Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
978/07.3PAESP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR OLIVEIRA
Descritores: CRIME DE ESCRAVIDÃO
SERVIDÃO PARA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO
Nº do Documento: RP20141105978/07.3PAESP.P1
Data do Acordão: 11/05/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O conceito de escravidão do artº 159º 1 a) CP, inclui os casos de servidão para a exploração do trabalho.
II - A servidão constitui uma forma particularmente grave de negação da liberdade e uma realidade mais ampla que a invocada pelo sentido comum do termo “escravidão”.
III – Para a Comissão Europeia dos Direitos do Homem a servidão constitui “a obrigação de viver e trabalhar na propriedade dos outros e de prestação de determinados serviços, remunerados ou não, bem como a impossibilidade de mudar a condição”.
IV - Integra-se no conceito de escravidão do artº 159º 1 a) CP a acção pela qual a vítima – um invisual sem familiares próximos – foi agarrada e introduzida à força num veículo automóvel e, até ser resgatada pela PSP, um mês depois, permaneceu às ordens dos arguidos que o colocavam, contra a sua vontade, a pedir esmola em lugares por si determinados, sob o seu controlo e vigilância, impedindo-o de fugir e obrigando-o a entregar-lhes todo o proveito obtido e a pernoitar com eles na habitação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA)
- no processo n.º 978/07.3PAESP.P1
- com os juízes Artur Oliveira [relator] e José Piedade,
- após conferência, profere, em 5 de novembro de 2014, o seguinte
Acórdão
I - RELATÓRIO
1.No processo comum (tribunal coletivo) n.º 978/07.3PAESP, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Espinho, em que são arguidos B… e C…, foi proferido acórdão que decidiu nos seguintes termos [fls. 928]:
“(…) A) Condenamos o arguido B…, pela prática de um crime de escravidão, previsto pelo art. 159º/a) do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão, no mais sendo absolvido;
B) Condenamos a arguida C…, pela prática de um crime de escravidão, previsto pelo art. 159º/a) do Código Penal, e com aplicação do regime especial para jovens, na pena de 2 (dois) anos de prisão, no mais sendo absolvida, pena essa que se suspende na sua execução por 2 (dois) anos, a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, e mediante regime de prova assente em plano de reinserção social a elaborar oportunamente pela Direcção-Geral de Reinserção Social, a incidir sobre as vertentes da sua formação escolar e/ou profissionalizante e da sua inserção laboral. (…)»
2. Inconformados, os arguidos recorrem, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [fls. 953-956]:
«1. Discordam os arguidos do acórdão condenatório proferido e que aplicou ao arguido B… e C… as penas de 6 anos e 2 anos de prisão (suspensa na execução), respectivamente, pela prática, em regime de em co-autoria, de um crime de escravidão, p. e p. pelo art. 159º. al. a) do CP.
2. Sustentam os arguidos existir violação do princípio in dubio pro reo (arts. 2º e 32º da CRP, 410º. N.º 2 al. c) do CPP), nulidade do acórdão por erro na determinação da norma aplicável e consequente omissão de pronúncia (artgs. 72º e 73º do CP, 374º n.º 2, 379º. N.º 2 al. c) e n.º 2 do CPP) e deficiente fixação da medida concreta da pena (artg. 71º do CP).
3. O tribunal a quo deparou-se, como resulta do texto da decisão recorrida, com dúvidas sobre a valoração atribuível à prova produzida.
4. A decisão recorrida, na exigência descrita, optou pela superação de toda a dúvida razoável assentando em três elementos fundamentais e que se percutem como notoriamente errada a sua apreciação valorativa.
5. O primeiro, avançando com a incredibilidade da versão dos arguidos ao sustentarem razões de natureza caritativa para acolherem o ofendido quando este, por seu turno, afirma que sempre os acompanhou contra a sua vontade (Págs. 10 e 11 do acórdão recorrido) O carater singelo do argumento utilizado pelo tribunal a quo - a pouca probabilidade de um casal jovem acolher alguém com deficiência e que não da sua etnia - permite superar uma dúvida probatória, sendo na sua essência o tal "puro acto de fé" que o mesmo tribunal assumiu como impeditivo de juízo valorativo.
6. O segundo, apontando a incongruência pontual das declarações dos arguidos em audiência, maxime, o conhecimento pelo arguido B… que o ofendido já havia vivido com outra família ao contrário do afirmado por este; saídas diárias do ofendido de casa dos arguidos; entrega de dinheiro pelo ofendido e aquisição de tabaco; posse de chaves da casa dos arguidos pelo ofendido. A pontual incongruência das declarações dos arguidos em nada belisca a possibilidade de corresponder realidade factual tudo quanto relataram. A vivência do arguido com outra família, a aquisição de tabaco, a posse de chaves da casa, e entrega de dinheiro de esmolas não consente a cristalização de um comportamento penalmente típico como esclavagista.
7. O terceiro elemento, o facto de o ofendido iá haver vivido com os avós da arguida C…, tal como esta reconheceu; a arguida reconheceu, igualmente, que o ofendido pediu esmola aquando desta vivência com os seus avós. Tal factualidade mereceu, inclusivamente, o julgamento dos avós da arguida pela Vara Criminal do Porto no âmbito do processo no 1478/04.9 J APRT, reportando-se os factos ilícitos até 30/6/2006. Tal factologia - ainda que a defesa não percepcione qual a verdadeira relevância que a mesma tem na determinação dos factos ilícitos imputados aos arguidos, maxime, arguido B… - é assumida pelo tribunal a quo como dúbia no sentido de possibilitar a “… confusão no espírito do ofendido no que concerne à exacta delimitação dos períodos em que esteve com uns e com outros dos elementos deste mesmo agregado...” sendo que tal confusão é positivamente assumida pelo julgador (pág. 13 do acordão recorrido).
8. Em conclusão, os três elementos fundamentais, e únicos, que serviram de estribo à valoração da prova sobre a qual havia recaído dúvida (tal qual reconhece o tribunal a quo) não permitem a conclusão extraída pelo julgador, seja pela sua contradição e opacidade, seja pela manifesta exiguidade em caucionar a certeza para além de qualquer dúvida razoável (saliente-se que o arguido B… nem sequer é figurante ocasional no segundo dos elementos de dissipação de dúvida).
9. Neste conspecto, assume limpidez cristalina a violação do princípio in dubio pro reo na determinação dos factos provados e não provados, sendo tal violação constante do texto da decisão recorrida e, como tal, sindicável pela via de recurso e enquadrável na previsão do artg. 410º. N.º 2 al. c) do CPP.
10. Devendo, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido, e, em conformidade, ser proferido acórdão pelo tribunal ad quem que, pela aplicação do principio in dubio pro reo, absolva os arguidos da prática do crime de escravidão, p. e p. pelo artg. 159º al. a) do CP pelo qual se acham condenados.
11. Os arguidos B… e C… foram condenados pela prática de um crime de escravidão, p. e p. pelo art. 159º0 al. a) do CP, nas penas de 6 anos de prisão e 2 anos de prisão (suspensa na sua execução por igual período), respectivamente.
12. Os factos encontram-se delimitados temporalmente ao período compreendido entre 15 de Agosto a 16 de Setembro de 2007, sendo que prolação de acórdão condenatório ocorreu a 16 de Julho de 2013 (cfr. declaração de depósito), ou seja, decorridos que são mais de 6 anos sobre a prática delituosa.
13. O tribunal a quo atribui relevância jurídica ao decurso do prazo assinalado, 6 anos, em sede de determinação da fixação da medida concreta da pena (veja-se fundamentação de fls. 23 e 24 do acórdão recorrido), quando devia ter inscrito tal facto objectivo na previsão do artg. 72º n.º 2 al. d) do CP, aplicando-se, em conformidade, a atenuação especial da pena abstractamente aplicável ao tipo legal de crime em causa (seguindo as regras de fixação da moldura penal previstas no artg. 73º do CP).
14. A aplicação do regime atenuativo obedece aos requisitos constantes do artg. 72º n.º 1 do CP, relevando para o caso concreto a existência de circunstâncias posteriores ao crime que diminuem a necessidade da pena, acrescendo a boa conduta do agente no decurso temporal pós prática criminosa.
15. Se a boa conduta do agente se manteve, e, tal dado é objectivo na pessoa da arguida C…, o mesmo se dirá do arguido B…, embora sem perder de vista o respectivo CRC, mas, aduzindo, em abono do preenchimento da exigência lei a não comissão de qualquer crime de idêntica descrição típica, nem qualquer outro que se Inscreva nos crimes que afectam a liberdade pessoal.
16. E, no caso dos autos, o longo decurso de tempo nem sequer pode ser imputado a qualquer conduta dos arguidos mas, outrossim, à patente desvalorização que foi concedida à investigação destes autos pelo OPC (cfr. fls. 18, 22, 24 a 26).
17. Neste conspecto, não se pronunciando o tribunal a quo pela aplicação do disposto no artg. 72º e 73º do CP, atenuação especial da pena pelo decurso de longo tempo sobre a actividade delituosa, omitiu pronuncia sobre matéria de direito de conhecimento obrigatório, ferindo o acórdão recorrido de nulidade por força do disposto nos artgs. 374º n.º 2, 379º. N.º 2 al. c) e n.º 2 do CPP, e, artgs. 72º e 73º do CP.
18. O que se requer seja declarado com as legais consequências, maxime, a remessa dos autos ao tribunal a quo para que se pronuncie sobre a aplicação do artg. 72º do CP, e, sendo deferida a pretensão da defesa, seja sentenciada pena criminal em conformidade.
19. O arguido B… foi condenado na pena de seis anos de prisão pela prática do crime de escravidão, p. e p. pelo artg. 159º al. a) do CP.
20. A moldura penal abstracta aplicável ao crime de escravidão tem como limite mínimo os 5 anos de prisão e, no seu máximo, os 15 anos de prisão.
21. A defesa discorda, na sua essência, com a fixação de pena superior ao limite mínimo aplicável, ou seja, 5 anos de prisão, sustentando haver sido incorrectamente valorados os elementos decisivos na determinação da medida concreta da pena.
22. No caso em apreço, o tribunal a quo — e não obstante os antecedentes criminais do arguido, circunscritos na sua quase globalidade a delito estradal — sobre dimensionou a valoração da medida concreta da pena, porquanto os elementos que Indiciam a sua agravação para além do limite mínimo já se encontra inscrito na tipificação legal (vulnerabilidade da vitima), e, como tal, já sopesado pelo legislador na fixação do limiar mínimo da punição, pelo que, os demais elementos nefastos se acham neutralizados por aqueloutros que abonam o arguido, intervindo neste especial contexto, o longo decurso de tempo desde a actividade delitiva até à condenação com trânsito em julgado).
23. Em nome da justiça e da equidade, seria adequada a aplicação ao arguido/recorrente de urna pena de 5 anos de prisão, qual realizaria as exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas reinserção social do delinquente e exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade.
24. A condenação do arguido em 5 anos de prisão possibilita a suspensão de execução da pena de prisão (artg. 50º e do CP) o que, em entendimento da defesa, apenas poderá ser julgado pelo tribunal a quo (em 1ª instância), pelo que, em conformidade com a condenação em pena de 5 anos de prisão, deverão os autos ser remetidos ao tribunal a quo para aplicação, ou não, de regime suspensivo da execução da pena de prisão, o que expressamente se requer.
Nos termos expostos, deverá o presente recurso ser provido com o que V. Ex. farão, como sempre, Justiça!
(…)»
3. Na resposta, o Ministério Público, de forma precisa e detalhada, refuta todos os argumentos da motivação de recurso, pugnando pela manutenção do decidido [fls. 977-981].
4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto acompanha a resposta, salientando que o tribunal recorrido justificou cabalmente as razões que lhe permitiram fixar a convicção exposta e, por outro lado, que as circunstâncias invocadas pelos recorrentes não permitem atenuar especialmente a pena nem decretar a suspensão da execução da prisão, no caso do recorrente [fls. 989-990].
5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
6. O acórdão recorrido deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação [fls. 904-920]:
«(…) 2.1 Factos provados
Com interesse para a decisão consideramos provados os seguintes factos:
1) À data dos factos, os arguidos eram vendedores ambulantes.
2) Em data indeterminada, não posterior a 15 de Agosto de 2007, os arguidos elaboraram um plano entre si para reter e escravizar o ofendido D…, conhecido por «D1…», que conheciam das feiras que faziam, sabiam ser invisual, dedicar-se à mendicidade e não ter familiares próximos que o apoiassem, com o intuito de se apropriarem de todo o dinheiro que o mesmo recebesse na aludida actividade, contra a sua vontade e sem o seu consentimento.
3) Em concretização do aludido plano, no dia 15 de Agosto de 2007, quando o ofendido se encontrava a pedir esmola na Festa …, nos …, Vila Nova de Gaia, o ofendido foi abordado pelos arguidos, que o agarraram, o introduziram à força e contra a sua vontade num veículo, cuja matrícula em concreto não foi possível determinar, e o conduziram para o …, no Porto.
4) Desde esse dia e até 16 de Setembro de 2007, data em que a PSP de Espinho interveio, os arguidos, de comum acordo e em conjugação de esforços, passaram a colocar diariamente o ofendido a pedir esmola, nomeadamente nas várias feiras que faziam, levando-o para esses locais que previamente determinavam sem o consultar, levando-o logo de manhã e recolhendo-o ao final da tarde, obrigando-o a pernoitar no apartamento onde os arguidos B… e C… viviam no referido bairro, para onde o transportavam, bem como a dar-lhes todo o dinheiro das esmolas por si obtido durante o dia, tudo sempre sem o consentimento e contra a vontade do ofendido, que igualmente era obrigado a pedir esmola no horário que os arguidos lhe determinavam.
5) No dia 16 de Setembro de 2007 os arguidos colocaram o ofendido a pedir esmolas na cidade de Espinho, junto à praia, na …, onde veio a ser interceptado por agentes da PSP de Espinho junto ao café E….
6) Todo o dinheiro que o ofendido obteve no referido período, da forma apontada, foi obrigado a entregar aos arguidos, que o dividiram entre si, sem dar qualquer quantia ao ofendido.
7) No mesmo período, sempre que colocavam o ofendido a mendigar para si, os arguidos escolhiam os lugares onde aquele teria de ficar nessa actividade, bem como os horários que teria de cumprir, após o que o controlavam e vigiavam, alternadamente entre si, impedindo-o de fugir.
8) Todos os dias, no final da tarde, os arguidos recolhiam o ofendido e levavam-no para o referido apartamento, onde o obrigavam a pernoitar, sempre contra a sua vontade e sem o seu consentimento, e proibindo-o de sair daquele local.
9) No dia 19 de Setembro de 2007 o ofendido apresentava: na face, duas escoriações com 0,5 centímetros de diâmetro na região malar esquerda; no abdómen, duas equimoses na face lateral esquerda do tronco sobre os arcos costais inferiores com 3x2x2 centímetros de diâmetro; na região lombar direita, duas cicatrizes paralelas com 9 centímetros de comprimento; no membro superior direito, cicatriz hipopigmentada numa área de 9x7 centímetros na face postero-lateral do terço médio do antebraço, composta por várias áreas arredondadas, cada uma das quais com 1 centímetro de diâmetro, compatível com a queimadura por cigarros; no membro superior esquerdo, equimose na face antero-medial do terço médio do braço com 3x2 centímetros, equimoses amareladas dispersas pela face posterior do braço por uma área de 16x9 centímetros, a maior das quais numa área de 5x4 centímetros e duas cicatrizes lineares paralelas com 3 centímetros de comprimento na face lateral do terço proximal do braço.
10) As lesões referidas em 9) determinaram um período de três dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
11) Na data mencionada em 9) o ofendido apresentava ainda as seguintes lesões: no crânio, múltiplas cicatrizes na região fronto-parietal; no membro superior direito, múltiplas cicatrizes no dorso das mãos e dispersas por toda a extensão do membro; no membro superior esquerdo, múltiplas cicatrizes no dorso das mãos e dispersas por toda a extensão do membro; no membro inferior direito, múltiplas cicatrizes na face anterior da perna; no membro inferior esquerdo, múltiplas cicatrizes na face anterior da perna.
12) Os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente, de comum acordo e em conjugação de esforços, mediante plano previamente gizado entre si, bem sabendo que ao obrigarem o ofendido a mendigar nos locais e horários que eles próprios determinavam, ao controlarem essa actividade e ao apropriarem-se de todo o dinheiro obtido pelo ofendido na mesma, sem o seu consentimento e contra a sua vontade, reduziam-no à condição de coisa e de escravo, como se o ofendido fosse sua (deles) propriedade, o que sabiam não ser verdade.
13) Sabiam ainda que no aludido período de 15 de Agosto a 16 de Setembro de 2007, ao levarem o ofendido para os acima mencionados locais por eles definidos, ao recolherem posteriormente o ofendido, ao obrigarem-no a pernoitar no apartamento mencionado e ao impedirem-no de daí sair, tudo contra a vontade e sem o consentimento do ofendido, estavam a privá-lo da liberdade, bem sabendo que o ofendido era invisual e, por isso, especialmente indefeso, e aproveitando-se desse facto.
14) Sabiam os arguidos que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
15) Os arguidos vivem juntos num apartamento de tipologia 2, inserido em bairro social da cidade do Porto, mantendo um relacionamento próximo e afectivo entre si…;
16) …as despesas inerentes à manutenção da habitação ascendem à quantia mensal de € 60,00, o que inclui renda, água e energia eléctrica…;
17) …para fazer face a estas despesas, o casal conta exclusivamente com o rendimento social de inserção que lhes está atribuído pelos serviços de segurança social, no valor mensal de € 235,00…;
18) …não têm filhos, embora estes façam parte dos projectos de vida do casal.
19) O arguido B… cresceu no seio do seu agregado familiar de origem, de acordo com as normas e regras da etnia cultural (cigana) a que pertence…;
20) ....integravam esse agregado os pais e, crê o arguido, 13 irmãos mais velhos, pois não está muito certo quanto a este número…;
21) …os pais nunca exerceram qualquer actividade profissional, subsistindo essencialmente do apoio de serviços sociais do Estado, nomeadamente em paralelo à actividade de cesteiros…;
22) …residiam em barracos, que construíam, mudando com frequência o local de habitação…;
23) …mais tarde residiram numa casa pré-fabricada, nas imediações do …, até ao momento em que foram realojados no …, pela Câmara Municipal … …;
24) …a dinâmica familiar (deste agregado de origem do arguido) era marcada por fortes laços de afectividade…;
25) …quando o arguido tinha cerca de 14 anos o pai faleceu, ficando a residir com a mãe e uma irmã, pois os restantes irmãos já eram autónomos…;
26) …dada a pouca valorização dos pais, decorrente de questões culturais, o arguido nunca frequentou qualquer estabelecimento de ensino durante a infância e a adolescência…;
27) …ingressou em meio escolar já em idade adulta, mas nunca concluiu qualquer grau de escolaridade, pelo que permanece analfabeto…;
28) …aos 10 anos começou a vender pensos na rua e mais tarde optou por vender balões em várias feiras da região do Norte do país, sempre com carácter irregular…;
29) …há cerca de 10/11 anos consumiu substâncias estupefacientes, nomeadamente haxixe, mas apenas por um curto período de tempo, tendo abandonado os consumos por vontade própria…;
30) …aos 21 anos encetou relação afectiva com a co-arguida C…, com quem passou a viver em união de facto, de acordo com aquilo que descreve como sendo a «lei cigana»…;
31) …à data dos factos em discussão nestes autos residia com a co-arguida no …, uma vez que a mãe faleceu nesse mesmo ano e o casal permaneceu na morada dos autos, que também está atribuída ao arguido, situação que permanece até à actualidade…;
32) ...consome diariamente entre um e dois litros de bebidas alcoólicas, não considerando que esse hábito seja condicionante no seu quotidiano…;
33) …quotidiano este que decorre sem qualquer actividade estruturada, ocupando o tempo na companhia da arguida C…, em casa, a passear e a visitar familiares dela…;
34) …mantém contacto próximo com dois irmãos, que também residem no … e não tem grupos de convivência fora do enquadramento familiar…;
35) …considera que ainda não conseguiu até hoje ocupação laboral por ser alvo de discriminação étnica, não sabendo contudo precisar em que situações tal ocorreu…;
36) …no seu meio de residência assume uma postura cordial e educada no contacto com os moradores.
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37) A arguida C… é proveniente de um agregado familiar de etnia cigana, tendo o seu desenvolvimento ocorrido junto dos pais e de seis irmãos…;
38) …o seu agregado dedicava-se à mendicidade, sempre tendo vivenciado dificuldades económicas que foram atenuadas com a atribuição da prestação social de rendimento mínimo garantido…;
39) …inicialmente viviam em barracas na zona …, na cidade do Porto, e posteriormente foram realojados no … do Porto…;
40) …nunca frequentou a escola com regularidade, tendo concluído apenas o 2º ano de escolaridade e não sabe ler nem escrever, situação que foi promovida pelas referências do seu grupo familiar e cultural, que privilegiava o convívio com a família, em detrimento da formação escolar…;
41) …juntou-se com o co-arguido, seu arguido, por volta dos doze anos de idade…;
42) …nessa altura os arguidos foram viver para a morada que consta dos autos e integraram o agregado familiar da mãe do companheiro, entretanto falecida em 2004…;
43) …nunca desempenhou nenhuma actividade laboral, sendo desde muito nova beneficiária de prestações sociais atribuídas pelos serviços de segurança social…;
44) …no seu quotidiano privilegiava a companhia dos elementos do seu agregado familiar e posteriormente do seu companheiro…;
45) …à data dos factos em causa nos autos dedicava-se à venda de balões e à mendicidade em feiras e romarias…;
46) …no meio em que reside é descrita como pessoa educada e sem conflitos com os vizinhos…;
47) ...conhece o ofendido desde a altura em que este residiu na zona ….
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48) O arguido B…, no âmbito do Processo Sumaríssimo nº 258/00, do 4º Juízo do Tribunal da Maia, foi condenado pela prática em 8/06/1999 de um crime de um furto, por sentença transitada em 5/12/2000, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 300$00, pena que cumpriu…;
49) … no âmbito do Processo Comum Singular nº 630/03.9TAMTS, do 2º Juízo Criminal de Matosinhos, foi condenado pela prática em 3/04/2003 de um crime de um furto qualificado na forma tentada, por sentença transitada em 30/06/2004, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, pena já julgada extinta sem cumprimento da prisão…;
50) … no âmbito do Processo Sumário nº 760/07.8PTPRT, do 2º Juízo, foi condenado pela prática em 28/05/2007 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, por sentença transitada em 18/06/2007, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 2,00, pena que cumpriu…;
51) … no âmbito do Processo Sumário nº 156/10.4SMPRT, do 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto, foi condenado pela prática em 26/02/2010 de um crime de condução sem habilitação legal, por sentença transitada em 22/03/2010, na pena de 240 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, pena que cumpriu…;
52) … no âmbito do Processo Sumário nº 480/10.6SLPRT, do 1º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto, foi condenado pela prática em 8/07/2010 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, por sentença transitada em 3/08/2010, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, pena esta já julgada extinta, sem cumprimento de prisão…;
53) … no âmbito do Processo Sumário nº 44/12.0SLPRT, do 3º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto, foi condenado pela prática em 4/02/2012 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, por sentença transitada em 27/02/2012, na pena de 7 meses de prisão, substituída por 210 horas de trabalho, pena já julgada extinta, sem cumprimento de prisão.
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54) A arguida C… não tem antecedentes criminais.
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2.2 Factos não provados
Com interesse para a decisão não considerámos provados quaisquer outros factos e designadamente os seguintes:
a) que entre 15 de Agosto de 2007 e 16 de Setembro de 2007 o arguido B… agrediu o ofendido, sem qualquer motivo que o justificasse, dando-lhe pontapés nas pernas, bofetadas na cara e murros em todo o corpo, designadamente na cabeça, nas costas, na barriga, nos braços e nas mãos;
b) que em dia indeterminado nesse mesmo período o arguido B… queimou o ofendido nos braços com um isqueiro e pontas de cigarros acesas;
c) que foi com a sua conduta que foram provocadas as lesões no ofendido mencionadas acima em 9) a 11);
d) que no dia 16 de Setembro de 2007 os arguidos B… e C… colocaram o ofendido a pedir esmola junto à igreja em Espinho, de manhã.
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2.3 Motivação
A nossa convicção resulta do conjunto da prova produzida, lida e conjugada à luz das regras da experiência comum.
Dito isto, cumpre-nos naturalmente especificar com um pouco mais de desenvolvimento as razões da nossa convicção.
Vejamos.
É inequívoco que o ofendido D… pernoitou com os arguidos durante o período em causa, de cerca de um mês: os próprios arguidos reconhecem-no, como reconhecem ainda que vieram com o ofendido a Espinho por ocasião das festas da cidade, em Setembro de 2007.
No que concerne a estes factos – que o ofendido pernoitou com os arguidos durante este lapso temporal, e que vieram juntos a Espinho naquela ocasião - não há divergência entre as declarações dos arguidos e o depoimento do ofendido D….
Onde os depoimentos divergem é no essencial neste ponto: dizem os arguidos que se limitaram a dar guarida ao Sr. D…, por terem pena dele, face à sua situação (invisual), que ele sempre esteve com eles por sua plena vontade e sem qualquer espécie de maus tratos que lhe fossem infligidos; e diz o ofendido, pelo contrário, que foi levado à força da festa … e sempre esteve contra vontade com os arguidos, que o obrigavam nas circunstâncias relatadas a mendigar em vários locais, apropriando-se dos valores nessa actividade por si conseguidos no dia-a-dia.
Importa então tentar perceber onde reside a verdade, e nomeadamente se na versão dos arguidos, se na do Sr. D….
Postas assim as coisas, desde já adiantámos que as declarações dos arguidos não nos merecem credibilidade.
Porquê?
Em primeiro lugar, dizem os arguidos que acolheram o ofendido em casa por terem pena dele.
É difícil acreditar que um casal jovem e que vive num apartamento sem mais ninguém decida acolher em casa um senhor que não é da família, que não é da sua etnia, que é significativamente mais velho e que tem uma deficiência física tão severa como a cegueira – a verificar-se uma lógica de pura (e nesse caso saudável) solidariedade, estaríamos em presença de um casal que nos mereceria os maiores elogios.
Mas se fosse assim, então não se compreenderia de todo por que motivo o ofendido surge a dizer que esteve contra sua vontade com os arguidos, para mais quando estes mesmos dizem que durante o período de um mês em apreço não houve entre eles qualquer problema: nenhuma discussão, nenhuma desavença - tudo correra bem, em suma.
Porquê então esta postura do ofendido?
Em segundo lugar, as declarações dos arguidos, que em audiência ouvimos em separado, manifestam incongruências entre si.
Senão vejamos:
a) disse o B… que não sabia se o ofendido já estivera a viver com outra família; ora, a C… diz que o ofendido já vivera com os avós dela, pelo que logo por aqui seria de considerar como bem provável que o B… soubesse que o ofendido já estivera a viver com aquela família; mas mais: disse a C… que a mãe do B… é irmã da sua avó e que às vezes o B… ia lá nessa altura com a mãe, tudo sugerindo pois que o B… soubesse efectivamente, ao contrário do que disse, que o ofendido vivera já com outra família;
b) disse o B… que o ofendido saía de casa pela manhã, às 9h/10h00 e que regressava à tarde, pelas 17h/18h; ora, a C… disse que o ofendido comia lá em casa ao almoço quase todos os dias – mais; disse ainda a C… que não se lembra de o ofendido alguma vez ter saído de manhã e regressado apenas ao final do dia;
c) disse o B… que nunca saíram a passear a pé pelo … os três juntos (ele, a companheira e o ofendido); ora, a C… disse o contrário - aliás, disse mesmo que quando saíam os três juntos, andavam à volta da casa;
d) disse o B… que o ofendido saía sozinho e quando chegava dava-lhes por vezes algum do dinheiro que trazia; ora, a C…, quando inquirida pelo Tribunal, disse por mais de uma vez que o ofendido nunca lhes dera dinheiro (e só afirmou coisa diversa quando inquirida sobre a mesma matéria pelo seu Ilustre Mandatário);
e) disse o B… que era o ofendido que comprava o seu próprio tabaco; ora, disse a C… que muitas vezes eram eles, arguidos, que compravam o tabaco do ofendido;
f) disse o B… que o ofendido chegou a ter a chave do apartamento dos arguidos; ora, disse a C… que o ofendido nunca teve a assinalada chave.
E em terceiro lugar, importa notar o seguinte: o ofendido já vivera com os avós da C…, como esta mesma reconheceu, como disse que ele viveu e andava com os seus avós a pedir esmola.
E vivera e pedira esmola em que condições?
Atente-se em alguns dos factos, a que o ofendido não deixou de se referir em audiência, que foram já dados por provados por acórdão transitado em julgado, proferido no âmbito do Processo nº 1478/04.9JAPRT, da 4ª Vara Criminal do Porto (cfr. fls. 812 a 835): F… [a avó da arguida C…] e G… [a C… disse desconhecer o nome do avô, num primeiro momento, mas depois acabou por afirmar que lhe parecia que era «G…» e que este estava preso «por via do D1…»], arquitectaram um plano no sentido de auferirem proventos económicos à custa do ofendido, e em execução desse plano e juntamente com outros indivíduos retiveram o ofendido sempre sob sua alçada, e de noite fechado por cadeado numa barraca de madeira; aproveitando-se da incapacidade física do ofendido, colocavam-no a pedir esmola em diversos locais do país, no que era acompanhado e controlado à distância; todo o dinheiro que o ofendido conseguia obter nessa actividade era entregue à arguida F… [a avó da C…]; por vezes o ofendido era obrigado a trabalhar numa sucata; por vezes o ofendido era agredido e nunca auferiu qualquer retribuição pelo seu trabalho, nem nunca conseguiu reter para si qualquer quantia obtida a mendigar; o ofendido esteve nessa situação ininterruptamente durante vários anos; várias vezes o ofendido foi encontrado a mendigar e várias vezes foi reencaminhado a seu pedido para a sua residência na Figueira da Foz; no entanto, os arguidos persistiram sempre nos seus intentos e obrigavam-no a regressar com eles para o Porto; em Maio de 2004 foi novamente reconduzido para a Figueira da Foz; ainda assim, em Julho de 2004, os arguidos, uma vez mais, sabendo do paradeiro do ofendido, lograram abordá-lo e conduzi-lo de novo para o Porto; mais uma vez viu-se obrigado a pernoitar, fechado, na referida barraca e a pedir esmola e a trabalhar na sucata, contra a sua vontade e sem que daí recebesse qualquer contrapartida; em Junho de 2006 acabou por ser encontrado pela Polícia Judiciária e foi nessa sequência conduzido para a Figueira da Foz, a 30 de Junho de 2006, onde conseguiu manter-se por período indeterminado.
E terá sido pois nestas circunstâncias que o ofendido esteve durante anos com familiares directos da aqui arguida.
Pergunta-se: poderá haver alguma confusão no espírito do ofendido no que concerne à exacta delimitação dos períodos em que esteve com uns e com outros dos elementos deste mesmo agregado?
Admitamos que sim.
Com efeito, repare-se que disse o ofendido em audiência, no contexto da confrontação feita com o que declarara em sede de Instrução, que esteve com o «B…» e a «C…» um mês, depois da intervenção da Polícia de Segurança Publica em Espinho regressou ao Porto, onde esteve uma semana, e em seguida voltou a ser «apanhado» pelo «B…» e pela «C…» e desta feita esteve com eles dois anos, até ser salvo pelo «Sr. H…», «da Junta de Freguesia».
Tendo o Tribunal assumido tratar-se da Junta de Freguesia …, chegou a convocar o dito «Sr. H…», que veio a constatar-se ser um assistente social da assinalada Junta de Freguesia, e que reconheceu que no exercício das suas funções acompanhou o agregado familiar da C…, sobretudo a pretexto do seu realojamento; e a verdade é que esta testemunha deu conta de uma intervenção da sua parte que esteve na origem de uma das saídas do ofendido do agregado, mas que tal ocorreu seguramente em data anterior àquela que resultaria do depoimento do ofendido.
Não nos merecendo nenhuma reserva este depoimento do Dr. H…, é forçoso concluir que o ofendido incorre em aparente erro ou confusão quando diz que depois de ter estado um mês com os aqui arguidos, voltou a estar com eles, uma semana volvida, e agora durante dois anos.
A questão que se põe é a de saber se esta aparente confusão do ofendido é suficiente para descredibilizar o seu depoimento quanto ao mais, e nomeadamente quanto ao que diz ter sucedido durante o período de um mês em discussão nos autos.
Importa referir que o depoimento prestado pelo ofendido em audiência, considerado este no seu conjunto, quanto a este período de um mês, é suficientemente congruente com a demais prova existente neste aspecto, sobre o qual não há nenhuma «confusão»: o arguido esteve efectivamente um mês em casa dos aqui arguidos, onde só estes residiam, entre meados de Agosto e meados de Setembro de 2007, até à intervenção da PSP de Espinho.
Por outro lado, e neste âmbito, o ofendido foi também seguro quando descreveu o modo como foi levado contra a sua vontade, desde a altura da Festa nos …, para casa dos arguidos e a forma como logo de seguida era tratado no quotidiano nomeadamente no que toca às circunstâncias (i) de não o deixarem sair sozinho de casa, ao ponto de uma vez, em que tentara fazê-lo, ter sido agredido pela C… com uma «estalada», (ii) de ser colocado a pedir esmolas nos locais e horários por eles definidos, (iii) de os arguidos estarem próximos do ofendido, pois este ouvia as suas vozes e/ou o rádio da carrinha em que se deslocavam, (iv) as ameaças que lhe eram dirigidas e (v) o facto de ao final do dia o desapossarem invariavelmente da caixa de madeira usada para a recolha das esmolas.
Mais: ante a natureza, a gravidade e a duração dos factos, de resto ocorridos com interrupções, pelos quais passara já e que viriam a ser dados por provados no Processo nº 1478/04.9JAPRT, e considerando a especificidade da sua debilidade física e o seu desamparo social, e não ignorando ainda que do que se trata é no fundo de pessoas integradas num mesma família alargada de que fazem parte os arguidos B… e C…, é natural que o depoimento do ofendido não surja absolutamente cristalino.
Mas não é como se sabe de uma certeza rigorosamente absoluta o que buscamos.
Note-se que o processo penal português situa-se no âmbito do chamado sistema da prova livre, no sentido de que o relevo maior ou menor de cada um dos meios de prova é aferido pelo Tribunal de acordo com a íntima convicção do julgador, em função das circunstâncias concretas do caso, e não de acordo com regras prévia e tabelarmente fixadas em abstracto.
Não quer isto dizer, naturalmente, que uma tomada de posição por parte do tribunal quanto aos factos em causa possa traduzir-se num puro acto de fé; ao dar um determinado facto como provado, o julgador deve decerto estar convencido da sua veracidade, mas esta sua convicção não pode ser puramente subjectiva ou arbitrária – tem antes que ser motivável, objectivável, susceptível de pelo menos em tese convencer os destinatários da decisão ou a comunidade jurídica em sentido geral, o que significa que a posição que seguir em matéria de facto deve estar racionalmente estruturada.
A questão que se põe é a de saber qual o grau de convicção que ao tribunal se exige que tenha para dar por assentes os factos em causa; ora, neste aspecto, na linha da tradição anglo-americana, tem sido entendido que um facto deve ser tido por provado se o Tribunal dele se convencer para além de toda a dúvida razoável [Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª ed., reimpressão (2004), Coimbra Editora, pgs. 199 e 206].
Se existir uma dúvida razoável sobre determinado aspecto da prova, isto é, uma dúvida séria, consistente, que seja justificável de forma convincente diante terceiros, então o facto que se destinaria a provar deve ser tido por não provado [BAPTISTA GONÇALVES, Do julgamento, Centro de Estudos Judiciários, 2006 (inédito), pg. 127].
Ora, estamos em crer que o que acima expusemos permite superar o «teste da dúvida razoável» quanto aos factos provados e nomeadamente quanto à natureza e ao grau da intervenção dos arguidos.
E o que vimos de dizer surge ainda reforçado se considerarmos as circunstâncias em que foi posto fim a este período de um mês, que ressaltam do conjunto dos depoimentos produzidos em audiência pelas testemunhas Manuel Ferreira, agente da PSP que estava de patrulha na área em que se achava o ofendido no dia 16 de Setembro de 2007 e a quem foi a situação sinalizada por uma jovem, a qual viríamos também a ouvir em audiência, de seu nome I….
O depoimento desta última testemunha, aliás, relevou ainda na afirmação de dois aspectos que corroboram o desenho antes traçado quanto à vivência do ofendido e à intervenção dos arguidos (e neste específico ponto do arguido B…): um, é o de que tem a certeza que o arguido B… achava-se na ocasião nas imediações, embora não consiga precisar se o mesmo foi ou não um dos indivíduos de etnia cigana levados pela PSP; outro, é o de que, antes da intervenção da PSP, vira duas crianças de etnia cigana saírem do local onde havia vários adultos da mesma etnia, entre os quais o arguido B…, e dirigiram-se (as crianças) ao ofendido, e uma vez chegados junto deste, puxaram-lhe a caixa de esmolas e agrediram-no ao pontapé.
Vale isto por dizer que os arguidos não andavam sempre sozinhos com o ofendido (como este não deixou de referir ao mencionar o nome de um tal «J…», com intervenção desde logo no primeiro dia, na Festa …, nos …), o que também não deixará de contribuir para uma certa nebulosidade no espírito do ofendido.
Todavia, isto não significa que a intervenção dada por provada quanto aos arguidos B… e C…, no mês em referência, não esteja suficientemente estribada, para além de toda a dúvida razoável, na prova produzida, e nomeadamente no depoimento do ofendido.
Dizer isto não equivale evidentemente a que faça impender-se sobre os arguidos qualquer espécie de ónus de prova, como não significa que o critério de aferição da prova não continue a ser o acima assinalado da «dúvida razoável».
Equivale apenas à constatação de que o depoimento do ofendido tem que ser compreendido sem leituras precipitadas, com paciência e cuidado, na medida em que nem ele é uma pessoa comum, dadas as suas limitações físicas e sociais, nem é tão pouco uma pessoa que tenha passado por situações comuns.
Ora, entendemos que uma compreensão do seu depoimento na linha do que acabamos de mencionar, feita em articulação com os demais elementos, levam-nos a concluir, com o grau de segurança que temos por exigível, pela veracidade dos factos que demos por provados.
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Face à natureza dos factos objectivos imputados aos arguidos, lidos e compreendidos à luz das regras da experiência comum, são judicialmente de presumir a consciência, a voluntariedade e a intenção que lhes presidiu, como é de presumir ainda que eles soubessem que era proibida a sua conduta.
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No que diz respeito às lesões físicas que o ofendido apresentava no dia 19 de Setembro de 2007, tivemos em atenção os relatórios periciais de fls. 119 a 126.
Da análise desses relatórios, para além da caracterização daquelas lesões, ressalta ainda a identificação de um conjunto de lesões que logo aí são afastadas, por insusceptíveis de terem sido sofridas pelo ofendido no período de um mês em referência, a saber, as lesões mencionadas em 11), que são apresentadas a fls. 121 como «sem relação com o evento».
Por outro lado, quanto às lesões em tais relatórios afirmadas como sendo relacionáveis com o evento, diríamos que o ofendido não as imputou ao período de um mês que passou com os aqui arguidos, e nessa medida não damos por provada a relação das mesmas com alguma conduta daqueles.
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No que concerne à matéria que demos por não provada, a nossa posição resulta, para além do que deriva do já dito, da ausência de prova directa e com suficiente consistência.
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No que diz respeito às condições sócio-económicas dos arguidos, a nossa posição estriba-se nos relatórios sociais juntos a fls. 711 a 719.
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Em matéria de antecedentes criminais, tivemos em atenção o que deriva dos certificados correspondentes, que constam dos autos.
(…)»
II – FUNDAMENTAÇÃO
7. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objeto do recurso, importa decidir as seguintes questões:
● Violação do princípio in dubio pro reo;
● Atenuação especial da pena;
● Medida da pena fixada ao recorrente.
Violação do princípio in dubio pro reo
8. Os recorrentes sustentam que o acórdão violou o princípio in dubio pro reo na medida em que o “tribunal ad quo [se] deparou, como resulta do texto da decisão recorrida, com dúvidas sobre a valoração atribuível à prova produzida” e ainda assim, “optou pela superação de toda a dúvida razoável assentando em três elementos fundamentais e que se percutem como notoriamente errada a sua apreciação valoratlva” [conclusões 3 e 4 e 5 a 10].
9. Não tem razão. Como bem se percebe do texto da decisão recorrida, o coletivo de juízes limitou-se a explanar as vicissitudes da prova produzida e, ponto por ponto, a forma e as razões pelas quais se firmou a sua convicção.
10. Traça, com elevado rigor e total transparência, o equilíbrio e o sentido de valoração das provas produzidas que, em seu entender, levam claramente à afirmação dos factos dados como provados. Não há, portanto, um reconhecimento de dúvidas mas sim uma pormenorizada revelação do exame crítico que fizeram sobre a totalidade da prova produzida. A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade [Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, 1997, pág. 17]. E perante as circunstâncias específicas destes autos (que o acórdão identifica e detalha com pormenor) o coletivo de juízes entendeu, num exercício de honestidade intelectual, expor com absoluta transparência os raciocínios e premissas que atenderam na delimitação dos factos dados como provados.
11. Importa reafirmar que a violação deste princípio só ocorre quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, decida “contra” o arguido. Não se trata de uma dúvida hipotética, abstrata ou de uma mera hipótese sugerida pela apreciação da prova feita pelo recorrente, mas de uma dúvida assumida – ou que devia ter sido assumida – pelo próprio julgador. Assim, haverá violação do princípio in dubio pro reo se for manifesto que o julgador, perante essa dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo a versão que o desfavorece; ou quando, embora se não vislumbre que o tribunal tenha manifestado ou sentido dúvidas, da análise e apreciação objetiva da prova produzida, à luz das regras da experiência e das regras e princípios em matéria de direito probatório, resulta que as deveria ter [Ac.STJ de 27.5.2010 e de 15-07-2008; e Ac.RP de 22.6.2011, 17.11.2010, 2.12.2009, 9.9.2009 e de 11.1.2006, todos disponíveis em www.dgsi.pt].
12. Segundo os recorrentes, estão em causa a falta de credibilidade atribuída às suas declarações (e a incongruência das mesmas) e a justificação vançada para a “confusão” da vítima quanto à exata delimitação dos períodos em que foi forçado a viver com os aqui arguidos e o período em que foi forçado a viver com familiares destes, matéria que foi objeto de condenação num anterior processo.
13. Ora, a credibilidade assumida em relação às declarações e aos depoimentos é fortemente marcada pela prestação na audiência de julgamento. A oralidade e a imediação que informam a dinâmica deste ato processual facultam ao julgador um vastíssimo leque de pormenores e de elementos valiosos sobre a (im)parcialidade, espontaneidade, seriedade, hesitações, postura, atitude, razões de ciência, linguagem, à-vontade, comportamento, etc., dos depoentes. Alguns destes aspetos, de tão subtis [“linguagem silenciosa e do comportamento”], não são sequer passíveis de identificação e de revelação. Nas palavras do Professor Figueiredo Dias: “desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos não racionalmente explicáveis (…) e mesmo puramente emocionais” [Direito Processual Penal, Primeiro Volume, 1981, p. 205.].
14. Por isso, se o julgador revela o quadro geral das impressões determinantes da sua convicção e estas não se mostram contrárias à razoabilidade das coisas comuns, então, nada lhe pode ser assacado em termos de produzir uma alteração da convicção formada a partir deles [Nesse sentido, Ac. STJ, de 15/07/2008, Proc. n.º 418/08 - 5.ª Secção (Conselheiro Souto de Moura): “I - Uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se faz da prova e outra é detetarem-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório. II - Por outro lado também não pode esquecer-se tudo aquilo que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite: basta pensar no que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reações do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir. III - O trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizados em 1.ª instância, e da fundamentação feita na decisão por via deles, traduz-se fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado como provado o que se deu por provado – cf. Acs. de 15-02-2005 e de 10-10-2007, Procs. n.ºs 4324/04 - 5.ª e 3742/07 - 3.ª, respetivamente”; ver, tb., o Ac. RP de 12 de Maio de 2004 (Élia São Pedro), processo 0410430: “I – A convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando seja obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou, então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. II – Desde que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador” – ambos disponíveis em www.dgsi.pt].
15. É essa, aliás, a orientação do Tribunal Constitucional ao considerar: “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão” [Ac. n.º 198/2004].
16. É o caso dos autos: a convicção do tribunal mostra-se apoiada na prova produzida e a leitura que dela foi feita é plausível e ajustada às regras da experiência comum [artigo 127.º, do Cód. Proc. Penal]. Da análise feita nada nos permite fazer um pronunciamento de censura quanto ao juízo de credibilidade atribuído a cada um dos intervenientes em audiência e, em particular, às declarações dos arguidos e ao depoimento da vítima [ver Ac. RC de 12.5.2010 (Orlando Gonçalves): “(…) 5. O preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova”; e Ac. RP de 10.09.2014 (Neto de Moura): “II – Tal análise crítica (das provas) há de ser mais ou menos profunda, mais ou menos exaustiva, em função da maior ou menor complexidade do caso. (…) V – Os limites da liberdade valorativa da prova no âmbito penal são as regras da lógica e da razão, as máximas da experiência e os conhecimentos técnicos e científicos. (…) XI – Se o tribunal recorrido, analisada e valorada a prova produzida, não ficou na dúvida em relação a qualquer facto, não pode dizer-se que, na dúvida decidiu contra o arguido, pelo que não tem base de sustentação a imputação de violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo - disponíveis em www.dgsi.pt]. Improcede, pois, este primeiro fundamento do recurso.
Atenuação especial da pena
17. Dizem os recorrentes que o acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia [artigos 379.º, n.º 2, alínea c) e 374.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal], uma vez que não aplicou o regime da atenuação especial da pena por “os factos [se] encontrarem delimitados temporalmente ao período compreendido entre 15 de agosto e 16 de setembro de 2007” terem decorrido há mais de 6 anos e ambos os arguidos apresentarem “boa conduta (…) no decurso temporal pós prática criminosa (…) a não comissão de qualquer crime de idêntica descrição típica” [conclusões 12 a 18].
18. Voltam a não ter razão. O artigo 72.º, n.º 1, do Cód. Penal, reserva a atenuação especial da pena aos “casos previstos na lei” e àqueles em que “existirem circunstância anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente, ou a necessidade da pena”. E no n.º 2, enumera algumas dessas circunstâncias.
19. Ao aludir a uma “diminuição acentuada” da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena o legislador pretende criar uma válvula de segurança para as situações em que se tenha coligido um importante conjunto de circunstâncias atenuantes em face das quais a imagem global da atuação do agente não se coaduna com as hipóteses normais que o legislador pensou quando estatuiu a moldura típica para o caso [Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 306]. Ora, não é isso que se passa no caso dos autos: as situações invocadas pelos recorrentes, por si só ou em conjunto, não compõem uma circunstância de exceção relativamente ao padrão comum da atuação dos agentes no âmbito deste tipo de crime. Tanto a delimitação temporal dos factos – que perduram um mês –, como a circunstância destes terem ocorrido há mais de 6 anos e de não haver registo de condenações criminais nesse período não têm a expressão de relevância excecional exigida pela Lei para justificar uma atenuação, também ela excecional (especial) da pena.
20. Na interpretação desta disposição legal e na procura de casos em que ela deve ter aplicação há que ter em conta que o legislador, ao elaborar a norma penal, estatui para o caso normal, isto é, para a generalidade das situações que preenchem a tipicidade da norma e justificam uma pena situada dentro da moldura legal prevista. A atenuação especial só tem cabimento nas situações que, não constituindo o caso normal previsto pelo legislador ao estatuir os limites da moldura, reclamam, manifestamente, por razões de justiça e de equidade, uma pena inferior, o que sucederá sempre que a imagem global do facto e as circunstâncias em que ele foi praticado resulte acentuada diminuição da culpa ou da necessidade da punição [Nesse sentido, v.g., Ac. STJ de 05.03.2009, processo 08P4133 (Cons. Souto Moura), de 08.10.2009, Proc. n.º 228/08.5JAFAR.S1 (Cons. Rodrigues da Costa) e Ac. RP de 22.6.2011 (Artur Vargues): “(…) XI - O funcionamento da atenuação especial da pena está dependente da verificação em concreto de uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa ou da necessidade da pena e apenas pode ter lugar em casos verdadeiramente extraordinários ou excecionais, pois para a generalidade dos casos funcionam as molduras penais normais com os seus limites mínimos e máximos” – todos em www.dgsi.pt]. Improcede, pois, mais este fundamento.
Medida da pena fixada ao recorrente
21. Por último, o recorrente pugna para que, ponderando todas as circunstâncias do caso, a pena seja fixada no mínimo legal previsto [5 anos de prisão] e substituída por pena de suspensão da execução da prisão [conclusões 21 a 24].
22. Ainda aqui, sem razão. Os recorrentes vêm condenados pela prática, em autoria material, de um crime de Escravidão, do artigo 159.º, alínea a), do Cód. Penal. Tal qualificação jurídica não vem questionada e merece a nossa total adesão face à factualidade dada como provada. Em linha com o decidido no Ac. RP de 30.01.2013 [José Piedade], em cujo sumário se refere: “(…) III – Por escravatura entende-se «o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade». IV- Consequentemente, é escrava toda e qualquer pessoa que tenha tal estado ou condição. V – No entanto, o conceito tem de ser densificado perante as circunstâncias sociais, históricas e políticas contemporâneas, e de acordo com as conceções ético-filosóficas dominantes. VI – Por isso, cabe na previsão legal a escravidão laboral, nos casos em que a vítima é objeto de uma completa relação de domínio por parte do agente, vivenciando um permanente “regime de medo”, não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho e não recebendo qualquer parte da sua retribuição” [em www.dgsi.pt].
23. É, assim, seguro que o tipo legal em causa não pressupõe, necessariamente, uma situação de cativeiro, abrangendo, também, quadros de servidão como o dos autos, em que a vítima – um invisual, sem familiares próximos, que se dedica à mendicidade sobretudo em feiras – foi agarrada e introduzida à força num veículo automóvel e permaneceu durante um mês às ordens dos arguidos que o colocavam, contra a sua vontade, a pedir esmola em lugares por si determinados, sob o seu controlo e vigilância, impedindo-o de fugir e obrigando-o a entregar-lhes todo o proveito obtido e a pernoitar com eles na habitação.
24. Seguindo a máxima “Slaves for live and servants for a time”, o conceito jurídico de escravidão inclui os casos de servidão para exploração do trabalho – em que alguém é forçado ou obrigado a realizar determinado trabalho e a viver sem a possibilidade de mudar a sua condição de propriedade de outrem. A servidão reporta uma realidade mais ampla que a invocada pelo sentido comum do termo “escravidão” [“Servitude is a linked but much broader term than slavery”]. Como refere o TEDU, em Siliadin v. France [2005]: “(…) 123. No que diz respeito ao conceito de ‘servidão’, o que é proibido é uma ‘forma particularmente grave de negação da liberdade’ (ver Van Droogenbroeck v. Bélgica, o relatório da Comissão de 09 de julho de 1980, Série B n.º 44, p. 30, §§ 78 - 80). Ele inclui, ‘além da obrigação de executar determinados serviços para outrem... a obrigação de o 'servo' viver como propriedade de outra pessoa e a impossibilidade de alterar a sua condição’ [tradução da responsabilidade do relator]. 25. O próprio artigo 5.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia abre espaço à autonomização do conceito de servidão no quadro geral da escravidão ao prever, sob a epígrafe “Proibição da escravidão e do trabalho forçado”:
1. Ninguém pode ser sujeito a escravidão nem a servidão.
2. Ninguém pode ser constrangido a realizar trabalho forçado ou obrigatório.
3. É proibido o tráfico de seres humanos.
26. Os órgãos da CEDH deram uma definição de "servidão". Para a Comissão Europeia dos Direitos do Homem é a obrigação de viver e trabalhar na propriedade dos outros e de prestação de determinados serviços, remunerados ou não, bem como a impossibilidade de mudar a condição (Aplicação n.º 7906/77, DR 17, p.59; ver também o relatório da Comissão de Van Droogenbroeck de 09 de julho de 1980, Série B, Vol 44, p.30, parágrafos 78-80.). É claro que a servidão é uma forma particular de escravidão, que se distingue menos pela natureza do que pelo grau. Embora seja um estado ou condição implica uma "forma particularmente grave de negação da liberdade" (caso Van Droogenbroeck, acórdão de 24 de junho de 1982, Série A, nº 50, p.32, parágrafo 58), que não inclui os atributos do direito de propriedade característicos da escravidão [seguimos o enunciado no § 95 da Relatório Preliminar da “Convention du Conseil de l'Europe sur la lutte contre la traite des êtres humains”, Varsovie, 16.V.2005, disponível em www.coe.int/trafficking, com tradução nossa].
27. Posto isto, importa referir que a moldura penal prevista para este tipo de crime é a de prisão de 5 a 15 anos. No caso concreto, não há razões objetivas que justifiquem (imponham) a aplicação do limite mínimo da pena: a ilicitude dos factos é elevada, tal como a intensidade do dolo. O arguido revelou grande indiferença pela dignidade humana da vítima, contribuindo para a manter às suas ordens ao longo de 30 dias, até à intervenção da PSP; não tem uma vida laboral estruturada e sofreu já 6 condenações, pela prática de crimes de furto [2000], furto qualificado (tentativa) [2004] e condução de veículo sem habilitação legal [2007, 2010, 2010 e 2012]. Por último, referência às fortíssimas exigências de prevenção geral numa área da criminalidade que suscita grande repulsa na comunidade.
28. É certo que, por razões alheias ao recorrente, passaram já sete anos sobre a data da prática dos factos – período durante o qual ele foi condenado pelos 4 crimes de condução de veículo sem habilitação. O decurso deste tempo foi, evidentemente, considerado. Porém, atendendo ao critério legal de determinação da medida da pena [artigo 71.º, n.º 1 e 2, do Cód. Penal] e à moldura penal referida – temos de reconhecer que a pena fixada pelo acórdão recorrido em 6 anos de prisão, portanto muito próxima do seu limite mínimo, não se revela manifestamente arbitrária nem desproporcionada [Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 254 e 255 e Ac. RP de 2.10.2013 (Joaquim Gomes) em www.dgsi.pt].
Com o que improcede mais este fundamento e, com ele, todo o recurso.
A responsabilidade pela taxa de justiça
Uma vez que os arguidos decaíram no recurso que interpuseram são responsáveis pelo pagamento da taxa de justiça [artigo 513.º, do CPP], cujo valor é fixado entre 1 e 15 UC [artigo 87.º, n.º 1, alínea b) e 3, do CCJ]. Tendo em conta a situação económica dos arguidos e a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 3 UC para cada um.
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, os Juízes acordam em:
● Negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos B… e C…, mantendo o acórdão recorrido.
Taxa de justiça: 3 [três] UC, a cargo de cada recorrente.
[Elaborado e revisto pelo relator – em grafia conforme ao Acordo Ortográfico de 1990]

Porto, 5 de novembro de 2014
Artur Oliveira
José Piedade