Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1023/15.0T9VFR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: SOCIEDADE INSOLVENTE
REPRESENTAÇÃO DE SOCIEDADE
PROCESSO PENAL
ORGÃO SOCIAL
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP201710261023/15.0TVPRT-B.P1
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 53/2017, FLS.199-202)
Área Temática: .
Sumário: São os titulares dos órgãos da sociedade insolvente quem representa a sociedade no processo penal em que é arguida aquela e não o administrador de insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1023/15.0T9VFR-B.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto
IRelatório
Nos autos de processo especial sumaríssimo, em fase de inquérito, que, sob o n.º 1023/15.0 T9VFR, correm termos pela Secção Criminal (J2) da Instância Local de Santa Maria da Feira, Comarca de Aveiro, a digna magistrada do Ministério Público, considerando indiciada a prática pelos arguidos, pessoas individuais, B…, C… e de D…, e ainda “E…, L.da”, pessoa colectiva n.º ………, com sede social na Rua …, …, …, de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, e porque entendeu verificados os respectivos requisitos, requereu a aplicação à sociedade arguida da pena de 400 dias de multa à razão de €10,00 por dia.
Remetidos os autos à distribuição, a Sra. Juiz, além do mais, determinou a notificação dos arguidos nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 396.º, n.os 1, al. b), 2, 3 e 4, e 397.º do Código de Processo Penal, ou seja, para, querendo, deduzirem oposição ao requerimento do Ministério Público.
Além do defensor, a sociedade arguida foi notificada na pessoa de um seu sócio gerente[1].
Os arguidos, pessoas físicas, apresentaram, então, o requerimento reproduzido a fls. 36 pelo qual, além de informarem que a sociedade arguida foi declarada insolvente, afirmam que, a partir dessa declaração, deixaram de ter poderes de representação da mesma, pelo que “não podem aceitar ou deixar de aceitar qualquer pena que lhe for sugerida, devendo, para o efeito, ser notificado o administrador da insolvência”.
Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho (datado de 17.12.2015):
“Os arguidos sócios-gerentes da sociedade arguida vêm aduzir que aquela deverá ser notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 396° do Código de Processo Penal na pessoa do seu Administrador de Insolvência.
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Cumpre apreciar.
Resulta da certidão permanente junta de folhas 395 a 400 que, efectivamente, a sociedade arguida foi declarada insolvente, por sentença transitada em julgado no dia 17 de Junho de 2015.
Todavia, afigura-se não assistir razão aos arguidos.
Na verdade, após a declaração de insolvência, o administrador da insolvência passa, é certo, a representar o devedor, mas tal representação circunscreve-se aos aspectos de carácter patrimonial. Assim, fora do âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência a representação da sociedade caberá ao respectivo gerente.
De facto, como bem se aponta no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6 de Abril de 2014 (publicado no sítio da D.G.S.I.), a propósito da notificação a que alude o n.º 4 do artigo 105.° do RGIT: «a responsabilidade criminal é sempre pessoal e, portanto, radica na actuação física dos representantes sociais das empresas, sendo estes representantes (e não o administrador da insolvência, que devem ser notificados (...)».
Por conseguinte, tratando-se a notificação em apreço, manifestamente, de uma questão de âmbito criminal, nada tendo a ver com a insolvência, mas antes com outros aspectos da vida da sociedade deve aquela notificação ser feita na pessoa do respectivo gerente (cfr., por todos, acórdão da Relação de Coimbra, de 28 de Setembro de 2011, e acórdão da Relação do Porto, de 22 de Junho de 2011, ambos no sitio da D.G.S.I.).
Pelo exposto, indefiro a requerida notificação do administrador de insolvência.
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Não obstante o agora decidido e uma vez que os arguidos nada disseram concretamente quanto à vontade da sociedade arguida que representam, tendo ainda em conta a posição que os mesmos assumiram por si, determino que se proceda à sua notificação, desta feita através de carta simples, com prova de depósito, na morada constante dos termos de identidade e residência, para, em quinze dias, esclarecerem se aceitam a aplicação de sanção em processo especial sumaríssimo à sociedade arguida nos termos propostos pelo Ministério Público”.
Não se conformando com esta decisão, o arguido D… dela recorreu para este Tribunal da Relação, com os fundamentos que explanou na respectiva motivação e que “condensou” nas seguintes “conclusões” (em transcrição integral):
1. “Vem o presente recurso interposto do despacho que indeferiu a notificação do Administrador da Insolvência (requerida pelo arguido/recorrente) para comunicar aos autos, enquanto representante da insolvente, se aceita a aplicação da sanção à sociedade E…, LDA., arguida nos presentes autos, nos termos propostos pelo Ministério Público e concedeu ao arguido/recorrente, na qualidade de ex-administrador da sociedade, prazo para o efeito.

2. Conforme resulta do art. 81° do CIRE, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente os quais passam a competir ao administrador da insolvência.

3. Para além das demais tarefas que lhe são atribuídas ao longo do CIRE, cabe, em especial, ao Administrador da Insolvência preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custas das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente.

4. Compete, assim, ao Administrador de Insolvência o exercido de todos os direitos de carácter patrimonial, a garantia da melhor rentabilidade dos bens apreendidos, bem como o dever de obviar à realização de despesas e a contenção de encargos desnecessários ou que não gerem um retorno.

5. O Administrador de insolvência assume a representação da insolvente para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvente e possam influenciar o seu património, ainda que praticados em sede criminal.

6. O arguido/recorrente foi notificado da proposta de condenação e sanção a aplicar quer a si, quer à sociedade do qual foi administrador, podendo à mesma deduzir oposição.

7. Deduzida ou não oposição, a verdade é que, a pena de multa que venha a ser aplicada mais não é que uma dívida da sociedade insolvente.

8. É certo que se trata de uma questão de âmbito criminal, contudo é uma questão de natureza penal com implicações no processo de insolvência, nomeadamente no património da insolvente que é gerido pelo Administrador nomeado.

9. Pelo que, e ao contrário do decidido no despacho em crise, tal decisão não cabe ao arguido/recorrente, mas antes ao Administrador de Insolvência, em virtude de caberem a este os poderes de representação da sociedade insolvente no que respeita aos presentes autos e concretamente no que respeita à opção de aceitar ou não a pena proposta.

- o despacho em crise viola as disposições conjugadas dos 54°, 55°, 81º n.os 1. 4 e 5 do CIRE.
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Admitido o recurso após deferimento de reclamação de despacho de não admissão (despacho a fls. 481, fls.95 deste apenso) e notificado o Ministério Público (o único sujeito processual por ele afectado), veio este responder à respectiva motivação, defendendo a confirmação do despacho recorrido e, consequentemente, a improcedência do recurso.
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Remetidos os autos ao tribunal de recurso, e já nesta instância, na vista a que alude o artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que, depois de frisar que “a responsabilidade criminal é pessoal e só aos sócios da sociedade mesmo em falência deve ser notificada a proposta de multa” e de sufragar a posição do Ministério Publico no tribunal a quo, pronuncia-se pela confirmação do despacho recorrido.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, com resposta do recorrente a reafirmar o seu ponto de vista.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É, geralmente, aceite que são as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[2] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
A (única) questão a apreciar e decidir consiste em saber quem representa a sociedade comercial declarada insolvente no âmbito do processo penal em que aquela é arguida.
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Para a decisão da questão assim enunciada, importa ter em consideração os seguintes factos e incidências processuais:
1. Por sentença de 16.04.2015, transitada em julgado em 18.05.2015, proferida no processo n.º 1275/15.6 T8OAZ da 2.ª Secção de Comércio (J1) da Instância Central da Comarca de Aveiro, foi a sociedade comercial “E…, L.da” declarada insolvente;

2. Foi judicialmente nomeado administrador da insolvência F…;

3. São sócios e gerentes, de facto e de direito, da referida sociedade B…, C… e de D…;

4. Por despacho de 26.10.2015, proferido nestes autos, por ter considerado que se indiciava a prática de factos que consubstanciam um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, o Ministério Público requereu a aplicação aos referidos B…, C… e de D… a pena de 13 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, sob a condição de pagarem os juros em dívida no montante de €33 942,66, e à sociedade arguida a pena de 400 dias de multa à razão de €10,00 por dia;

5. Remetidos os autos à distribuição como processo sumaríssimo, a Sra. Juiz, além do mais, determinou a notificação dos arguidos nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 396.º, n.os 1, al. b), 2, 3 e 4, e 397.º do Código de Processo Penal, ou seja, para, querendo, deduzirem oposição ao requerimento do Ministério Público;

6. Além do defensor, a sociedade arguida foi notificada na pessoa de um seu sócio gerente[3];

7. Os arguidos, pessoas físicas, apresentaram, então, o requerimento reproduzido a fls. 36 pelo qual, além de informarem que a sociedade arguida foi declarada insolvente, afirmam que, a partir dessa declaração, deixaram de ter poderes de representação da mesma, pelo que “não podem aceitar ou deixar de aceitar qualquer peba que lhe for sugerida, devendo, para o efeito, ser notificado o administrador da insolvência”.

8. Sobre esse requerimento recaiu o despacho datado de 17.12.2015, supra reproduzido, contra o qual reagiu o arguido D…, interpondo o presente recurso.
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São bem claras as posições em confronto:
- pelo despacho recorrido, o tribunal considerou que, sendo certo que, declarada a insolvência, o administrador da insolvência passa a representar o devedor, tal representação circunscreve-se, no entanto, aos aspectos de carácter patrimonial, pelo que, fora do âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência, a representação da sociedade caberá sempre ao(s) respectivo(s) gerente(s);
- para o recorrente, a pena de multa que venha a ser aplicada mais não é que “uma dívida da sociedade insolvente (…) com implicações no processo de insolvência, nomeadamente no património da insolvente que é gerido pelo Administrador nomeado”; logo, mesmo no processo penal, seria o administrador da insolvência a representar o(a) insolvente.
Salvo o devido respeito, sem prejuízo de se reconhecer o seu esforço argumentativo, é manifesto que não assiste razão ao recorrente.
Antes de mais, importa reter que, do que aqui se trata, é da representação da sociedade insolvente em processo criminal e esta não se extingue com a declaração de insolvência.
Como vem sendo sublinhado na jurisprudência[4], “a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, mantendo a personalidade jurídica, continuando a ser-lhe aplicável, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas (n.ºs 1 e 2 do art. 146º do CSC) e, a sociedade só se extingue com o culminar da fase de liquidação e partilha, concretamente, com o registo do encerramento da liquidação (n.º 2 do art. 160º)”, ou seja, os órgãos sociais da sociedade insolvente mantêm-se após a declaração de insolvência (art.º 82.º, n.º1, do CIRE), competindo aos respectivos titulares (administradores, no caso das sociedades anónimas, e gerentes, no caso de sociedades por quotas) a representação da sociedade para todos os efeitos que não sejam, exclusivamente, patrimoniais.
É certo que “…a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência” (artigo 81.º, n.º 1 do CIRE) e este assume “a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência” (n.º 4 do mesmo artigo), mas exclusivamente para estes efeitos.
As funções do administrador da insolvência direccionam-se para a liquidação da massa insolvente (para repartir o respectivo produto pelos credores) e os seus poderes de representação limitam-se aos efeitos de natureza patrimonial que interessam à insolvência. E compreende-se essa limitação, pois o processo de falência é “um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente” (artigo 1.º do CIRE).
Quer isto dizer que a actuação do administrador da falência é, toda ela, dirigida à preservação da massa insolvente, à sua liquidação e distribuição do produto pelos credores.
Ao contrário do que defende o recorrente, a pena de multa que o Ministério Público propõe seja aplicada à sociedade arguida não é uma simples “dívida da sociedade insolvente (…) com implicações no processo de insolvência, nomeadamente no património da insolvente gerido pelo Administrador nomeado”.
Do que aqui se trata, não é de responsabilidade civil (contratual ou extracontratual), mas de responsabilidade penal e a pena de multa, por ser uma pena pecuniária (por isso com repercussão no património da insolvente), não deixa de ser uma sanção penal.
Ora, é inquestionável a natureza pessoal da responsabilidade criminal e seria impensável fazer recair sobre o administrador da insolvência as obrigações decorrentes, v.g., da constituição de arguido ou da prestação de termo de identidade e residência, pois isso exorbitaria, claramente, a natureza, exclusivamente, patrimonial das suas funções.
De resto, raiaria o absurdo a tese de que, sendo uma pessoa singular a ser declarada insolvente, o administrador da insolvência (que, também nessa situação, assume, os poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente) a representaria no processo penal em que é arguida porque lhe poderia ser aplicada uma pena pecuniária que teria repercussão no património do insolvente.
Pelas razões explanadas, é uniforme na jurisprudência dos nossos tribunais superiores o entendimento de que são os titulares dos órgãos da sociedade insolvente quem representa esta no processo penal e não se vislumbra qualquer razão válida para divergir desse entendimento.
Por conseguinte, há um período transitório, que decorre entre a declaração de insolvência da sociedade e a sua extinção, em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõem: o administrador da insolvência que representa o devedor, exclusivamente, para efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência e os titulares dos órgãos sociais da sociedade que a representam para os demais efeitos, nomeadamente no âmbito do processo penal em que esta seja arguida.
Assim, são os gerentes ou os administradores da sociedade insolvente quem a representa no acto de constituição de arguida[5] e é neles, como titulares dos respectivos órgãos sociais, que deve ser efectuada a notificação da acusação[6] ou a notificação para efeitos do disposto no artigo 105.º, n.os 1 e 4, do RGIT[7] ou nos artigos 396.º, n.os 1, al. b), 2, 3 e 4, e 397.º do Código de Processo Penal.
Não merece, pois, qualquer censura o despacho recorrido.
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Dispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto por D… e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
O recorrente pagará taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC´s (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
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(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).
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Porto, 26/10/2017
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
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[1] Aparentemente, o arguido D….
[2] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[3] Aparentemente, o arguido D….
[4] Cfr., por todos, o acórdão do TRC de 25.06.2014 (Des. Elisa Sales), disponível em www.dgsi.pt
[5] Cfr. acórdão do TRL, de 13.09.2011, Proc. n.º 142/10.4 IDSTB-A.L1-5 (disponível em www.dgsi.pt).
[6] Cfr. acórdão do TRC, de 25.06.2014, Proc. n.º 2140/06.3 TAAVR-A.C1, disponível em www.dgsi.pt
[7] Cfr. acórdão do TRC, de 14.10.2015, Proc. n.º 47/13.7IDLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt