Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
159/17.8GFVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: PROCESSO ABREVIADO
PRESSUPOSTOS
PROVAS SIMPLES
PROVAS EVIDENTES
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ERRO
FORMA DE PROCESSO
NULIDADE INSANÁVEL
CONSEQUÊNCIAS
Nº do Documento: RP20180411159/17.8GFVNG.P1
Data do Acordão: 04/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º14/2018, FLS.115-125)
Área Temática: .
Sumário: I - Não se pode ter como verificado o pressuposto processual relativo à aplicação do processo abreviado relativamente à existência de provas simples e evidentes, quando tendo presente os depoimentos das 7 testemunhas, o lapso temporal de 5 anos e a circunstância de os factos terem ocorrido, grande parte no interior da casa de morada de família, e inclusive no quarto e na cama do casal, quando não existem testemunhas presenciais, para além da ofendida, em relação a todos factos concretos imputados ao arguido, não transmitindo, por isso, uma visão uniforme dos acontecimentos.
II - Como tal, o uso da forma de processo abreviado não era admissível e a sua utilização integra a nulidade insanável da alínea f) do artigo 119.º C P Penal, que torna inválida a acusação e os actos posteriores, designadamente o julgamento e a sentença, mantendo-se as medidas de coacção aplicadas ao arguido.
III - A tal não obsta o facto de no despacho que recebeu a acusação se ter declarado inexistirem nulidades, excepções ou questões prévias, dado, por um lado, a sua forma genérica e, por outro, a circunstância de o mesmo ser irrecorrível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª secção criminal
Proc. nº 159/17.8GFVNG.P1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO:
No processo Abreviado nº 159/17.8GFNG.P1, do Juiz 3 do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, o arguido B… foi submetido a julgamento e a final foi proferida sentença de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
Em face do exposto, e sem outras considerações, o Tribunal decide:
1. Absolver o arguido B… da prática de um crime de perseguição, previsto e punido pelo artigo 154º-A do Código Penal.
2. Condenar o arguido B…, pela prática, em autoria material, sob a forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Código Penal e um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, nº 1 e 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, alíneas a) a c), todos do Código Penal, nas penas parcelares de, respectivamente, 3 anos de prisão e 8 meses de prisão e na pena única de 3 anos e 4 meses de prisão.
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Mais se condena o arguido no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC, e nos demais encargos a que a sua actividade deu causa.
(…)
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Inconformado, o arguido B… interpôs recurso, no qual formula as seguintes conclusões:
(…)
Das Nulidades
A) Nulidade de Procedimento Criminal por emprego de processo especial fora dos casos em que a lei prevê a sua admissibilidade
1 O Recorrente não foi detido em flagrante delito e, nos autos, não existe qualquer documento que produza prova quanto à ocorrência do crime ou relativamente à sua autoria, como seja, exemplificativamente, um relatório médico.
2 Assenta a prova produzida nos autos na prestação de testemunho por parte de familiares e amigos da ofendida que não presenciaram os factos ou presenciaram uma ínfima parte dos factos vertidos no libelo acusatório e que, pelo motivo exposto, são susceptiveis de fazer prova indirecta, tão-somente, por presunção da verificação do crime e da sua autoria.
3. É, todavia, de notar, que o tribunal recorrido fez consignar, nas suas doutas motivações, que “o depoimento de C… e o depoimento das restantes testemunhas não foram sempre precisos no tempo e, nalguns pontos, não são O Recorrente foi, porém, julgado e condenado por sentença proferida em procedimento criminal sob a forma de processo abreviado.
4. A prova produzida nos autos – toda ela testemunhal – não assenta em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos pelo que o emprego de forma especial – processo abreviado – não era legalmente admissível à luz do art. 391.º-A do CPP porquanto a prova da ocorrência do crime não era simples e evidente.
5. Estando-lhe vedada a sindicância relativamente à simplicidade e evidência da prova em sede de saneamento do processo (art. 311.º e 391.º-C), quando, em julgamento, detectasse que as testemunhas não eram presenciais, nem prestavam depoimentos coincidentes entre si, o Douto Tribunal Recorrido deveria, imediatamente, ter declarado a nulidade do procedimento criminal por emprego de forma especial, fora dos casos previstos na lei, à luz do art. 119.º, f) do CPP por falta de idoneidade da prova para sustentar a tese acusatória em julgamento sob a forma de processo abreviado.
6. Não o tendo feito, a sentença é nula, por nulidade do procedimento criminal, nulidades que se arguem nos termos dos arts. 119.º, f) e 391.º-A do CPP, nos termos legais.
7. Por conseguinte, deverá ser extraída certidão e enviada ao DIAP para dedução de acusação sob a forma de processo que lhe cabe.

B) Nulidade da Sentença decorrente da condenação por factos diversos dos descritos na acusação fora do caso e condições previstas no art. 358.º, n.º 1 do CPP
9. Por referência aos factos ocorridos no dia 25 de Abril de 2017, vem o arguido acusado de “no hall de entrada do domicílio comum, na presença dos menores, pouco antes do jantar, o arguido travou-se de razões com a companheira sem justificação, agarrou-a pelos braços com força, abanou-a com violência e desferiu chapadas nas mãos e nos braços, tendo a vitima gritado por socorro.” – ponto 24 do libelo acusatório.
10. Por seu turno, e por referência a esse mesmo dia, a sentença julgou provado, no facto 13, que “no dia 25 de Abril de 2017, na casa de morada de família, quando C… tinha o filho mais novo ao colo, o arguido empurrou-a contra a porta da cozinha e apertou-lhe com violência o pescoço” sendo que, no ponto 14, é julgado provado que “instantes mais tarde, no quarto do casal, o arguido agarrou novamente C… pelo pescoço, apertou-o e empurrou-a com violência contra a porta do guarda-vestidos, fazendo embater com a cabeça na porta desse móvel e originando-lhe dores e náuseas. C… gritou por socorro”.
11. Afere-se, todavia, da acta da leitura de sentença, disponível no Citius com a referência 387975268, que “quando eram 15 horas e 00 minutos, pela Meretíssima Juiz de Direito foi declarada reaberta a presente audiência, tendo de seguida procedido à leitura da sentença, o que fez em voz alta.
Logo, todos os presentes foram devidamente notificados e, na falta de qualquer Recurso, foi declarada encerrada a audiência quando eram 15 horas e 17 minutos.”
12. Verifica-se, portanto, que ocorreu uma alteração dos factos vertidos na acusação – por apuramento de novos factos em audiência de julgamento – e que estes factos não foram comunicados ao arguido para que este preparasse defesa, caso essa fosse a sua vontade processual.
13. De facto, o arguido vem acusado de agarrar os braços, abanar violentamente e dar chapadas nas mãos e braços da ofendida e, em resultado do apuramento dos Sendo, em ambos os casos, os factos ilícitos subsumíveis ao mesmo tipo incriminador penal, verifica-se que a alteração dos factos assume a natureza de não substancial.
14. Este apuramento de novos factos e a sua consideração pelo tribunal para efeito de condenação no processo em curso, apesar de admissível, careciam de comunicação ao Recorrente, para que este apresentasse defesa, querendo, à luz do art. 358.º, n.º 1 do CPP.
15. Isto posto, ao conhecer os factos novos decorrentes da alteração operada, fora dos casos em que este conhecimento seria admissível e ao considerar os mesmos para efeito de condenação – por não ter sido dado cumprimento ao disposto no art. 358.º, n.º 1 do CPP e a alteração, quanto a estes apensos, revestir natureza de não substancial – e porque ao arguido não foi comunicada a referida alteração para que preparasse defesa, querendo, o tribunal conheceu e condenou por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e das condições previstos no art. 358.º, n.º 1 do CPP.
16. Ao fazê-lo, o tribunal Recorrido proferiu sentença nula à luz das disposições conjugadas dos arts. 358.º, n.º 1 e 379.º, n.º 1, b), nulidade que se argui nos termos legais.
C) DA CORRECÇÃO DA SENTNÇA OU DA NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA.
18. Em n) da enumeração dos factos não provados, o tribunal recorrido julgou não se ter demonstrado “que o referido em 14 tenha ocorrido no quarto da filha C…”.
19. Ocorre que, do já escrutinado ponto 24 da acusação – onde se descreve a imputação fáctica efectuada relativamente ao dia 25 de Abril de 2017 – o arguido vem acusado de “no hall de entrada do domicilio comum, na presença dos menores, pouco antes do jantar, o arguido travou-se de razões com a companheira (…)”
20. Tendo, no ponto 14 da enumeração da matéria de facto provada, sido julgado que o arguido, no dia 25 de Abril, “no quarto do casal” apertou o pescoço da ofendida contra a porta do guarda-vestidos.
21. Parece resultar do confronto entre o teor dos factos vertidos na douta acusação proferida (ponto 24) e o teor da enumeração dos factos não provados [alínea n)] que a sentença proferida pelo douto tribunal “a quo” contém um erro de escrita posto que, de facto, resulta não se ter feito prova que o referido em 14 tenha ocorrido no hall de entrada pois este era, de facto, o local onde o arguido estava a cometer factos ilícitos típicos contra a ofendida.
22. Porque a sentença parece, nestes termos, conter um erro de escrita, o Recorrente desde já requer a sua rectificação posto que, na matéria de facto não provada – e por força do princípio da vinculação temática – apenas devem ser enumerados os factos constantes da acusação deduzida e que não hajam sido objecto de prova.
23. Caso assim não se entenda, desde já se argui a nulidade de sentença por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, alínea C) e 374.º, n.º 2 do CPP na medida em que o tribunal não se podia pronunciar pela circunstancia do facto provado descrito em 14 não ter ocorrido no quarto da filha C… posto que, não só não vinha acusado de cometer os factos pelos quais, neste ponto da enumeração veio condenado como, não vinha acusado de ter cometido qualquer facto ilícito típico naquele local mas, outrossim, no “hall de entrada” da casa de morada de família.
D) DA CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO OU ENTRE FUNDAMENTAÇÃO E DECISÃO, A QUE ALUDE O ARTº 410º, Nº 2 DO CPP.
24. No ponto 37 da factualidade julgada relevante para a decisão da causa, o Tribunal recorrido julgou provado que o Recorrente “vive sozinho em casa arrendada. Está com os filhos ao fim-de-semana, com quem mantém relação de proximidade e afectividade”.
25. Por seu turno, constata-se do teor da fundamentação da decisão de facto que “finalmente, (a ofendida) referiu que neste momento vive com a mãe, que está a ter acompanhamento psicológico e que apenas se encontra com o arguido para entregarem os meninos, sendo que aquele é “um pai exemplar”.”
26. Por outro lado, e após julgar provado que “em data não apurada mas entre Abril de 2017 e 24 de Maio de 2017, no domicilio comum, o arguido desferiu uma pancada com força na coxa esquerda do filho mais novo, D…, que não conseguia adormecer, originando-lhe vermelhão intenso com a marca da sua mão e dores”, o Tribunal “a quo” julga como provado o elemento volitivo, concretamente que, “ao actuar da forma descrita, o arguido agiu ainda livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que lesionava corporalmente o filho mais novo e desejando aquele resultado.”
27. Bem assim, julgou provado ter o Recorrente agido “ciente da sua superioridade física e de que o filho era pessoa indefesa por via da idade, o arguido agiu deliberadamente com frieza, sabendo impossibilitar-lhe qualquer reacção de defesa”, o que fez sendo conhecedor da ilicitude penal, de forma voluntária e consciente.
28. Como, para os comuns cidadãos em geral, e em particular para o Recorrente, à luz das regras da experiencia comum, um “pai exemplar” que mantém com os filhos uma “relação de proximidade e afectividade” não lesiona nem deseja lesionar corporalmente um filho, ou pelo menos, não o faz com deliberada frieza, procurando explorar a sua especial vulnerabilidade no que respeita a reacção de defesa, parece que a sentença proferida padece do vicio de contradição entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, porquanto, parece que essa contradição, apenas em julgamento, poderá ser esclarecida pelas pessoas que a geraram.
29. Sendo que tal vício, que resulta do texto da decisão proferida, está previsto no art. 410.º, n.º 2, b) do CPP, o Recorrente desde já apela a V. Exas. que conheçam acerca da sua verificação.
E) DA MEDIDA DA PENA E MODO DA SUA EXECUÇÃO
30. Verificando-se a ocorrência dos factos ilícitos descritos na enumeração da matéria de facto provada, afigura-se ao recorrente que a medida da pena parcelar aplicada pela prática do crime de violência doméstica, não merece qualquer reparo.
31. Por outro lado, atestando-se a ocorrência do crime de ofensas à integridade física qualificada, o qual é punido com pena de prisão até 4 anos, tão-pouco será merecedora de reparo a pena de 8 meses de prisão, concretamente aplicada ao recorrente.
32. Assim, e tomando em consideração a factualidade típica apurada nos autos e a personalidade do agente – que denota um afastamento do dever-ser jurídico-penal – o tribunal recorrido, em cumulo, determinou a aplicação de uma pena única de três anos e quatro meses de prisão.
33. Na determinação da pena única a aplicar, em cúmulo, deverão ser consideradas, não apenas, as elevadas necessidades de prevenção geral que, nos dias que correm, se encontram, mais do que nunca, associadas ao crime de violência doméstica, mas também as efectivas necessidades de reintegração social do agente do crime.
34. Em concreto, o Recorrente encontra-se bem inserido laboralmente (trabalhou ao abrigo de um contrato de trabalho dependente até 2014, ao longo de mais de dez anos e, dessa área em diante, como comercial).
35. Está bem inserido do ponto de vista social mas também do ponto de vista familiar, nomeadamente com o seu núcleo familiar de origem, com o qual resultou provado ter “adequados níveis relacionais e dinâmica familiar equilibrada”.
36. Mas também, e acima de tudo, com os seus filhos, com os quais está ao “fim-de-semana” e “com quem mantém relação de proximidade e afetividade” tendo, aliás, sido descrito pela própria vitima como “pai exemplar”.
37. Mas ainda porque, e ao nível das consequências dos factos ilícitos apurados, parece resultar ter-se produzido, por duas ocasiões, hematomas que não careceram de cuidados médicos,
38. Pugna o Recorrente perante V. Exas. que determinem a aplicação de uma pena única mais próxima do limiar mínimo da moldura penal do cúmulo jurídico, os três anos de prisão, revogando, assim, a sentença proferida posto que as necessidades de prevenção especial apontam nesse sentido.
39. Em face da inserção social, profissional e familiar do Recorrente, mas também porque, não obstante a idêntica natureza do crime pelo qual já havia sido condenado, na realidade anteriormente, foi condenado por ter batido – num certo e determinado dia – no filho da companheira sendo que, desta feita, a condenação assenta, efectivamente em actos distintos (ainda que subsumíveis ao mesmo tipo legal), como sejam abanões, apertões, injurias e um murro na face da pessoa da sua companheira, requer a V. Exas. que se dignem a revogar a sentença recorrida substituindo-a por decisão que determine a suspensão de execução da pena mediante a obrigação de frequentar acções de prevenção contra actos de violência doméstica e consciencialização da sua gravidade.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. Mui Doutamente suprirão, concedendo provimento ao presente recurso nos termos no mesmo expostos, far-se-á
(…)

A Magistrada do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso ainda que com a correcção da alínea n) da matéria de facto não provada.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP o arguido respondeu e em síntese reafirmando o teor da motivação e pugnando pelo provimento do recurso..
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Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido e C… iniciaram um relacionamento amoroso com comunhão de mesa e cama no final do ano de 2011.
2. Da união do casal nasceram E…, a 14 de Janeiro de 2013 e D…, a 10 de Agosto de 2015.
3. O casal fixou a sua residência na Rua …, nº …, …, Vila Nova de Gaia, aí vivendo na companhia dos filhos e ainda de F…, nascida a 11 de Dezembro de 2003, filha de C….
4. Após o início da união, no início do ano de 2012, quase diariamente, o arguido exigia que C… permanecesse em determinadas divisões da casa de morada de família para usufruir da companhia dela, contra o desejo da mesma, dizendo-lhe em caso de recusa: «Não tens tempo para mim. Não queres falar comigo porque tens outros. Já não gostas de mim. Andas com a cona aos saltos para os outros. Já não me desejas».
5. No decurso do mês de Novembro de 2012, na residência do casal, quando C… se encontrava grávida de sete meses, e, entre outros motivos, por esta não querer aceder à pretensão do arguido em manter relações sexuais, os dois iniciaram uma discussão, sendo que quando C… manifestou a pretensão de abandonar a casa de morada de família, o arguido apoderou-se do telemóvel da companheira e não a deixou sair de casa, dizendo: «Grávida de um filho meu não vais a lado nenhum».
6. Ainda no âmbito da mesma discussão, e depois de C… lhe ter chamado corno, o arguido desferiu-lhe um soco na face, originando-lhe um hematoma visível.
7. Entre o final do ano de 2014 e o início do ano de 2015, quando C… se encontrava no início do período de gravidez do segundo filho do casal, no Hospital G…, no decurso de uma consulta de ginecologia, porque aquela declarou contra a vontade do arguido que não pretendia interromper a gravidez em curso, este apertou com força a sua coxa por baixo da secretária do gabinete médico.
8. Em 2015, no decurso do último trimestre de gravidez de C…, na casa de ambos, na sequência de uma discussão, e depois de C… o ter empurrado com força, o arguido desferiu-lhe um pontapé nas costas, atingindo-a na zona dos rins e provocando a sua queda para cima do filho E…, que se encontrava deitado na cama, originando àquela fortes dores.
9. Em data não apurada mas após Agosto de 2015, na casa de ambos, o arguido desferiu uma pancada com a sua mão direita na mão esquerda de C…, originando a esta última um hematoma no polegar esquerdo.
10. Após Agosto de 2015 e pelo menos até 23 de Maio de 2017, com frequência, na residência do casal e na presença dos menores, o arguido dirigiu-se a C… chamando-lhe «Filha da puta. Deficiente. Otária» e apertou-lhe o pescoço.
11. No decurso do período de Verão de 2016, no estabelecimento denominado H… sito em Matosinhos, o arguido apertou com violência o braço de C… porque a mesma manifestou desagrado à compra de um aquário.
12. Em data não apurada mas entre Abril de 2017 e 24 de Maio de 2017, no domicílio comum, o arguido desferiu uma pancada com força na coxa esquerda do filho mais novo, D…, que não conseguia adormecer, originando-lhe vermelhão intenso com a marca da sua mão e dores.
13. No dia 25 de Abril de 2017, na casa de morada de família, quando C… tinha o filho mais novo ao colo, o arguido empurrou-a contra a porta da cozinha e apertou-lhe com violência o pescoço.
14. Instantes mais tarde, no quarto do casal, o arguido agarrou novamente C… pelo pescoço, apertou-o e empurrou-a com violência contra a porta do guarda-vestidos, fazendo embater com cabeça na porta desse móvel e originando-lhe dores e náuseas. C… gritou por socorro.
15. Nas mesmas circunstâncias apelidou-a de «filha da puta, otária de merda, deficiente, puta».
16. No dia 1 de Maio de 2017, na residência do casal, o arguido apertou novamente o pescoço de C….
17. Em data não apurada mas entre Abril de 2017 e 24 de Maio de 2017, quando C… não conseguia acalmar o filho D…, o arguido agarrou a criança dos braços da mãe e abanou o mesmo com violência, agudizando o choro da criança.
18. C… decidiu pôr termo ao relacionamento que mantinha com o arguido a 24 de Maio de 2017.
19. A partir dessa data e pelo menos até 31 de Julho de 2017, o arguido, que não se conformou com tal decisão, tentou por diversas vezes contactar e falar com C… a fim de reatar o aludido relacionamento, ao que esta não anuiu, reacção que o arguido não acatou.
20. Na sequência dos factos supra descritos foram emitidos mandados de detenção fora de flagrante e o arguido foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido a 7 de Junho de 2017.
21. Na diligência em causa foi decidido que o arguido aguardaria os ulteriores termos do processo “em liberdade, mediante termo de identidade residência, já prestado cumulativamente com a obrigação de afastamento da residência da ofendida e de proibição de a contactar por qualquer meio e em qualquer lugar, tudo fiscalizado por meios de controlo à distância e ainda proibição de adquirir ou a qualquer título conservar arma de fogo ou armas brancas ou de outro tipo - art.ºs 191.º a 193.º, 194.º, 196.º e 204.º, al. c), todos do CPPenal e do art.º 31, n.º 1, als. a), c) e d) e n.º 2, e 36.º/1 e 3 da Lei 112/2009 de 16/09”, do que o arguido ficou bem ciente.
22. Não obstante, entre 7 de Junho de 2017 e pelo menos até 31 de Julho de 2017, diariamente, pese embora estivesse proibido judicialmente de o fazer e ciente do desagrado de C…, o arguido realizou várias comunicações telefónicas para o telemóvel que sabia estar atribuído àquela (………) e consultou as redes sociais Messenger, Facebook, Instagram da mesma.
23. No dia 14 de Junho de 2017, pelas 9h15m, o arguido esperou por C… à porta do infantário do filho mais novo do casal, sito na Rua …, …, a fim de com ela contactar.
24. Pouco depois, após C… ter entregado o seu filho ao cuidado de terceiros e quando se deslocava para o veículo no qual se havia feito transportar, foi abordada pelo arguido que se dirigiu a ela, dizendo-lhe: «Preciso de falar contigo urgentemente. Sabes que posso ir preso só por estar aqui. Estou a sofrer muito. Amo-te muito».
25. Acto contínuo, C… introduziu-se no interior da sua viatura, informou o arguido de que iria contactar as autoridades policiais e abandonou o local.
26. No dia 10 de Julho de 2017, pelas 00h40, o arguido remeteu varias sms para o nº ……… que sabia atribuído a C…, anunciando-lhe «Tenho muitas saudades. Amo-te… não será fácil mais eu vou à luta por ti, pelo nossos filhotes, pela nossa família e um dia se Deus quiser tu voltarás a reparar em mim».
27. No dia 13 de Julho de 2017, depois das 22h00, o arguido realizou de forma insistente dezenas de comunicações para o telemóvel de C…, as quais não foram por esta atendidas.
28. No dia 29 de Julho de 2017, pelas 21h00, o arguido vigiou as movimentações de C… e apercebeu-se que a mesma se deslocou até ao restaurante I…, em …, Vila Nova de Gaia.
29. No mesmo dia, pelas 23h00, quando C… e um amigo saíram do aludido estabelecimento, foram abordados pelo arguido na via publica que anunciou: «Foi por este gajo que me trocaste? Por este filho da puta? Eu vi-te na baixa ontem e tirei-te logo a pinta. Andas a mandar para a veia e vens para aqui?», dizendo ainda a C… que se matava.
30. Por via das agressões físicas sofridas e maus-tratos psíquicos, C… sofreu angústia, instabilidade, ansiedade, vergonha e agitação.
31. Com tal conduta, o arguido vinha tratando de forma cruel C…, sabendo que com ela estava a manter uma vida de casal, agindo com o propósito concretizado de molestar física e psiquicamente a mesma, quer ofendendo a sua honra e consideração, quer o seu corpo e a sua saúde.
32. Ao actuar da forma acima descrita, o arguido agiu ainda livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que lesionava corporalmente o filho mais novo e desejando aquele resultado.
33. Ao agir da forma relatada, ciente da sua superioridade física e de que o filho era pessoa indefesa por via da idade, o arguido agiu deliberadamente com frieza, bem sabendo que iria impossibilitar àquele qualquer reacção de defesa.
34. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e que, por isso, incorria em responsabilidade criminal.
35. O arguido é oriundo de um agregado familiar de condição modesta, relativamente ao qual foram referidos adequados níveis relacionais e dinâmica familiar equilibrada.
36. Manteve percurso profissional mais ou menos estável, tendo trabalho numa empresa de segurança e dedicando-se actualmente ao sector comercial.
37. Vive sozinho em casa arrendada. Está com os filhos ao fim-de-semana, sendo descrito pela mãe dos menores como “pai exemplar”.
38. Apesar de reconhecer alguns comportamentos menos positivos da sua parte na relação que manteve com C…, assume um discurso de relativização e desculpabilização dos factos, demonstrando vontade de reorganizar a sua vida com aquela.
39. O arguido foi condenado, em 24.01.2012 (por sentença transitada em julgado em 23.02.2012), no Tribunal Judicial de Matosinhos, pela prática, em Julho de 2010, de um crime de violência doméstica (contra menores), na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e 6 meses.
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Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a causa, designadamente que:
a) após o início da união com a ofendida, no início do ano de 2012, o arguido adoptou uma atitude agressiva para com a companheira por via da ingestão excessiva de bebidas alcoólicas e por ciúmes exacerbados que nutria da vítima;
b) por via disso, a partir do início do ano de 2012 e pelo menos até 24 de Maio de 2017, o arguido controlou de forma regular e habituais as movimentações da companheira, impediu-a de se relacionar livremente com terceiros, consultou assiduamente as comunicações recebidas e efectuadas no telemóvel da vítima e inspeccionou as contas das redes sociais Facebook, Messenger e Instagram da lesada com regularidade, privando-a dessa forma de qualquer tipo de intimidade;
c) no período acima assinalado, na sequência das discussões que travavam, o denunciado ainda impediu pelo menos numa dúzia de ocasiões a lesada de sair livremente da casa de morada de família, apoderando-se das chaves da casa e das chaves do veículo da vítima e fechando as portas da residência à chave;
d) nas circunstâncias referidas em 4 o arguido dissesse a C… “queres ir para a cama com outros”;
e) o referido em 10 tenha acontecido a partir do início do ano de 2012 e que o arguido também dissesse: «Mato-te. Qualquer dia mato-te. Dou-te um tiro. Esgano-te»;
f) entre o início de 2012 e Maio de 2017, a vítima manifestou algumas vezes desejo de se separar do arguido, ao que este último anunciou nessas ocasiões: «Mato-me» a fim de demover a lesada dos seus intentos;
g) durante essa mesma temporada, na casa de morada de família, o arguido também obrigou por diversas vezes em cada ano a lesada a manter relações de cópula completa com ele contra o desejo da mesma, dizendo de forma insistente a esta ultima quando a mesma a tal se recusava: «Puta. Só queres comer gajos. Não gostas de mim, mas dos outros e de ir para a cama com eles. Já não tens interesse sexual por mim. Diz que me amas, que sou o melhor homem que tiveste na cama».
h) nesse mesmo período, no domicílio comum e na presença dos menores, o denunciado agrediu com frequência pelo menos mensal a companheira com murros, pontapés e bofetadas em várias partes do corpo e com puxões de cabelos e apertou-lhe os braços e o pescoço com violência, lesionando a vítima;
i) nas circunstâncias referidas em 5 e 6 o soco desferido o tenha sido no lado esquerdo da face da ofendida, que o arguido a tenha apelidado de «puta» e que lhe tenha dito «Só queres comer gajos. Não gostas de mim, mas dos outros e de ir para a cama com eles. Já não tens interesse sexual por mim»;
j) no dia seguinte, quando a vitima se refugiou em casa dos pais da mesma, o arguido anunciou-lhe: «Se não mudares de ideias, mato-me»;
k) nas circunstâncias referidas em 7, quando saíram das instalações do aludido Hospital, o arguido disse à vítima: «Filha da Puta. Otária de merda. Deficiente. Atrasada mental»;
l) no ano de 2015, no decurso do período de gravidez do segundo filho, o arguido impediu ainda a lesada de sair com a mãe da vítima e com F…, anunciando-lhe em tom agressivo: «Com um filho meu na barriga não vais a lado nenhum», enquanto empurrou cadeiras com violência no interior do domicílio comum;
m) o referido em 8 tenha ocorrido porque o arguido ficou irritado com o filho mais velho que chorava;
n) o referido em 14 tenha ocorrido no quarto da filha de C…;
o) o referido em 9 tenha ocorrido entre finais do ano de 2016 e início do ano de 2017;
p) no dia 25 de Abril de 2017 o arguido tenha abanado C… com violência e lhe tenha desferido chapadas nas mãos e nos braços;
q) no dia 1 de Maio de 2017, na cozinha do domicílio comum, o arguido travou-se de razoes com a companheira sem justificação, impediu-a de contactar os filhos que se encontravam no quarto e empurrou-a com violência quando a mesma estava a alcançar o quarto do casal, provocando a queda da mesma para a cama do casal;
r) no mesmo dia o arguido lhe tenha desferido várias chapadas nos braços e, já depois da mesma se ter levantado, empurrou-a contra a ombreira da porta do quarto;
s) entre 7 de Junho de 2017 e pelo menos até 31 de Julho de 2017, diariamente, por não aceitar a separação e não obstante o desagrado da vítima, o arguido passou a seguir quase diariamente a ofendida em diversos locais do Concelho de Vila Nova de Gaia e a procurar a mesma na residência desta última, a fim de controlar as movimentações da lesada e de indagar se a mesma mantinha um relacionamento amoroso com outra pessoa;
t) nas circunstâncias referidas em 29 o arguido tenha dito a C… «Querias sexo, então anda ter comigo. Não precisas de outros homens. Vens ter comigo e ninguém sabe. Queres que eu me mate? É isso que queres que eu faça? Se continuas com isto é mesmo isso que faço. Ainda no outro dia estive aqui nas rochas para me matar»; ao proceder com a conduta descrita de forma reiterada depois de ter sido sujeito a interrogatório judicial de arguido detido, o arguido procurou perturbar o equilíbrio emocional da ofendida C… e amedrontá-la, bem sabendo que a sua conduta era idónea a provocar-lhe medo ou receio pela sua integridade física ou até pela sua vida e a coarctar-lhe a sua liberdade de movimentos
(…)
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, as questões submetidas à decisão deste tribunal são as seguintes:
Saber se o procedimento criminal é nulo nos termos estabelecidos no artº 119º nº1 al f) do CPP, em virtude de ter sido empregue uma forma de processo especial fora dos casos previstos ma lei.
Saber e a sentença é nula nos termos do artº 379º nº1 b) do CPP por ter condenado por factos distintos dos que constavam da acusação sem ter sido dado cumprimento ao disposto no artº 358º nº1 do CPP.
Saber se a sentença deve ser corrigida nos termos do artº 380º nº 1 al.b), do CPP quanto à matéria da alínea n) dos factos não provados, ou “caso assim não se entenda” se a sentença é nula por violação do artº 374º nº2 e 379º nº1 al.c) do CPP por se ter pronunciado por questões sobre as quais não se podia ter pronunciado.
Se existe contradição insanável de fundamentação ou entre fundamentação e decisão, nos termos do artº 41º nº2 do CPP.
Se a pena única fixada, devia ter sido fixada mais próximo do limiar mínimo dos três asnos de prisão;
Se a pena deve ser suspensa na sua execução mediante a obrigação de frequentar acções de prevenção contra actos de violência doméstica e consciencialização da sua gravidade.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
Nos presentes autos O MP requereu o julgamento do arguido em Tribunal Singular nos termos do disposto no nº3 do art. 16º do Código de Processo Penal e em processo Abreviado nos termos do artº 391º A do CPP pela prática dos seguintes crimes:
Um crime de violência doméstica, p.p. pelo artº 152º, nºs 1 al..b),2 do Código Penal;
Um crime de perseguição, p.p. no art.153-A, do Cód.Penal (na redacção dada pela Lei 83/2015 de 3 de Agosto);
Um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelos arts.143º nº1, e 145º nº1, al.a) e nº2, do Cód.Penal, por referência ao artº 132º, nº2 als.a) e c) todos do Cód.Penal.
Comecemos então por apreciar se como alega o recorrente “.O procedimento criminal é nulo nos termos estabelecidos no artº 119º nº1 al f) do CPP, em virtude de ter sido empregue uma forma de processo especial fora dos casos previstos ma lei.”
O artº 119º nº1 al.f) do CPP comina como nulidade insanável “ O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei”.
Tendo os presentes autos seguido a forma de processo Abreviado Importa então definir quais os pressupostos desta forma de processo especial.
Tais pressupostos encontram-se estabelecidos no artº 391º A do CPP preceito que no seu nº1 delimita o emprego do processo abreviado a crimes puníveis com pena de multa ou com pena de prisão não superior a 5 anos ou em caso de concurso de infracções quando MP na acusação entender que não deve ser aplicada , em concreto pena de prisão superior a 5 anos, “havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, em face do auto de notícia ou após realizar inquérito sumário, deduz acusação para julgamento em processo abreviado .” (negrito nosso)
No nº3 do preceito dispõe-se que para efeitos do disposto no nº1, considera-se que há provas simples e evidentes quando:
“.a) O agente tenha sido detido em flagrante delito e o julgamento não puder efectuar-se sob a forma de processo sumário;
b) A prova for essencialmente documental e possa ser recolhida no prazo previsto para a dedução da acusação; ou
c) A prova assentar em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos.”
Uma vez que resulta dos autos que o arguido não foi detido em flagrante delito, e que a prova documental é muito reduzida na relação com os factos denunciados e imputados na acusação, (realça-se a inexistência de elementos clínicos ou exames médico-legais) subjaz apenas apreciar a integração na previsão da alínea c) do nº3 do artº 391ºA. Aliás a não integração nas alíneas a) e b) do preceito revela-se consensual aos sujeitos processuais, MP e arguido, bem evidenciada na resposta do MP, quando aí se escreveu “É inegável que não existe flagrante delito, assim como que a prova não é essencialmente documental (apesar de os autos estarem instruídos com muitos elementos documentais).”
O recorrente alega que a prova produzida nos autos não assenta em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos.
Responde o MP que o juízo sobre a existência de testemunhas presenciais e com versão uniforme “faz-se não depois da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento (…) mas antes aquando da escolha da forma de processo, ou seja com a dedução da acusação.”
Concordamos nesta parte com o MP, o que não significa que no caso dos autos a prova assente em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos.
Conforme resulta dos autos em sede de inquérito, para além da ofendida C…, foram ouvidas as seguintes testemunhas:
F… (filha da ofendida) cf. fls 108-11).
J…, (irmã da ofendida) cf. fls.234-236.
K…, (mãe da ofendida) cf.fls.237,238.
L…, vizinha cf. fls 241
M… ( convive com o casal) cf. fls 245
N… (amigo da ofendida) cf. fls.256
Por sua vez os factos imputados ao arguido na acusação encontram-se situados no período que vai do início do ano de 2012 a pelo menos 24 de Maio de 2017, com a imputação de vários factos ocorridos grande parte no interior da casa de morada de família, e inclusive no quarto de casal e na cama.
Ora, percorridos os depoimentos das testemunhas proferidos em inquérito constata-se que;
A testemunha F… (filha da ofendida) refere que durante os primeiros anos de relacionamento do casal, “passava algumas temporadas em casa da avó materna, fez com que não assistisse a episódios de violência anteriores ao nascimento do segundo irmão”, referindo o primeiro episodio de violência a que assistiu como tendo ocorrido no ano de 2016. Para além disso referiu ter visto a mãe com marca no rosto há cerca de 3/4 anos.
A testemunha J…, irmã da ofendida, referiu um episódio a que assistiu ocorrido “em meados de Junho de 2016”. Referiu também ter visto um hematoma na cara da irmã há cerca de 5 anos, tendo a sua irmã então referido que se tratava de infecção num dente. Para além disso que se apercebeu de várias agressões verbais, a partir da primeira gravidez da irmã.
A testemunha K…, mãe da ofendida referiu-se àquilo que a ofendida e a filha mais velha desta lhe contaram, tendo referido que a filha em “2012, surgiu em casa com um hematoma na face esquerda, própria de ter sido provocada por um soco”.
A testemunha L…, vizinha, referiu ter-se apercebido por diversas vezes de discussões “entre o casal, no entanto, uma vez encontrar-se no interior da sua casa, raramente percebia o teor da mesma” concretizou ter ouvido uma vez a “vítima gritar por socorro e a dizer que queria chamar a polícia”.
A testemunha M… (convive com o casal) disse conhecer o casal há seis anos, convivendo com o mesmo frequentemente e que “nunca assistiu a qualquer agressão física, entre o casal, no entanto já identificou lesões na vítima fruto de agressão”. Referiu também ter assistido a inúmeras discussões entre o casal principalmente originadas por ciúmes, em que o arguido “não se coibia de injuriar a companheira, chamando-a de deficiente e otária.”
Por fim, a testemunha N… (amigo da ofendida) relatou os factos que presenciou no dia 29/7/2017.
Ora tendo presentes os depoimentos prestados pelas testemunhas, e o período temporal dos factos imputados na acusação, e não estando em causa qualquer avaliação da suficiência de indícios, nem da credibilidade a atribuir ao depoimento da ofendida, logo se extrai, e com o devido respeito, que não existem testemunhas presenciais para além da ofendida em relação a todos os concretos factos imputados.
Nessa medida, os respectivos depoimentos não transmitem uma visão uniforme, desde logo porque não presenciaram/visionaram os mesmos acontecimentos. Repare-se que a lei utiliza o adjectivo “uniforme”, isto é “que apresenta uma só forma, que é sempre o mesmo, que não varia”, pelo que não basta a existência de mera concordância ou corroboração.
Aliás, considerando o período de tempo em que decorrem os factos imputados, em que existem duas vítimas, e localizando a acusação a maior parte dos mesmos no interior da casa da residência da família, seria pouco expectável e comum existirem testemunhas presenciais para além da ofendida, o que diga-se, raramente ocorrerá em crimes de violência doméstica.
Mas a lei não fala em testemunha presencial mas sim em testemunhas, e por isso refere-se também a versão uniforme o que implica mais de um depoimento.
A exigência de testemunhas presenciais e com versão uniforme, tem todo o sentido uma vez que como escreve o conselheiro Oliveira Mendes, com o processo abreviado “o legislador visa, pois, a celeridade da justiça penal em casos de criminalidade menos grave, em que o julgamento em processo sumário se mostra inviável ou em que a prova é inequívoca ou evidente e de simples produção.” [1]
Nota-se que precisamente por estar direccionado para casos de pequena criminalidade, e de prova inequívoca ou evidente, no processo abreviado não é admissível uma das fases processuais existentes em processo penal, a instrução, a sentença deverá ser proferida oralmente, salvo excepções previstas na lei, com fundamentação sumária e concisa, sendo o tempo de alegações finais reduzido em conformidade e limitado o direito ao recurso – artigo 389º-A, “ex vi” artigo 391º-F e 391º, nº 1, “ex vi” artigo 391º - G, todos do Código de Processo Penal.
Do que se acabou de dizer entendemos pois não estar verificado no caso dos autos o pressuposto processual constante do artº 391º A do CPP, relativo à existência de provas simples e evidentes.
Como tal o uso da forma de processo Abreviado não era admissível, pelo que a sua utilização integra a nulidade insanável da alínea f) do artº 119º do CPP. Tal nulidade, invocada pelo recorrente que deve ser oficiosamente declarada, cf.artº 119º do CPP, a qual nos termos 122ºnº1 e 3 do CPP torna inválida a acusação e os actos posteriores designadamente o julgamento realizado bem como a sentença recorrida, mantendo-se as medidas de coacção fixadas ao arguido.
Nota-se que a o despacho de fls.379 que recebeu a acusação nos termos do artº 311º nº1 do CPP na parte em que declarou inexistirem nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa, não obsta à declaração da nulidade insanável, dada por um lado a sua forma genérica, e por outro lado a circunstância de o mesmo ser irrecorrível nos termos do artº 391º G ex vi artº 391 º ambos do CPP.
Consequentemente ficam prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso.
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III – DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em no provimento parcial do recurso interposto pelo arguido B… julgar inválida a acusação e os actos posteriores designadamente o julgamento realizado bem como a sentença recorrida, com o consequente regresso dos autos à fase anterior à dedução da acusação, devendo o procedimento ser retomado pelo Ministério Público nos termos legais.
Sem tributação.
Elaborado e revisto pela relatora
Porto, 11/4/2018
Lígia Figueiredo
Neto de Moura
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[1] Código de Processo Penal comentado, Fevereiro 2014, Almedina, pág. 1222.