E se normalmente é o arguido a suscitar a existência do facto excludente da responsabilidade, pode bem suceder que qualquer dado útil sobre o tema emirja de qualquer prova carreada para o pocesso por qualquer sujeito processual, mormente pelo Ministário Público ou pelo Juiz. Por isso na falta de qualquer prova atinente à verificação ou não de qualquer facto excludente de responsabilidade do arguido, o juiz poderá ignorá-lo, mesmo no caso em que seja meramente alegado sem que seja produzida prova sobre esse facto.» Portanto, o funcionamento do princípio do in dubio pro reo no caso das causa de justificação, como acontece na presente circunstância, implica a verificação dos seguintes requisitos: – alegação pela arguida de uma causa concretizada de justificação;
4.3. O caso sujeito Revertendo para o caso sujeito, entende o Ministério Público que não se verificam os requisitos que se acabaram de enunciar e permitiram a invocação do mencionado princípio.
A – Na verdade, não se verificou por parte da arguida a alegação de uma causa concretizada de justificação. Não o fez no requerimento de abertura de instrução, pois embora estivessem devidamente identificados os acessos em causa e dados como provados, se ficou a arguida por afirmações genéricas de que nunca violou os seus deveres funcionais, fez muitos atendimentos ao público, que não conhecia a ex-mulher do seu excompanheiro. Mas não concretizou uma alegação sobre o contexto em que fez os acessos em causa – que estão provados – e que a verificar-se afastaria a sua responsabilidade criminal, designadamente tornando legítimos os seus acessos. Como o não fez em audiência.
O Tribunal recorrido consigna na motivação da decisão sobre os factos provados: a arguida «admitindo que tal terá sucedido no âmbito dalgum atendimento presencial da ofendida ao balcão do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia – 2 ou então no seguimento de um pedido de informação formulado pela contribuinte ou por alguma entidade oficial (tribunal, agente de execução ou outros)» E na motivação da decisão sobre os factos não provados: «a arguida, pese embora tenha admitido como possível ter acedido a dados fiscais da ofendida BB, negou perenptoriamente tê-lo feito fora do âmbito do exercício das suas funções e sem o conhecimento/autorização da visada. A este respeito, esclareceu que, embora não se lembrando especificamente desta contribuinte – dado o elevadíssimo número de pessoas que atende diariamente no exercício das suas funções ao serviço da ATA –, as pesquisas acerca da situação fiscal da referida contribuinte que constam registadas no sistema informático da AT como tendo sido por si realizadas só o poderão ter sido a pedido da própria contribuinte, presencialmente (ao balcão do Serviço de Finanças) ou então telefonicamente; sendo certo que nem sequer conhecia nem conhece a ora ofendida BB, embora soubesse, pelo seu ex-companheiro, CC, que a mesma foi casada com este. Negou, todavia, que o CC alguma vez lhe tivesse pedido para consultar a situação fiscal da ex-mulher BB.» Como não se mostra a mesma alegação feita por outro sujeito processual.
B – Mas também não existe prova atinente à verificação de causa de justificação que, não sendo embora suficiente para a comprovar, possa sustentar a sua verosimilhança. De facto, importa sublinhar alguns aspectos que não terão recebido por parte do douto Tribunal recorrido a merecida atenção, neste domínio. Em primeiro lugar, diferentemente do que se refere opinativamente na motivação da decisão de facto, afigura-se que os elementos ali elencados, consentem que se afirme que a arguida fazia atendimento ao público e nessa função acessos aos dados, estes seriam significativos, mas não os “inúmeros” que impedissem que a arguida, como era seu dever, consignasse, quando fosse o caso, que o acesso havido sido feito no atendimento directo, como fez em várias ocasiões, como o Tribunal recorrido constatou e consignou em nota 23 na motivação dos factos não provados (ao contrário de várias outras pesquisas efectuadas pela arguida em que consta que o foram no âmbito do atendimento ao público), mas não no caso dos acessos a dados da ofendida. Ora esta circunstância não só confere verosimilhança a tal possibilidade, como a retira. Com efeito, se quando os acessos eram feitos na sequência de atendimento ao público e o consignava, se acedeu e não consignou tal, segundo as regras da lógica e de experiência – art. 127.º CPP – então é porque não for a na sequência de atendimento ao público. Depois, resultando da mesma motivação que a arguida sabia que a ofendida era casada com o seu ex-companheiro, não é verosímil que não reconhecesse o seu nome quando fizesse as pesquisas e não mantivesse das mesmas memória. Como não era verosímil que os acessos tenham sido feitos em sequência a pedidos feitos em atendimento público ou telefónico, dado o conteúdo da consulta: dados que a ofendida conhecia perfeitamente. Qual a razão pela qual iria perguntar à ATA o seu próprio nome e morada, afinal, aquilo que estava farta de conhecer? E porque o iria fazer à Repartição que não é da sua área e onde trabalhava a ex-companheira do seu marido com quem estava em forte litígio? Refere o Tribunal recorrido na motivação respeitante aos factos não provados: «Doutra banda, a despeito de as pesquisas efectuadas não terem sido a processos de contra-ordenação (área específica da arguida), mas a processos de execução fiscal, VIC e IRS, cabe notar que, analisadas as listagens dos acessos informáticos da arguida, juntas aos autos, verifica-se que a mesma, no período considerado, também pesquisou sobre vários outros contribuintes diversas informações doutras áreas, tais como VIC, processos de execução fiscal e IRS». Mas, salvo o devido e muito respeito, essa consideração é anódina, porque nada sabemos sobre os outros acessos, sobre a sua necessidade, o âmbito da consulta, e a sua legitimidade, para se puder extrapolar para o caso sujeito, sendo que similaritude de pesquisas pode ter sido usada exactamente para encobrir as pesquisas em causa.. Diga-se ainda que a “cultura administrativa” retratada na motivação da matéria de facto não provada da decisão recorrida («Questionada, ainda, a arguida acerca da razão pela qual pesquisou os processos de execução fiscal pendentes contra a contribuinte BB, já que, à data, não exercia funções naquela área, mas sim na área das contraordenações, a arguida referiu que o procedimento normal, quando era pedida alguma informação, era aceder primeiro ao sistema VIC, para se ter uma visão global da situação do contribuinte perante a AT (se o mesmo tem dívidas, se possui património, etc.), e pesquisar também se o contribuinte tem algum processo de execução fiscal para além de processos contraordenacionais (a sua área) com aqueles relacionados. Estas explicações adiantadas pela arguida foram corroboradas pelas testemunhas DD, EE, FF, GG e HH») se pode apresentar como dissolvente e propiciar um ambiente de “devassa” generalizada dos contribuintes, se ultrapassa, em cada caso, as necessidades concretas da ATA e nada esclarecem a presente questão, antes a obscurecem. C – Chegados ao ultimo dos requisitos enunciados: dúvida do julgador sobre a causa de justificação que tivesse sido alegada e fosse verosímil, importa responder pela sua não verificação. Na verdade, e ainda com o devido respeito, diz o Ministério Público, em discordância com o Douto Tribunal recorrido que, da conjugação de todo este circunstancialismo, não resulta que tendo sido adequadamente alegada concreta causa de justificação da conduta da arguida, resultou um estado de incerteza, não permitindo a formação de convicção segura, para além de qualquer dúvida razoável, acerca do carácter ilegítimo/abusivo das pesquisas efectuadas pela arguida aos dados pessoais/fiscais da ofendida BB. Antes, e na senda da pronúncia e considerando a generalidade da prova produzida, ponderada conjugada e criticamente, mostra-se demonstrado que:
a) A arguida mantinha uma relação de amizade com CC a partir da sua separação deste;
b) A separação entre CC e BB ocorreu no início do ano de 2018;
c) A arguida efectuou os acessos supra mencionados de 19. a 28. dos factos provados fora das suas funções, sem que para tanto tivesse qualquer justificação de trabalho ou de serviço e sem para tal estar autorizada;
d) Pelo menos até ao dia 19 de Março de 2019 contra BB não pendia qualquer processo de natureza fiscal que justificasse aquelas consultas;
e) Nos acessos supra referidos de 19. a 28. dos factos provados, a arguida registou informaticamente um motivo do acesso/consulta que sabia não corresponder à verdade e que com a sua conduta violava as responsabilidades e deveres funcionais a que se encontrava vinculada pelo exercício de funções públicas, o que fez por motivos pessoais ou particulares;
f) A arguida bem sabia que com a sua conduta violava os deveres gerais de prossecução do interesse público e de zelo a que, como funcionária da ATA, estava obrigada, bem como os deveres específicos e normas legais relativos ao acesso a dados pessoais e fiscais confidenciais e ao sigilo que lhe eram exigidos pela função que desempenhava;
g) A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei;
h) Com os factos supra descritos, a arguida atuou com abuso da função pública, violou os deveres relativos a um correto exercício daquela função e colocou em causa o respeito e a confiança exigidos para o exercício daquele cargo;
i) Instrumentalizando o seu cargo ao serviço de interesses privados, a arguida produziu um reflexo e uma imagem social reveladores de indignidade para o exercício da função pública.»
V Em conclusão
1 – A arguida foi acusada como autora, em concurso efetivo, de dois crimes de acesso ilegítimo do art. 6.º, n.ºs 1 e 4, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro, com referência, à data dos factos, ao art. 3.º, al. a) e c), 5.º, n.º1, 6.º, al. d), 8.º e 17.º, n.º1 da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e ao art. 64.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária), e ao art. 35.º, n.º 4 da Constituição; e, em concurso aparente com dois crimes de acesso indevido, previsto e punido, à data da prática dos factos, pelo art. 44.º, n.ºs 1 e 2, al. b) da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e atualmente pelo art. 47.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais), com referência ao art. 10.º desta Lei de Proteção de Dados Pessoais, e com dois crimes de abuso de poder do art. 382.º com referência ao art. 386.º, n.º1, al. a), ambos do C. Penal, com referência aos art.ºs 35.º, n.º 4, 266.º e 269.º da Constituição, art. 73.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, o Código de Conduta dos Trabalhadores da AT (Pontos 1, 2, 3 e 4), aprovado pelo Conselho de Administração da ATA em 23/07/2015, Política de Segurança da Informação da ATA (Ponto 1), aprovada pelo Conselho de Administração da ATA em 23 de Julho de 2015), bem como por referência, à data dos factos, ao artigo 3.º, al. a) e c), 5.º, n.º 1, 6.º, al. d), 8.º e 17.º, n.º 1 da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e ao artigo 64.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária), tendo sido requerida a aplicação à arguida da pena acessória de proibição do exercício de função do art. 66.º, n.º 1, als. a) a c) do C. Penal.
2 – Tendo requerido a instrução, foi pronunciada pelos factos e enquadramento jurídico constantes da acusação pública com a prova indicada a fl.s 513 v.º/514.
3 – O presente recurso incide sobre a matéria de facto e, consequentemente, sobre a absolvição decorrente dos factos dados como não provados, pois deve ser dado como provado que:
a) A arguida mantinha uma relação de amizade com CC a partir da sua separação deste;
b) A separação entre CC e BB ocorreu no início do ano de 2018;
c) A arguida efectuou os acessos supra mencionados de 19. a 28. dos factos provados fora das suas funções, sem que para tanto tivesse qualquer justificação de trabalho ou de serviço e sem para tal estar autorizada;
d) Pelo menos até ao dia 19 de Março de 2019 contra BB não pendia qualquer processo de natureza fiscal que justificasse aquelas consultas;
e) Nos acessos supra referidos de 19. a 28. dos factos provados, a arguida registou informaticamente um motivo do acesso/consulta que sabia não corresponder à verdade e que com a sua conduta violava as responsabilidades e deveres funcionais a que se encontrava vinculada pelo exercício de funções públicas, o que fez por motivos pessoais ou particulares;
f) A arguida bem sabia que com a sua conduta violava os deveres gerais de prossecução do interesse público e de zelo a que, como funcionária da ATA, estava obrigada, bem como os deveres específicos e normas legais relativos ao acesso a dados pessoais e fiscais confidenciais e ao sigilo que lhe eram exigidos pela função que desempenhava;
g) A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei;
h) Com os factos supra descritos, a arguida atuou com abuso da função pública, violou os deveres relativos a um correto exercício daquela função e colocou em causa o respeito e a confiança exigidos para o exercício daquele cargo;
i) Instrumentalizando o seu cargo ao serviço de interesses privados, a arguida produziu um reflexo e uma imagem social reveladores de indignidade para o exercício da função pública.»
4 – Na verdade, o douto Tribunal recorrido fez errado uso do princípio da presunção da inocência/in dubio pro reo e apreciação e valoração dos elementos recolhidos, na prova indiciária recolhida e ao responder não provada a todos estes factos, quando, na senda da decisão judicial de pronúncia, deveria tê-los como provados, originando uma solução oposta ao nível da aplicação do direito, com a condenação da arguida, pelos crimes imputados na acusação pública.
5 – Com o princípio da presunção de inocência, até haver uma decisão penal condenatória, com trânsito em julgado, todo o arguido se presume inocente, não recaindo sobre ele, por isso, o ónus de provar que não é responsável pela prática do facto ilícito típico que porventura lhe seja imputado, antes cabendo à acusação fazer prova de que o cometeu e assim merece ser censurado, consagrado no art.° 32.°, n.° 2 da Constituição.
6 – O seu corolário, o princípio “in dubio pro reo”, obriga a que, instalando-se e permanecendo dúvida acerca de factos referentes ao objecto do processo (existência dos factos, forma de cometimento e responsabilidade pela sua prática) essa dúvida deve sempre ser desfeita em benefício do arguido relativamente ao ponto ou pontos duvidosos, podendo mesmo conduzir à sua absolvição.
7 – Princípio que se aplica, segundo o entendimento comum actual, às causas justificativas ou de desculpa, como acontece no caso presente, questão-cerne do presente recurso e na qual, com o devido e todo respeito, o douto Tribunal recorrido não terá atentado na sua devida extensão.
8 – Pois, o Tribunal recorrido teve como não provados, invocando o princípio do in dubio pro reo, absolvendo a arguida, factos que se reportam a causa de justificação e não aos elementos materiais dos crimes imputados.
9 – Mas a aplicação do princípio do in dubio pro reo a causa de justificação ou de desculpa que afaste a responsabilidade criminal obedece a regime específicao, em relação ao regime geral aplicável aos elementos materiais do crime.
10 – O funcionamento do princípio do in dubio pro reo no caso das causa de justificação, como acontece na presente circunstância, implica a verificação dos seguintes requisitos: – alegação pela arguida de uma causa concretizada de justificação; – existência de qualquer prova atinente à sua verificação, que, não sendo embora suficiente para a comprovar, possa sustentar a sua verosimilhança; – O que tudo seja idóneo a criar no julgador a dúvida sobre a sua verificação.
11 – Ora, não se verificam os requisitos que se acabaram de enunciar e permitiram a invocação do mencionado princípio.
12 – A arguida não alegou uma causa concretizada de justificação, que pudesse ser sindicada concretamente, refugiando-se em vaguidades hipotéticas, como o fez no decurso do inquérito, no requerimento da abertura de instrução com afirmações genéricas de que nunca violou os seus deveres funcionais, fez muitos atendimentos ao público, que não conhecia a ex-mulher do seu ex-companheiro. Mas não concretizou uma alegação sobre o contexto em que fez os acessos em causa – que estão provados – e que a verificar-se afastaria a sua responsabilidade criminal, designadamente tornando legítimos os seus acessos.
13 – O que também não fez em audiência, como se referiu em texto: a arguida «admitindo que tal terá sucedido no âmbito dalgum atendimento presencial da ofendida ao balcão do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia – 2 ou então no seguimento de um pedido de informação formulado pela contribuinte ou por alguma entidade oficial (tribunal, agente de execução ou outros)»; «a arguida, pese embora tenha admitido como possível ter acedido a dados fiscais da ofendida BB, negou peremptoriamente tê-lo feito fora do âmbito do exercício das suas funções e sem o conhecimento/autorização da visada. A este respeito, esclareceu que, embora não se lembrando especificamente desta contribuinte – dado o elevadíssimo número de pessoas que atende diariamente no exercício das suas funções ao serviço da ATA –, as pesquisas acerca da situação fiscal da referida contribuinte que constam registadas no sistema informático da AT como tendo sido por si realizadas só o poderão ter sido a pedido da própria contribuinte, presencialmente (ao balcão do Serviço de Finanças) ou então telefonicamente; sendo certo que nem sequer conhecia nem conhece a ora ofendida BB, embora soubesse, pelo seu ex-companheiro, CC, que a mesma foi casada com este. Negou, todavia, que o CC alguma vez lhe tivesse pedido para consultar a situação fiscal da ex-mulher BB.»
14 – E também não existe prova atinente à verificação de causa de justificação, que, não sendo embora suficiente para a comprovar, possa sustentar a sua verosimilhança.
15 – Acresce que os elementos elencados na motivação da decisão de facto, consentem, em divergência com o douto Tribunal, que se afirme que a arguida fazia atendimento ao público e nessa função acessos aos dados, estes seriam significativos, mas não os “inúmeros” que impedissem que a arguida, como era seu dever, consignasse, quando fosse o caso, que o acesso havido sido feito no atendimento ditecto, como fez em várias ocasiões, como o Tribunal recorrido constatou e consignou em nota 23 na motivação dos factos não provados (ao contrário de várias outras pesquisas efectuadas pela arguida em que consta que o foram no âmbito do atendimento ao público), mas não no caso dos acessos a dados da ofendida.
16 – A circunstância de a arguida ter consignado em acessos por si efectuados que tal acontecia na sequência de atendimentos ao público, como o Tribunal recorrido reconheceu, retira verosimilhança a que tenha procedido de forma diferente com os acesos que estão em causa neste processo, antes apontando para que estes acessos não tenham ocorrido por virtude de atendimento ao público, uma vez que quando os acessos eram feitos na sequência de atendimento ao público e o consignava, se acedeu e não consignou tal.
17 – Sabendo a arguida que a ofendida era casada com o seu ex-companheiro, não verosímil que não reconhecesse o seu nome quando fizesse as pesquisas e não mantivesse das mesmas memória.
18 – Também não era verosímil que os acessos tenham sido feitos em sequência a pedidos feitos em atendimento público ou telefónico, dado o conteúdo da consulta, dados que a ofendida conhecia perfeitamente: porque razão iria perguntar à ATA Aquilo que estava farta de conhecer (como o seu próprio nome e morada ou se tinha apresentado ou não declaração de IRS!)?~
19 – E porque o iria fazer à Repartição que não é da sua área e onde trabalhava a ex-companheira do seu marido com quem estava em forte litígio?
20 – O argumento retirado pelo Tribunal recorrido na motivação respeitante aos factos não provados de outras pesquisas feitas pela arguida de conteúdo idêntico é, salvo o devido respeito, anódino, porque nada sabemos sobre os outros acessos, sobre a sua necessidade, o âmbito da consulta, e a sua legitimidade, para se puder extrapolar para o caso sujeito, sendo certo que a similaritude pode ter sido usada para encobrir as pesquisas aqui em causa.
21 – Aqui chegados, importa responder ao último dos requisitos enunciados: dúvida do julgador sobre a causa de justificação que tivesse sido alegada e fosse verosímil, concluindo pela sua não verificação.
22 – Na verdade, entende o Ministério Público, em discordância com o Douto Tribunal recorrido, que, da conjugação de todo este circunstancialismo, não resulta que tendo sido adequadamente alegada concreta causa de justificação da conduta da arguida, de que resultasse um estado de incerteza, não permita a formação de convicção segura, para além de qualquer dúvida razoável, acerca do carácter ilegítimo/abusivo das pesquisas efectuadas pela arguida aos dados pessoais/fiscais da ofendida BB. Antes, e na senda da pronúncia, se mostram provados os factos que o Tribunal recorrido teve como não provados.
23 – Seja-nos permitido retomar palavras precisas do despacho de pronuncia «a defesa da arguida sustenta que a queixosa – a referida contribuinte BB – refere que os acessos alegadamente ilegítimos atribuídos à arguida ocorreram em Setembro e em Novembro de 2018. Assim é com efeito; contudo, como bem refere a defesa dela, foi através do relato do seu ex-marido (a testemunha CC) que a participante se inteirou, em Outubro de 2018, desses acessos à sua situação tributária (fl.s 54/55 dos autos), pelo que a imprecisão das datas não se afigura como decisiva; por outro lado, os acessos que a acusação dirige contra a arguida não ocorreram no âmbito do atendimento ao público, pelo que afastada fica a hipótese de ter sido a própria contribuinte a solicitá-lo à arguida…»
24 – «Ou seja, é plausível que apenas pelo relato que alegadamente lhe foi feito pelo seu ex-marido (o referido CC) tenha a participante sabido da devassa da sua situação tributária, apesar de este negar tê-lo solicitado à arguida (o que é compreensível, sob pena de confessar a prática, por ele mesmo, de crime).»
25 – «Como a arguida não adiantou uma explicação para o facto incontroverso de ter sido ela quem acedeu informaticamente aos dados confidenciais da referida contribuinte, constantes das bases de dados da ATA; e considerando que uma e outra tiveram, em datas diferentes, relacionamento afectivo com o referido CC, recorta-se como perfeitamente plausível, lógico e razoável concluir que foi a pedido deste que a arguida acedeu às informações constantes daquelas bases de dados; não pode escamotear-se que a BB e o CC se separaram de facto em Setembro de 2018, sendo perfeitamente provável que já em Maio e em Agosto de 2018 estivesse instalada a discórdia entre o casal…»
26 – Se igualmente se considerar que, nas palavras da própria arguida, manteve com o CC contactos, ainda que esporádicos, já depois de ter terminado o relacionamento havido entre ambos (em 1987, ao que parece), não se afigura ilógico ou implausível que a razão, o motivo para que a arguida acedesse, fora do exercício das suas funções, à situação tributária da participante tenha sido a pedido daquele.»
27 – Devem, pois, ter-se como provados os seguintes factos:
a) A arguida mantinha uma relação de amizade com CC a partir da sua separação deste;
b) A separação entre CC e BB ocorreu no início do ano de 2018;
c) A arguida efectuou os acessos supra mencionados de 19. a 28. dos factos provados fora das suas funções, sem que para tanto tivesse qualquer justificação de trabalho ou de serviço e sem para tal estar autorizada; d) Pelo menos até ao dia 19 de Março de 2019 contra BB não pendia qualquer processo de natureza fiscal que justificasse aquelas consultas;
e) Nos acessos supra referidos de 19. a 28. dos factos provados, a arguida registou informaticamente um motivo do acesso/consulta que sabia não corresponder à verdade e que com a sua conduta violava as responsabilidades e deveres funcionais a que se encontrava vinculada pelo exercício de funções públicas, o que fez por motivos pessoais ou particulares;
f) A arguida bem sabia que com a sua conduta violava os deveres gerais de prossecução do interesse público e de zelo a que, como funcionária da ATA, estava obrigada, bem como os deveres específicos e normas legais relativos ao acesso a dados pessoais e fiscais confidenciais e ao sigilo que lhe eram exigidos pela função que desempenhava;
g) A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei;
h) Com os factos supra descritos, a arguida atuou com abuso da função pública, violou os deveres relativos a um correto exercício daquela função e colocou em causa o respeito e a confiança exigidos para o exercício daquele cargo;
i) Instrumentalizando o seu cargo ao serviço de interesses privados, a arguida produziu um reflexo e uma imagem social reveladores de indignidade para o exercício da função pública.»
28 – E perante esta matéria de facto provada, mostram-se integrados todos os tipos legais de crimes imputados à arguida, pelo que deve ela ser condenada como sua autora, nas penas de lei.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e ser a arguida condenada nos termos referidos, Como é de justiça.
*
A arguida apresentou contra-motivação, concluindo da seguinte forma:
A. Por não concordar com o Douto Acórdão proferido, veio o Digno Magistrado do Ministério Público recorrer sobre a matéria de fato dada como provada e sobre a decisão preferida que absolveu a Arguida dos crimes de que vinha acusada.
B. Contudo, e salvo o devido respeito, e que é muito, e melhor entendimento, Venerandos Senhores Doutores Juízes Desembargadores, nenhum reparo merece o Douto Acórdão proferido quer quanto à matéria de fato dada como provada e não provada, bem assim como a decisão proferida.
C. Na verdade, as Meritíssimas Juízes que compuseram o coletivo fizeram uma análise criteriosa e ponderada de toda a prova, tanto documental como testemunhal,
D. Fundamentando devidamente e detalhadamente em que se basearam para dar como provados e não provados os fatos.
E. Competia ao Ministério Público a prova dos fatos constantes na acusação,
F. O que, salvo o devido respeito e melhor entendimento, não logrou provar.
G. A única prova que o Ministério Público apresentou em julgamento para corroborar a sua acusação foram tão só e apenas as declarações da ofendida.
H. Toda a restante prova, tanto testemunhal como documental, foi precisamente em sentido contrário às declarações da ofendida,
I. Tendo o Tribunal a quo, e muito bem e sem merecimento de qualquer reparo, quanto às declarações da ofendida, considerado que, sic, “Diga-se que o depoimento da ofendida BB não se nos afigurou suficientemente credível, tendo sido claramente marcado pelo forte conflito pessoal que mantém com o seu ex-marido CC e até contraditório em diversos pontos.”
J. Acresce ainda que a Arguida negou a prática dos crimes de que vinha acusada,
K. Tendo no mais respondido às questões que lhe foram colocadas no sentido de esclarecer o Tribunal a quo do modo de funcionamento interno do Serviço de Finanças e procedimentos e atuação quer da sua parte quer dos demais funcionários do Serviço de Finanças,
L. Tendo as suas declarações sido corroboradas pelas demais testemunhas pertencentes à Administração Tributária (nomeadamente as próprias testemunhas de acusação!).
M. Assim, não só não competia à Arguida fazer prova do não cometimento dos crimes de que vinha acusada,
N. Competindo tal prova ao Ministério Público,
O. Como não se poderá retirar destes fatos qualquer conclusão no sentido da “não verificação por parte da arguida de alegação de uma causa concretizada de justificação” como o faz o Digno Magistrado do Ministério Público,
P. Já que tal é subverter o ónus da prova que competia ao Ministério Público,
Q. E procurar distorcer a defesa e declarações da Arguida à míngua de demais prova testemunhal e documental, imputando-lhe “omissão de alegação de causa concretizada de justificação” e tentando uma “auto condenação” da Arguida por tal fato ou omissão, tentando-se extrair uma confissão da Arguida que esta não fez.
R. Assim, e por nenhum reparo merecer o Douto Acórdão proferido quer quanto à matéria de fato dada como provada e não provada, bem assim como a decisão proferida, devendo ser negado provimento ao recurso apresentado, e o Acórdão proferido ser confirmado na sua totalidade,
S. O que se requer.
Assim decidindo, e com o douto suprimento, farão V. Ex.as, Venerandos Desembargadores, a costumada e inteira justiça
*
Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela procedência do recurso.
*
Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, nada foi acrescentado de relevante.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
*
II. Objeto do recurso e sua apreciação.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

É assim composto pela arguição de:
- incorreto uso do princípio in dúbio pro reo, pretendendo alteração do juízo probatório.
*
Do enquadramento dos factos.
Da sentença recorrida constam como factos provados os seguintes:
Em processo comum e com intervenção do Tribunal Colectivo, foi deduzida acusação contra:
AA, nascida a .../.../1962, filha de II e de JJ, titular do cartão de cidadão n.º ... e residente na Rua ..., ..., 3º Esquerdo Traseiras, em Vila Nova de Gaia,
imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6.º, nºs 1 e 4, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, por referência, à data dos factos, ao artigo 3.º, al. a) e c), 5.º, n.º1, 6.º, al. d), 8.º e 17.º, n.º1 da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e ao artigo 64.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária), bem como por referência ao artigo 35.º, n.º4 da Constituição da República Portuguesa. Em concurso aparente com dois crimes de acesso indevido, p. e p., à data da prática dos factos, pelo artigo 44.º, n.ºs 1 e 2, al. b) da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e atualmente pelo artigo 47.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais), por referência ao artigo 10.º desta Lei de Proteção de Dados Pessoais, e com dois crimes de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º com referência ao artigo 386.º, n.º1, al. a), ambos do Código Penal, por referência aos artigos 35.º, n.º 4, 266.º e 269.º da Constituição da República Portuguesa, artigo 73.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º35/2014, de 20 de Junho, o Código de Conduta dos Trabalhadores da ATA (Pontos 1, 2, 3 e 4), aprovado pelo Conselho de Administração da ATA em 23/07/2015, Política de Segurança da Informação da ATA (Ponto 1), aprovada pelo Conselho de Administração da ATA em 23 de Julho de 2015), bem como por referência, à data dos factos, ao artigo 3.º, al. a) e c), 5.º, n.º1, 6.º, al. d), 8.º e 17.º, n.º1 da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e ao artigo 64.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária). Requerendo, ainda, a aplicação à arguida da pena acessória de proibição do exercício de função, prevista no artigo 66º, nº1, als. a) a c) do Código Penal.
* A arguida requereu a abertura da instrução, tendo sido proferida decisão instrutória, a 04/02/2022, a qual pronunciou a arguida pelos factos e com o enquadramento jurídico constantes da acusação pública.
* Recebida a decisão instrutória, foi designado dia para realização da audiência de julgamento e, nessa sequência, a arguida contestou a acusação pública/pronúncia, oferecendo o merecimento dos autos, tendo indicado testemunhas.
* Na ausência de questões prévias ou incidentais por decidir, veio a realizar-se a audiência de julgamento, com observância do legal formalismo.
* II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
2.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
1 - A arguida AA é trabalhadora da Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA) desde 12 de Dezembro de 2007.
2 - Entre Janeiro de 2008 e até 31 de Dezembro de 2019 a arguida exerceu funções no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 2, com a categoria de Técnica de Administração Tributária Adjunta, nível 2, na 4.ª Secção de Cobrança, Contencioso Administrativo, Contencioso Judicial, Contra-ordenações e Imposto único de Circulação, nas instalações situadas na Avenida da República, 1151, em Vila Nova de Gaia.
3 - Competia-lhe assegurar o funcionamento dos serviços referidos em que se subdivide o Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 2, bem como desempenhar quaisquer funções que lhe fossem atribuídas pelos respetivos chefes no âmbito de delegação de competência para prática de atos próprios das suas funções.
4 - Para exercício das suas funções foi atribuído à arguida pela ATA o código de utilizador “...”.
5 - Após a atribuição do mencionado código de utilizador “...” a arguida associou-lhe senha de acesso/password, que é pessoal, confidencial e intransmissível.
6 - Para o exercício exclusivo das suas funções, os códigos de utilizador/perfis que foram fornecidos à arguida permitiam-lhe o acesso a várias bases de dados fiscais informáticas, mormente consulta ao “Sistema de Execuções Fiscais Web” (SEFWEB), Visão Integrada do Contribuinte (VIC), Modelo 3 e Visão do Contribuinte (VC), tendo perfil autorizado para recolha de dados nestes sistemas informáticos.
7 - Em virtude das suas funções, a arguida tinha acesso a informação pessoal e fiscal sigilosa relativa aos contribuintes em geral, nomeadamente, através dessas bases de dados, e executava procedimentos técnicos e administrativos relativos à gestão tributária dos processos dos contribuintes da sua área de competência e da sua área funcional.
8 - A arguida conhecia o conteúdo das competências e deveres advindos do exercício das suas funções, resultantes, nomeadamente, do disposto nos artigos 266.º, 269.º e 35.º, n.º4 da Constituição da República Portuguesa e artigo 73.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.
9 - Sabia a arguida que, considerando as funções que desempenhava, lhe incumbia os deveres de isenção, de lealdade e de zelo e as exigências de legalidade, imparcialidade, objetividade e independência.
10 - Assim como conhecia as proibições legais de acesso a dados pessoais que tinha ao seu dispor, fora do exercício de funções, previstas na Lei da Proteção de Dados Pessoais (Lei n.º 67/98, de 26/10).
11 - Assim como sabia que não poderia aceder às informações fiscais que tinha ao seu dispor, fora do exercício de funções, por serem sigilosas, nos termos da Lei Geral Tributária.
12 - Tinha também a arguida conhecimento dos valores éticos da conduta pública, previstos no Código de Conduta dos Trabalhadores da ATA, aprovado pelo Conselho de Administração da ATA em 23/07/2015, nomeadamente, que os trabalhadores devem resguardar a informação a que tenham acesso no âmbito do exercício das suas funções, em especial a que esteja protegida pelos deveres de confidencialidade ou de sigilo profissional, que o acesso a dados de natureza pessoal dos contribuintes e de informação protegida por dever de confidencialidade profissional ou fiscal deve ser rigorosamente subordinado ao âmbito de procedimentos de natureza tributária ou aduaneira em curso e realizar-se apenas na medida necessária ao exercício das suas funções e que os trabalhadores não devem procurar ou obter vantagem ou benefício com base em informação a que tenham acesso no exercício das suas funções e que legalmente estejam obrigados a proteger.
13 - Assim como da Política de Segurança da Informação da ATA, aprovada pelo Conselho de Administração da ATA em 23 de Julho de 2015, onde se estipulava que é proibida, nomeadamente, a utilização dos recursos informáticos com a finalidade de divulgação, exposição, transmissão ou comunicação não autorizadas de dados sujeitos a sigilo profissional ou protegidos por lei, incumbindo aos trabalhadores da AT o dever de manter em sigilo os elementos recolhidos sobre os contribuintes e proteger os dados pessoais contidos em registo informático do acesso e divulgação indevidos, nos termos do artigo 64º da Lei Geral Tributária e da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro (Lei de Protecção de Dados Pessoais, na sua actual redacção), observando o princípio do acesso na medida estritamente necessária ao exercício de funções, subordinado ao âmbito de procedimentos de natureza tributária ou aduaneira em curso.
14 - A arguida, a 16 de Fevereiro 2015, declarou que tomou conhecimento da Declaração sobre Garantia de Imparcialidade no âmbito do Plano de Gestão de Riscos de Corrupção e Infrações Conexas e, a 7 de Agosto de 2015, declarou que leu e tomou conhecimento do Código de Conduta e da Política de Segurança da Informação da AT.
15 – A arguida frequentou, a 7 de fevereiro de 2020 e a 2 de Outubro de 2016, ações de formação em e-learning no âmbito da sensibilização para os princípios de segurança, privacidade e conduta ética, onde se abordou a temática do sigilo fiscal.
16 - A arguida manteve uma relação conjugal com CC durante cerca de dez anos, no período compreendido entre os anos de 1998 e 2008.
17 - CC casou, em 2014, com BB, de quem se separou de forma conflituosa no ano de 2018, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado judicialmente no ano de 2019.
18 – A arguida conhecia a situação pessoal de CC, referida em 17.
19 - No dia 18 de Maio de 2018, no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 2, a arguida acedeu ao sistema informático da ATA, tendo para o efeito inserido o seu nome do utilizador “...” e respetiva palavra passe, assim ficando com livre acesso a todas as base de dados fiscais da ATA, nomeadamente ao “Sistema de Execuções Fiscais Web” (Sefweb), onde constam todos os elementos identificativos e de gestão dos processos executivos, à Visão Integrada do Contribuinte (VIC), onde constam todos os elementos identificativos dos contribuintes e da sua relação com a ATA, e ao Modelo 3, onde constam todos os elementos relativos ao IRS e respetivas declarações apresentadas.
20 - Nesse dia, pelas 14h46, a arguida acedeu à aplicação informática Modelo 3 onde consultou informação sobre a entrega das declarações de IRS da contribuinte número ..., BB.
21 - A arguida justificou naquele sistema informático tal acesso com os dizeres “Outros-SCO”, que significa Sistema de Contra-ordenação.
22 - Ainda nesse mesmo dia, pelas 14h49, a arguida acedeu à aplicação informática VIC onde consultou os elementos identificativos da contribuinte número ..., BB, concretamente o nome completo, a morada e a situação fiscal.
23 - A arguida justificou naquele sistema informático tal acesso com os dizeres “Outros-SCO”, que significa Sistema de Contra-ordenação.
24 - Ainda no mesmo dia, pelas 14h53, a arguida acedeu à aplicação informática SEFWEB onde consultou a listagem dos processos executivos pendentes da contribuinte número ..., BB.
25 - A arguida justificou naquele sistema informático tal acesso com os dizeres “Outros-SCO”, que significa Sistema de Contra-ordenação.
26 - No dia 31 de Agosto de 2018, no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 2, a arguida acedeu ao sistema informático da ATA, tendo para o efeito inserido o seu nome do utilizador “...” e respetiva palavra passe, assim ficando com livre acesso a todas as base de dados fiscais da ATA, nomeadamente a Visão Integrada do Contribuinte (VIC), onde constam todos os elementos identificativos dos contribuintes e da sua relação com a ATA.
27 - Nesse dia 31 de Agosto de 2018, pelas 13h06, a arguida acedeu à aplicação informática VIC onde consultou novamente os elementos de identificação da contribuinte número ..., BB, concretamente, o nome, morada e situação fiscal.
28 - A arguida justificou naquele sistema informático tal acesso com os dizeres “Outros-SCO”, que significa Sistema de Contra-ordenação.
29 - A contribuinte BB, com o n.º..., pelo menos até ao dia 19 de Março de 2019, tinha sede fiscal na Rua ..., ..., ..., ..., ..., Santa Maria da Ferira, da área de competência do Serviço de Finanças Feira 1, e contra esta não pendia qualquer processo de natureza fiscal no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 2.
30 - A arguida sabia que da forma supra descrita acedia a dados pessoais e fiscais confidenciais, protegidos por lei, constantes de bases de dados informáticas de uso exclusivo da ATA, a que tinha acesso apenas em razão das suas funções, sabendo ainda que apenas podia aceder àquelas informações no âmbito das suas funções e por causa delas, registando informaticamente um motivo do acesso/consulta.
31 - Com os factos supra descritos a arguida agiu na qualidade de funcionária da ATA e no âmbito das suas funções.
Das condições pessoais da arguida AA (Relatório Social):
32 – O trajeto desenvolvimental de AA decorreu na cidade do Porto. Cresceu inserida no núcleo familiar de origem, composto pelos pais e numa fratria três, onde ocupava o lugar de primogénita. Beneficiou da transmissão de valores sociojurídicos compatíveis com a norma vigente. Descreve um percurso com condições socioeconómicas razoáveis e ajustadas para um crescimento salutar. AA iniciou o percurso escolar na idade expectável. Frequentou, sem problemas comportamentais, o ensino regular e ficou habilitada com o 12º ano de escolaridade. Com 19 anos de idade, começou a trabalhar como entrevistadora de estudos de mercado e, pouco tempo depois, autonomizou-se da família de origem. Em julho/1984, AA ingressou como funcionária pública no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia. No período dos factos relatados na acusação, AA residia na morada dos autos, onde se fixou no decurso do ano de 2008. Trata-se de um apartamento localizado em zona urbana não associada a problemas de cariz social, em Vila Nova de Gaia. AA vive sozinha, pese embora no passado já tenha vivenciado duas uniões de facto. Destaca-se a relação afetiva que ao longo de cerca de dez anos manteve com CC (ex-cônjuge de BB, ofendida nos presentes autos). Atualmente, AA exerce funções de Técnico de Administração Tributária Adjunto – Nível 3, na Autoridade Tributária e Aduaneira, no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 2. Antes disso, começou por tarefeira, depois passou a operadora de registos e dados, técnica auxiliar e técnica profissional principal. Trabalhou, ao longo destes trinta e oito anos, entre os serviços do Porto e Vila Nova de Gaia. Desde 2020 está adstrita à área do património. AA revela motivação pelo exercício labutar e, em concreto, no contacto diário com os cidadãos. Aufere de remuneração base 1719.68€/mês, correspondente a 57.32€/dia e 11,34€/hora. De valor líquido, ganha 1.300€/mês. Em termos de despesas assumidas, AA expõe o valor do crédito habitação, de 221.50€/mês e os respetivos seguros, de aproximadamente 83€/mês. De condomínio paga 61€/mês, de serviço de água 19€/mês, de fornecimento de energia 35€/mês e de telecomunicações 65€/mês. AA apresenta um quotidiano estruturado, com base na atividade profissional que executa das 9h às 17h, de segunda a sexta-feira. Os tempos livres são dedicados sobretudo ao convívio e tratamento dos animais de estimação, realçando, na sua narrativa, algum isolamento social. No meio sócio-residencial apresenta relações cordiais e não existe rejeição à sua presença. AA não preserva relacionamento com os irmãos nem relações significativas com outros elementos familiares. Apresenta uma rede de amizade constituída por diminutos elementos, não obstante, os amigos que mantém são de longa durabilidade. AA refere confrontar-se pela primeira vez com o sistema de administração da justiça penal. Mostra-se apreensiva e com expresso nervosismo, temendo pela audiência de julgamento e pelo desfecho dos presentes autos. AA refere que os presentes autos não são do conhecimento dos seus colegas de trabalho. Salienta que existe um processo disciplinar a decorrer nos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, mas que tal encontra-se centralizado no departamento de recursos humanos em Lisboa e é diretamente a estes que responde. Mais acrescenta que o processo disciplinar em causa está suspenso até à decisão judicial. AA destaca esta situação como a sua maior preocupação, temendo vir a ser alvo de uma sanção disciplinar que ponha em causa o benefício do seu salário mensal, que identifica como o único meio de subsistência. Concomitantemente, também a relação com CC, ex-companheiro, ficou comprometida, salientando que aquele se afastou e neste momento não contactam. Em abstrato e tendo em conta a natureza dos factos subjacentes ao presente processo, AA revela indicadores de consciência da sua ilicitude e apresenta reconhecimento da gravidade deste tipo de conduta e danos associados às vítimas. AA formou a sua personalidade no ambiente familiar de origem. Deteve condições socioeconómicas razoáveis para um desenvolvimento normativo. Possui como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade. Apresenta um percurso profissional sólido e continuado, desde há mais de três décadas, como funcionária pública nos Serviços de Finanças. A arguida vive sozinha em Vila Nova de Gaia. Apresenta uma imagem social normativa, um quotidiano organizado e uma conjuntura socioeconómica, com base no seu salário, adequado face aos ganhos e despesas assumidas. Pela primeira vez confronta-se com um processo judicial e também com um processo disciplinar que está dependente do desfecho do primeiro. Esta situação tem levado a algum mal-estar e inquietação interna por parte de AA, temendo o desfecho desses processos. Apresenta juízo crítico de censura perante factos análogos aos dos presentes autos.
Dos antecedentes criminais da arguida AA:
33 – Do Certificado do Registo Criminal da arguida AA nada consta.
* 2.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:
Com interesse para a decisão, não se provaram quaisquer outros factos constantes da acusação/pronúncia e, designadamente, que:
a) A arguida tivesse mantido uma relação de amizade com CC a partir da sua separação deste;
b) A separação entre CC e BB tivesse ocorrido no início do ano de 2018;
c) A arguida tivesse efectuado os acessos supra mencionados de 19. a 28. dos factos provados fora das suas funções, sem que para tanto tivesse qualquer justificação de trabalho ou de serviço e sem para tal estar autorizada;
d) Pelo menos até ao dia 19 de Março de 2019 contra BB não pendia qualquer processo de natureza fiscal que justificasse aquelas consultas;
e) Nos acessos supra referidos de 19. a 28. dos factos provados, a arguida tivesse registado informaticamente um motivo do acesso/consulta que sabia não corresponder à verdade e que com a sua conduta violava as responsabilidades e deveres funcionais a que se encontrava vinculada pelo exercício de funções públicas, o que fez por motivos pessoais ou particulares;
f) A arguida bem sabia que com a sua conduta violava os deveres gerais de prossecução do interesse público e de zelo a que, como funcionária da ATA, estava obrigada, bem como os deveres específicos e normas legais relativos ao acesso a dados pessoais e fiscais confidenciais e ao sigilo que lhe eram exigidos pela função que desempenhava;
g) A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei;
h) Com os factos supra descritos, a arguida atuou com abuso da função pública, violou os deveres relativos a um correto exercício daquela função e colocou em causa o respeito e a confiança exigidos para o exercício daquele cargo;
i) Instrumentalizando o seu cargo ao serviço de interesses privados, a arguida produziu um reflexo e uma imagem social reveladores de indignidade para o exercício da função pública.
* 2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO.
A convicção do Tribunal, no que diz respeito à factualidade considerada provada, baseou-se na análise conjugada de toda a prova produzida, valorada à luz das regras de normalidade e de experiência comum, tendo-se atendido, desde logo, à prova documental constante dos autos, nomeadamente aos seguintes documentos:
- Denúncia de fls. 5 (apresentada pela ofendida BB); - Certidão de fls. 23 a 44 (extraída dos autos de Inquérito nº1839/18.6PIPRT em que são arguidos/ofendidos BB e CC por crime de violência doméstica);
- Informação da ATA de fls. 68 (indicação das funções da arguida AA); - Informação fiscal da contribuinte n.º... (BB) de fls. 71 (respeitante ao respectivo domicílio fiscal);
- Informação da ATA de fls. 101, 104 a 105 e a constante do suporte digital de fls. 102 (respeitante aos acessos informáticos sobre a situação fiscal de contribuintes efectuados pela arguida nos períodos considerados nos autos);
- Informação da ATA de fls. 287 e a constante do suporte digital de fls. 288 (respeitante às justificações apresentadas pela arguida para os referidos acessos informáticos);
- Informação da ATA de fls. 296 (respeitante às justificações apresentadas pela arguida para os referidos acessos informáticos);
- Informação da Direção Finanças do Porto de fls. 367 a 378 (respeitante aos processos de execução fiscal activos/pendentes da contribuinte nº...
- BB);
- Informação da ATA de fls. 384 a 461 (respeitante aos sistemas informáticos disponíveis na AT para acesso aos dados dos contribuintes e dados acedidos pela arguida nos períodos em causa nos autos);
- Informação prestada pelo SFVNG2 de fls. 464 (dando conta das funções desempenhadas pela arguida no Serviço de Finanças de VNG 2 e da existência de vários processos de execução fiscal e contra-ordenacional instaurados contra a contribuinte nº... - BB – nos Serviços de Finanças Feira 1 e Valongo 2 – ..., informando que a arguida não teve qualquer intervenção nos mesmos); - Informação prestada pela ATA de fls. 500 a 501 (lista dos processos de execução fiscal e de contraordenação instaurados pela AT contra a contribuinte nº... - BB – pendentes no ano de 2018 e informação dando conta de que a Direcção de Finanças do Porto não havia solicitado ao Serviço de Finanças de VNG 2 informações acerca daquela contribuinte);
- Anexo A (documentos remetidos pela ATA – Política de Segurança da Informação da ATA - Carta de Princípios de fls. 4 a 36 e fls. 111 a 140; Código de Conduta da ATA de fls. 39 a 68; Instruções para aplicação da Política de Segurança da Informação da ATA de fls. 69 a 110; Notas Explicativas de fls. 141 a 143;
Declarações subscritas pela arguida de fls. 145 a 146 e informação sobre as ações de formação frequentadas pela arguida de sensibilização para os princípios de segurança, privacidade e conduta ética de fls. 147);
- Anexo B (ficheiro excel com a indicação completa dos dados dos acessos efectuados pela arguida e respetivas justificações, no período compreendido entre 01/01/2018 e 16/05/2019, de fls. 288 e seguintes).
Em conjugação com tal acervo documental, ancorou-se o Tribunal nas declarações prestadas pela arguida em audiência de julgamento, bem como no depoimento das testemunhas BB (aqui denunciante/ofendida); DD (a qual presta serviço no Sistema de Informações da ATA, sendo a responsável pelo Núcleo de Processos Executivos Fiscais); EE (Coordenadora de Equipa Multidisciplinar de Gestão e Acompanhamento de Projectos Informáticos na ATA); FF (à data dos factos, Chefe do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia - 2); GG (Inspectora Tributária a exercer funções na Divisão de Património da Direcção de Finanças do Porto, tendo exercido as funções de Chefe de Finanças Adjunta no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia - 2 entre 2018 e 2020); CC (ex-companheiro da arguida e ex-marido da ofendida BB); HH (a qual presta serviço no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia – 2 na área do Contencioso); KK (irmã da testemunha CC). Assim e quanto aos acessos informáticos efectuados pela arguida AA aos dados pessoais e fiscais da ofendida BB, para além dos registos documentais existentes na ATA e juntos aos autos, a própria arguida admitiu ter procedido a tais pesquisas através do sistema informático da AT e utilizando para o efeito a sua password profissional; tendo, no entanto, referido que o fez no âmbito das suas funções de funcionária da ATA e por causa delas, admitindo que tal terá sucedido no âmbito dalgum atendimento presencial da ofendida ao balcão do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia – 2 ou então no seguimento de um pedido de informação formulado pela contribuinte ou por alguma entidade oficial (tribunal, agente de execução ou outros). Como acima assinalado, constam dos autos diversas informações prestadas pela Autoridade Tributária acerca dos acessos informáticos efectuados pela aqui arguida sobre a situação fiscal da ora ofendida BB, deles resultando, inequivocamente, que a arguida procedeu à pesquisa da situação fiscal daquela contribuinte nos dias 18 de Maio de 2018 (tendo então acedido ao “Sistema de Execuções Fiscais Web” – Sefweb; à “Visão Integrada do Contribuinte” – VIC e ao Modelo 3 – IRS) e 31 de Agosto de 2018 (tendo então acedido ao sistema “Visão Integrada do Contribuinte” – VIC), acessos esses que ficaram registados no sistema informático da ATA, conforme consta da documentação junta aos autos e já acima assinalada. 1[1] Relativamente às normas e procedimentos em vigor no âmbito da Autoridade Tributária sobre o sigilo fiscal, protecção de dados e critério de acesso a esses dados, valorou o Tribunal os diversos elementos documentais contantes do apenso B e acima melhor discriminados, regras essas que a arguida expressamente declarou conhecer. Quanto aos procedimentos existentes no âmbito da AT sobre a forma dos funcionários acederem informaticamente aos dados fiscais dos contribuintes, consideraram-se os depoimentos das testemunhas DD, EE, FF e GG, as quais descreveram em audiência de julgamento, de forma essencialmente coincidente, o modo de funcionamento das pesquisas electrónicas efectuadas no seio da AT aos dados dos contribuintes, em termos que infra melhor se explicitarão. Quanto à factualidade considerada não provada, estribou-se o Tribunal na circunstância de sobre a mesma não ter sido produzida prova bastante capaz de convencer este Tribunal Colectivo da sua veracidade. Assim é que a arguida, pese embora tenha admitido como possível ter acedido a dados fiscais da ofendida BB, negou peremptoriamente tê-lo feito fora do âmbito do exercício das suas funções e sem o conhecimento/autorização da visada. A este respeito, esclareceu que, embora não se lembrando especificamente desta contribuinte – dado o elevadíssimo número de pessoas que atende diariamente no exercício das suas funções ao serviço da ATA -, as pesquisas acerca da situação fiscal da referida contribuinte que constam registadas no sistema informático da AT como tendo sido por si realizadas só o poderão ter sido a pedido da própria contribuinte, presencialmente (ao balcão do Serviço de Finanças) ou então telefonicamente; sendo certo que nem sequer conhecia nem conhece a ora ofendida BB, embora soubesse, pelo seu ex-companheiro, CC, que a mesma foi casada com este. Negou, todavia, que o CC alguma vez lhe tivesse pedido para consultar a situação fiscal da ex-mulher BB. A arguida mencionou, ainda, que as pesquisas que fez sobre a situação fiscal da contribuinte BB são exactamente iguais a todas as outras pesquisas doutros contribuintes que executa no âmbito das suas funções, nada tendo aquelas de particular. E, na verdade, analisadas as listagens juntas aos autos, constata-se que os acessos em causa foram, todos eles, feitos dentro do horário normal de trabalho da arguida e de forma essencialmente semelhante aos demais acessos efectuados pela arguida aos dados doutros contribuintes.
A arguida esclareceu, ainda, que viveu em união de facto com a aqui testemunha CC durante cerca de 8 anos (de 2000 a 2008) e, desde a separação, não manteve com ele qualquer contacto, só tendo reatado a amizade em finais de 2018, altura em que aquele a contactou e lhe transmitiu que tinha terminado o casamento com a BB e que iria sair de casa. E tal foi confirmado pelo referido CC, o qual relatou que viveu com a ora arguida AA durante cerca de 10 anos, tendo depois casado com a ofendida BB, de quem se separou em Setembro/Outubro de 2018.2 Confirmou que a arguida soube do seu casamento com a BB e que esta sabia que a arguida tinha tido um relacionamento com ele, porque ele lhe contou. Negou, no entanto, categoricamente, ter alguma vez pedido à arguida para aceder a dados fiscais da sua ex-mulher BB. É certo que a ora ofendida BB negou em audiência de julgamento ter-se deslocado ao Serviço de Finanças de VNG 2 ou ter telefonado para este Serviço para pedir qualquer informação acerca da sua situação fiscal. Acabou, no entanto, por admitir que já tinha ido a esse Serviço de Finanças em 2009 para tratar de um assunto de tesouraria.3[2] Depois, a despeito de afirmar que procede sempre à entrega on line das suas declarações fiscais e é também sempre on line que pede informações fiscais, acabou por confirmar que a sua Contabilista possui a sua password das Finanças, desconhecendo se esta alguma vez pediu informações às Finanças com aquela sua password. Diga-se que o depoimento da ofendida BB não se nos afigurou suficientemente credível, tendo sido claramente marcado pelo forte conflito pessoal que mantém com o seu ex-marido CC4 e até contraditório em diversos pontos. Assim é que a mesma afirmou que se separou do seu ex-marido no dia 21 de Setembro de 2015, quando este refere que tal separação se deu em Setembro ou Outubro de 2018, o que vai de encontro ao também afirmado pela arguida a esse respeito. De referir, aliás, a esse propósito, que do teor da certidão judicial junta aos autos respeitante ao processo de violência doméstica pendente entre a ora ofendida e o seu ex-marido CC resulta claramente 5 que a separação do casal ocorreu em Setembro/Outubro de 2018 e não em 2015 conforme agora sustentado pela ofendida. Depois, a ofendida BB contou em julgamento que teve conhecimento dos acessos ilegais aos seus dados fiscais porque no dia em que apresentou a presente denúncia (19/11/2018) viu o carro do seu ex-marido CC estacionado junto do seu (dela) apartamento em ..., Santa Maria da Feira, quando é certo que ela nunca lhe tinha dito que possuía aquele apartamento. Também referiu que o seu ex-marido CC lhe disse que sabia do valor que ela iria pagar de IRS, sendo que o mesmo não tinha acesso à sua declaração de rendimentos porque não a faziam em conjunto e ela nem sequer recebia o seu vencimento em Portugal, mas no estrangeiro. Por tudo isto, deduziu que tais informações tivessem sido transmitidas ao CC pela ex-companheira deste e ora arguida, já que esta trabalhava no Serviço de Finanças e já anteriormente6 tinha ouvido telefonemas de pessoas a pedir ao CC que, junto da AA, tirasse informações fiscais sobre terceiros. Questionada acerca do modo como o CC lhe transmitiu que sabia da sua declaração de IRS, a ofendida afirmou que foi através de mensagens electrónicas que o mesmo lhe enviou e que se mostram reproduzidas no processo-crime de violência doméstica pendente. Sucede, porém, que, tendo-se solicitado àqueles autos o envio de cópia de tais mensagens, se constata que nas mesmas nada consta acerca da declaração do IRS da ora ofendida BB. A ofendida afirmou também que nunca autorizou a ora arguida ou o seu ex-marido a acederem aos seus dados fiscais, sendo que não tinha pendente contra si qualquer processo de execução fiscal. Ora, analisadas as listas de processos enviados aos autos pela ATA, constata-se que contra aquela foram instaurados pela AT diversos processos, quer de execução fiscal, quer de contraordenação, alguns dos quais se encontravam pendentes em Maio e em Agosto de 2018. 7, ainda que não especificamente no Serviço de Finanças de VNG 2; o que, no entanto, não era impeditivo de a arguida prestar informações sobre os mesmos ou sobre outros assuntos fiscais com eles relacionados, conforme explicitado pela própria e confirmado pelas testemunhas DD, EE, FF, GG e HH. Constata-se, ainda, que na denúncia que apresentou nos autos a ofendida BB afirmou que os acessos aos seus dados fiscais foram feitos pelo seu ex-marido e pela ora arguida entre os dias 03/09/2018 e 17/11/2018, quando é certo que os acessos em causa nos autos o foram nos dias 18 de Maio e 31 de Agosto de 2018, como resulta da documentação enviada pela AT. Tal significa que os sobreditos acessos ocorrem em momento anterior ao da separação do casal da ofendida e da testemunha CC - que terá sido em Setembro/Outubro de 2018 -, o que contraria a versão da acusação pública segundo a qual terá sido no seguimento da separação conflituosa do referido casal que a arguida resolveu investigar a situação fiscal da BB. É certo, também, que à luz das regras de normalidade e de experiência comum, a versão da arguida segundo a qual terá acedido aos dados fiscais da ofendida em atendimento ao público não faria muito sentido, já que aquela não tinha, à data dos factos, domicílio fiscal no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 2, mas sim em ..., Santa Maria da Feira, como resulta da documentação da AT junta aos autos. Porém, a arguida esclareceu, a esse propósito, que é muito habitual contribuintes doutras Repartições de Finanças 7 Sendo que, para além do mais, a 12 de Maio e 9 de Agosto de 2018 lhe tinham sido instaurados pela AT o processo de execução fiscal ..., respeitante a dívida de IMI, e o processo de contraordenação ..., respectivamente. deslocarem-se ao Serviço de Finanças de VNG 2 para pedirem informações ou tratarem doutros assuntos relacionados com a respectiva situação fiscal dado que aquele Serviço de Finanças se encontra localizado numa zona central de Vila Nova de Gaia, com duas paragens de Metro muito próximas. Questionada, ainda, a arguida acerca da razão pela qual pesquisou os processos de execução fiscal pendentes contra a contribuinte BB, já que, à data, não exercia funções naquela área, mas sim na área das contraordenações, a arguida referiu que o procedimento normal, quando era pedida alguma informação, era aceder primeiro ao sistema VIC, para se ter uma visão global da situação do contribuinte perante a AT (se o mesmo tem dívidas, se possui património, etc.), e pesquisar também se o contribuinte tem algum processo de execução fiscal para além de processos contraordenacionais (a sua área) com aqueles relacionados. Estas explicações adiantadas pela arguida foram corroboradas pelas testemunhas DD, EE, FF, GG e HH. Com efeito, a testemunha DD explicou que, para se aceder aos dados dos processos de execução fiscal, o funcionário das finanças terá que digitar o NIF do respectivo contribuinte ou o número do processo executivo, mas todos os funcionários da AT têm acesso a estes dados porque se faz uma autenticação inicial (password). Os critérios de acesso a estes dados fiscais estão regulamentados pela AT e todos os funcionários têm sessões periódicas de formação acerca do sigilo dos dados e normas de acesso. Por sua vez, a testemunha FF relatou que, em 2018, exerceu funções de Chefe do Serviço de Finanças de VNG 2, onde a arguida AA exercia funções na área das contraordenações. Nessa qualidade, a arguida tinha acesso às bases de dados informáticos da área das suas funções (contencioso administrativo e judicial, contraordenações, cobranças), mas também tinha acesso às bases de dados gerais - VIC e Sefweb (processos de execução fiscal)8[3]. Mais confirmou que a arguida também executava as tarefas de atendimento ao público e que este atendimento, regra geral, é feito pelo funcionário responsável por cada área. Explicou, ainda, que a nível nacional qualquer contribuinte se pode deslocar e ser atendido numa Repartição de Finanças distinta daquela onde está fiscalmente domiciliado, existindo ordens superiores no sentido de que nenhum contribuinte pode ser mandado embora duma Repartição de Finanças sem ser atendido; sendo que o Serviço de Finanças de VNG 2 sempre foi muito procurado pelos contribuintes dada a sua boa localização (está situado muito próximo do Metro), mesmo pelos contribuintes que não estão lá domiciliados.9 Também a testemunha GG confirmou que, em 2018, a arguida prestava serviço no Serviço de Finanças de VNG 2 e, nessa altura, qualquer funcionário das Finanças podia consultar todas as informações acerca de qualquer contribuinte, ainda que não respeitassem à sua específica área de competência. Mais confirmou que, naquela altura, todos os funcionários do Serviço de Finanças de VNG 2 faziam atendimento ao público, incluindo a aqui arguida, sendo que esta Repartição de Finanças tinha muita afluência (por ser central) mesmo por parte de contribuintes que ali não estavam fiscalmente domiciliados. Por seu turno, a testemunha HH referiu que, em 2018, a arguida exercia funções no Serviço de Finanças de VNG 2, na área das contra-ordenações, tendo igualmente confirmado que a mesma fazia atendimento ao público; sendo que os funcionários tinham orientações superiores no sentido de atender qualquer contribuinte que se dirigisse àquele Serviço de Finanças mesmo que não estivesse ali domiciliado10 . É verdade que nos registos dos acessos informáticos juntos aos autos e acima já sobejamente referenciados não consta que os acessos realizados pela arguida11 aos dados fiscais da ofendida tivessem por base atendimento ao público. 12[4] No entanto, a arguida mencionou que nem sempre ficava registado no sistema informático que as referidas pesquisas tinham sido feitas no âmbito do atendimento ao público e, por outro lado, muitas das pesquisas efectuadas são-no no seguimento de pedidos de informação solicitados pelos contribuintes telefonicamente e estes não ficam registados. Doutra banda, a despeito de as pesquisas efectuadas não terem sido a processos de contra-ordenação (área específica da arguida), mas a processos de execução fiscal, VIC e IRS, cabe notar que, analisadas as listagens dos acessos informáticos da arguida, juntas aos autos, verifica-se que a mesma, no período considerado, também pesquisou sobre vários outros contribuintes diversas informações doutras áreas, tais como VIC13, processos de execução fiscal e IRS. 14 De ponderar, outrossim, que se o objectivo da arguida fosse vasculhar os dados pessoais da ofendida BB15 , não teria necessidade de aceder ao sistema VIC daquela contribuinte no dia 31 de Agosto de 2018, como aconteceu, posto que tais dados já eram do seu conhecimento aquando da pesquisa que efectuou a 18 de Maio de 2018. Reafirme-se, por fim, que, conforme relatado pela própria ofendida BB, a sua Contabilista possuía as suas senhas de acesso às informações fiscais, não sendo por isso de afastar, no plano das hipóteses, a eventualidade dessa profissional ter solicitado à ora arguida, como funcionária do Serviço de Finanças, presencialmente ou telefonicamente, informações acerca da situação fiscal da sua cliente BB. Da conjugação de todo este circunstancialismo resultou para este Tribunal Colectivo um estado de incerteza, não tendo formado convicção segura, para além de qualquer dúvida razoável, acerca do carácter ilegítimo/abusivo das pesquisas efectuadas pela arguida aos dados pessoais/fiscais da ofendida BB. Como assim e quanto mais não seja por apelo ao princípio in dubio pro reo16 [5], que informa todo o processo penal, ter-se-á de considerar como não provada, nesta parte, a respectiva factualidade.
* III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
III.1. DOS CRIMES DE ACESSO ILEGÍTIMO:
A acusação/pronúncia imputa à arguida AA a prática, em autoria material, na forma consumada e concurso real, de dois crimes de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º 1, e 4, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, por referência, à data dos factos, ao artigo 3.º, al. a) e c), 5.º, n.º 1, 6.º, al. d), 8.º e 17.º, n.º 1, da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e ao artigo 64.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária), bem como por referência ao artigo 35.º, n.º4 da Constituição da República Portuguesa. Nos termos do disposto no artigo 6º, nº1 da Lei nº 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime)17 , “Quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de parte dele, de qualquer modo aceder a um sistema informático, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”. O mesmo diploma legal define “sistema informático” como sendo “Qualquer dispositivo ou conjunto de dispositivos interligados ou associados, em que um ou mais de entre eles desenvolve, em execução de um programa, o tratamento automatizado de dados informáticos, bem como a rede que suporta a comunicação entre eles e o conjunto de dados informáticos armazenados, tratados, recuperados ou transmitidos por aquele ou aqueles dispositivos, tendo em vista o seu funcionamento, utilização, proteção e manutenção.” (cfr. artigo 2º, alínea a). Conforme se expressa no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2021 18, “A tipicidade objetiva do crime é preenchida por: a) Acesso do agente, por qualquer modo, a um sistema informático. (…); b) Inexistência de permissão legal ou autorização para o efeito conferida pelo proprietário ou outro titular do direito do sistema ou de parte dele.”. Acerca do que deve ser considerado acesso ilegítimo escreve-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Março de 2018 19 [6] o seguinte: “O acesso é ilegítimo por extravasar as competências funcionais, quando ocorre num quadro não justificado, quando através dele o agente procura obter informações confidenciais por motivos exclusivamente pessoais ou particulares. (…). Em geral, tratava-se de cobrir as condutas que se traduziam na mera entrada ou acesso a sistemas informáticos por «mero prazer» ou «gozo» em superar as medidas ou barreiras de segurança, isto é, sem qualquer (outra) intenção ou finalidade alguma de manipular, defraudar, sabotar ou espionar (Benjamim Silva Rodrigues, ob. cit., pág. 159), situação que veio a suscitar dúvidas sobre a necessidade ou não de criminalizar tais condutas. Com a norma tutela-se a «integridade do sistema informático lesado», a partir de uma ideia nova de «inviolabilidade do domicílio informático». A construção deste tipo legal de crime assenta na noção de ilegitimidade, consubstanciada na falta de autorização para aceder a um sistema ou rede informáticos ou interceptar comunicações que se processam numa rede ou sistema informático”. A amplitude quanto ao modo de acesso assumida pelo legislador ao empregar a expressão «de qualquer modo» significa que se prescinde da usurpação ou utilização indevida de nome de utilizador (username), de palavra-passe (password), código pin do titular ou outro mecanismo de segurança de acesso ao sistema ou rede; caso se verifique que o acesso decorreu mediante violação de regras de segurança, então o tipo de crime é agravado, nos termos do nº3 do art. 6º.”. Como daqui se retira, o bem jurídico protegido pelo crime de acesso ilegítimo é a segurança dos sistemas informáticos. Visa-se proteger o designado “domicilio informático”, com similitude à introdução em casa alheia.20 As penas serão mais graves se tiver havido violação de regras de segurança21, se se tomar conhecimento de segredo comercial ou industrial ou de dados confidenciais22 e, ainda. se o benefício ou vantagem patrimonial forem de valor consideravelmente elevado. 23 O tipo subjectivo de crime de acesso ilegítimo, previsto no já citado nº1 do artigo 6º da Lei nº 109/2009, de 15/9, não exige qualquer intenção específica, por exemplo a de causar prejuízo ou a de obter qualquer benefício ilegítimo. Apenas se exige o dolo genérico de intenção de aceder a sistema, sem consentimento do seu titular24 [7], como resulta da expressão “sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de parte dele”. Regressando ao caso dos autos e visto o quadro factual apurado, temos por certo que a arguida AA, por virtude das suas funções de funcionária da ATA, e sendo detentora das ferramentas que lhe permitem aceder ao sistema (os referidos instrumentos de segurança nome do utilizador e password), está legalmente autorizada a aceder a elementos confidenciais referentes à situação fiscal dos contribuintes, desde que esse acesso seja enquadrado por uma qualquer necessidade funcional, resultante da sua actividade (v.g. no âmbito de um qualquer processo de execução fiscal ou contraordenacional). Esse acesso será já ilegítimo, por extravasar essas competências funcionais, quando ocorre num quadro não justificador, designadamente, quando através dele o agente procura obter informações confidenciais relativas a um contribuinte por motivos exclusivamente pessoais ou particulares, como imputado vem na acusação pública/decisão instrutória. Tendo em conta este enquadramento doutrinário e o acervo factual acima apurado, entendemos que não se mostram preenchidos in casu os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito de acesso ilegítimo de que a arguida AA vem acusada/pronunciada. Com efeito, apesar de se ter apurado que a arguida acedeu a dados fiscais respeitantes à ofendida BB, não se provou que o tivesse feito fora do exercício das suas funções, sem que para tanto tivesse qualquer justificação de trabalho ou de serviço e sem para tal estar autorizada. Ou seja, não se provou que aqueles acessos informáticos efectuados pela arguida AA tivessem sido ilegítimos. Note-se que no tipo de crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6º, nº1 da Lei nº 109/2009, de 15/09, o consentimento ao acesso prestado pelo titular do sistema informático ou de parte dele é, indubitavelmente, uma causa de exclusão da tipicidade do facto (e já não uma causa de justificação), pois que a sua falta é elemento do tipo objetivo de crime. Ora, in casu não se provou que: - a arguida tivesse acedido aos dados fiscais da ofendida BB fora das suas funções, sem que para tanto tivesse qualquer justificação de trabalho ou de serviço e sem para tal estar autorizada; - não pendesse contra a ofendida BB qualquer processo de natureza fiscal que justificasse aquelas consultas; - naqueles acessos, a arguida tivesse registado informaticamente um motivo do acesso/consulta que sabia não corresponder à verdade e que com a sua conduta violava as responsabilidades e deveres funcionais a que se encontrava vinculada pelo exercício de funções públicas, o que fez por motivos pessoais ou particulares; - a arguida sabia que com a sua conduta violava os deveres gerais de prossecução do interesse público e de zelo a que, como funcionária da ATA, estava obrigada, bem como os deveres específicos e normas legais relativos ao acesso a dados pessoais e fiscais confidenciais e ao sigilo que lhe eram exigidos pela função que desempenhava; - a arguida atuou com abuso da função pública, violou os deveres relativos a um correto exercício daquela função e colocou em causa o respeito e a confiança exigidos para o exercício daquele cargo; - a arguida instrumentalizou o seu cargo ao serviço de interesses privados, assim produzindo um reflexo e uma imagem social reveladores de indignidade para o exercício da função pública. - a arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei. Assim sendo e porque nem o elemento objectivo do tipo – o acesso ilegítimo àqueles dados confidenciais – nem o elemento subjectivo – traduzido no dolo genérico de intenção de aceder ao sistema sem consentimento do seu titular – emergem dos factos provados, mais não resta do que absolver a arguida AA da prática dos crimes de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6º, nºs 1 e 4, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro, de que vinha pronunciada.
III.2. DOS CRIMES DE ACESSO INDEVIDO:
A arguida AA está também pronunciada pela prática, em concurso aparente com os crimes de acesso ilegítimo, de dois crimes de acesso indevido, p. e p., à data da prática dos factos, pelo artigo 44.º, n.ºs 1 e 2, al. b), da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e atualmente pelo artigo 47.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais), por referência ao artigo 10.º desta Lei de Proteção de Dados Pessoais. Dispunha o artigo 44º, nº1 da Lei nº67/98; de 26/10 25: “1 - Quem, sem a devida autorização, por qualquer modo, aceder a dados pessoais cujo acesso lhe está vedado é punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias.”; estatuindo o seu nº2, al, b) que “A pena é agravada para o dobro dos seus limites quando o acesso: (…) b) Tiver possibilitado ao agente ou a terceiros o conhecimento de dados pessoais; (…).”. Actualmente, o artigo 47.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto, sob a epígrafe “Acesso indevido” estabelece que “1 - Quem, sem a devida autorização ou justificação, aceder, por qualquer modo, a dados pessoais é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - A pena é agravada para o dobro nos seus limites quando se tratar dos dados pessoais a que se referem os artigos 9.º e 10.º do RGPD.”. 26[8] Comete este crime quem, sem a devida autorização, por qualquer modo, aceder a dados pessoais cujo acesso lhe está vedado. Entende-se por dados pessoais qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável. Neste crime está em causa o acesso a dados pessoais, sem qualquer relação com as funções, independentemente de ter havido violação de sigilo ou de esses dados terem sido transmitidos a terceiros. Basta que o agente aceda indevidamente aos dados pessoais para os conhecer. Ora, no caso vertente, se é certo que a arguida AA, em virtude das suas funções de funcionária do Serviço de Finanças, podia aceder (como acedeu) ao sistema informático da ATA onde se encontram registados dados pessoais dos contribuintes e, designadamente, da contribuinte BB, a verdade é que não resultou demonstrado que o tivesse feito “sem a devida autorização ou justificação”, como é exigido pelo tipo de ilícito em questão. Como assim, não resultam preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo de crime de acesso indevido de que a arguida AA vinha igualmente pronunciada.
III.3. DOS CRIMES DE ABUSO DE PODER:
A arguida AA está ainda pronunciada pela prática, em concurso aparente com os crimes de acesso ilegítimo, de dois crimes de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º com referência ao artigo 386.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal (por referência aos artigos 35.º, n.º 4, 266.º e 269.º da Constituição da República Portuguesa, artigo 73.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, o Código de Conduta dos Trabalhadores da ATA (Pontos 1, 2, 3 e 4), aprovado pelo Conselho de Administração da ATA em 23/07/2015, Política de Segurança da Informação da ATA (Ponto 1), aprovada pelo Conselho de Administração da ATA em 23 de Julho de 2015), bem como por referência, à data dos factos, ao artigo 3.º, al. a) e c), 5.º, n.º 1, 6.º, al. d), 8.º e 17.º, n.º 1, da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e ao artigo 64.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária). Estabelece o artigo 382º do CP: “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”. O bem jurídico protegido com esta incriminação abrange várias vertentes, a saber: a) a autoridade dos organismos públicos e a forma como o poder é exercido pelas autoridades competentes, ambas garante da eficácia e do prestígio do funcionamento dos órgãos do Estado; b) a imparcialidade e respeito pela legalidade no exercício de funções. A este propósito refere Paula Ribeiro de Faria27 [9] que este tipo legal visa proteger “a autoridade e credibilidade da administração do Estado ao ser afectada a imparcialidade e a eficácia dos seus serviços ”, salientando que se trata de uma exigência que traduz “… um principio fundamental da organização do Estado consagrado constitucionalmente nos artigos 266.º, 268.º e 269.º - 1, da C.R.P.”. Estamos perante um crime de prejuízo que exige a lesão do bem jurídico protegido, sendo um crime formal no que toca ao objecto da acção dado que se consuma com a execução da acção, mesmo que não ocorra qualquer dano material. Ora, da análise probatória acima realizada, os factos considerados não provados que levaram à conclusão da inexistência dos crimes de acesso ilegítimo e de acesso indevido são os mesmos que afastam a imputação à arguida de dois crimes de abuso de poder, tal como vem previsto no citado artigo 382.º do CP. Na verdade, tais factos (não provados) inviabilizam a conclusão de que a conduta da arguida, no exercício das suas funções de funcionária da AT, violou qualquer dever funcional, quer dever funcional genérico (que se refere a toda a actividade desenvolvida no âmbito da administração do Estado), quer dever funcional específico (imposto por norma jurídica ou instruções de serviço e no quadro de um processo) que permita julgar preenchidos, quer os elementos objectivos, quer os respectivos elementos subjectivos. Assim sendo, cumpre julgar totalmente improcedente, por não provada, a pronúncia e, consequentemente, absolver a arguida de todos os crimes que lhe são imputados.
III.4. DA PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE EXERCÍCIO DE FUNÇÕES:
O Ministério Público requereu, por fim, a aplicação à arguida AA da pena acessória de proibição do exercício de função, prevista no artigo 66º, nº1, als. a) a c) do Código Penal. Nos termos desta disposição legal, “O funcionário que, no exercício da atividade para que foi eleito ou nomeado ou por causa dessa atividade, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, ou cuja pena seja dispensada se se tratar de crime de recebimento ou oferta indevidos de vantagem ou de corrupção, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 8 anos quando o facto: a) For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes; b) Revelar indignidade no exercício do cargo; ou c) Implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função.”. No caso dos autos, como acima visto, não se apuraram factos com relevo jurídicopenal, o que afasta liminarmente a aplicabilidade da pena acessória de proibição do exercício de função, cominada no já citado artigo 66º, nº1, als. a) a c) do Código Penal. * IV – DISPOSITIVO (…).”
*
Cumpre apreciar.
Verificando-se que o recurso interposto pelo Digno recorrente centra-se na impugnação da decisão da matéria de facto, embora apenas radicado na mensuração da violação do in dúbio pro reo, já que sobre a impugnação da matéria de facto nos termos do art.412º nº3 do CPP, como não são cumpridos os respetivos ónus de impugnação, não será aferida a mesma.
Assim, o Digno recorrente centraliza no objeto de recurso, a violação do princípio in dúbio pro reo, que situa numa das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência contempla (artigo 32.º, n.º2, 1.ª parte, da CRP), ou mais propriamente como seu corolário, e que impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
É essa a visão de grande parte da jurisprudência, no entanto, vale identificar a incidência de cada dos dois princípios. Desde já, assumidamente, ambos os princípios são regras de prova, definidores do Standard de prova no processo penal.
Em jeito de breve nota histórica, é comum afirmar-se que a raiz histórica da presunção de inocência no processo penal fixa-se no primeiro momento em que foi positivado enquanto tal, concretamente no art.9º da Declaração dos Direitos do Homem no ano de 1789 [10]. Contudo, se a revolução francesa e os seus frutos reclamam justamente a autoria de um mundo novo, no entanto, a verdade é que muitos dos princípios que daí derivaram, anteriormente já eram pensados e até positivados em algumas das suas importantes expressões, como é o caso de, já no início do século XVIII, o réu não poder ser preso preventivamente sem “culpa formada”, ou seja, sem acusação (ou pronúncia). Neste sentido, pode ver-se o Jurisconsulto Dr António Cabral quando cita as Ordenações do Reino na “Prática Judicial”, Primeira Parte, pág.46 Lisboa, que redigiu no ano de 1712 (reinava em Portugal El-Rei D.João V), apenas excecionando os casos de flagrante delito e “os casos que merecem pena de morte” ai “pode o juiz pode mandar prender sem culpa formada”. Estas disposições, dizendo diretamente respeito à presunção de inocência, não são despiciendas, basta recordar que no 1º interrogatório judicial de arguido detido no nosso Código de Processo penal, só na alteração legislativa da Lei nº20/2013 é que o art.141º nº4 alínea d) do CPP passou a importar a comunicação à defesa dos factos que lhe são concretamente imputados (previsão que reflete a exigência de uma manifestação preliminar da formação da culpa), o que, em caso de prisão preventiva ainda assume maior acuidade. Assim, pelo menos desde o início do século XVIII (muito antes da revolução francesa) essa matéria já era liquida.

Prosseguindo sobre este princípio, cabe referir que a doutrina tem explicado que a presunção de inocência não encerra em si mesma uma presunção em sentido técnico, dado que, não existe a relação causal entre facto real e o facto presumido, não se podendo afirmar que a probabilidade de absolvição é, sequer, superior à probabilidade de sobrevir uma condenação, não exprimindo uma regra de normalidade (neste sentido ver Alexandra Vilela in “Considerações Acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal”, págs.82 a 85, Coimbra, 2005), no entanto, a par de uma proteção sócio-cultural que o legislador concede ao arguido, perante um processo penal historicamente dotado de poderes públicos, este princípio é assumidamente uma regra de prova. A assunção desse princípio no processo penal, revolucionou este direito adjetivo, obrigando ao equilíbrio de posições, com benefício do arguido e ao exercício do contraditório.
No ordenamento jurídico substantivo são variadas e numerosas as presunções legais de culpa que povoam os mais diversos setores da ação humana, e cujo fundamento, por regra deriva da titularidade ou domínio da fonte de risco (v.g.arts.491º, 492º nº1, 493º, 503º nº1 e nº3, 798º todos do CC) que, na sua essência, visam, através dessa presunção, repartir o ónus de prova, facilitar a mesma e reforçar a tutela de determinados bens jurídicos alvo do risco recenseado. Particularmente é o que se passa em várias manifestações do regime da responsabilidade civil, cujas condutas podem bem intersecionar ações delituais de natureza penal. No entanto, as garantias de um direito processual penal exercido com respeito pela dignidade da pessoa humana, como contraponto à severidade das consequências da responsabilidade criminal, a imposição da presunção de inocência implica que uma condenação só é possível com prova solidamente conseguida. O legislador constitucional com um só princípio desfez todas as presunções legais de culpa, exigindo uma produção de prova que supere a presunção de inocência, aqui vista não como presunção em sentido técnico, mas enquanto dotada do in dúbio pro reo, daí derivando o standard de prova no processo penal.
Mas o princípio ainda adquire outra importância, de maior impacto. Com efeito, antes do julgamento, o processo é atravessado pelo inquérito, e facultativamente pela instrução, podendo terminar com a dedução da acusação, a qual supõe forte indiciação do conjunto de factos narrados. Ora, a presunção de inocência estabelece que, não obstante os factos descritos no objeto de processo e que constam da acusação, suponham a carga indiciária que a suporta e, por isso, dotada de relevo jurídico, porém, esse relevo indiciário, em audiência de julgamento, nada significa. Aí, a discussão probatória encontra-se totalmente aberta, no sentido de não implicar, por si, qualquer princípio de prova (conceito identificado pela doutrina processualista no art.417º nº2 do CPC). Nesta medida, e não obstante parte importante do “corpo do delito” (enquanto conjunto de provas) já conste dos autos, como os documentos, relatórios periciais, transcrições de escutas, relatórios de vigilância com imagens documentadas, declarações do arguido, o juízo probatório a fazer em audiência é absolutamente “ex novo”, por um juiz diferente (do juiz de instrução, caso tenha havido essa fase).
O Ministério Público que já na fase de inquérito tem a obrigação de recolher provas em ordem a poder decidir sobre a acusação cfr.art.262º nº1 do CPP, deduzindo acusação imputando factos e crime ao arguido; propondo-se provar a mesma, tem a obrigação legal de “arrolar” os respetivos meios de prova, para além de, posteriormente, contraditar os meios de prova requeridos pelo arguido, caso não concorde com os mesmos. Não obstante, o MP defender a legalidade e estar sujeito a critérios de objetividade, tem a seu cargo a produção de prova, cuja apresentação lhe compete, e nessa medida tem sobre si esse ónus, que é inequívoco, na sua expressão[11], embora não atinja a pureza do conceito, materialmente é um ónus, tal como sustenta Germano Marques da Silva in “curso de Processo Penal”, Vol.II, p.92, Lisboa, 1993. De notar que, mesmo no processo civil, o conceito de ónus de prova, não é puro, sofrendo a interferência de vários outros princípios, como o da busca da verdade material.
Face ao princípio de presunção de inocência, se o MP não for eficiente no elenco dos meios de prova que lhe compete, a tese da acusação provavelmente naufragará. É evidente que, sem perder de vista o dever de objetividade que vincula do MP, assim como o princípio da aquisição processual (quantas vezes são as testemunhas da defesa a provar a tese da acusação), associado ao dever oficioso do Tribunal em perseguir a verdade material, não obstante esses deveres matizados, correspondendo a convicção do MP à que se encontra espelhada na acusação, o compromisso de prova é muito elevado (e não, mínimo ou suficiente!? como por vezes é verbalizado pela doutrina). O compromisso de prova pesa primeiramente sobre o MP, constituindo um ónus, que tem de ser lapidarmente cumprido, dado o standard da prova em processo penal ser ditado por um grau de probabilidade muito elevado, necessário ao juízo probatório. Claro está, que o MP no decurso da produção de prova, alterando a sua convicção sobre a versão da acusação, em obediência ao dever de objetividade, fica imediatamente dispensado do “ónus”, devendo pedir a absolvição do arguido (aliás, é assim que procede no termo do inquérito, quando entende não existirem elementos probatórios do cometimento do delito, arquiva os autos. Igualmente em sede de julgamento, convencendo-se da inocência, não tem de prosseguir num estertor probatório sem sentido), mas essa circunstância não invalida, de todo, a obrigação do MP em prosseguir o cumprimento desse ónus até ao fim. Como se referiu, a reconhecida existência de ónus de prova do processo civil, também convive com o dever oficioso do tribunal de perseguir a verdade material, assim como com outras exceções.
Portanto, a presunção de inocência, não obstante vigore desde o início do processo, tem a sua especial incidência na apresentação da acusação, a qual, não obstante, os seus pressupostos jurídicos (a forte indiciação dos factos aí descritos), a fase de julgamento transforma o objeto descrito na acusação num conjunto de factos meramente afirmados, de tal forma que, só a prova produzida em audiência de julgamento contará.
O princípio da presunção da inocência, não obstante as anteriores fases processuais, recoloca o centro da discussão ex novo, do objeto do processo, em audiência de julgamento.
É nesse plano subsequente, de produção de prova em audiência de julgamento, que, por sua vez, incide com pleno protagonismo o princípio in dúbio pro reo, o qual, quase exclusivamente, tem como finalidade e função o afinamento do grau de probabilidade na mensuração do risco da causalidade adequado a determinar no juízo de prova.
Deve referir-se que a questão da dúvida no processo de produção de prova, é expressamente colocada no ordenamento jurídico civil e processual civil, mas com diversa incidência da do processo penal, por ser diferente o paradigma probatório, assim como a operação de calibrar probabilidades. Desde logo, o regime do art.346º do CC prevê quando instalada a dúvida a “questão é decidida contra a parte onerada com a prova”, por sua vez o disposto no art.414º do CPC estabelece que havendo “dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus de prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”. A dúvida surge igualmente integrado no sistema de presunções de culpa no direito substantivo, como é exemplo paradigmático o disposto no art.506 nº2 do CC.
No processo penal, o princípio in dúbio pro reo, constitui um refinamento do princípio da presunção de inocência, enquanto princípio de prova, dando corpo ao standard da prova em processo penal. Com efeito, a par da probabilidade elevada que a versão da acusação deve merecer da prova produzida, não pode essa probabilidade competir com parâmetros de dúvida atendível que se estabeleçam em hipóteses alternativas. Daí que a dúvida aferirá não apenas o grau de probabilidade da versão da acusação, como o grau de probabilidade das versões alternativas que constam da defesa, e será no jogo dessas probabilidades que os parâmetros de dúvida se podem instalar, ou não.
Em acórdão da Rel.P proferido no processo 285/18.6GAARC.P1 de 12/01/2022 publicado no site do ITIJ por nós relatado, exprimimos “Com efeito, o campo da apelidada prova indireta é muito fértil, enriquecendo a discussão probatória em juízo com a dialética entre a relevância das hipóteses alternativas e a hipótese da acusação, envolvendo a exploração dos factos circunstanciais.
Diversamente, quando a discussão em juízo é iluminada e dominada por prova direta consistente, esta não fomenta, nem permite a ampliação da discussão às hipóteses divergentes (…).
Assim, e desde logo, casos há em que, muito embora a prova produzida seja fortemente sugestiva ou indutora de uma realidade de facto a favor da hipótese da acusação, por si só, essa sugestão não excluí, ou pode não excluir, a importância das hipóteses alternativas de facto. Sobre o que sejam hipóteses alternativas à hipótese da acusação (ou da pronúncia relativa à participação do arguido) e que podem influir na discussão entre a absolvição e a condenação, destacam-se as versões trazidas expressamente pela defesa ou oficiosamente indagadas pelo Tribunal, que, ou excluem de forma absoluta a participação do arguido (elegendo a participação de terceiros, ou simplesmente, colocam o arguido fora do cenário do delito); ou alteram a participação do arguido nos factos (com discussão de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa); ou tornam a conduta do ofendido causal aos danos provocados.
Ainda existem hipóteses alternativas/concorrentes à hipótese da acusação, que sem excluir a autoria dos factos pelo arguido, respeitam a factos que atenuam ou agravam a ilicitude e a culpa da sua conduta, e que versam sobre a motivação do agente, a intervenção da vítima; o tipo de instrumento usado na agressão; as circunstâncias da agressão, coevas ou anteriores.
Como se referiu no citado Ac.RelP de 28/04/2021, caberá mensurar a relevância do grau de plausibilidade das hipóteses alternativas, e, após a produção de prova, aferir se continuam plausíveis, com índice de probabilidade relevante (com importância jurídica na causalidade), caso em que não se dissipam as dúvidas, o que inquinará o juízo condenatório, mesmo que do lado oposto, se mantenha elevada a probabilidade da hipótese da acusação.
Com efeito, uma dúvida relevante pode ter assento numa hipótese divergente dotada de alguma probabilidade ainda que reduzida, mas mantendo-se plausível, continua a inviabilizar o sucesso da probabilidade da hipótese da acusação que se mantem elevada e sustentada por vários meios de prova.
Cabe também precisar a relação que existe entre a hipótese da acusação de probabilidade elevada e as hipóteses divergentes. Como são hipóteses mutuamente excludentes, não sendo complementares, as suas probabilidades não se somam para atingir o universo de 100%, pois estão em histórias paralelas do acontecer histórico que se discute (ou seja, a probabilidade de cada hipótese afere-se na situação da vida em que se insere, ponderada segundo as regras da experiência comum).
Daí que, num caso em que a hipótese da acusação assume uma probabilidade elevada (v.g., com cerca de 80% de possibilidades dessa versão ter acontecido, no universo de possibilidades), podem bem existir, no mesmo caso, outras duas hipóteses divergentes contrárias à tese da acusação, que à partida assumam, uma expetável probabilidade de 30% e uma outra 40%, sendo que, depois da produção de prova podem ser encontrados os mais diferentes graus de probabilidades, e, como se disse, a soma de todas as hipóteses podem bem exceder os 100%, por se situarem em “aconteceres históricos paralelos” em discussão.
Também se sabe que a tarefa de quantificação de percentagens das probabilidades é problemática, de modo que, na prática, o julgador opera a catalogação gradativa em escalões de probabilidades, do seguinte modo: reduzidas; baixas; moderadas; elevadas e muito elevadas[1]. Sendo que, como se viu, uma probabilidade reduzida, que subsista, pode com suficiência perturbar o juízo de prova, pois “ainda assim será audível, “ruidosa” e perturbadora no seio da harmonia do juízo de prova que pretende se afirmar com uma hipótese de elevada probabilidade”[2].
A probabilidade das hipóteses divergentes que vier a ser achada em audiência, enquanto se situar num grau plausível (de verificação razoável) afetará irremediavelmente a convicção probatória. De notar que a ponderação sobre a plausibilidade das hipóteses alternativas e a verificação do seu quantum de probabilidade não supõe necessariamente a prova sobre a matéria fáctica das mesmas, dado que a relevância sobre a probabilidade de uma hipótese pode manter-se desde que, suscitada oficiosamente ou pela defesa, e desde que os seus pressupostos teóricos se apliquem e moldem à situação em discussão nos autos, criando a dúvida que será aferida pela lógica, em confronto com os restantes factos que se apurem [3]. Ou seja, se a defesa suscitar uma hipótese alternativa, o julgador na ponderação da situação histórica em discussão, considerará os contornos daquela hipótese, podendo-lhe atribuir plausibilidade/probabilidade, apenas com apelo às regras da lógica, mesmo que não ocorra a prova concreta sobre os pressupostos de facto dessa hipótese alternativa, assim se instalando no seu espírito uma dúvida juridicamente relevante (podendo até bastar mera a argumentação lógica, como também, verificar-se a indiciação [que não prova] de alguns desses pressupostos, para que ocorra a dúvida).
De notar que, se a hipótese alternativa suscitada, apenas opera com a lógica (e não com a prova ou indiciação dos seus pressupostos de facto) aplicada aos factos em discussão, então, diferentemente de uma hipótese de factos, será antes uma suposição ou conjetura que opera mais com possibilidades do que com probabilidades. Seja como for, se as possibilidades assumirem uma expressão plausível imposta pelas regras da lógica, que impressionem o julgador, então essas possibilidades ganharão foros de probabilidade, instalando a dúvida. Será a lógica que opera a conversão das possibilidades em probabilidades, o que ocorrerá nos casos em que, um mesmo facto circunstancial do acontecer histórico em discussão, possa simultaneamente ter uma leitura e exegese favorável à hipótese da acusação, mas também à suposição/hipótese alternativa suscitada pela defesa. Sendo nessa ambiguidade que se fixa a dúvida. (…)
Porém, repete-se que, se no decurso da discussão em julgamento, a aferição destas hipóteses divergentes não encontrar plausibilidade aceitável, forma-se a convicção probatória em torno da hipótese da acusação, desde que o índice de probabilidade desta seja elevado.
A afirmação da prova da acusação exige que após a audiência de julgamento a hipótese maioritária exclua as hipóteses alternativas, que desse modo perdem a sua plausibilidade, deixem de ser prováveis. A afirmação da hipótese da acusação de probabilidade maioritária com aquela qualidade (de se tornar exclusiva na explicação dos factos e de excluir as hipóteses alternativas, que assim deixam de ser plausíveis) pode ocorrer, ou não, no decurso da produção de prova.
A discussão deste tema assume particular interesse nos casos limite, em que a probabilidade da hipótese divergente é de grau reduzido, mas com relevo suficiente para firmar a dúvida judiciária, sendo que esta deve prevalecer quando, segundo as regras da experiência comum e da lógica, mesmo com probabilidades reduzidas, é perturbada a consciência do julgador, que no plano constitucional está vinculada ao “standard” da prova em processo penal, só podendo julgar provados os factos da acusação, quando isso implique o afastamento das hipóteses divergentes, afirmando-se a hipótese da acusação como a única exclusiva que explique os factos, estabilidade que deve estabelecer-se na consciência do julgador[4] (relevo agora atribuído).
Portanto, a decisão onde o julgador considere os factos provados só pode ser explicada por critérios racionais, com recurso aos padrões da lógica e às regras da experiência comum (e sobre o relevo e importância das regras da experiência comum, ver o já citado Ac.RelP no processo nº2282/17.0T9MAI.P1 de 28/04/2021) excluindo o relevo marginal probabilístico da hipótese alternativa (o qual não perturba a convicção do julgador), que acaba por assentar exclusivamente na hipótese da acusação/pronúncia.
Não deverá o julgador deixar-se impressionar com o peso excessivo da elevada probabilidade da hipótese da acusação, sobretudo, quando se discute a probabilidade de outras hipóteses.
[12]
No Ac.RelP no processo nº2282/17.0T9MAI.P1 de 28/04/2021 também por nós relatados sustentou-se “A dúvida juridicamente relevante para a absolvição é aquela que, no espírito do julgador, subsiste numa hipótese divergente ainda que o respetivo grau de probabilidade seja mínimo, mas não desprezável, de tal modo que perturba definitivamente a convicção fundada no sucesso da tese da acusação de probabilidade muito elevada.”.
No caso “sub judice” muito embora existam factos apurados que determinam um grau de probabilidade no cometimento dos delitos pela arguida, e que resultam, da relação que outrora manteve com o ex-companheiro CC, e das “singelas” pesquisas com aparente justificação ou contexto (no sistema de contraordenações), cuja legitimação é discutível, não deixam esses acessos da arguida ao sistema, ser sugestivos na tese da acusação, em particular face às suspeitas suscitadas pelo depoimento da ofendida, concretamente desde a participação criminal, acessos que ocorrem num tempo histórico (ano de 2018) em que BB já tinha um relacionamento conflituoso com CC, vindo a culminar no divórcio de ambos no ano de 2019.
Não obstante a suspeita que a ofendida tem sobre o comportamento da arguida (em resultado até de situações que soube do seu ex-marido relacionadas com outras pessoas conhecidas e a arguida, no seu desempenho das funções desta na repartição de finanças), as consultas que esta faz da base de dados, no âmbito das várias hipóteses alternativas, sempre podem traduzir uma normal e típica consulta. Concretamente, tendo a ofendida diversos processos de execução fiscal e processos de contraordenação a correr termos, alguns dos quais estavam pendentes em Maio e Agosto de 2018, e tendo a sua contabilista a sua password (desconhecendo a ofendida se a contabilista pediu, ou não, informações às finanças), sendo que os contactos telefónicos não ficam registados, e não se encontrando elementos atípicos nessas duas consultas (descritas nos pontos 19 a 28 dos factos provados), as mesmas podem bem, derivar de um contacto designadamente da contabilista, assim como de um pedido de informação formulado pela contribuinte ou por alguma entidade oficial (tribunal, agente de execução). Depois, o facto da sede do domicílio fiscal da ofendida ser diversa da repartição onde a arguida labora, é facto irrelevante dado não existirem regras de competência territorial no atendimento fiscal dos contribuintes.
Portanto, subsistem hipóteses alternativas à tese da acusação, e que radicam na circunstância da contabilista da queixosa ter a password da mesma, assim como o curso de processos de contraordenações podem motivar contactos de outras entidades. E ante a possibilidade desses contactos com a repartição de finanças, as pesquisas feitas pela arguida podem ter uma normal justificação.
É plenamente plausível que a ofendida se recorde não ter ido às finanças ao tempo dos factos, mas no âmbito das suspeitas que a ofendida suscita, o seu depoimento acaba por enfermar de várias contradições e incorreções, umas relacionadas com o tempo em que cessou a relação com o ex-marido, e outra com a inexistência de processos a correr termos contra si, não se confirmando nenhuma destas realidades. Deste modo, permanecendo um plano de dúvida suficientemente razoável, e apesar de serem relevantes (mas não elevadas) as probabilidades da arguida haver cometido os delitos, a dúvida subsistente não permite a condenação, em obediência ao Standard qualificado da prova em processo penal, devendo, por isso, improceder as conclusões do recurso, com confirmação do douto acórdão.

DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo-se o douto acórdão do Tribunal a quo nos seus precisos termos.

Notifique.

Sumário.
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Porto, 10 de Maio de 2023.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
Pedro Afonso Lucas
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[1] 1 Cfr. documentos de fls. 101, 102, 104 a 105, 287, 288 e 296.
[2] 2 Altura em que a aqui ofendida BB “lhe pôs as malas à porta”, segundo relatou.
3 Pagamento do IMI relativo a um imóvel onde estava instalada uma Loja pertença de sua mãe
[3] 8 Explicou que o sistema VIC, para além dos dados identificativos do contribuinte, contém toda a informação abrangente acerca do contribuinte, necessária para se ter um panorama geral da situação de cada contribuinte perante a AT.
[4] 9 Cerca de 15 a 20% dos contribuintes que a ele recorrem não estão ali fiscalmente domiciliados, conforme referiu.
10 Afirmou que este é o segundo ou terceiro Serviço de Finanças com mais afluência a nível nacional dada a sua localização.
11 A 18 de Maio e 31 de Agosto de 2018.
12 Ao contrário de várias outras pesquisas efectuadas pela arguida em que consta que o foram no âmbito do atendimento ao público.
[5] 13 Este, inclusivamente, em atendimento ao público.
14 Cfr., a título de exemplo, as pesquisas efectuadas a 17/05/2018.
15 Como nome, morada, estado civil, etc.
16 O princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
[6] 17 Com as alterações introduzidas no referido diploma legal pela Lei nº79/2021, de 24/11, a punição constante do nº4 do artigo 6º passou a constar do seu nº5, mantendo-se incólume a respectiva previsão e moldura penal abstracta. O seu nº1 manteve a redacção original.
18 Proferido no Proc. nº19/19.8CBRG.G1 e relatado pelo Sr. Desembargador Dr. Paulo Serafim, disponível in www.dgsi.pt
19 Proferido no Proc. nº 5481/11.4TDLSB.L1-3 e consultável no mesmo site. crime de acesso ilegítimo veio, no essencial cobrir a área do que se vem denominando de “hacking informático”.
[7] 20 Cfr., neste sentido, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.01.2014, processo nº 1170/09.8JAPRT.P2; os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.02.2016, processo nº 2119/11.3TALRA.C2, e de 15/10/2008, processo nº 108/09.7XCLSB-3, e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.04.2018, processo nº 108/09.7XCLSB-3, todos disponíveis no referido site.
21 Cfr. previsão do nº3 do artigo 6º, à data dos factos, a que corresponde agora a alínea a) do nº4 do mesmo artigo.
22 Cfr. previsão da alínea a) do nº4 do artigo 6º, à data dos factos, a que corresponde agora a alínea a) do nº5 do mesmo artigo.
23 Cfr. previsão da alínea b) do nº4 do artigo 6º, à data dos factos, a que corresponde actualmente a alínea b) do nº5 do mesmo artigo.
24 Cfr. o já citado acórdão do TRL de 07/05/2018.
[8] 25 Em vigor à data dos factos em apreciação nestes autos e, entretanto, revogada pela Lei nº58/2019, de 8 de Agosto.
26 O artigo 10º do RGPD, sob a epígrafe “Dever de Sigilo e de Confidencialidade”, dispõe que: “1 - De acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 38.º do RGPD, o encarregado de proteção de dados está obrigado a um dever de sigilo profissional em tudo o que diga respeito ao exercício dessas funções, que se mantém após o termo das funções que lhes deram origem. 2 - O encarregado de proteção de dados, bem como os responsáveis pelo tratamento de dados, incluindo os subcontratantes, e todas as pessoas que intervenham em qualquer operação de tratamento de dados, estão obrigados a um dever de confidencialidade que acresce aos deveres de sigilo profissional previsto na lei.”
[9] 27 Na obra “Formas Especiais do Crime”, editora UCE.
[10] Neste sentido ver Alexandra Vilela in “Considerações Acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal”, págs.33 e 34 a 85, Coimbra, 2005.
[11] Em sentido contrário ver Ac STJ de 11-10-1995 relator Juiz Conselheiro Fernando Magalhães publicado no site do ITIJ, onde se remata com o princípio da verdade material para infirmar a existência de ónus. Contudo, este princípio não invalida ou anula a substância do ónus. A par de toda a atividade do inquérito se centrar na obtenção de indícios de provas, a acusação tem de conter a indicação dos meios de prova, sob pena de nulidade ou de rejeição cfr.art.283º nº3 alínea f) do CPP.
[12] [1] Poderemos assumir as correspondências dos escalões das probabilidades em percentagens, aproximadamente com os seguintes valores de referência, em banda: reduzidas (até 15%), baixas (entre 20% e 35%), moderadas (entre 40% a 65%), elevadas (entre 70º a 84%), muito elevadas (entre 85 a 95%).
[2] Recorda-se que a probabilidade reduzida de uma hipótese alternativa à acusação, situada em 15%, não significa que a hipótese provada dominante da acusação assuma o valor de probabilidade de 85%, como se viu, o jogo entre as hipóteses não é complementar, porque cada uma delas afirma-se em aconteceres históricos alternativos e paralelos, cada um com a lógica própria dessa hipótese.
[3] (…)
[4] No já referido Ac.Rel.P de 29/04/2020 publicado no site do ITIJ, sustentou-se a este respeito que “Esse fenómeno de isolamento da hipótese da acusação, de entre as hipóteses plausíveis em discussão, como a “única” possível, com tendencial exclusão e afastamento dessas hipóteses divergentes, forma o juízo de prova"