Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2960/13.2TBPRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: REIVINDICAÇÃO
DEMARCAÇÃO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RP201505112960/13.2TBPRD.P1
Data do Acordão: 05/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se a autora pedir que metade da largura de certa faixa de terreno, bem definida em termos físicos, situada entre o corpo principal de dois prédios, faz parte do seu prédio e a outra metade integra o prédio vizinho, estando provado que tal faixa só pode pertencer a um ou a outro dos prédio, ou a ambos, então, se não existir prova de posse correspondente ao direito de propriedade, quer por parte da autora, quer dos réus, nem a questão puder ser resolvida através de títulos, deve ser atribuída metade do espaço a cada parte, nos termos do artigo 1354.º do Código Civil.
II – Constando de uma escritura de partilhas, na qual foram outorgantes a autora e um antepassado dos réus:
(a) Que o prédio «X», aí atribuído à autora, «confrontava» com um caminho de servidão localizado a poente, ponto cardeal onde se situa imediatamente o prédio vizinho dos réus partilhado na mesma escritura;
(b) Que entre as construções e anexos de ambos os prédios existe um espaço por onde a autora ou outros a seu mando sempre têm passado a pé, de carro de tracção animal ou tractor; e
(c) Que um cidadão, medido pela bitola do bonus pater familias, observando o espaço em causa, verificará que se encontra livre e visivelmente delimitado e é adequado a permitir a passagem de pessoas, veículos ou animais para o prédio da autora;
Tais factos implicam a existência de uma servidão de passagem por destinação de pai de família (artigo 1549.º do Código Civil).
III – O espaço físico livre e visivelmente delimitado situado entre as construções e anexos de ambos os prédios, com a função de permitir a passagem de pessoas ou veículos, preenche o conceito de «sinais visíveis e permanentes» referidos no artigo 1549.º do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto – 5.ª secção.
Recurso de Apelação.
Processo n.º 2960/13.2TBPRD do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este – Paredes – Instância Local – Secção Cível – J2 (anterior Tribunal Judicial da Comarca de Paredes – 2.º Juízo Cível).
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Juiz relator – Alberto Augusto Vicente Ruço.
1.º Juiz-adjunto……Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto.
2.º Juiz-adjunto…….Ana Paula Pereira de Amorim.
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Sumário:
I - Se a autora pedir que metade da largura de certa faixa de terreno, bem definida em termos físicos, situada entre o corpo principal de dois prédios, faz parte do seu prédio e a outra metade integra o prédio vizinho, estando provado que tal faixa só pode pertencer a um ou a outro dos prédio, ou a ambos, então, se não existir prova de posse correspondente ao direito de propriedade, quer por parte da autora, quer dos réus, nem a questão puder ser resolvida através de títulos, deve ser atribuída metade do espaço a cada parte, nos termos do artigo 1354.º do Código Civil.
II – Constando de uma escritura de partilhas, na qual foram outorgantes a autora e um antepassado dos réus:
(a) Que o prédio «X», aí atribuído à autora, «confrontava» com um caminho de servidão localizado a poente, ponto cardeal onde se situa imediatamente o prédio vizinho dos réus partilhado na mesma escritura;
(b) Que entre as construções e anexos de ambos os prédios existe um espaço por onde a autora ou outros a seu mando sempre têm passado a pé, de carro de tracção animal ou tractor; e
(c) Que um cidadão, medido pela bitola do bonus pater familias, observando o espaço em causa, verificará que se encontra livre e visivelmente delimitado e é adequado a permitir a passagem de pessoas, veículos ou animais para o prédio da autora;
Tais factos implicam a existência de uma servidão de passagem por destinação de pai de família (artigo 1549.º do Código Civil).
III – O espaço físico livre e visivelmente delimitado situado entre as construções e anexos de ambos os prédios, com a função de permitir a passagem de pessoas ou veículos, preenche o conceito de «sinais visíveis e permanentes» referidos no artigo 1549.º do Código Civil.
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Recorrente…………………...B…, residente em Rua …, n.º .., …, ….-… …, Paredes.
Recorridos…………………..C… e D…, residentes em Rua …, n.º …, ….-… …, Paredes.
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I. Relatório.
a) O presente recurso insere-se no âmbito duma acção declarativa de condenação, mediante a qual a autora B… pretende, no confronto com os réus C… e D…, que o tribunal declare que ela é titular de uma servidão de passagem a pé e com veículos de tracção animal ou mecânica, constituída por destinação de pai de família ou, em todo o caso, por usucapião, a qual se exerce através de uma faixa de terreno que se estende desde a Rua … (freguesia …, concelho de Paredes), até ao limite da pequena horta que integra o seu prédio, como melhor se expõe na petição inicial.
Concluiu a petição pedindo a condenação dos réus nestes termos:
«a) Reconhecer que a autora é dona e legítima possuidora de metade da faixa de terreno identificado em 16, que integra o caminho identificado em 14 e o prédio identificado em 1, todos desta peça processual.
b) A reconhecer que a autora tem o direito de passagem a pé e com veículos de tracção animal ou mecânica através daquela faixa de terreno, desde a Rua … até ao limite da pequena horta que integra o seu prédio identificado em 1.
c) A manter livre e desimpedida a articulada faixa de terreno, retirando o muro e outras construções e abstendo-se de colocar quaisquer obstáculos que impeçam a livre circulação sobre o caminho».
Os Réus contestaram alegando que edificaram de facto o aludido muro, mas fizeram-no porque não existe no local qualquer servidão.
No final a acção foi julgada improcedente.
b) É desta decisão que a autora recorre tendo formulado, após notificação do relator para aperfeiçoamento, as seguintes conclusões:
«1.º - Os prédios da recorrente e do recorrido marido, supra melhor identificados, ambos eram pertença dos mesmos donos, os falecidos pais da autora e avós do réu marido, E… e F…, e na partilha operada pelo óbito de ambos, os prédios foram divididos e adjudicados entre os herdeiros compreendendo e integrando todas as suas pertenças, conforme uso e costume, designadamente todas os respectivos direitos.
2.º - A recorrente faz acesso ao seu prédio, hoje de habitação, com eira e horta junta, por um caminho que tem o seu início na Rua …, passa pelo prédio dos recorridos e atinge o seu prédio, assim como que, na sua parte inicial, em rampa acentuada, o chão foi pavimentado a cubos e na parte superior, cimentado (por acordo de todos, o primeiro pela autora e o segundo pelos réus).
3.º - Os recorridos construíram um muro, em blocos de cimento, com a altura de cerca de 1,50 metros, que se inicia na ponta norte da sua casa, prolongando-se ao longo do caminho, no sentido aproximado norte-sul e terminando no limite da pequena horta da recorrente, deixando apenas cerca de um metro de passagem para a autora no acesso à eira (e casa, acrescenta-se que o acesso à casa é feito pela eira), e ainda menos, já que vai apertando, no acesso à pequena horta (a largura deixada livre pelo muro para o lado da autora varia entre 1,03 metros e 0,98 metros (no acesso à eira e casa), largura que vai diminuindo até à extrema do acesso à horta enquanto, a largura é de respectivamente 1,05 metros e 1,30 metros, alargando na parte superior, tendo o muro a espessura de 0,20 metros), conforme inspecção ao local.
4.º - Em vida dos autores da herança, como proprietários dos dois prédios utilizavam o caminho para se dirigir quer à casa da habitação, quer ao palheiro e horta, que lhe ficavam defronte, não pertencendo o leito do mencionado caminho exclusivamente a qualquer dos prédios.
5.º - Na invocada partilha nada foi dito em contrário, pelo que terá obrigatoriamente que se presumir, de forma absoluta, que metade do leito do caminho integrou o prédio que ficava do seu lado e que a favor dos prédios se constituíram por efeito dessa partilha sobre a outra metade recíprocas servidões por destinação de pai de família que no caso oneram ambos os prédios.
6.º - Da leitura da escritura de partilha, junta nos autos, nada resulta que permita inferir, como se faz na sentença recorrida, que o caminho integrava o prédio urbano do recorrido marido.
7.º - E tanto é assim, que o caminho não era todo dos recorridos, são eles próprios expressamente a reconhecê-lo ao construírem o muro, ainda que ultrapassando o limite da sua metade, já que
8.º - Não faz qualquer sentido construir o muro, definindo um novo limite para o seu terreno e afirmando de forma clara que para além do muro o terreno do caminho pertence à autora, se todo o leito do caminho lhes pertencesse
9.º - Não se compreende assim como pode entender-se, como o faz a sentença recorrida, que a divisão dos prédios de ambos não se fizesse pela metade do invocado caminho, ou de que neles não se manifestassem os sinais de passagem e as condições de acesso.
10.º - É que, conforme supra se acentuou, foram colocados cubos de pedra na parte inicial do caminho desde a Rua …, por onde todos se servem e cimentado a parte seguinte entre as casas da autora e dos réus, onde agora foi implantado o muro, o que não permite verificar quaisquer sulcos de passagem de veículos.
11.º - Os sinais da existência do caminho e do seu uso como caminho resultam de imediato de ter sido pavimentado a cubos numa parte e cimentado noutra, que naturalmente não permitem hoje verificar os sulcos da passagem de carros de bois, tractores ou pessoas mas que identificam perfeitamente a sua natureza.
12.º - Existe manifesta contradição entre os factos assentes na alínea E – a autora, ora recorrente, faz acesso ao seu prédio pelo caminho, desde que ele lhe ficou a pertencer – e dar-se como não provado que o faz sem oposição de ninguém, exercendo um direito próprio, ou que não pagou impostos sobre o caminho, como se ele por si só fosse sujeito a tributação – Ponto 4 dos factos não assentes – devendo assim dar-se como provada, para desfazer a contradição, a matéria constante do Ponto 4.
13.º - O ponto 7 dos factos não assentes deve ter resposta afirmativa, já que conforme resulta da alínea E dos factos assentes, o acesso ao prédio da autora faz-se pelo caminho e este vem desde a Rua ….
14.º - Inexiste qualquer outro caminho, pois o muro construído pelos recorridos termina e fecha no limite da pequena horta – alínea G dos factos provados.
15.º - Não pode ser dado como provado que o muro não impede a livre circulação da recorrente, pelo simples facto de o julgador aí ter passado, pelo que a resposta deve ser alterada no sentido de, não impedindo totalmente a passagem a pé, a dificulta de forma significativa, já que
16.º - A autora é uma pessoa de avançada idade, que se desloca com canadianas (facto notório, do conhecimento directo do Tribunal que o verificou na tentativa de conciliação que antecedeu a audiência de julgamento) e que portanto não tem a mesma mobilidade.
17.º - A «quelha» julgada suficiente, agora totalmente entre muros (conforme resulta até das fotografias juntas e do auto de inspecção), não permite o acompanhamento por outra pessoa, ou até usar um simples guarda-chuva, que não cabe no espaço disponível.
18.º - É que, no limite, e admitindo que a autora, ora recorrente apenas detinha um direito de passagem de pé, como se conclui da sentença, ele era exercida sem qualquer limitação por todo o caminho, e não pelo diminuto espaço que agora fica livre, pelo que os recorridos, se entendessem que era demais, então tinham que, em acção própria, fazer limitar o uso da servidão.
19.º - A matéria constante do Ponto 1 dos factos não assentes é contraditória, por inclusivamente negar a passagem a pé, dada como provada na alínea E dos factos assentes, e é contrariada pelo depoimento das testemunhas que referem que os prédios eram do mesmo dono, pais e avós da autora e do réu marido, e por aí passavam embora esporadicamente, com veículos de tracção animal e mecânica.
Deve assim ser alterada a resposta do ponto 1 dos Factos não assentes, no sentido de provado ou, no mínimo, no sentido de a uniformizar com os factos assentes na alínea E, sempre com a correcção das medições, fixadas no auto de inspecção ao local, da largura do caminho, da largura do muro e do espaço disponível de um e outro lado.
20.º - A ligação à hoje Rua … dos prédios da autora e dos réus, a pé, primeiramente com carro de tracção animal e mais tarde com tracção mecânica, sempre foi feita pelos donos ou em seu nome e no seu interesse, por esse caminho, ainda que de forma esporádica, e especialmente no sentido descendente, por ser mais fácil do que subir, dada a forte inclinação do caminho.
21.º - E se os veículos podiam descer o caminho, certamente que o direito de nele passar.
22.º - As contradições entre os factos assente e os não provados, assim como o considerar-se como não provados, nos termos expostos, alguns factos cuja resposta devia ser afirmativa, designadamente a matéria constante do ponto 4 dos factos não assentes, que deve ser dada como provada, alterada a resposta ao ponto 1 dos factos não assentes, no sentido de provada ou no mínimo, compatibilizada com os factos assentes da alínea E, são assim evidentes e suscitam a necessidade de correcção no sentido de ver alterada a decisão proferida.
Deve desta forma ser alterada a sentença em apreço no sentido de ver reconhecido à apelante que é dona e legítima possuidora de metade do articulado caminho, assim como tem o direito de passagem sobre toda a largura do caminho, a pé e com veículos de tracção ou mecânica, desde a Rua … até ao limite da pequena horta que faz parte do seu prédio, mantendo-o livre e desimpedido, retirando o muro e abstendo-se de aí colocar quaisquer obstáculos que impeçam a livre circulação sobre o caminho.
Assim se fará JUSTIÇA!».
c) Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso, sustentando, em síntese, que a prova produzida não permitiu em 1.ª instância, nem permite em sede de recurso, concluir pela existência da servidão de passagem invocada pela Autora, quer constituída por destinação de pai de família, uma vez que não existem sinais visíveis e permanentes da mesma, quer por usucapião, uma vez que a escassa prova testemunhal até referiu que o acesso se fazia pelo nascente e não pela rua ….
II. Objecto do recurso.
Tendo em consideração que o âmbito dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), as questões colocadas no recurso são as seguintes:
1 - Em primeiro lugar, cumpre verificar se a matéria de facto deve ser alterada nos termos preconizados pela autora, estando em causa as seguintes questões:
(a) Contradição assinalada pela autora entre o «facto provado da alínea E) dos «factos assentes» e o facto não provado sob o «n.º 4», devendo este facto ser declarado provado.
(b) O ponto 7 dos factos não provados deve ter resposta afirmativa, porque resulta dos factos assentes da alínea E) que o acesso ao prédio da autora se faz pelo caminho e este vem desde a Rua … e inexiste qualquer outro caminho, pois o muro construído pelos recorridos termina e fecha no limite da pequena horta – alínea G dos factos provados.
(c) Na conclusão n.º 15 do recurso afirma-se que «Não pode ser dado como provado que o muro não impede a livre circulação da recorrente»
Trata-se do facto «não provado» n.º 9 que tem esta redacção:
«9) O muro referido em G) impede a autora de ter acesso à totalidade do prédio referido em A)».
A Autora pretende que se considere como provado que o muro não impedindo totalmente a passagem a pé não permite que a Autora seja ajudada por outra pessoa, ou até usar um simples guarda-chuva, que não cabe no espaço disponível.
(d) Por fim, a resposta do ponto 1 dos «factos não assentes», onde se nega a passagem a pé, deve ser alterada para «provado» para desfazer a contradição com os factos assentes na al. E) onde se afirma essa passagem a pé, sempre com a correcção das medições, fixadas no auto de inspecção ao local, da largura do caminho, da largura do muro e do espaço disponível de um e outro lado do muro.
2 - Em segundo lugar, analisar-se-ão as questões relativas ao mérito da causa, que são estas:
(a) Se os factos provados, incluindo os eventualmente resultantes da impugnação acabada de indicar, permitem concluir que a autora, consoante o pedido, é proprietária de metade da faixa de terreno que existe entre o corpo principal de ambos os prédios [1];
(b) Se esta faixa constitui o leito de uma servidão de passagem a pé e carro, constituída por destinação de pai de família em benefício do prédio da autora ou, em todo o caso, por usucapião.
(c) Se a autora tem direito a obter a remoção do muro e outras construções implantadas no leito dessa servidão.
III. Fundamentação
a) Análise das questões relativas à matéria de facto impugnada
Antes de passar à análise das questões colocadas, cumpre fazer uma apreciação panorâmica sobre a factualidade subjacente à presente acção, na expectativa de que esta análise permita compreender as questões particulares inerentes à impugnação da matéria de facto apresentada pela Autora.
Vejamos então.
Afigura-se que os elementos que constam do processo mostram com clareza que no local onde foi construído o muro existe efectivamente uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família a favor do prédio da autora (e porventura a favor do prédio dos réus, mas este aspecto não é objecto da acção e, por isso, nada se dirá a tal respeito).
Verifica-se que o réu marido, C…, é sobrinho da autora B…, pois é filho de G… e esta é irmã da autora.
O prédio dos réus foi doado ao réu marido, B…, pelos seus pais, G… e H…, e estes receberam tal prédio por herança de I…, irmão de G… e da autora B….
Verifica-se, por conseguinte, que os prédios da autora e dos réus, entre o corpo dos quais passa o alegado leito da servidão (sem agora cuidar de saber se esse leito faz parte de algum dos prédios) pertenceram ambos a antepassados comuns, a E… e a F…, pais da autora e avós maternos do réu marido.
Verifica-se também que por morte E… a autora adquiriu, através da partilha da herança deste (seu pai), o prédio onde reside, ao qual correspondia o artigo matricial rústico 4973 (hoje artigo 2564 urbano).
Por sua vez, o prédio que é hoje dos réus, o artigo matricial urbano 344, coube nessa mesma partilha ao tio do réu marido, de nome I…, que faleceu solteiro, tendo a mãe do réu marido recebido tal prédio na partilha da herança do irmão I….
Mais tarde, este prédio passou para a titularidade dos réus por doação de G… e marido H…, pais do réu marido.
Outro facto importante: na escritura de partilha da herança de E… e no documento anexo a essa escritura (ver fls. 84 a 104), o prédio actualmente da autora foi então relacionado, para vir a ser partilhado pelos herdeiros, do seguinte modo:
«LOTE ONZE: NÚMERO TRINTA E UM – J…, com palheiro e eira, no …, a confinar do nascente com K…, do poente com caminho de servidão, do norte com caminho público, do sul com L…, omisso no registo, e está inscrito na matriz predial rústica sob o artigo quatro mil novecentos e setenta e três…».
Esta servidão, localizada a poente situa-se, precisamente, entre o prédio da autora e o prédio dos réus.
Os réus referem no artigo 1.º da contestação que não aceitam esta confrontação.
Porém, esta escritura de partilha, datado de 27 de Abril de 1982, que resulta do consenso de todos os herdeiros, ou que com ela de conformaram, impõem esta confrontação aos sucessores, entre os quais os réus.
É de registar que muito embora o processo verse sobre matéria de direitos reais, o mesmo é pobre em termos informativos no que respeita aos pontos cardeais, pois nem sequer a planta junta com a petição tem uma referência a indicar o «Norte».
Mas é possível inferir que a servidão objecto deste litígio fica localizada a poente do prédio da autora pela seguinte razão: os réus no artigo 3.º da contestação referem que o prédio denominado «J…» confinava no pretérito com o «caminho público».
Ora, esse caminho público é hoje a «Rua …», ou seja, o ponto cardeal «Norte» coincide com a actual Rua ….
Logo, a mencionada «servidão», referida no documento complementar da escritura de partilha, como estando localizada a «Poente» do prédio da autora (Lote 11, n.º 31) coincide com a servidão referida nestes autos pela autora.
Através dessa mesma escritura, relativa à partilha da herança de E…, o tio do réu marido recebeu o prédio que é hoje propriedade dos réus (cfr. fls. 89), constando tal prédio do documento anexo a essa escritura com a seguinte identificação:
«LOTE UM – NÚMERO UM – Uma casa térrea e telhada e quintal junto, sita no …, descrito na Conservatória do registo predial sob o número dezoito mil oitocentos e cinquenta e três, a folhas (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo trezentos e quarenta e quatro…».
Cumpre voltar a realçar o facto de vir expressamente mencionada na escritura de partilha da herança de E…, a servidão de passagem invocada nesta acção perla autora.
Resultam do exposto, três vectores:
Em primeiro lugar, os prédios de autora e réus pertenceram no pretérito a um mesmo dono: E… (pai da Autora e avó materno do réu marido) e esposa.
Em segundo lugar, a autora adquiriu na partilha da herança do seu pai E… o prédio onde reside e o prédio hoje dos réus coube nessa mesma partilha a I…, tio do réu marido, e através da partilha da herança deste passou para a mãe do réu marido que depois o doou ao réu marido.
Em terceiro lugar, consta da descrição física dos prédios, feita na escritura de partilha da herança de E…, que o prédio recebido então pela autora confrontava do poente com uma servidão.
Cumpre observar nesta parte que não existem confrontações entre prédios e servidões, como se diz na escritura.
Efectivamente, as confrontações só existem entre prédios, ou entre um prédio e um caminho público, uma rua, um acidente natural ou artificial como, por exemplo, um rio, uma lagoa ou um canal.
Mas não entre um prédio e uma servidão.
Por conseguinte, quando na escritura se diz que a poente do prédio da autora existe uma servidão, isso apenas significa que há a poente um prédio que está onerado por uma servidão a favor do prédio da autora.
Afirma-se «a favor do prédio da autora» porque não há outro prédio a favor do qual pudesse e possa estar tal servidão constituída e ao serviço.
Verifica-se que a poente do prédio da autora fica o prédio que é hoje pertença dos réus.
O que fica referido afigura-se incontroverso e insusceptível de ser contrariado por prova testemunhal, pois consta de documento que ambas as partes não contestam e retrata a realidade pretérita, realidade que, como tal, foi transmitida aos actuais proprietários desses prédios, partes nesta acção.
Aliás, o n.º 2 do artigo 393.º do Código Civil dispõe que «… não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena».
Destes factos extrai-se o seguinte facto: no espaço entre o corpo principal dos prédios da autora e dos réus existe uma servidão a favor do prédio da autora.
Coloca-se agora a questão de saber onde começa e acaba fisicamente essa servidão, já que a escritura de partilha não fornece elementos para uma definição mais precisa.
A prova testemunhal produzida também não fornece tal informação.
Resta, por conseguinte, a própria materialidade física que «está lá» e que dá forma ao espaço entre prédios, entre o prédio da autora e dos réus, espaço que começa na Rua … e segue em direcção a norte curvando depois para nascente, localizando-se de seguida entre os prédios da autora e réus.
Chama-se a atenção para a própria realidade física que existe no lugar [2].
As casas e os espaços entre casas são factos que «estão lá» e estão lá na disposição que assumem e são visíveis para qualquer pessoa.
O espaço entre casas de habitação, entre os prédios, é um resultado de uma ou mais vontades; da vontade ou vontades das pessoas que aí viveram no passado e vivem no presente.
Quer-se com isto dizer que as casas e os espaços entre casas/prédios não são fruto do acaso; não são um acidente, mas sim, repete-se, um produto da vontade das pessoas; as casas e os espaços entre casas existiram e existem por alguma razão, têm uma função ou finalidade, enfim, um significado.
O espaço que «está lá», entre o corpo do prédio da autora e o corpo do prédio dos réus, com a configuração física que tem, tem como finalidade que não pode deixar de ser a de permitir a passagem de pessoas e coisas.
Não pode deixar de ser esta a função porque não lhe é assinalada outra, sendo certo que em parte se encontra pavimentado, nem se vislumbra que tenha tido e tenha actualmente outra função a não ser a de servir e permitir a passagem de pessoas e coisas.
Face ao que fica dito, o juiz não pode deixar se formar a convicção no sentido de existir ali um espaço com a função de servir de passagem entre ambos os prédios, que serviu outrora e continua a servir de acesso a pessoas e respectivas coisas a ambos os prédios, incluindo carros não motorizados no passado e motorizados no presente.
Por conseguinte, as respostas à matéria de facto não podem deixar de estar em harmonia com esta conclusão factual que a escritura de partilha e a configuração física dos prédios impõe.
Aliás, esta função e este significado não é afastado pelo depoimento das testemunhas, antes se harmonizam com ele.
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Passando agora à análise da impugnação da matéria de facto sem perder de vista o que fica referido.
I - Contradição assinalada pela autora entre o «facto provado da alínea E) dos «factos assentes» e o facto não provado sob o «n.º 4», devendo este facto, segundo a autora, ser declarado provado.
O facto provado da alínea E) dos «factos assentes» tem esta redacção:
«E) A autora, desde 27/4/82, vem fazendo o acesso ao prédio referido em A), a pé, acedendo à eira e horta, por um caminho que tem o seu início na hoje denominada Rua …, passa pelo prédio referido em C) e atinge o prédio referido em A)».
O facto não provado sob o «n.º 4», tem a seguinte redacção:
«4) A autora, por si e antepossuidores, vem usando, fruindo e dispondo da faixa de terreno referida em «5», há mais de 30 e 40 anos, fazendo obras de adaptação, pagando impostos e colhendo os frutos, sempre repetida e renovadamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, exercendo um direito próprio, de modo a poder ser conhecido por todos».
Há efectivamente alguma contradição na parte que respeita ao «acesso» efectuado pela autora, mas não justifica a alteração pretendida [3].
Não pode dar-se como «provado» o conteúdo do facto não provado sob o «n.º 4».
Assim não pode dar-se como provado:
- «A autora, por si e antepossuidores, vem usando, fruindo e dispondo da faixa de terreno referida em «5», há mais de 30 e 40 anos», por se tratar de matéria de direito.
- «fazendo obras de adaptação». Que obras? Não se sabe.
- «pagando impostos». Que impostos? Não se sabe
- «e colhendo os frutos». Que frutos? Não se sabe.
Face a esta falta de especificação factual a resposta tem de ser «não provado».
- «sempre repetida e renovadamente à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, exercendo um direito próprio, de modo a poder ser conhecido por todos».
Trata-se de texto ligado ao antes referido, pelo que tem a mesma resposta de «não provado».
Improcede, por conseguinte, o recurso nesta parte.
II – A autora diz que o ponto 7 dos factos «não provados» deve ter resposta afirmativa, porque resulta dos factos assentes da alínea E) que o acesso ao prédio da autora se faz pelo caminho e este vem desde a Rua …, sendo certo que inexiste outro caminho, pois o muro construído pelos recorridos termina e fecha no limite da pequena horta – alínea G dos factos provados.
Este n.º 7 dos factos não provados tem esta redacção:
«7) O prédio da Autora não tem qualquer confrontação directa com a Rua …, a não ser pelo caminho supra melhor descrito em E)».
Assiste razão à autora, pois não é feita referência a qualquer outra saída.
A testemunha M… referiu que havia saída pelo lado da casa da D. G…, mas que existia aí um portão da D. G…, o que indica que não se tratava de um outro acesso para o prédio da autora.
Será acrescentado um facto, com o n.º 8, à matéria de facto, com este teor: «O prédio da Autora não tem qualquer confrontação directa com a Rua …, a não ser pelo caminho supra melhor descrito em E)».
III – Na conclusão n.º 15 do recurso afirma-se que «Não pode ser dado como provado que o muro não impede a livre circulação da recorrente».
Trata-se do facto «não provado» n.º 9 que tem esta redacção:
«9) O muro referido em G) impede a autora de ter acesso à totalidade do prédio referido em A)».
Deve manter-se a resposta, pois este «facto não provado n.º 9» não passa de uma afirmação conclusiva cujos factos mais miúdos, primários, que lhe servem de premissa factual, estes sim carecidos de resposta, já constam da referida al. G) dos factos provados, onde se diz que «…os réus realizaram obras no mencionado caminho, tendo construído um muro, em blocos de cimento, com a altura aproximada de 1,50 metros, que se inicia na ponta norte da sua casa, prolongando-se ao longo do caminho, no aproximado norte-sul e terminando no limite da pequena horta da autora, e foi implantado deixando apenas cerca de um metro de passagem para a autora no acesso à eira e ainda menos, já que vai apertando, no acesso à pequena horta».
Perante esta realidade, ao nível da análise jurídica, necessária à aplicação da lei, extrair-se-ão, se os factos o permitirem, as conclusões factuais que forem consideradas pertinentes.
Improcede, por conseguinte, o recurso nesta parte.
IV – A autora sustenta que a resposta constante do «ponto 1» dos «factos não assentes», onde se nega a passagem a pé, deve ser alterada para «provado», para desfazer a contradição com os factos assentes na al. E), onde se afirma essa passagem a pé, sempre com a correcção das medições, fixadas no auto de inspecção ao local, da largura do caminho, da largura do muro e do espaço disponível de um e outro lado.
Assiste razão à Autora nos termos que a seguir indicados.
Como resulta do exposto na introdução à impugnação da matéria de facto, o espaço que se inicia na Rua …, a poente, e segue entre o corpo principal dos prédios, desembocando no local onde os réus construíram o muro, sempre teve por função permitir a passagem de pessoas e suas coisas, designadamente na parte onde foi construído o dito muro.
É de perguntar o seguinte: se porventura não era ou não é esta a função desse espaço que se inicia na Rua …, então tal espaço existiu no passado e existe no presente para que finalidade?
É claro para o julgador que a resposta não pode deixar de ser esta: para as pessoas passarem, elas, as suas coisas, incluindo veículos, de acordo com o espaço existente.
Acrescentar-se-á, por isso, com o n.º 9, este facto aos «factos provados»: «O acesso aos prédios referidos em «1» e «3», a pé, de carro de tracção animal ou tractor, sempre foi feito desde o tempo de E…, por uma faixa de terreno, com largura variável entre cerca de 3 e 5 metros, conforme vem identificado no levantamento topográfico junto como doc. n.º 3 e onde aparece colorido a vermelho».
Retira-se do texto «provado» a referência a:
- «ligeiros e mesmo de mercadorias», pois dos depoimentos transcritos pela autora apenas consta a referência a um tractor, que não é veículo ligeiro nem de mercadorias.
- «pelos donos ou em seu nome e no seu interesse», por se tratar de matéria de direito.
- «tempos imemoriais», por não haver prova desta situação, sabendo-se no entanto, como não pode deixar de ser, que quando ambos os prédios eram de E…, este passava nesse local como bem entendia, de acordo com as suas necessidades, pois todo aquele espaço lhe pertencia.
Não se faz referência à largura medida na inspecção ao local realizada em 15 de Maio de 2014, por não se ter a certeza de que se interpretam correctamente os dados que aí constam relativamente à largura do espaço em questão, que parecem referir-se apenas ao início (Rua …) e à parte onde os réus construíram o muro.
b) Matéria de facto provada
1. O prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e andar, com quintal e eira, sito na Rua …, n.º …, …, Paredes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 102/180686 e inscrito na respectiva matriz sob os artigos 2564, está ali registado a favor da autora pela Ap.4940 de 2009/04/08, causa «partilha subsequente a divórcio».
2. Tal prédio foi adjudicado à autora na partilha que se procedeu em 27 de Abril de 1982, por óbito de E….
3. O prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, com quintal, sito na Rua …, n.º …, …, Paredes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 977/19911004 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 344, está ali registado a favor do réu pela Ap. 2087 de 25 de Maio de 2012, causa «doação», figurando como sujeitos passivos G… e H….
4. O prédio referido em «3» adveio a G… e H… por partilha por óbito de E….
5. A autora, desde 27 de Abril de 1982, vem fazendo o acesso ao prédio referido em «1», a pé, acedendo à eira e horta, por um caminho que tem o seu início na hoje denominada Rua …, passa pelo prédio referido em «3» e atinge o prédio referido em «1».
6. Na parte inicial, em rampa acentuada, desde a Rua … o chão foi pavimentado a cubos de pedra e, na parte superior, foi cimentado.
7. Em fins de Março, princípios de Abril, os réus realizaram obras no mencionado caminho, tendo construído um muro, em blocos de cimento, com a altura aproximada de 1,50 metros, que se inicia na ponta norte da sua casa, prolongando-se ao longo do caminho, no aproximado norte-sul e terminando no limite da pequena horta da autora, e foi implantado deixando apenas cerca de um metro de passagem para a autora no acesso à eira e ainda menos, já que vai apertando, no acesso à pequena horta.
8. O prédio da Autora não tem qualquer confrontação directa com a Rua …, a não ser pelo caminho supra melhor descrito em «5».
9. O acesso aos prédios referidos em «1» e «3», a pé, de carro de tracção animal ou tractor, sempre foi feito desde o tempo de E…, por uma faixa de terreno, com largura variável entre cerca de 3 e 5 metros, conforme vem identificado no levantamento topográfico junto como doc. n.º 3 e onde aparece colorido a vermelho.
b) Apreciação das restantes questões objecto do recurso
1 – Vejamos se os factos provados, permitem concluir que a autora é proprietária de metade da faixa de terreno que existe entre o corpo de ambos os prédios.
A resposta é afirmativa pelas seguintes razões:
(a) Resulta dos factos provados, sob os n.º 7 e 9, que o caminho referido pela autora fica situado, na parte que aqui interessa, entre os prédios da autora e dos réus.
Já se referiu acima que ambos os prédios, o da autora e o dos réus, pertenceram no pretérito a E… e F…, pais da autora e avós maternos do réu marido.
Verifica-se, como se deixou dito, que na escritura de partilha da herança de E… e no documento anexo à essa escritura (fls. 84 a 104), o prédio da autora foi aí relacionado, para ser partilhado pelos herdeiros, incluindo os antecessores dos actuais réus, do seguinte modo:
«LOTE ONZE: NÚMERO TRINTA E UM – J…, com palheiro e eira, no …, a confinar do nascente com K…, do poente com caminho de servidão, do norte com caminho público, do sul com L…, omisso no registo, e está inscrito na matriz predial rústica sob o artigo quatro mil novecentos e setenta e três…».
Esta «servidão» corresponde ao caminho referido na petição.
(b) Como se vem referindo, há uma porção de terreno que se situa entre o corpo do prédio da autora e o corpo do prédio dos réus, cuja propriedade é incerta, embora se saiba que pertence ou à autora ou aos réus ou a ambos.
Por que razão se afirma que a mencionada porção de terreno pertence ou à autora ou aos réus ou a ambos?
Em primeiro lugar, porque não há um terceiro concorrente à propriedade desse espaço.
Em segundo lugar, porque a porção do terreno se situa ao longo da linha imaginária em que ambos os prédios confinam, mas não há factos para se saber onde começa um prédio e acaba o outro.
Em terceiro lugar, porque, como se referiu, a confrontação do prédio que hoje pertence à autora, referida na escritura de partilhas como tratando-se de uma «servidão», tem de ser interpretada de acordo com o contexto, pois um prédio pode confrontar, por exemplo, com um caminho público, mas não pode confrontar com uma servidão, pois o leito da servidão pertence necessariamente a um prédio e é este que constitui a confrontação e não a servidão.
Neste caso, o único prédio ali existente, candidato a prédio serviente, é o prédio dos réus.
Por isso, a referência a «servidão» feita na descrição do prédio exarada na escritura tem de ser entendida como respeitando à parte do dito «espaço» que integra não o próprio prédio da autora, mas sim o prédio dos réus.
c) Face ao que fica exposto, verifica-se que o pedido da autora, no sentido de obter decisão que determine que a linha divisória entre ambos os prédios coincide com a linha que divide em duas metades o espaço identificada nos factos n.º 5, 6, 7, 8 e 9 dos «factos provados», é um pedido que tem por objecto a definição da delimitação ou demarcação entre os dois prédios em causa.
Assiste a qualquer proprietário, e neste caso à autora, o direito de definir a confrontação do seu prédio, nos termos do artigo 1353.º do Código Civil, onde se estabelece que o «O proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles».
Como referiram PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, a acção de demarcação pode abarcar duas realidades diversas. Assim, quando tenha por objecto precisar as estremas de dois prédios, tendo por finalidade a simples colocação de marcos nas mesmas, sendo os seus limites certos e indiscutíveis, deve considerar-se de natureza pessoal e não real; por seu turno, quando se destina à fixação das estremas dos prédios confinantes, existindo dúvidas acerca dos respectivos limites, já reveste natureza real, e carácter dispositivo [4].
Objectar-se-á que no caso dos autos não se trata do exercício do direito de demarcação porque o Autora não pede a colocação de marcos na linha que vier a ser definida, como é próprio do exercício deste direito.
Porém, cumpre ter em consideração que a colocação de marcos ao longo da linha divisória estabelecida através da acção é uma fase subsequente e executiva do direito antes concretizado e declarado.
Como referiu ALBERTO DOS REIS, a propósito da tramitação comum às acções de arbitramento (à data reguladas nos artigos 1051.º a 1053.º do Código de Processo Civil) [5], nas quais se incluía a acção de demarcação, «Se atentarmos devidamente no formalismo dos arts. 1051.º a 1053.º, havemos de reconhecer que as acções de arbitramento apresentam, sob o aspecto processual, uma fisionomia sui generis; desenvolvem-se em duas fases distintas: a) uma fase nitidamente declarativa; b) uma fase de índole acentuadamente executiva.
Na primeira define-se o direito; na segunda procura dar-se execução ao direito declarado» [6].
A colocação de marcos materializava a fase executiva da antiga acção especial de demarcação.
Tal acção não se encontra hoje regulada no Código de Processo Civil e as duas fases anteriormente seguidas uma à outra no âmbito da mesma acção, por estarem reunidas no referido processo especial, não têm hoje de seguir-se uma à outra no mesmo processo.
Por conseguinte, a fase declarativa pode existir sem que lhe esteja acoplada a fase executiva.
Desta forma, a fase executiva não é uma fase necessária ou impeditiva do interessado exercer o seu direito promovendo apenas a acção na sua vertente declarativa.
Retomando a ideia que ficou interrompida, sendo desconhecidos os limites dos prédios, sabendo-se os mesmos estão contidos no interior desse espaço existente entre o corpo principal dos prédios e assinalado nos autos, a solução legal consiste em distribuir o terreno objecto de discórdia em partes iguais.
Com efeito, não existindo prova de posse correspondente ao direito de propriedade, quer por parte da autora, quer por parte dos réus, nem definindo a escritura pública a linha de separação entre ambos os prédios, a questão é resolvida nos termos do artigo 1354.º do Código Civil, onde se dispõe:
«Se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais».
O modo físico de obter a distribuição consiste em encontrar a linha que passa a meio do dito espaço, linha que é possível estabelecer ou definir a partir da estrema não controvertida de ambos os prédios.
Pelas fotografias verifica-se, por exemplo, que um dos prédios tem um muro adjacente ao leito desse espaço. Sendo assim, neste caso, a largura nesse local mede-se a partir do muro. Nos outros locais, mede-se a partir dos vestígios existentes, não devendo as partes alterar a configuração física actual (as medições feitas na inspecção realizada durante a audiência de julgamento poderão serão úteis no futuro para a determinação da situação factual que existia nessa data, dada a existência de elementos fixos no terreno, como é o caso do referido muro).
Procede, pelo exposto, este primeiro pedido da autora.
2 – Vejamos agora se esta faixa de terreno constitui o leito de uma servidão de passagem a pé e com veículos motorizados (constituída por destinação de pai de família a favor do prédio da autora ou, se não for o caso, por usucapião).
Resulta dos factos provados, e já se deixou antever atrás a resposta, que nesta faixa de terreno existe uma servidão a favor do prédio da autora (como se disse, não se faz referência à questão de saber se existe uma servidão a favor do prédio dos réus porque tal questão não vem colocada no processo).
É servidão na parte em que o prédio dos réus, como acima ficou referido, se estende para o interior deste espaço de terreno.
Com efeito:
(1) Provou-se que «O acesso aos prédios referidos em «1» e «3», a pé, de carro de tracção animal ou tractor, sempre foi feito desde o tempo de E…, por uma faixa de terreno, com largura variável entre cerca de 3 e 5 metros, conforme vem identificado no levantamento topográfico junto como doc. n.º 3 e onde aparece colorido a vermelho» - facto provado n.º 9.
(2) E no artigo 1549.º do Código Civil determina-se que
«Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para o outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento».
Já acima foi feito o historial de ambos os prédios no que respeita à sucessão cronológica dos proprietários.
Os prédios pertenceram ambos, ao mesmo tempo, aos pais da autora e também avós maternos dos réus.
Quando foi feita a partilha dos bens destes antepassados comuns ficou assinalada na escritura de partilha a servidão de passagem em causa, como se referiu já supra.
Os «sinais visíveis e permanentes» mencionados no artigo 1549.º do Código Civil consistem no próprio espaço com as características físicas que tem e que pode ser perfeitamente identificado no local.
Ou seja, um cidadão, medido pela bitola do bonus pater familias, observando o espaço em causa, concluirá que tal espaço tinha por fim permitir a passagem de pessoas, coisas veículos ou animais, de e para o prédio da autora (sem prejuízo de servir para acesso a outros prédios).
Aliás, como se disse, não é possível dentro dos limites da razoabilidade atribuir-lhe outra função.
E os elementos das famílias a que pertencem os proprietários de ambos os prédios também sabem, se respeitarem os cânones da boa fé, que aquele espaço existiu e existe com a função de servir de passagem e sempre foi usado pelos antigos proprietários daqueles dois prédios como passagem.
A servidão existe, por conseguinte, na parte em que o referido espaço integra, nos termos referidos na aliena anterior, o prédio dos réus.
Procede, pois, o segundo pedido.
3 – Passando à última questão, a qual consiste em saber se a autora tem direito a obter a remoção do muro e outras construções implantadas no leito dessa alegada servidão.
A resposta é afirmativa.
Num primeiro momento, face ao disposto nos artigos 1305.º, 1311.º, n.º 1, e 1315.º, todos do Código Civil, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas, tendo o direito de exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence, poderes estes que são extensivos à defesa de qualquer direito real, como é o caso das servidões (artigos 1543.º e seguintes do Código Civil).
Como referiu HENRIQUE MESQUITA, a propósito dos direitos e poderes do titular do direito real, «Não é concebível um direito sem um dever correlativo – pelo menos o dever de não impedir nem embaraçar o respectivo exercício. Se a ordem jurídica atribui a alguém a soberania ou certa soberania sobre uma coisa, tal atribuição não pode deixar de significar que, correspectivamente, se impõe a todos os demais cidadãos o dever de respeitar essa soberania, de nela não interferir. O objecto do direito real constitui, na medida dos poderes que sobre esse objecto podem ser exercidos, uma esfera reservada ao respectivo titular e, por conseguinte, o nascimento do direito necessariamente há-de implicar, para todos os não-titulares, um dever geral de abstenção – aquele dever a que, na óptica da construção do direito como relação intersubjectiva, se chama a obrigação passiva universal» [7].
E, num segundo momento, tendo em consideração o disposto no artigo 483.º, n.º 1 e 562.º, ambos do Código Civil, onde se estabelece que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, consistindo a indemnização na reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
A lei dá preferência à restauração natural, como resulta do disposto no artigo 566.º, n.º1, do Código Civil.
Aplicando estas regras ao caso dos autos, verifica-se que os réus construíram um muro no espaço que se situa entre o corpo do prédio da autora e o corpo do prédio dos réus, espaço esse destinado ao trânsito a pé e de carro para a casa de habitação e terrenos anexos da autora ou a partir da sua habitação e anexos para qualquer outro lado onde ela deseje deslocar-se.
Tal muro impede a circulação da autora a pé pela parte ocupada pelo muro e pela parte do espaço que dá para o lado do prédio dos réus e impede a circulação de veículos motorizados.
O muro constitui, deste modo, um obstáculo ao exercício do direito de disposição e de uso do dito espaço, pois tal espaço ou faz parte do prédio da autora ou está onerado com uma servidão de passagem a favor do prédio da autora.
Em qualquer dos casos o muro impede a circulação de pessoas e veículos motorizados pelo referido espaço e nesta media ofende o direito de propriedade ou de servidão existentes na esfera jurídica da autora.
A forma de restabelecer os direitos da autora consiste em pôr fim à situação ofensiva, que tem natureza permanente, o que se consegue através da reposição do espaço de terreno no estado em que se encontrava antes da implantação do mencionado muro.
A autora alude a outras construções implantadas no leito da servidão, mas não há referência na matéria de facto a tais construções, pelo que não se fará uma referência expressa a elas no dispositivo.
Os réus devem abster-se no futuro de proceder de forma idêntica, pois recai sobre os mesmos a mencionada obrigação passiva universal.
Procede, pelo exposto, o recurso, cumprindo revogar a sentença recorrida e julgar a acção procedente.
IV. Decisão.
Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente, revoga-se a sentença recorrida e condenam-se os réus nos seguintes termos:
a) A reconhecerem que a autora é dona e possuidora de metade da faixa de terreno identificada nos factos n.º 5, 6, 7, 8 e 9 dos «factos provados» que integra o prédio identificado no n.º 1 dos factos provados.
b) A reconhecerem que a autora tem o direito de passagem a pé e com veículos de tracção animal ou mecânica através da faixa de terreno identificada nos factos dos n.º 5, 6, 7, 8 e 9 dos «factos provados», desde a Rua … até ao limite da pequena horta que integra o seu prédio identificado no n.º 1 dos factos provados.
c) A manterem livre e desimpedida a faixa de terreno identificada nos factos dos n.º 5, 6, 7, 8 e 9 dos «factos provados», devendo retirar de imediato o muro e a absterem-se de colocar quaisquer obstáculos que impeçam a livre circulação sobre tal espaço.
Custas da acção e do recurso pelos réus.
*
Porto, 11 de Maio de 2015.
Alberto Ruço
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
______________
[1] Quando há uma faixa de terreno entre prédios, não havendo consenso entre os proprietários acerca dos pontos por onde passa a linha que separa um prédio do outro prédio, mostra-se inapropriado afirmar, por exemplo, que existe uma faixa de terreno entre o prédio A e o prédio B, pois ao afirmar isto estamos a delimitar e confinar os prédios a um espaço que não corresponde à realidade, pois os prédios, pelo menos um deles, incluirá a faixa em disputa.
Por isso, para evitar ambiguidades, utilizar-se-á a expressão «corpo do prédio» para significar a parte física dos prédios que não é controvertida e que corresponde, em regra, à quase totalidade do terreno de cada prédio.
[2] Não há limitações quanto à natureza ou ao tipo de facto que pode constituir prova, exigindo-se apenas, em conformidade com o disposto no artigo 341.º do Código Civil, que tenha aptidão para a «demonstração da realidade dos factos». Assim, a simples existência de um estado de coisas factual pode constituir prova.
[3] Deve-se realçar que quando se responde a uma questão de facto com a expressão «não provado A» isso apenas significa que não se provou a existência do facto A, o que é diferente da afirmação de que o facto A não existiu.
A nossa jurisprudência tem referido que a resposta negativa a um quesito significa apenas que esse facto não resultou provado e nada mais que isso, não implicando tal resposta que se considere provado o facto contrário – Acórdãos do S.T.J. de 08-2-1966, no B.M.J. n.º 154-304; de 28-05-1968, no B.M.J. n.º 177-260; de 30-10-1970, no B.M.J. n.º 200-254 e, mais recentemente, de 06-04-2006, com referência ao n.º 06B305, em www.dgsi.pt.
[4] Código Civil Anotado, Vol. III, 1987, pág. 197.
[5] A fase comum às acções de arbitramento foi abolida com a reforma do Código de Processo Civil operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, estando à data fixada nos artigos 1052.º e 1053.º do Código de Processo Civil.
[6] Processos Especiais, Vol. II, reimpressão. Coimbra Editora, 1982, pág. 23.
[7] Obrigações Reais e Ónus Reais. Livraria Almedina, 1990, pág. 61.