Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
262/15.9T8AMT-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
INSOLVÊNCIA QUALIFICADA DE FORTUITA
Nº do Documento: RP20161207262/15.9T8AMT-D.P1
Data do Acordão: 12/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 79 DE FLS. 91-104)
Área Temática: .
Sumário: I - Para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência. Porém, verificada uma das situações do n.º 2 do art. 186.º do CIRE presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa.
II - Se apenas estiver verificada uma das situações previstas no nº 3, para a insolvência ser declarada culposa é necessário que se demonstre que a actuação com culpa grave criou ou agravou a situação de insolvência, presumindo-se a culpa grave mas facultando-se ao insolvente a faculdade de ilidir essa presunção iuris tantum.
III - A alínea a) do n.º 2 do art. 186.º exige que os bens objecto de destruição, danificação, inutilização, ocultação ou extravio por parte dos administradores sejam todo ou parte considerável do património do devedor.
IV - Embora a alínea d) do n.º 2 do art. 186.º não faça menção à importância económica dos bens de que o administrador dispôs em proveito pessoal ou de terceiros, se não estiver demonstrado que os bens tinham algum relevo económico a insolvência não deve, com fundamento nessa norma, ser qualificada como culposa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 262/15.9T8AMT-D.P1 [Com. Porto Este/Inst. Central/Amarante/Sec. Comércio]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
Por apenso ao processo de insolvência da sociedade comercial “B…, Lda.”, pessoa colectiva n.º ………, veio o credor C… requerer a qualificação da insolvência como culposa, indicando que essa qualificação deve afectar os gerentes D… e E….
Nas suas alegações refere que os gerentes da insolvente delinearam um plano com vista a não pagarem qualquer das suas dívidas aos credores, tendo para o efeito apresentado um Processo Especial de Revitalização e procurado convencer os credores a acreditar que a empresa iria cumprir os seus compromissos, o que serviu apenar para iludir e enganar os credores já que os gerentes sabiam que a sociedade era inviável e que deviam requerer a declaração insolvência, mas não o fizeram, tendo instaurado o PER com a intenção de ganhar tempo para suspenderem toda a actividade da empresa e sair do país, razão pela qual após a homologação do plano de revitalização prescindiram de imediato dos seus trabalhadores, deixaram de concretizar novos negócios ou de cumprir os que tinham em curso, descaminharam todos os activos da insolvente, permitiram que outra sociedade “amiga” ocupasse a sede e instalações da insolvente e o gerente D… que seria o responsável pela concretização de novos negócios emigrou para o Brasil, onde havia já constituído uma sociedade.
Declarado aberto o incidente da qualificação, a Administradora de Insolvência foi notificada para apresentar parecer fundamentado, o que fez, tendo concluído no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa.
Para o efeito, alegou factos que, no seu parecer, constituem indícios de ocultação e dissipação deliberada de património da insolvente de utilização de património da insolvente em proveito próprio de sócios e/ou terceiros, e que não tendo sido observado o dever de apresentação à insolvência pela própria devedora presume-se a culpa grave dos gerentes.
O Ministério público pronunciou-se igualmente no sentido da qualificação da insolvência como culposa, aderindo aos fundamentos de facto alegados pela Administradora de Insolvência, complementando-os com outros e concluindo que a insolvente, por intermédio dos gerentes D… e E… fez desaparecer parte considerável do seu património e dispôs dos seus bens em proveito de terceiros e incumpriu o dever de apresentação à insolvência, o que foi causa directa do agravamento dos prejuízos patrimoniais dos credores.
Os gerentes a afectar pela qualificação da insolvência como culposa deduziram oposição, impugnando os factos alegados pelo credor e constantes dos pareceres da Administradora de Insolvência e do Ministério Público e sustentando que E… era um mero electricista e não participava de facto na gerência da insolvente, não tendo sido praticados quaisquer actos que permitam qualificar a insolvência como culposa.
Após julgamento foi proferida sentença na qual se decidiu qualificar a insolvência como culposa, declarar afectados pela qualificação D… e E…, decretar a inibição destes, por um período de cinco anos, para administrarem patrimónios de terceiros, exercerem o comércio e ocuparem qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, e condená-los, solidariamente, a entregar à massa insolvente o montante de €10.000,00 para ressarcimentos dos prejuízos causados aos credores da insolvente.
Do assim decidido, D… e E… interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Do erro de julgamento no que concerne aos factos enumerados na sentença sob a alínea E) e sob os n.ºs 6, 13 e 14, que deverão ter-se, todos eles, como não provados, e ainda quanto aos constantes da sentença como não provados sob as als. d), q), r) e t) que, inversamente, deverão ser dados como assentes.
2. Os factos dados como provados sob os pontos 18, 19 e 25 impedem que se possa admitir a conclusão inserta na parte final ponto 22.
3. O recorrente E… não praticava actos de gestão de relevo na devedora, tendo apenas as funções de chefia das empreitadas, pelo que não deve lhe deverá ser atribuída qualquer responsabilidade na insolvência da devedora.
4. Do erro de interpretação e aplicação das als. a) e d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, as quais deverão ter-se como não preenchidas, também em consequência da matéria de facto.
5. Do erro de interpretação e aplicação da al. a) do nº 3 do art.º 186º do CIRE, uma vez que se deve ter por assente que do eventual retardamento na apresentação à insolvência não resultou agravamento da situação para efeitos do nº 1 do preceito, pelo contrário, desde a homologação do PER até à declaração de insolvência a devedora reduziu o passivo em €197.401,00.
6. A douta sentença recorrida enferma do erro de interpretação/aplicação da disposição do art.º 189º, al. b) c) e e) do CIRE.
O Ministério Público respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se a matéria de facto deve ser alterada.
ii) Qual a natureza e estrutura das situações previstas nos nos. 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE para efeitos de qualificação da insolvência como culposa.
iii) Se os factos provados preenchem as situações das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 186.º.
iv) Se os factos provados preenchem a previsão da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º.
v) Se está provado que a não apresentação à insolvência no mês subsequente à cessação da actividade causou a situação de insolvência ou a agravou.
vi) Como medir a gravidade da actuação dos gerentes e fixar as consequências legais da qualificação da insolvência como culposa.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos[1]:
A) A requerida “B…, Lda.” foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais, em 16.03.2015, a qual foi requerida pelos credores F…, G… e H…, por acção apresentada a juízo em 20.02.2015.
B) A requerida foi constituída em 22.09.2010, tendo por objecto social: instalações eléctricas e de telecomunicações, de sistemas e equipamentos nas áreas das energias, incluindo renováveis, bem como sistemas de segurança e vigilância, produção, compra e venda de energia, comercialização, importação, exportação, representação e agentes comissionistas de todo o tipo de produtos e equipamentos de e para as actividades atrás descritas; compra e venda de bens imóveis e revenda de adquiridos para esse fim, bem como arrendamento; formação profissional e não profissional; actividades de engenharia e técnicas afins; investigação, desenvolvimento e inovação na área das energias; com o capital social de 5.000 euros, dividido em duas quotas, uma no valor nominal de 3.000 euros, pertencente ao sócio D…, e a outra no valor nominal de 2.000 euros, pertencente ao sócio E…, ambos nomeados gerentes e obrigando-se a sociedade com a assinatura dos dois gerentes.
C) A Insolvente apresentou-se ao Processo Especial de Revitalização em 24.11.2013, processo n.º 2258/13.6TBPNF, desta Instância Central de Comércio, tendo ali sido aprovado e homologado Plano de Revitalização, por decisão proferida em 14.02.2014.
D) No apenso B, de reclamação de créditos, foram reclamados e reconhecidos pela Sr.ª Administradora de Insolvência, em Lista de Créditos Reconhecidos rectificada, apresentada a fls. 253 e seguintes, 24 créditos, no montante global de 431.064,00 euros, sendo os créditos da Autoridade Tributária no montante global de 78.630,66 euros e o crédito da Segurança Social no montante de 86.050,55 euros, que juntos perfazem 38,20%, do seu passivo total.
E) As únicas verbas apreendidas no apenso A de apreensão de bens foram um conjunto de bens móveis, constituído por mobiliário e equipamento de escritório, verba n.º 1, avaliada em 150 euros; um conjunto de bens móveis constituído por equipamentos industriais, verba n.º 2, avaliada em 500,00 euros, conforme auto de apreensão de fls. 3 e 4; e um veículo automóvel da marca Fiat, com a matrícula ..-LG-.., identificado sob a verba n.º 3, do Auto de Apreensão de bens de fls. 5, avaliado em 3.000 euros, que se encontra em regime de locação financeira, encontrando-se este veículo em paradeiro desconhecido.
1. No Processo Especial de Revitalização foram reconhecidos 49 credores, num montante total de créditos de 528.465,00 euros.
2. A Insolvente emitiu uma factura à sociedade “I…, Lda.”, com data de 27.11.2014 e com vencimento em 17.12.2014, referente à venda de mercadoria e matérias-primas, no montante global de 70 024,21 euros, e à venda das viaturas Mercedes …, Toyota …, matrícula ..-AQ-.., Toyota …, com matrícula ..-..-VH, Toyota …, com matrícula ..-B0-.., material de escritório e ferramentas, tudo no montante global de 38 420,00 euros, perfazendo o montante total de 108.444,21 euros, tudo discriminado na relação anexa a tal factura, junta a fls. 15 a 32 verso.
3. Nem na data de emissão da referida factura, nem na data de apresentação ao Processo Especial de Revitalização, a Insolvente possuía em stock as mercadorias e as matérias-primas que facturou à “I…, Lda.”, discriminadas de fls. 15 a 32 verso.
4. A Insolvente atrasou o pagamento dos salários aos seus trabalhadores a partir de Abril de 2013 e, em Janeiro de 2014, tinha os salários de Julho de 2013 até Janeiro de 2014 por pagar, excepto o mês de Novembro que foi pago, e ainda metade dos subsídios de férias de férias e de natal, vencidos no ano de 2013.
5. Em Janeiro de 2014, todos os trabalhadores da Insolvente propuseram ao requerido D… que lhes entregasse o modelo necessário para irem para o Fundo de Desemprego, ao que este acedeu, atendendo à impossibilidade da Insolvente pagar os salários em atraso.
6. Nesta altura, em 31.01.2014, a Insolvente cessou a sua actividade, deixando de ter trabalhadores ao seu serviço.
7. Desde o ano de 2012, a Insolvente encontrava-se com dificuldades de tesouraria e sem acesso ao crédito por parte dos seus fornecedores.
8. A partir do ano de 2012, as obras em curso paravam, por falta de dinheiro para comprar os materiais necessários para serem colocados nas mesmas.
9. O valor a receber pelas obras em curso, no ano de 2013, era já inferior ao valor do material e de mão-de-obra necessários para a sua finalização.
10. O requerido D… procurou alguém disponível para injectar capital na sociedade.
11. Aquando da apresentação ao Processo Especial de Revitalização, os requeridos perspectivavam um incremento da actividade da empresa através da exportação do seu know how nas energias renováveis, em parceria com uma empresa brasileira, de que o requerido D… era sócio.
12. Em 31 de Janeiro de 2014, em armazém, a Insolvente tinha apenas alguns cabos eléctricos, caixas de plástico de interruptores e fichas eléctricas, em pequenas quantidades e de valor global inferior a 10.000 euros.
13. Em 7 de Janeiro de 2014, a Insolvente entregou à “I…, Lda.” os veículos Toyota … com matrícula ..-..-VH, Toyota …, com matrícula ..-B0-.. e Toyota …, matrícula ..-AQ-...
14. Em 7 de Janeiro de 2014, a Insolvente emitiu uma factura e um recibo em nome da “I…, Lda.” referente à venda dos veículos Toyota … com matrícula ..-..-VH, Toyota …, com matrícula ..-B0-.. e Toyota …, matrícula ..-AQ-.., pelo preço global de 4 858,50 euros.
15. Em 03.01.2013 foi penhorado o veículo automóvel de marca Toyota …, com matricula ..-..-VB, com a sua entrega ao agente de execução, no âmbito da execução n.º 1899/12.TBAMT, que correu termos pelo extinto 3.º juízo do Tribunal Judicial de Amarante, instaurada contra a Insolvente.
16. Em Fevereiro de 2014, a Insolvente transferiu parte do seu material de escritório, equipamentos e material em stock para a “I…, Lda.”, designadamente, secretárias, mesas, cadeiras, estantes, sofás, computadores, impressoras, cabos e fichas.
17. A sociedade “I…, Lda.” foi constituída em 06.12.2013, com o capital social de 10.000 euros, dividido em duas quotas, uma no valor nominal de 7.000 euros pertencente ao sócio J… e a outra, no valor nominal de 3.000 euros, pertencente ao sócio K…, sendo nomeados gerentes ambos os sócios.
18. Durante os anos de 2012 e de 2013, o J… entregou à Insolvente quantias em dinheiro, por empréstimo, designadamente, em 30.05.2012, a quantia de 20.000,00 euros, e em 14 de Março de 2013, a quantia de 35.000,00 euros.
19. E pagou directamente a fornecedores da Insolvente mercadorias que esta aplicava nas obras que executava para os seus clientes, nomeadamente pagou ao fornecedor “L…, S.A.” o montante de 14.319,61 euros e ao fornecedor “M…, Lda.”, de modo a que a insolvente pudesse concluir as obras que tinha em curso.
20. Alguns meses após a sua saída da Insolvente, os trabalhadores da Insolvente, G…, F… e H…, passaram a trabalhar para a sociedade “I…, Lda.”.
21. Após a aprovação do plano especial de revitalização, a sociedade incumpriu os compromissos assumidos nessa sede, designadamente os pagamentos aos seus funcionários cujo início estava previsto para passados cinco meses sobre a aprovação do plano de insolvência, ocorrida em Fevereiro de 2014.
22. A entrega das secretárias, mesas, cadeiras, estantes, sofás, computadores, impressoras, cabos e fichas e dos veículos Toyota … com matrícula ..-..-VH, Toyota …, com matrícula ..-BO-.. e Toyota …, com matrícula ..-AQ-.., à sociedade “I…, Lda.” impediu os credores da Insolvente de se pagarem dos seus créditos, ainda que parcialmente, pelo produto da venda de tais bens.
23. No final do ano de 2011, a Insolvente começava a sentir dificuldades económicas, reflexo da quase inexistência de obras de construção civil.
24. A dada altura, em 2009/2010, o cliente J… mostrou-se interessado no negócio das energias renováveis em parceria com a Insolvente, atendendo a que esta tinha ao seu serviço técnicos conceituados.
25. J… não apresentou reclamação de créditos na Insolvência nem lhe foi reconhecido qualquer crédito pelo Sr. Administrador de Insolvência na Lista de Créditos Reconhecidos apresentada.

IV. O mérito do recurso:
A] da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Os recorrentes impugnam a decisão de julgar provados os factos enumerados na sentença sob a alínea E) e sob os nos. 6, 13 e 14 (do elenco dos factos provados), defendendo que os mesmos deverão ser julgados não provados.
E impugnam ainda a decisão de julgar não provados os factos enumerados na sentença sob as alíneas d), q), r) e t) (do elenco dos factos não provados), sustentando que estes deverão ser julgados provados.
É duvidoso que os recorrentes tenham cumprido os requisitos legais da impugnação dessa decisão previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Com efeito, nos termos do artigo 639.º do Código de Processo Civil as alegações de recurso dividem-se em corpo das alegações, nas quais o recorrente expõe os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão, e conclusões das alegações, nas quais o recorrente sintetiza as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e o sentido com que as deverá decidir.
Com base nos artigos 608.º, nº 2, 609.º, n.º 1, 635.º, nº 4, e 639.º, do Código de Processo Civil constitui jurisprudência continuamente reafirmada que o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao tribunal ad quem conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se as mesmas forem de conhecimento oficioso.
A delimitação do objecto do recurso pela formulação das conclusões das alegações conduz a que seja em função destas, e não propriamente do corpo das alegações (ainda que estas possam servir para interpretar aquelas) que se devam balizar as questões que o tribunal de recurso pode e deve conhecer, as quais só podem exceder o mencionado nas referidas conclusões no caso de se tratar de questões de conhecimento oficioso e cujo conhecimento não esteja precludido ou prejudicado.
Servindo as conclusões de recurso para sintetizar as questões que se pretende que o tribunal aprecie e o sentido com que as deverá decidir, no caso em que uma dessas questões é a impugnação da decisão da matéria de facto, terão de fazer parte das conclusões itens especificando essa pretensão.
Para haver impugnação da decisão sobre a matéria de facto é necessário que o recorrente sustente que no que concerne à matéria de facto a decisão recorrida está errada, que foi feita uma avaliação incorrecta dos meios de prova, que foi produzida prova em função da qual determinado facto deve ser julgado diferentemente do modo como o foi em 1.ª instância, que manifeste a vontade de que a decisão relativa à matéria de facto seja alterada e, finalmente, que especifique o sentido e conteúdo da decisão que pretende seja proferida.
Conforme prevê o artigo 640.º do Código de Processo Civil, querendo impugnar a decisão da matéria de facto o recorrente tem de especificar, obrigatoriamente e sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, os seguintes aspectos: os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que na óptica dos recorrentes impunham decisão diversa e o sentido da decisão que deve ser proferida, sendo que no tocante aos depoimentos gravados carece de indicar as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
Sendo, como vimos, as conclusões das alegações de recurso que delimitam as questões colocadas à apreciação do tribunal de recurso, é também nelas que se devem mostrar cumpridos os requisitos da impugnação da decisão da matéria de facto, quando essa é, por vontade dos recorrentes, uma das questões suscitadas ao tribunal de recurso, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte.
Quanto à indicação das passagens exactas da gravação dos depoimentos em que se funda o recurso, temos vindo a seguir o entendimento de que esse requisito legal da impugnação da decisão da matéria de facto deve considerar-se preenchido ainda que essa indicação consta apenas do corpo das alegações de recurso e não tenha sido levado às respectivas conclusões, uma vez que essa indicação serve apenas o objectivo de auxiliar o tribunal de recurso a localizar os segmentos dos depoimentos que o recorrente assinala e pretende que sejam reavaliados e já não o objectivo de delimitar os meios de prova em que o recorrente funda a sua discordância com a decisão da 1.ª instância que é o sentido último do estabelecimento de requisitos legais específicos da impugnação da decisão da matéria de facto.
Nessa interpretação bastará, portanto, que das conclusões das alegações de recurso conste a indicação dos factos com cuja decisão não se concorda, a decisão que no entendimento do recorrente deve ser proferida em relação a esses factos e a indicação concreta dos meios de prova em que se funda essa modificação da decisão. No caso, este último requisito não se encontra preenchido nas conclusões das alegações de recurso, vício que numa perspectiva estritamente formal, motivaria a rejeição do recurso da decisão sobre a matéria de facto.
Não obstante isso, sendo conhecidas leituras menos formais ou exigentes do modo de cumprimento destes requisitos e da irreversibilidade dos vícios nesta sede e constando do corpo das alegações a especificação dos meios de prova, entendemos dever conhecer, no caso, da impugnação sobre a decisão da matéria de facto.
No que concerne à alínea E) dos factos provados é manifesto que os recorrentes têm razão, sendo certo, no entanto, que ao contrário do que as conclusões das alegações deixam transparecer, a impugnação não tem por objecto a totalidade dos diversos factos que integram essa alínea mas apenas o último desses factos, mais concretamente o facto de o veículo se encontrar em paradeiro desconhecido.
Com efeito, a fols. 9 do apenso A correspondente à apreensão de bens consta uma informação da Administradora de Insolvência em como optou pelo não cumprimento do contrato de locação financeira que incidia sobre o veículo matrícula ..-LG-.. e na sequência disso «procedeu à sua entrega à entidade bancária, N…, S.A., em 22.05.2015». Não pode, por conseguinte, julgar-se provado que o veículo se encontra em paradeiro desconhecido, razão pela qual procede nesta parte a impugnação.
Na conclusão das alegações de recurso n.º 1 os recorrentes incluem nos factos cuja decisão deve ser alterada o facto do item 6 do elenco da sentença. Todavia, no corpo das alegações a decisão relativa a esse facto não é objecto de qualquer abordagem ou tratamento para situar o erro de julgamento e fundamentar a alteração pretendida.
Ora como ensina Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., reimpressão, 1981, as conclusões representam “as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação”. Por isso, se determinada questão não foi tratada no corpo das alegações ela não pode ser incluída nas conclusões respectivas (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.11.2006, in www.dgsi.pt).
Essa interpretação foi feita pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 21.10.93, in CJ-AcSTJ, 1993, III, pág. 81, dizendo que “…as conclusões são um mero resumo dos fundamentos ou da discordância com o decidido, sendo ilegal o alargamento do seu âmbito para além do que do corpo daquelas consta. Portanto, não tendo sido a questão impugnada no âmbito das alegações não tem sentido a conclusão 20º.”.
A mesma posição foi ainda sufragada nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2001 (“nas conclusões, não pode o recorrente definir o objecto do recurso para além do que resulta das alegações, embora o possa restringir”) e de 14.05.2002 (“é corrente o entendimento segundo o qual o âmbito objectivo de um recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente formula ao alegar, conclusões estas que servem para sintetizar os fundamentos pelos quais se defende a revogação ou a alteração da decisão recorrida - art. 690/1 do CPC. A importância deste sistema está em que não há que conhecer, nem das questões versadas no arrazoado que antecede as conclusões mas não estão contidas nestas, nem das que apenas nestas, e não naquele arrazoado, figuram”), ambos in www.dgsi.pt, e é defendido por João Aveiro Pereira, in O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil (disponível no sitio www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf). Com tal fundamento não se conhece da impugnação da decisão sobre o facto do item 6.
No que tange aos factos dos itens 13 e 14 relativos à entrega e à emissão de uma factura e de um recibo de venda dos veículos automóveis Toyota Dina com a matrícula ..-..-VH, Toyota … com a matrícula ..-B0-.. e Toyota … com a matrícula ..-AQ-.., os recorrentes fundam a sua discordância em relação ao decidido nos documentos de folhas 83 verso e 84 e no depoimento da testemunha H….
Os documentos de folhas 83 verso e 84 correspondem a uma factura de venda dos referidos veículos e um recibo de quitação do respectivo preço datados de 07.01.2014 e cuja data permite deduzir que são os documentos referidos no item 14. Todavia, nem a factura nem o recibo foram emitidos pela insolvente, mas antes por E…, ou seja, um dos gerentes da insolvente mas em nome próprio e não em representante da insolvente. O facto do item 14 não pode, por esse motivo, ser julgado provado, procedendo nessa parte a impugnação da decisão do tribunal a quo.
O mesmo não se passa em relação ao facto do item 13 porquanto o que nele se julga provado é apenas que a insolvente entregou os veículos. No seu depoimento, a testemunha indicada pelos recorrentes, H…, antiga funcionária administrativa da insolvente, foi segura e clara na afirmação de que os veículos em causa pertenceram a um dos sócios-gerentes da insolvente, o qual era então empresário em nome individual, e que depois passaram a ser usados ao serviço da insolvente. Sendo assim, uma vez que com data de 27.11.2014 a insolvente emitiu mesmo uma factura relativa à venda que fazia desses veículos à I…, Lda. (folhas 14 e seguintes e mais especificamente 32 verso) e que existem várias testemunhas (anteriores funcionários da insolvente) que referem que os veículos passaram depois a ser usados pela referida I…, não se vê motivo para não concluir, como se concluiu na decisão recorrida, que a insolvente tinha a disponibilidade dos veículos e que os entregou a esta sociedade comercial. A decisão impugnada tem, por isso, de ser mantida.
Os recorrentes impugnam de seguida a decisão de julgar não provados determinados factos que defendem deverem ser julgados provados.
O primeiro deles tem a seguinte redacção: «o requerido E… não determinava quaisquer actos e os contratos da insolvente, nem comprava nem vendia, nem realizava operações financeiras, nem lidava com as contas bancárias, com a contabilidade, nem tratava de quaisquer documentos da sociedade insolvente» [alínea d) dos factos não provados].
Ouvimos a gravação da totalidade dos depoimentos referidos pelos recorrentes como encerrando a prova deste facto, os quais, para além das passagens transcritas, contêm outras com relevo decisivo ou um enquadramento para as passagens transcritas que afasta a leitura que os recorrentes pretendem com o isolamento das passagens (p.ex. quando a testemunha G… se refere à “sociedade do D…” a sua afirmação vem em resposta a uma pergunta que lhe foi feita e na qual se utilizou essa forma de identificar a sociedade, não significando que para a testemunha a sociedade fosse do - gerida apenas pelo – D…, como pretendem sugerir os recorrentes com o isolamento dessa afirmação).
Em resultado dessa audição é para nós completamente seguro que o facto não pode ser julgado provado. Com efeito, o mais que resulta destes depoimentos é que entre os dois gerentes existia uma separação de papéis, um ocupava-se mais do acompanhamento da execução das obras (E…) e o outro das questões administrativas e financeiras da sociedade (D…), mas não resulta, de forma alguma, que no âmbito do funcionamento da gerência, no seio da relação entre os dois, houvesse questões relativas à condução da sociedade e à determinação dos assuntos que excedessem o mero expediente que fossem decididas apenas por um deles sem sequer dar conhecimento ou consultar o outro.
Em rigor, nenhum desses depoimentos revela que o requerido E… não determinava quaisquer actos ou contratos da insolvente, não comprava nem vendia, não conhecia, acompanhava ou autorizava operações financeiras ou bancárias, com a contabilidade, não tratava de quaisquer documentos da sociedade insolvente. Aliás, nenhuma das passagens transcritas pelos recorrentes menciona isso, pelo que a interpretação dos recorrentes dos meios de prova não passa de uma especulação sem suporte na prova produzida, sendo certo que era ao recorrente que cabia fazer a prova de que não obstante fosse gerente de direito não era gerente de facto. A decisão de julgar não provado esse facto tem assim de ser mantida.
O facto seguinte tem esta redacção: «na data em que a insolvência foi requerida, apenas estava em atraso o pagamento aos trabalhadores que o Requerido D… tencionava regularizar nos meses de Fevereiro a Abril» [alínea q) dos factos não provados].
É manifesto que este facto não pode ser julgado provado.
Convém ter presente que nele o que se afirma é que “apenas estava em atraso”: se assim fosse não teriam sido reclamados na insolvência dos créditos que foram reclamados e verificados. E afirma-se ainda que o requerido “tencionava pagar”, facto subjectivo de que não se fez prova alguma.
Por outro lado, não se percebe o que pretendem os recorrentes ao mencionar o teor do plano de revitalização na parte relativa aos credores comuns, quando têm a obrigação de saber que créditos dos trabalhadores não são créditos comuns! Aliás, se por força do plano de revitalização a insolvente não estivesse obrigada a pagar aos trabalhadores antes de Setembro de 2015 não se vê por que razão haveria de ter feito em Janeiro de 2015 transferências bancárias de €100 para quatro desses trabalhadores, conforme documentos que juntou com a oposição e foi confirmado no depoimento da testemunha H….
De qualquer modo, o pagamento teria de ser efectuado por documento e não existe nos autos qualquer documento comprovativo desse pagamento, para além dos comprovativos das quatro transferências bancárias mencionadas.
A mesma decisão negativa deve ser mantida em relação ao facto cuja decisão foi impugnada a seguir e cuja redacção é: «o requerido cumpriu com os planos estabelecidos com a Administração Tributária e com o Instituto de Gestão Financeira e da Segurança Social» [alínea r) dos factos não provados].
Com efeito, na oposição os recorrentes anunciaram juntar dois documentos para prova do pagamento a esses credores, a que atribuíram os nos 32 e 33, documentos que jamais foram juntos!
Daí que agora no recurso os recorrentes se limitem a apelar para a comparação entre os valores dos créditos reclamados por esses credores no PER e no processo de insolvência, dizendo que se observa uma diminuição de valores, o que, sendo correcto, não revela todavia a causa dessa diferença, sendo certo que para além do pagamento são conjecturáveis outras causas para a diminuição dos valores, como sejam a existência de lapso na reclamação e/ou a prescrição ou caducidade entretanto ocorrida de alguns valores ou parcelas do crédito. Por essa razão era indispensável que os recorrentes tivessem junto os documentos comprovativos dos pagamentos que referem (mas que não concretizam, nem quanto às datas nem quanto aos valores), sob pena de o facto ser julgado não provado. Sem esses documentos, a decisão é inabalável.
Por fim, resta apreciar a decisão de julgar não provado que a «I…, Lda. tivesse pago à Insolvente qualquer preço pelo material de escritório, equipamentos e material em stock, designadamente, secretárias, mesas, cadeiras, estantes, sofás, computadores, impressoras, cabos e fichas, que lhe foram transferidos em Fevereiro de 2014» [alínea t) dos factos não provados].
A impugnação desta decisão é totalmente improcedente porque apesar de o facto referir o “pagamento do preço” pela “I…, Lda.” e não qualquer outra forma de extinção da obrigação pecuniária relativa à venda do equipamento, o que os recorrentes referem no recurso, sem aliás remeterem para qualquer meio de prova, conforme era imprescindível, é que uma pessoa singular, e não a pessoa colectiva referida no facto, fez empréstimos à insolvente e não reclamou na insolvência o crédito correspondente, sem explicarem como é que daí se pode concluir pelo “pagamento” e não, por exemplo, por uma “renúncia ao crédito”, ou como é que poderia haver uma compensação (supomos que seja essa figura a estar na ideia dos recorrentes) quando credores e devedores não o são reciprocamente.
De novo estamos perante uma situação em que tinha de existir documento comprovativo do pagamento, sem o que o mesmo não podia ser julgado provado. A impugnação dessa decisão pelos recorrentes é, aliás, absolutamente incongruente com a própria oposição dos recorrentes, já que nesta alegam expressamente que a “I…/J…” não pagou os materiais e equipamentos facturados e não procedeu ao acerto de contas, obrigando mesmo a insolvente a demandá-la em processo de injunção com esse objectivo (artigos 48.º a 59.º). A decisão da 1.ª instância quanto a este ponto da matéria de facto é assim incontornável e por isso vai mantida.
Em suma, decide-se dar provimento parcial à impugnação da decisão sobre a matéria de facto e alterar essa decisão apenas nos seguintes pontos:
i) Elimina-se da alínea E) dos factos provados a parte cuja redacção é “encontrando-se este veículo em paradeiro desconhecido”;
ii) Elimina-se o item 14 dos factos provados.

B] da matéria de direito:
Nos termos do artigo 185.º do CIRE a insolvência pode ser qualificada como fortuita ou como culposa. Por exclusão de partes, uma vez que a lei apenas define os pressupostos da insolvência culposa, fortuita é a insolvência que não é culposa.
De acordo com o artigo 186.º, n.º 1, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. São assim pressupostos desta qualificação da insolvência (i) uma conduta do devedor (ou dos seus administradores, de facto ou de direito), (ii) ocorrida nos três anos anteriores ao início do processo, (iii) que seja dolosa ou com culpa grave e (iv) tenha criado ou agravado a situação de insolvência.
Segundo Alexandre de Soveral Martins, in Um curso de direito da insolvência, 2016, 2.ª edição revista e actualizada, pág. 404, “Considera-se culposa a insolvência se a situação (de insolvência) foi «criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, de devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência» (art. 186.º, 1). Assim, a lei exige que esteja em causa um comportamento de certos sujeitos (o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto), a existência de dolo ou culpa grave, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência e, por fim, que o comportamento tenha lugar dentro de um certo lapso de tempo (nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência). A situação de insolvência pode ter sido criada sem que existisse culpa mas pode ter havido culpa no agravamento da situação de insolvência. Em ambos os casos a insolvência pode ser qualificada como culposa.”
A este propósito assinalou-se, com total acerto, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.10.2010, relatado por Cecília Agante, no processo n.º 243/09.1TJPRT-G.P1, in www.dgsi.pt, que “o que se qualifica é o comportamento do devedor na produção ou agravamento do estado de insolvência, de modo a que se averigúe se existe, à luz da teoria da causalidade adequada, um nexo de causalidade entre os factos por si cometidos ou omitidos e a situação de insolvência ou o seu agravamento, e o nexo de imputação dessa situação à conduta do devedor, estabelecido a título de dolo ou culpa grave. Dolo que, enquanto conhecimento e vontade de realização do facto em causa, pode revestir-se das modalidades de directo, necessário e eventual. Culpa, (stricto sensu) quando o autor prevê como possível a produção do resultado, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar. Este é o recorte da culpa consciente, já que na culpa inconsciente se enquadram as situações em que o agente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não chega sequer a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida. Estes os termos em que devem ser entendidas estas noções usadas pelo CIRE (artigo 186º, 1). Nada dispondo em particular sobre essa matéria, tais conceitos devem ser entendidos nos termos gerais do Direito. E, por isso, também repescada a tese da culpa em abstracto consagrada no Código Civil, apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, 2). A norma exige, no entanto, a culpa grave, traduzida em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, observam, contraposta à culpa leve, vertida na omissão da diligência normal, e à culpa levíssima, correspondente à omissão de cuidados especiais que só as pessoas mais prudentes e escrupulosas observam.
O n.º 2 do artigo 186.º acrescenta que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º.
Por sua vez o n.º 3 do preceito estatui que se presume a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) o dever de requerer a declaração de insolvência; b) a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.07.2009, relatado por Henrique Araújo, no processo n.º 725/06.7TYVNG-C.P1, in www.dgsi.pt, afirma-se a este respeito o seguinte:
A generalidade da doutrina [o relator refere-se a Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, pág. 14; Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, pág. 175, 2ª edição; e Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Vol. II, pág. 963] considera que as várias alíneas do n.º 2 constituem presunções legais jure et jure, isto é, inilidíveis, conducentes à qualificação da insolvência como culposa. Apesar disso, e partindo do conceito de presunção legal desenhado no artigo 349º do Código Civil, inclinamo-nos mais para o entendimento de que essas alíneas integram factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa. No acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11.2008 [in DR, 2ª Série, n.º 9, de 14.01.2009], escreveu-se a este propósito: «… é duvidoso que na previsão do artigo 186º do CIRE se instituam verdadeiras presunções. Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal … de situações típicas de insolvência culposa». De todo o modo, sejam presunções ou factos-índice, o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa. Provada qualquer uma das situações enunciadas nas citadas alíneas, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. O n.º 3 do mesmo artigo apresenta, por seu turno, um conjunto de situações de presunção de culpa grave. Trata-se, contudo, de presunções juris tantum, ilidíveis por prova contrária. A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitir-se o cumprimento desses deveres, se actuou com culpa grave. Com efeito, como nas hipóteses do n.º 3 já se não presume o nexo de causalidade de que a omissão dos deveres aí descritos determinou a situação de insolvência da empresa, ou que para ela contribuiu, agravando-a, além da prova desses comportamentos omissivos, deve provar-se o nexo de causalidade, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram.
Maria do Rosário Epifânio, in Manual do Direito da Insolvência, 5.ª edição, pág. 131, escreve que “para auxiliar o intérprete, o art. 186.º … prevê dois conjuntos de presunções: o n.º 2 contém um elenco de presunções iuris et de iure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular; por seu turno, o n.º 3 prevê um elenco de presunções iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular. A opção por esta técnica jurídica justifica-se pela necessidade de garantir uma maior «eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências», para além disso favorece a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos.”
Também Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, 2009, pág. 271, acentua que o que resulta do art. 186º nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos administradores, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º nº 1 que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta. No mesmo sentido, Soveral Martins, loc. cit, pág. 422, afirma que «o art. 186.º, 3, permite no entanto perguntar se a presunção é apenas relativa à culpa grave ou se também é presumida a insolvência culposa. Perante o disposto no artigo 186.º, 1, parece-nos que as presunções previstas no n.º 3 seguinte apenas dizem respeito à actuação do devedor. Será, ainda, necessário provar que tal actuação com culpa grave (presumida) criou ou agravou a situação de insolvência». Na jurisprudência pronunciaram-se nesse sentido, entre outros os Acórdãos da Relação do Porto de 26.01.2010, proc. 110/08.6TBAND-D.C1, de 04.05.2010, proc. 427/07.TBAGD-G.C1, e de 07.07.2016, proc. 353/09.5TYVNG-E.P1, da Relação de Lisboa de 13.09.2007, proc. n.º 0731516, in www.dgsi.pt.
Podemos pois assentar no seguinte: para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência. Todavia, verificada uma das situações do n.º 2 do artigo 186.º presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa. Já se apenas estiver verificada uma das situações previstas no nº 3, para a insolvência ser declarada culposa é necessário que se demonstre que a actuação com culpa grave criou ou agravou a situação de insolvência, presumindo-se a culpa grave mas facultando-se ao insolvente a faculdade de ilidir essa presunção iuris tantum.
Fazendo aplicação destes normativos à matéria de facto assente, na decisão recorrida entendeu-se “que a conduta da devedora tem de ser subsumida ao disposto nas alíneas a) e d), do n.º 2, do referido artigo 186.º, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, e, ainda, no n.º 3, alínea a), do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, em conjugação com o disposto no artigo 18.º, n.º 1, e ainda artigo 20.º, n.º 1, alíneas a), e g), do mesmo diploma legal”.
Os recorrentes divergem desta qualificação jurídica dos factos provados, sustentando, desde logo, que não estão preenchidas as situações das alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Como vimos, a previsão da alínea a) da norma reporta-se à actuação de que tenha resultado a destruição, danificação, inutilização, ocultação ou desaparecimento de todo ou parte considerável do património do devedor. Já a alínea d) contempla a situação de os administradores terem disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
Embora o legislador tenha pretendido nas diversas alíneas do n.º 2 descrever hipóteses de facto distintas, essas previsões não são necessariamente exclusivas ou excludentes, nada obstando a que a mesma actuação possa preencher em simultâneo a previsão de mais de uma alínea.
A interpretação das alíneas a) e d) não suscita grandes dúvidas. No entanto, deve referir-se em relação à primeira que, tal como assinalado no Acórdão da Relação de Coimbra de 28.05.2013, proc. 102/12.0TBFAG-B.C1, in www.dgsi.pt, «a ocultação … deve abranger casos … em que o bem é vendido a um terceiro, podendo, inclusive, este revendê-lo, e assim sucessivamente. Tal alienação, retirando os bens da esfera jurídica do devedor, implica um descaminho que pode impedir, ou, pelo menos - o que é o bastante para satisfazer a ratio legis -, dificultar, o seu acesso e o seu accionamento por parte do credor. A lei não exige a ocultação total no sentido de se tornar impossível o seu acesso ou conhecimento, mas apenas parcial no sentido de vontade, concretizada, de subtrair o bem ao direito/conhecimento do credor e respectiva acção legal, pelo que, e precisamente por isso, não exige ocultação no sentido físico, mas apenas no aspecto da situação jurídica do bem. Aliás concomitantemente à ocultação a lei prevê o desaparecimento, o qual se revela um mais, no sentido da gravidade do descaminho….».
No que concerne à previsão da alínea d), o proveito pessoal ou de terceiros compreende todas as situações em que os bens da sociedade insolvente são colocados à disposição do administrador ou de terceiros, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando independentemente disso é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio e sem qualquer retorno para a insolvente e esta fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos.
Na decisão recorrida entendeu-se que a alínea a) está preenchida pela actuação relativa a um veículo automóvel que os gerentes da insolvente teriam colocado em paradeiro desconhecido.
Ora não se provou esse facto; ao invés, o veículo foi apreendido para a massa mas como a insolvente apenas tinha a sua fruição ao abrigo de um contrato de locação financeira, a administradora de insolvência optou pelo não cumprimento do contrato e entregou o veículo à locadora.
De qualquer modo, tratando-se apenas de um veículo automóvel que não pertencia à insolvente mas sobre o qual esta apenas tinha uma opção de compra uma vez cumprido o contrato de locação financeira que o tinha por objecto, estaria por demonstrar que o mesmo constituía a totalidade ou parte considerável do património da insolvente sem o que não se pode considerar preenchida a previsão da alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Independentemente disso importa centrar a atenção nos factos provados para detectar se está preenchida a previsão de alguma das alíneas do n.º 2 do artigo 186.º. Para compreender qual foi mesmo a actuação dos gerentes da insolvente, cremos ser necessário colocar os factos provados na devida ordem cronológica.
O que está provado é o seguinte (após o facto indica-se a numeração correspondente):
• Desde o ano de 2012, a insolvente enfrentava dificuldades de tesouraria e não tinha acesso ao crédito por parte dos seus fornecedores. (7)
• A partir desse ano as obras em curso paravam por falta de dinheiro para comprar os materiais necessários para as mesmas. (8)
• Durante os anos de 2012 e de 2013, J… emprestou à insolvente várias quantias em dinheiro, designadamente €20.000,00 e €35.000,00 (18) e pagou directamente a fornecedores mercadorias que a insolvente aplicava nas obras. (19)
• O valor a receber pelas obras em curso, no ano de 2013, era já inferior ao valor do material e de mão-de-obra necessários para a sua finalização. (9)
• A partir de Abril de 2013 a insolvente atrasou o pagamento dos salários dos trabalhadores e em Janeiro de 2014 tinha os salários de Julho de 2013 até Janeiro de 2014 por pagar, com excepção de Novembro e ½ dos subsídios de férias e de Natal vencidos no ano de 2013. (4)
• Em 7 de Janeiro de 2014, a insolvente entregou à “I…, Lda.” sociedade de que era sócio e gerente J…, três veículos automóveis Toyota. (13)
• Em 24.11.2013 a insolvente apresentou um PER. (C)
• Em Janeiro de 2014, os trabalhadores da insolvente cessaram os contratos de trabalho (5) tendo a insolvente, no final do mês, deixado de ter trabalhadores ao seu serviço e cessado a actividade. (6)
• Nesse momento, a insolvente tinha em armazém apenas alguns cabos eléctricos, caixas de plástico de interruptores e fichas eléctricas, em pequenas quantidades e de valor global inferior a €10.000. (12)
• O Plano de Revitalização aprovado no PER foi homologado por decisão de 14.02.2014. (C)
• Em Fevereiro de 2014, a Insolvente transferiu parte do seu material de escritório, equipamentos e material em stock para a “I…, Lda.”, designadamente, secretárias, mesas, cadeiras, estantes, sofás, computadores, impressoras, cabos e fichas. (16)
• A entrega das secretárias, mesas, cadeiras, estantes, sofás, computadores, impressoras, cabos e fichas e dos veículos à sociedade “I…” impediu os credores da insolvente de se pagarem dos seus créditos, ainda que parcialmente, pelo produto da venda de tais bens. (22)
• A declaração de insolvência foi requerida em 20.02.2015 e a insolvência declarada por sentença de 16.03.2015. (A)
• As únicas verbas apreendidas para a massa foram um conjunto de bens móveis, constituído por mobiliário e equipamento de escritório, avaliados em €150, um conjunto de bens móveis constituído por equipamentos industriais, avaliados em €500, e um veículo automóvel com a matrícula 52-LG-81, avaliado em €3.000, que se encontra em regime de locação financeira. (E)
• A Insolvente emitiu à sociedade “I…” uma factura com data de 27.11.2014 de venda de mercadoria e matérias-primas, no montante global de €70.024,21, de um veículo automóvel Mercedes e três veículos automóveis Toyota, material de escritório e ferramentas, tudo no montante global de €38.420, perfazendo o montante total de €108.444,21. (2)
• Nem na data de emissão da referida factura, nem na data de apresentação do PER a insolvente possuía em stock essas mercadorias e matérias-primas. (3)
• Após a aprovação do plano de revitalização, a insolvente não cumpriu os compromissos assumidos no plano, designadamente os pagamentos aos seus funcionários (21)
• J… não apresentou reclamação de créditos na Insolvência nem lhe foi reconhecido qualquer crédito. (25)
Resulta destes factos que a actuação dos gerentes que pode estar em causa é a que se prende, por um lado com os veículos automóveis e, por outro lado, com o material de escritório e os equipamentos e materiais próprios da actividade comercial/industrial da insolvente.
Estes bens foram transferidos para outra sociedade comercial em Janeiro e Fevereiro de 2014 e não foram apreendidos para a massa insolvente num sinal claro de que a insolvente foi privada da disponibilidade, uso, fruição e titularidade desses bens.
A sociedade comercial que passou a dispor dos bens não tinha qualquer direito sobre os mesmos, sendo certo que não se podem confundir as relações jurídicas entre a insolvente e a pessoa singular que se tornou sócio gerente dessa sociedade comercial e entre ambas as sociedades, nem presumir que a transferência desses bens teve qualquer retorno económico para a insolvente, independentemente de haver ou não credores que não tenham reclamado os seus créditos no processo de insolvência.
É, no entanto, necessário separar os bens em causa. Em relação aos veículos automóveis estava suscitada nos autos a questão de saber a quem eles pertenciam e mais especificamente a questão de saber se os veículos, com excepção daquele que estava em regime de locação financeira, pertenciam a um dos gerentes da insolvente e esta apenas os usava para a sua actividade comercial/industrial mas não era proprietária dos mesmos. A matéria de facto não esclarece esta dúvida, pelo que é abusivo pretender que ao entregarem os veículos à outra sociedade comercial os gerentes extraviaram património ou dispuseram em proveito de terceiros de … bens da devedora (insolvente).
Refira-se que muito embora a insolvente tenha emitido uma factura de venda dos veículos automóveis com data de 27.11.2014 isso não chega para concluir que a insolvente fosse dona dos veículos que dessa forma declarava vender.
Com efeito, está junta a folhas 83 dos autos uma factura com data de Janeiro de 2014 na qual os veículos são vendidos à mesma sociedade mas por E…, gerente da insolvente. E a folhas 98 e 105 estão juntos documentos apresentados pela Administradora de Insolvência relativos aos veículos automóveis registados a favor da insolvente dos quais resulta que o único veículo que esteve registado a favor desta foi um Toyotta com a matrícula ..-..-VB, o qual foi objecto de uma penhora em Dezembro de 2013 e não se inclui nos três veículos que a insolvente entregou à I…, Lda.
Não tendo sido demonstrado que a insolvente fosse proprietária dos veículos que entregou a esta sociedade comercial essa entrega não pode consubstanciar uma disposição de bens da insolvente, da mesma forma que não pode traduzir um prejuízo para os respectivos credores, ao contrário do que de forma conclusiva se deu como provado no ponto 20 (e que por ser uma mera conclusão aqui tem de ser considerado não escrito), uma vez que a mera circunstância de a insolvente poder ter tido até esse momento a utilização desses bens não os torna responsáveis pela satisfação das responsabilidades da insolvente.
Por conseguinte, restam os actos praticados em relação ao material de escritório, equipamentos e materiais da actividade comercial/industrial da insolvente. Recordamos o que a propósito destes bens ficou provado.
• Em Janeiro de 2014, a insolvente tinha em armazém apenas alguns cabos eléctricos, caixas de plástico de interruptores e fichas eléctricas, em pequenas quantidades e de valor global inferior a €10.000. (12)
• Em Fevereiro de 2014, a Insolvente transferiu para a “I…” parte do seu material de escritório, equipamentos e material em stock, designadamente secretárias, mesas, cadeiras, estantes, sofás, computadores, impressoras, cabos e fichas. (16)
• A entrega desses bens à “I…” impediu os credores da insolvente de se pagarem dos seus créditos, ainda que parcialmente, pelo produto da venda de tais bens. (22)
• Apenas foi apreendido para a massa um conjunto mobiliário e equipamento de escritório, avaliado em €150, e um conjunto de equipamentos industriais, avaliados em €500. (E)
• A Insolvente emitiu à sociedade “I…” uma factura com data de 27.11.2014 de venda de mercadoria e matérias-primas, no montante global de €70.024,21, de um veículo automóvel Mercedes e três veículos automóveis Toyota, material de escritório e ferramentas, tudo no montante global de €38.420, perfazendo o montante total de €108.444,21. (2)
• Nem na data de emissão da referida factura, nem na data de apresentação do PER a insolvente possuía em stock essas mercadorias e matérias-primas. (3)
Como é óbvio, se na data da emissão da factura referida os bens nela indicados já não existiam na insolvente (factos 3. e 12.) é totalmente impossível, com base apenas na factura, formar qualquer conclusão sobre uma eventual dissipação desses bens, porque no mínimo para sustentar que eles foram dissipados ou extraviados era necessário demonstrar que eles …existiam (pertenciam à insolvente), não que alguém emitiu uma factura onde eles são referidos.
Da matéria de facto provada apenas resulta, pois, que em Janeiro de 2014 a insolvente tinha em armazém pouco material cujo valor global era inferior a €10.000, que no mês seguinte entregou à sociedade terceira parte do seu material de escritório, equipamentos e material em armazém e que aquando da apreensão dos bens da massa apenas foi apreendido algum mobiliário e equipamento de escritório e alguns equipamentos industriais, no valor conjunto de €650.
Tendo-se provado apenas que os bens entregues à outra sociedade comercial eram parte dos que a insolvente tinha, mas não a medida dessa parte no conjunto do património da insolvente não é possível considerar preenchida a alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º, a qual exige que os bens objecto de destruição, danificação, inutilização, ocultação ou extravio por parte dos administradores seja todo ou parte considerável do património do devedor.
Podemos ser tentados a querer comparar as situações em Janeiro de 2014 (bens cujo valor era inferior a €10.000) e aquando da apreensão para a massa insolvente (bens no valor conjunto de €650).
Todavia, dizer-se que os bens têm valor inferior a X é pouco expressivo pois esse facto não nos revela em que medida são inferiores. Acresce que a apreensão dos bens para a massa insolvente ocorreu apenas em 30 de Março de 2015, cerca de 14 meses depois daquela entrega, tempo mais que suficiente para poder ter ocorrido uma alteração dos bens da insolvente e/ou uma depreciação do respectivo valor. Por essa razão, considerando que a previsão da alínea a) exige que o património dissipado tenha relevo económico no conjunto do património da devedora, subsistindo essas dúvidas é impossível qualificar a insolvência como culposa com fundamento na citada norma legal.
Cremos que no caso concreto o mesmo deve ser afirmado em relação à previsão da alínea d).
É certo que na descrição da situação nela prevista - terem disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros – não se faz qualquer referência à importância económica dos bens objecto dessa actuação e à necessidade de o seu relevo patrimonial ser significativo – ao contrário da alínea a) –. Isso é assim porque, cremos, a preocupação subjacente à previsão legal já não é directamente a preservação do património da devedora (indirectamente sim), mas antes evitar que esse património que deverá ser afecto à satisfação dos credores redunde afinal em benefício ilegítimo dos próprios administradores ou de terceiros.
Todavia, julgamos que em qualquer circunstância esses bens têm de ter algum relevo económico, não nos parecendo conforme à ordem jurídica qualificar uma insolvência como culposa e imputar aos gerentes as consequências dessa qualificação apenas porque um dos administradores ou um terceiro se apropriou de um bem da insolvente de escasso valor económico, cujo interesse para o funcionamento da devedora nas condições existentes à data não fosse significativo.
Com efeito, é necessário não esquecer que a qualificação da insolvência como culposa não implica renúncia nem prejudica o accionamento pelo administrador de insolvência dos mecanismos jurídicos de tutela dos interesses dos credores, designadamente a resolução em benefício da massa insolvente.
Por outro lado, conforme resulta do n.º 1 do artigo 186.º, o núcleo genético dessa qualificação centra-se na relação entre a situação de insolvência e a actuação que se pretende evitar, reclamando que esta actuação seja não apenas dolosa ou com culpa grave como também que seja causa da criação da situação de insolvência ou do seu agravamento. As hipóteses de facto elencadas nas alíneas do n.º 2 são situações às quais o legislador associou de forma automática essa qualificação, mas apenas porque presumiu que aquelas características essenciais definidas no n.º 1 estão naturalmente presentes nessas situações. Nessa medida, parece legítimo que na dúvida sobre a dimensão normativa de algum dos elementos necessários para o preenchimento dessas situações o intérprete possa recorrer ao contributo dos requisitos do n.º 1 para tomar a sua decisão.
Por isso, ignorando-se a quantidade e valores dos bens entregues à sociedade terceira, sabendo-se que nessa altura a insolvente já tinha a sua actividade paralisada e, portanto, não seriam esses bens a impedir a situação de insolvência, sendo possível a resolução em benefício da massa insolvente da disposição desses bens e sendo o terceiro beneficiado uma entidade que (embora indirectamente através do seu sócio gerente) contribuiu durante algum tempo para a insolvente conseguir cumprir negócios que de outra forma iria incumprir, não recebendo a sua remuneração e incorrendo em novas responsabilidades, decidimos que a situação provada nos autos não permite qualificar a insolvência como culposa ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
A decisão recorrida considerou ainda preenchida a previsão da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º referente ao não cumprimento do dever de apresentação à insolvência, decisão com a qual os recorrentes não concordam.
Entendeu a Mma. Juíza a quo que os autos revelam que a situação de insolvência já existia e era conhecida dos gerentes a partir de final de Janeiro de 2014. Essa conclusão é irrefutável a partir do momento em que se demonstrou que nessa altura a sociedade a deixou de ter trabalhadores ao seu serviço e cessou a sua actividade, ficando a partir desse momento privada da possibilidade de obter receitas para satisfazer as suas obrigações [artigo 3.º] e tendo já há muito em incumprimento os compromissos perante trabalhadores, a Segurança Social e o Fisco [artigo 18.º, n.º 1, alínea g)].
É certo que por essa altura os credores aprovaram um plano de revitalização. Porém, da aprovação desse plano não resulta em caso algum que a devedora não esteja já numa situação de insolvência (aliás a mesma tem de estar iminente para o PER ser instaurado: artigo 17.º-A do CIRE), podendo os credores aprovar o plano absolutamente convencidos da irreversibilidade da insolvência mas não antevendo outra solução melhor, para além de que não foi a instauração do PER que obstou à saída dos trabalhadores e à cessação da actividade, factos que determinaram de forma manifesta a impossibilidade de obtenção de receitas para a satisfação das obrigações, tanto mais que já desde 2012 a empresa tinha dificuldades de tesouraria, não tinha acesso ao crédito por parte dos seus fornecedores (facto do item 7) e faltava-lhe dinheiro para comprar os materiais necessários para as mesmas (facto do item 8).
Na sentença recorrida entendeu-se que nas situações previstas no n.º 3 do artigo 186.º «a lei estabelece tão só uma presunção ilidível de culpa, que impõe, ainda para que a insolvência seja qualificada como culposa, que se verifique o nexo de causalidade entre a acção do devedor dirigida a esse resultado, a exigir uma actuação dolosa ou com culpa grave por parte deste a criar ou agravar a situação de insolvência». Não obstante isso, ao abrigo da alínea a) do n.º 3 qualificou-se a insolvência como culposa apenas com base na afirmação de que foi violado o dever de apresentação à insolvência, não se tendo investigado os demais pressupostos dessa qualificação.
Já se adiantou que o n.º 3 do artigo 186.º do CIRE prevê efectivamente não presunções (absolutas) de insolvência culposa, melhor dizendo, situações típicas de insolvência culposa, mas apenas presunções (relativas) de culpa grave na actuação, em função do que para a insolvência ser qualificada como culposa é necessário que estejam reunidos os demais pressupostos do n.º 1 da norma, podendo o devedor impedir essa qualificação demonstrando que a falha cometida não se deveu a culpa grave.
Cremos, com efeito, que a diferença de redacção entre o n.º 2 e o n.º 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas denuncia que o legislador teve a intenção clara de distinguir as consequências que associa às situações previstas em cada um dos números do preceito, pelo que qualquer raciocínio baseado na comparação entre as situações só pode ter acolhimento em sede de lei a fazer (contra esta leitura p. ex. o Acórdão da Relação de Coimbra de 22.05.2012, proc. 1053/10.9TJCBR-K.C1, in www.dgsi.pt).
Nessa perspectiva, torna-se necessário indagar se no caso a violação do dever de apresentação à insolvência criou ou agravou a situação de insolvência. A resposta é, a nosso ver, claramente negativa.
Não se apurou nenhum facto que permita concluir que a devedora ficou insolvente ou viu agravada a sua situação de insolvência por não se ter apresentado à insolvência no mês subsequente à cessação da sua actividade. Em rigor, aliás, nenhum dos factos provados consubstancia uma actuação em prejuízo da insolvente após o encerramento da actividade e a saída dos trabalhadores. A partir desse momento, qualquer que fosse a data em que se apresentasse à insolvência, a sua situação não seria pior porque se não tinha obras para realizar nem meios para as realizar, também deixaram de se vencer os salários dos trabalhadores que cessaram os seus contratos de trabalho.
O mais que se pode afirmar é que com o tempo foram aumentando os juros de mora sobre os créditos vencidos sobre a devedora. Todavia, para efeito do preenchimento dos requisitos do n.º 1 do artigo 186.º isso não parece bastante porque o que releva é o agravamento da situação de insolvência, não o agravamento do défice patrimonial da devedora.
De todo o modo, nem isso se pode afirmar uma vez que ficou provado que enquanto no PER foram reconhecidos créditos no montante total de €528.465 titulados por 49 credores, neste processo de insolvência, sem que se saiba porquê, apenas foram reclamados créditos de 24 credores no montante global de €431.064, o que impede em absoluto que se possa concluir que a situação da insolvente se agravou.
Em suma, a insolvência não pode efectivamente ser qualificada como culposa, impondo-se a revogação da sentença nessa parte. Esta conclusão implica a revogação das consequências fixadas na sentença sobre os gerentes D… e E… e inutiliza a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, dando provimento à apelação, revogam a sentença recorrida na parte em que qualificou a insolvência como culposa, declarou os gerentes afectados por essa qualificação e lhes impôs consequências/sanções, e qualificam agora a insolvência como fortuita.
Custas do recurso pela massa insolvente (tabela I-B).

Porto, 7 de Dezembro de 2016.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto314)
Inês Moura
Paulo Dias da Silva
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[1] Por razões que se prendem com a impugnação da decisão da matéria de facto mantém-se a numeração de origem.