Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3910/06.8TBSTS-L.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: INCIDENTE
DESOCUPAÇÃO DO LOCADO
BENEFÍCIO DE DIFERIMENTO
INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP202005143910/06.8TBSTS-L.P1
Data do Acordão: 05/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ªSECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A decisão do incidente de diferimento da desocupação do locado para habitação que fixa prazo inferior ao pretendido pelo requerente não é passível de impugnação judicial porque os despachos proferidos no uso de um poder discricionário não admitem recurso (art. 630.º, 1, CPC) e a fixação daquele prazo é confiada legalmente ao prudente arbítrio do tribunal.
II - O benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação, previsto no artigos 150º, nº 5, do CIRE, está previsto para a fase da apreensão de bens para a massa insolvente (para obstar à entrega do bem ao administrador) e não para a fase da liquidação dos bens (para obstar à entrega do bem ao adquirente na venda realizada na liquidação da massa insolvente).
III - Tendo ocorrido a declaração de insolvência há 13 anos e a apreensão dos bens há 10 anos, sido iniciadas as diligências para venda do imóvel há 10 anos e concretizada a venda do bem há 7 anos, período durante o qual a insolvente continuou a usufruir do bem sem pagar qualquer contrapartida, não existe fundamento para diferir a desocupação do bem por mais de 30 dias.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2020:3910.06.8TBSTS.L.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
Em 25-08-2006 B…, entretanto falecido, e C… apresentaram-se à insolvência, vindo a ser declarados insolventes por decisão de 30-11-2006.
Em 29-01-2007 foi realizada assembleia de credores e os autos prosseguiram para liquidação.
Em 27-10-2009 foi junto o auto de apreensão de bens.
Entre os bens apreendidos para a massa conta-se o prédio urbano destinado a habitação, composto por casa de rés-do-chão, primeiro andar e alpendre, com anexo e quintal, sito no Lugar de …, freguesia de …, concelho da Trofa, inscrito na matriz predial sob o nº …. e descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o nº ….
No âmbito da liquidação a Administradora da Insolvência diligenciou de diversas formas desde Outubro de 2009 para a venda do referido imóvel. Entre essas diligências contou-se a venda através de leilão e por abertura de carta fechada que não tiveram sucesso.
Depois de frustrada a venda por valor superior a comissão de credores fixou um valor mínimo para a venda.
Em 07-01-2013, finalmente, o então banco “D…” apresentou uma proposta que foi aceite, tendo o adquirente efectuado o pagamento do preço.
Em 30-09-2016, depois de diversas vicissitudes processuais, foi definitivamente determinada a emissão do título de transmissão a favor do adquirente que o requeria desde a aquisição do bem.
Em 02-11-2018, foi declarada encerrada a liquidação.
Em 24-07-2019, ao abrigo do disposto no artigo 828º do Código de Processo Civil, o E…, S.A. requereu a entrega do imóvel adquirido alegando que até essa data o mesmo não lhe foi entregue continuando a ser ocupado ilegitimamente pelos insolventes.
Em 09-08-2019, os insolventes foram notificados para no prazo de 10 dias desocuparem o imóvel e entregarem a chave à Administradora da Insolvência, sob pena de ser determinada a entrega coerciva do mesmo.
A insolvente veio então requerer a concessão do prazo de mais 30 dias para negociar a aquisição do imóvel com o banco adquirente, alegando que reside nele com a filha viúva e uma neta, tem problemas de saúde de natureza oncológica e a sua filha está interessada em adquirir o imóvel ao banco.
O E… reiterou que face ao tempo decorrida não parecem existir quaisquer possibilidades de a insolvente ou a filha adquirirem o imóvel, pelo que insiste na sua entrega.
Por despacho proferido em 16-09-2019 foi reiterado à insolvente para desocupar o imóvel e entregar a chave à Administradora da Insolvência, sob pena de ser determinada a entrega coerciva do mesmo.
Na mesma data, veio a insolvente requerer o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos artigos 864º e 865 do Código de Processo Civil, por força da remissão operada nos artigos 150º, nº 5, do CIRE e 862º do Código de Processo Civil.
Para o efeito alegou que ela e a sua família, mormente a filha e uma neta menor sempre residiram naquela habitação desde que a mesma foi construída há cerca de 20 anos; que juntamente com a com a sua filha tem tentado encontrar uma solução mas não consegue arranjar outra habitação; que os rendimentos do agregado não ultrapassam os 900,00€ (reforma da insolvente de 670,00€ e 212,00€ de subsidio de viuvez da filha, a qual está de baixa médica há vários meses); que padece de graves doenças e tem cada vez mais despesas como as idas constantes a médicos e medicamentos; que face ao estado de insolvência os proprietários negam-se a celebrar consigo arrendamentos temendo os problemas financeiros da insolvente.
Terminou requerendo «a concessão do diferimento de desocupação do imóvel arrendado, pelo prazo de cinco meses, com base nos fundamentos supra descritos».
O adquirente do imóvel pronunciou-se no sentido do indeferimento do requerido salientando que o adquiriu há cinco anos e meio e durante esse período de tempo nunca teve o imóvel em seu poder ou recebeu qualquer remuneração pela sua ocupação, a qual vem sendo feito ao longo de todo esse tempo de forma totalmente gratuita pela insolvente e pela sua família.
Por fim, em 12-12-2019, foi proferida decisão que determinou que à insolvente para «diligenciar pela entrega do imóvel em causa no prazo máximo de 30 dias, a contar da sua notificação, acertando com a Sra. Administradora da insolvência a data certa para o efeito».

Do assim decidido, a insolvente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1ª. A recorrente não se conforma com a decisão proferida.
2ª. Deveria ter ficado provado que “Apenas através do despacho de 9-8-2019 a insolvente foi interpelada para proceder à desocupação do imóvel”.
3ª. Ao caso dos autos é aplicável o disposto nos artigos 862º, 863º, 864 e 865º do CPC, por força do 150º nº 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
4ª. Ao caso dos autos é aplicável o disposto nos artigo 65º da CRP, sendo que a decisão a que nos referimos viola tal dispositivo.
5ª. O disposto nos artigos 862º, 863º, 864º e 865º do CPC e artigo 65º da CRP merecem interpretação no sentido de ser deferida a desocupação do imóvel pela insolvente por um período de 5 meses.
Não foi apresentada resposta.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se deve ser alargado o prazo de diferimento da entrega da habitação da insolvente vendida no decurso da liquidação.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
A-B… e C… apresentaram-se à insolvência a 25-08-2006, com plano de pagamentos;
B- Os requerentes desistiram do plano e foram declarados insolventes por decisão de 30-11-2006;
C- Na assembleia de credores de 29-01-2007 houve credores a requerer a resolução de alguns negócios – incluindo o referente a imóvel e veículos – tendo a Sra. Administradora da insolvência retirado a proposta de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente a que anteriormente aludira;
D- Os autos seguiram para liquidação após resolução do negócio de compra e venda;
E- Entretanto, faleceu o insolvente, a 15-01-2009;
F- Do apenso de liquidação consta que pelo menos desde Outubro de 2009 que a Sra. Administradora da insolvência está a desenvolver diligências para a venda dos bens, incluindo o imóvel em causa, quer através de leilão, por abertura de carta fechada, tendo sido apresentadas propostas, e sendo que a comissão de credores fixou um valor mínimo para a venda, depois de frustrada a venda por valor superior. Posteriormente, foi apresentada proposta de remição, por valor que não foi aceite, a 31-07-2012;
G- A 07-01-2013, o então “D…” apresentou também proposta, que foi aceite;
H- Porém, porque aquele credor era comum, não foi dispensado do pagamento do preço;
I- A insolvente defendeu que se mantivesse a proposta do referido “D…” com a dispensa do preço, nos termos que constam de fls. 147 e seguintes, a 27-02-2013;
J- A questão da venda do imóvel foi decidida a 10-05-2013;
K- Houve recurso de tal decisão, que foi improcedente, pelo que foi requerido, a 29-11-2013, que fosse emitido o título de transmissão. Houve, ainda, pedido de aclaração;
L- O referido “D…” insistiu pela emissão de título de transmissão e, a 24-02-2014, foi determinada a emissão do título de transmissão, mas a 26-06-2014 foi determinada a suspensão do título. Entretanto, a 30-09-2016, manteve-se a decisão de emissão do título de transmissão;
M- A liquidação foi declarada encerrada a 02-11-2018;
N- A insolvente nasceu a 03-09-1945
O- A insolvente foi operada a carcinoma ductal invasor de grau 3 no dia 02-08-2018, tendo efectuado tumorectomia. Foi realizada radioterapia e quimioterapia, tendo ficado muito debilitada fisicamente, não tendo sido possível continuar a quimioterapia por rejeição. Continuou com radio e quimioterapia oral, que mantém desde então tendo havido agravamento do seu estado geral, físico e mental. É seguida em consultas de neurologia no Hospital F… e de oncologia em G…, podendo ter que realizar novamente quimioterapia;
P-A insolvente aufere mensalmente a quantia de €851,37, sendo €286,78 por velhice e €564,59 de sobrevivência;
Q-Com a insolvente reside uma filha, viúva, que recebe €212,66 de pensão de sobrevivência, e uma neta.
IV. O mérito do recurso:
Entrando na apreciação do mérito do recurso, deve referir-se que a nosso ver existe um motivo relativo à inadmissibilidade do próprio recurso em função do qual a pretensão da ora recorrente não deveria sequer ser apreciada.
O artigo 864.º, n.º 2, do Código de Processo Civil estabelece que o diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos dois fundamentos a seguir elencados na norma.
No caso, uma vez que a decisão recorrida acabou por aceitar diferir no tempo a entrega do bem e apenas não aceitou o prazo de 5 meses requerido pela insolvente, fixando em seu lugar o prazo de 30 dias, o objecto do recurso não é a verificação de qualquer dos pressupostos do diferimento mas somente a duração do prazo do diferimento, ou seja, precisamente aquilo que nos termos da citada norma legal está confiado ao prudente arbítrio do tribunal.
Ora nos termos do artigo 630.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não admitem recurso os despachos de mero expediente e os proferidos no uso legal de um poder discricionário.
Por sua vez, segundo o art.º 152º, nº 2, do Código de Processo Civil, “…consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador”. São despachos em que o julgador não está vinculado a critérios restritos de legalidade, mas sujeito apenas a normas prudenciais, ao seu “prudente arbítrio”.
Como escreveu Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 5º, pág. 252, os despachos discricionários são os que dependem da livre determinação do juiz, da sua iniciativa funcional, sem determinação legal de limites ou condicionalismos. Quando lhe é lícito fazer ou deixar de fazer, quando depende exclusivamente da sua vontade determinar-se num ou noutro sentido. E acrescenta que “a lei que confere poder discricionário é uma norma em branco; a vontade do juiz é que preenche a norma, é que, em cada caso concreto, lhe molda o conteúdo”.
Também Castro Mendes, in Direito Processual Civil – Recursos, Edição AAFDL, 1980, pág. 39 e seg., considerava que existe poder discricionário quando a lei confere ao juiz uma ou mais alternativas de opção, entre as quais o juiz deve escolher em seu prudente arbítrio e em atenção a certo fim geral.
A decisão sobre o prazo a conceder para que a entrega do bem se faça de forma diferida é, a nosso ver, nos termos do próprio artigo 864.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, uma decisão proferida no uso de um poder discricionário e por isso mesmo irrecorrível.
Não se entendendo assim, haverá(ia) que conhecer do mérito do recurso.
A insolvente requereu ao tribunal o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos artigos 864º e 865 do Código de Processo Civil, por força da remissão operada nos artigos 150º, nº 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e 862º do Código de Processo Civil.
Efectivamente o n.º 5 do artigo 150.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelece que «à desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil».
Se bem vimos, à requerente e ao tribunal a quo passou despercebido que esta norma está incluída no preceito daquele diploma que trata da apreensão dos bens para a massa insolvente.
Com efeito, a norma faz parte do título VI relativo à administração e liquidação da massa insolvente, mas mais propriamente do capítulo I relativo às providências conservatórias, distinto do capítulo III que já rege sobre a liquidação propriamente dita.
Nos termos do artigo 149.º que inicia aquele capítulo, uma vez proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente.
O artigo 150.º acrescenta que para efectuar a apreensão o administrador da insolvência deve diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário.
O n.º 4 do preceito acentua que se encontrar dificuldades em tomar conta dos bens, o administrador da insolvência pode requerer a presença de funcionário judicial ou o auxílio da força pública a fim de assegurar a entrega efectiva do bem.
Não é impeditiva da apreensão a aplicação dos n.os 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual se o bem constituir a casa de habitação do executado (por remissão, do insolvente) é ele que deve ser nomeado depositário. O que sucede é que embora continue a poder habitar a casa o executado/insolvente passa a fazê-lo na qualidade de depositário e por isso está obrigado a entregar a casa assim que tal lhe for pedido (artigo 1185.º do Código Civil).
Portanto, quando o n.º 5 do artigo 150.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê a aplicação do disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil à desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente, o seu campo de aplicação é o do momento da realização da apreensão dos bens para a massa insolvente quando o administrador da insolvência pedir a entrega do bem para concretizar essa apreensão.
Ao invés do que está pressuposto no pedido da insolvente, essa disposição legal já não se aplica na fase da liquidação dos bens, isto é, quando a entrega for pedida para fazer a entrega do bem ao adquirente do mesmo na venda realizada na liquidação da massa insolvente e obtenção do produto para distribuir pelos credores.
Com efeito, os bens são sempre vendidos livres de ónus e encargos e o seu adquirente cuja proposta foi aceite e que pagou o preço pelo qual adquiriu o bem tem o direito que o mesmo lhe seja entregue (artigo 1311.º do Código Civil), inexistindo fundamento legal que permita onerar o seu direito de propriedade, adquirido através da compra do bem na liquidação da massa, com o dever de suportar a presença do anterior proprietário do bem que se viu privado coercivamente do seu direito em benefício dos credores.
À liquidação dos bens da massa aplicam-se subsidiariamente as disposições que regulam o processo de execução para pagamento de quantia certa, uma vez que os bens já se mostram apreendidos para a massa e se vai proceder apenas à sua alienação para obtenção do produto da venda que depois irá ser distribuído pelos credores verificados.
Segundo o artigo 827.º do Código de Processo Civil logo que o adquirente do bem vendido mostre ter pago o preço e cumprido as obrigações fiscais inerentes, o bem deve ser-lhe adjudicado e entregue, acompanhado do título de transmissão.
Para obter essa entrega o artigo 828.º do mesmo diploma permite ao adquirente, com base no título de transmissão, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no artigo 861.º, devidamente adaptados.
Em virtude desta remissão para o artigo 861.º, esse pedido de entrega está sujeito ao disposto no respectivo n.º 6. Assim, se o bem a entregar ao adquirente for a casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.os 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes. Os n.os 3 a 5 do artigo 863.º regulam a possibilidade de as diligências executórias serem suspensas quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida da pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.
O artigo 828.º apenas remete para o artigo 861.º, não para a totalidade das disposições que regulam a execução para entrega de coisa certa, designadamente os artigos 862.º, 864.º e 865.º. Por conseguinte, não se lhe aplica o disposto nestes últimos preceitos, não sendo pois possível ao executado, confrontado com o pedido de entrega do bem ao seu adquirente, pedir o diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação por razões sociais imperiosas.
Por esse motivo, tanto quanto se nos afigura, o pedido da insolvência devia ter sido pura e simplesmente indeferido. Apesar disso, como não o foi e o requerido não recorreu da decisão na parte em que admitiu o requerimento da insolvente, iremos prosseguir para a análise do mérito da decisão.
Na hipótese de se entender que a insolvente goza do direito ao diferimento da entrega da habitação apreendida para a massa insolvente e já vendida e que a decisão que fixou o prazo de 30 dias para essa entrega ter lugar é recorrível, vejamos então se esse prazo é o adequado às circunstâncias do caso ou estas justificavam a concessão de um prazo mais dilatado.
As circunstâncias pessoais e económicas da insolvente são naturalmente merecedoras de atenção, em particular do ponto de vista humano, não devendo ser desvalorizadas de modo algum.
Todavia, essas circunstâncias não podem impedir o tribunal de ponderar outros aspectos absolutamente relevantes no caso.
Convém recordar que a declaração de insolvência ocorreu teve lugar em 30-11-2006, isto é, há já 13 anos e meio! A apreensão dos bens, designadamente do imóvel, teve lugar em 27-10-2009, isto é, há já 10 anos e meio! As diligências para venda do imóvel começaram em Outubro de 2009, há mais de 10 anos, vindo essa venda, depois de diversas vicissitudes processuais, a concretizar-se apenas em Janeiro de 2013, há já mais de 7 anos!
Em 30-09-2016 foi definitivamente determinada a emissão do título de transmissão a favor do adquirente que o vinha requerendo desde a aquisição do bem, e em 02-11-2018, foi declarada encerrada a liquidação, tendo o adquirente requerido a entrega do bem em 24-07-2019.
Mesmo que ao longo desse período de tempo a insolvente não tenha sido notificada formalmente para entregar o bem - embora o pedido de entrega seja um acto a praticar pelo administrador da insolvência e do qual não tem de existir comprovativo no processo judicial, não consta da matéria de facto qualquer notificação com essa finalidade e por isso não podemos afirmar que ela teve lugar -, uma vez que se encontrava representada por advogado ela não podia ignorar que o imóvel estava apreendido, que ficou afecto à satisfação dos direitos de crédito dos credores e que teria de ser vendido no processo de insolvência para se obter o respectivo valor de venda para ser distribuído pelos credores.
Apesar de, como já referido, no momento em que foi apreendido para a massa insolvente o bem devesse ser confiado a um fiel depositário que o entregaria ao administrador da insolvência assim que este o pedisse para entregar ao adquirente, a verdade é que a insolvente continuou a usufruir do mesmo sem pagar qualquer contrapartida, designadamente à massa insolvente, durante mais de … 10 anos!
Mesmo que nos atenhamos apenas à data em que foi encerrada a liquidação, momento a partir do qual a insolvente, através do seu mandatário, não podia deixar de saber que não mais tinha qualquer direito sobre o bem imóvel apreendido para a massa, designadamente um direito ou título que lhe permitisse manter o seu gozo e fruição de modo gratuito, a insolvente encontra-se mais de ano e meio a reter um bem que não lhe pertence e sobre o qual não possui qualquer direito de gozo ou fruição.
Em contrapartida, o adquirente do bem encontra-se há mais de sete anos sem poder usufruir ou dispor do bem que adquiriu, sem o preço que pagou pela respectiva aquisição e sem qualquer contrapartida pelo uso que a insolvente vem fazendo.
O período temporal já decorrido é particularmente grande, pelo que o benefício já usufruído pela insolvente, sem qualquer contrapartida financeira, é esmagador, sendo certo que tal como é para si um benefício é para o adquirente um prejuízo considerável.
Nessas condições, conceder à insolvente um prazo mais alargado que os 30 dias concedidos pela decisão recorrida, seria a nosso ver, consentir com um flagrante abuso do direito por parte da insolvente, a qual teve ao longo deste período temporal incompreensivelmente alargado tempo mais que suficiente para acautelar a sua situação e procurar, na medida das suas possibilidades e/ou juntos dos organismos da assistência social, outra solução de habitação, sendo certo que não cabe ao adquirente do bem que pagou o respectivo preço assumir funções de assistência social de que a insolvente certamente necessita.
Por conseguinte, o prazo de 30 dias fixado na decisão recorrida mostra-se estabelecido em conformidade com a correcta avaliação das circunstâncias, não devendo ser alterado.
Uma última nota para sublinhar que no presente recurso cabe somente a reapreciação da decisão recorrida. Por conseguinte, o ora decidido em nada contende com a aplicação da legislação extraordinária que actualmente está em vigor em virtude da situação de pandemia em que nos encontramos, legislação que, se for caso disso, caberá à 1.ª instância interpretar e aplicar aquando da execução material do ora decidido.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
A responsabilidade pelas custas do recurso é da recorrente que, todavia, não suportará custas de partes nem encargos por falta de intervenção processual do recorrido.
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Porto, 14 de Maio de 2020.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 551)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]