Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3334/19.7T8AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
DIREITOS SOCIAIS
Nº do Documento: RP202106213334/19.7T8AVR-A.P1
Data do Acordão: 06/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na aferição da competência material atende-se aos elementos estruturais da causa: pedido e causa de pedir, tal como configurados pelo Autor, na petição inicial.
II - São da competência material do Tribunal de Comércio, integrando-se na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ)), aprovado pela Lei n.º 62/2013, de 26/01, relativa ao exercício de «direitos sociais», as ações relativas ao exercício de direitos que se integram na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, direitos que são inerentes à qualidade e estatuto de sócio e são dirigidos à proteção dos seus interesses sociais.
III - É relativa ao exercício de “direitos sociais” a ação em que o Autor, invocando a sua qualidade de sócio, pretende obter a restituição de suprimentos por si efetuados, enquanto tal, à sociedade Ré, contrato de suprimento este tipificado e especialmente regulado pelos arts 243º e segs, do Código das Sociedades Comerciais, e enformado pelos princípios fundamentais do Direito das Sociedades Comerciais, sempre a contenderem com específicas matérias, a exigir especial preparação técnica;
IV - E, destarte, estando especificadamente atribuída ao Juízo de Comércio a competência para julgar do pedido de restituição de quantia relativa a suprimentos do sócio à sociedade, não é o caso subsumivel à competência, residual, dos Tribunais comuns (nº1, do art. 40º, da referida Lei e art. 64º, do CPC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 3334/19.7T8AVR-A.P1
Processo do Juízo de Execução da Maia – Juiz 1

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B…, S.A
Recorrido: C…

C… instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra B…, S.A., pedindo a condenação da ré a restituir-lhe a quantia de € 137.573,81, acrescida de juros de mora, contados sobre essa mesma quantia, à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.
Alega, para tanto e em síntese, ser sócio da ré e ter-lhe emprestado, nessa qualidade, ao longo dos anos, quantias de dinheiro, suprimentos que lhe efetuou na qualidade de sócio, num total de € 137.573,81, tendo a ré emitido quatro cheques, a titular tais entregas, a reembolsar.
A ré contestou defendendo-se invocando, além do mais, a exceção dilatória de incompetência absoluta, entendendo competentes serem os tribunais comuns para julgar a ação.
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Julgou o Tribunal a quo improcedente a referida exceção.
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De tal decisão apresentou a Ré recurso de apelação, pugnando por que a mesma seja revogada, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Se o Tribunal de comércio é absolutamente incompetente, em razão da matéria, para julgar ação em que é pedida a restituição ao sócio/Autor das importâncias de suprimentos, por ele, na qualidade de sócio, emprestadas ao longo de anos, à Sociedade Ré.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados, com relevância, para a decisão, constam já do relatório que antecede.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Da incompetência do juízo de comércio
Invocou a Ré a exceção dilatória da incompetência do Juízo de comércio em razão da matéria sustentando que, face ao alegado na petição inicial, não está o Autor a exercer qualquer direito social relativamente à ré. Afirma que o exercício de direitos sociais a que alude o artigo 128º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto, está estritamente ligado ao exercício dos direitos que resultam para os sócios do contrato de sociedade celebrado, e pretendendo o autor, com a presente ação, exercer, apenas, o direito de ser reembolsado do valor que entregou à sociedade, não se pode subsumir o caso ao referido preceito. Entende que, reportando-se a referida norma, ao estabelecer uma competência especializada, às situações em que estão em causa posições jurídicas que os sócios pretendem fazer valer para defesa dos seus interesses societários, sendo indiferente a qualificação do contrato como contrato de suprimento ou contrato de mútuo, pois em nenhum dos casos esse direito assume a natureza de um direito social, é o Juízo de comércio materialmente incompetente.
Entendimento diverso manifestou o autor, por entender que a sua pretensão consubstancia o exercício de um direito social.
Insurge-se a Ré contra a decisão que julgou o Tribunal materialmente competente, por, contrariamente ao entendido, não estar em causa o exercício de um direito social, sendo competentes os Tribunais comuns.
Encontrando-se o poder jurisdicional repartido entre os tribunais, cada um deles detém a sua fração própria, a qual constitui a sua competência, existindo regras de competência que determinam como é feita tal repartição. Tais “regras atribuem competência aos tribunais, tomando em consideração os termos (objetivos e subjetivos) que caracterizam cada acção. Conforme os casos, a competência determina-se pelo pedido formulado pelo autor, pelo tipo de acção que pretende instaurar, pelo recurso que se pretende interpor, pelo lugar da ocorrência dos factos, pela residência das partes, etc.”[1].
A incompetência de um tribunal é a insusceptibilidade desse “tribunal apreciar determinada causa por os critérios determinativos da sua competência lhe não concederem uma medida de jurisdição suficiente para essa apreciação.
A lei infere a existência de quatro tipos de incompetência do tribunal: a incompetência absoluta, a incompetência relativa, a violação de pacto privativo de jurisdição e a preterição de tribunal arbitral”[2].
A incompetência absoluta provém de infração das regras da competência legal internacional e da competência legal interna material e hierárquica.
Sendo que a “nível interno, mais concretamente no âmbito dos tribunais judiciais, a competência reparte-se em função da matéria, da hierarquia, do valor da causa e do território (nº2 do art. 60º; cfr. também o nº1, do art. 37º da LOSJ)”,verifica-se que, no que respeita à referida competência em razão da matéria, o art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
O nº1, do art. 40º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovado pela Lei n.º 62/2013, de 26/01, e o art. 64º, do CPC, fazem a transposição para a lei ordinária dos princípios constitucionais, consagrando aquele preceito que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, e este que “São da competência dos Tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, estabelecendo-se, assim, a competência residual[3] dos tribunais judiciais no confronto com as restantes ordens de tribunais constitucionalmente consagradas.
As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada (art.º 65º, do CPC).
A competência em razão da matéria atua no plano da contraposição dos tribunais judiciais aos outros tribunais, impondo-se casuisticamente verificar se tal competência para conhecer dessa causa se encontra atribuída a outras ordens jurisdicionais, sendo que, caso o não esteja, a competência para conhecer do caso caberá aos tribunais judiciais. Estes, “e só estes surgem como a ordem de jurisdição também vocacionada para o julgamento das questões que a lei não inclui na esfera de competência de Tribunais integrados noutras jurisdições, o mesmo é dizer que a jurisdição dos Tribunais Judiciais está dotada de uma força expansionista, só comprimida através da presença de jurisdições com caráter especial”[4].
A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96º, al. a), do CPC).
Pressupõem tais normas a existência de várias ordens jurisdicionais. No caso, estão em causa critérios de repartição da competência entre os tribunais de comércio e os tribunais judiciais.
Nos termos da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ/aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8, na redacção conferida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22.12), que estabeleceu as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário, compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50.000 (art.º 117º, n.º 1, a)), sendo que nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às acções que caibam a esses juízos (n.º 2).
E consagra o artigo 128.º, da referida Lei, que 1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As ações de liquidação judicial de sociedades;
f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”.
Ora, a distribuição da competência em razão da matéria afere-se “pelo pedido efetuado e pela causa de pedir (STJ 29-5-14, 1327/11)” [5] sendo que se impõe analisar da relação jurídica que se discute na ação, tal como é configurada pelo autor, seja quanto aos seus elementos objetivos (causa de pedir e pedido), seja quanto aos elementos subjetivos das partes[6].
Aferindo os referidos elementos, tal como configurados pelo autor, seja quanto aos seus elementos objetivos (causa de pedir e pedido), seja quanto aos elementos subjetivos das partes, não pode deixar de se considerar ser da competência dos Tribunais de comércio a apreciação da referida pretensão, por, na verdade, se integrar na competência dos Juízos de comércio.
Bem decidiu o Tribunal a quo que a competência material se há-de aferir por referência aos termos em que a ação é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respetivos fundamentos, ou seja, de harmonia com a relação material configurada pelo autor, bem citando, nesse sentido, jurisprudência, entre outros, Ac. RL de 09/05/2012, proc. nº 2159/10.0TTLSB.L1-4, diversos existindo [7].
E bem considerou terem os juízos de comércio competência para “preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais” e que “concordando-se com o entendimento expresso no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/03/2017 (base de dados da DGSI, processo nº 167/11.2TYVNG-B.P1) “(…) no conceito normativo em análise se incluem as ações em que um sócio visa exercer um direito que esse estatuto lhe confere. Esse parece ser o conteúdo mínimo e, pacífico, ao que cremos, dessa expressão.
Também nos parece de aceitar a extensão do termo em análise aos casos em que a sociedade exerce um direito que também é conferido aos sócios enquanto tais, embora em benefício da sociedade, isto por identidade de razão.” (negrito nosso).
Bem sustenta o Tribunal a quo “o que a atribuição de competência aos Tribunais de Comércio acima mencionada visou abarcar foram as questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais e outras a elas equiparadas, por tais questões contenderem com matérias específicas que sempre exigirão especial preparação técnica.
Mas nem todos os direitos, de que uma sociedade comercial seja titular ou sujeito passivo, contenderão com tais matérias.
Afigura-se-nos que, essencial, para aferir se estaremos perante ou não uma acção relativa ao exercício de direitos sociais, é saber se a questão ou questões sub judice possui ou possuem uma vertente ou um cunho próprio que as diferenciam do regime fixado para a generalidade das obrigações e se afirmam com uma especial conexão ao direito das sociedades ou ao seu estatuto contratual” (negrito nosso).
E revertendo para o caso, a questão a que cabe dar resposta é, na verdade, a de saber se o Juízo de comércio é competente para apreciar o pedido de reembolso de suprimentos feitos pelo autor à ré. E configurando o Autor a ação como de reembolso de suprimentos, tal sequer foi posto em causa nos autos, bem considerando o Tribunal a quoao caso serão aplicáveis as disposições ínsitas nos artigos 243º a 245º do Código das Sociedades Comerciais, que, pese embora, se encontrem a regular o regime aplicável às sociedades por quotas, não poderão deixar de ser aplicáveis igualmente às sociedades anónimas.
Atendendo ao disposto no artigo 2º do mesmo código e ponderando que, consubstanciado o contrato de suprimento uma forma de financiamento da sociedade, não existem razões para que uma sociedade anónima não possa a ele recorrer, valendo a tutela que o legislador conferiu a tais empréstimos, ponderando não só o conflito de interesses entre os sócios e a sociedade, mas igualmente no confronto com os terceiros credores.
Neste conspecto, terá ainda de se relevar que, por força do disposto no artigo 243º do Código das Sociedades Comerciais, não é todo o empréstimo concedido pelo sócio à sociedade que se configura como suprimento, impondo-se igualmente para tal qualificação que o crédito fique tendo carácter de permanência, de harmonia com as presunções ilidíveis ali previstas.
E se assim é, mostra-se inequívoco que o contrato de suprimento não se equipara ao mero contrato de mútuo e nem tem os mesmos efeitos deste.
Como bem se deixou expresso no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/11/2011 (base de dados da DGSI, processo nº 3705/09.7TBMTS.P1) “A permanência é, portanto, um elemento objectivo muito relevante, assente no tempo de duração dos créditos e indicador de que a entrega do sócio, que passou para a disponibilidade da sociedade, não foi feita de forma transitória, antes preenche as finalidades próprias de uma entrada de capital, os fins semelhantes aos do capital. E como, ainda assim, a permanência continuava a ser um critério algo indeterminado, o legislador criou “índices de permanência”, isto é, presunções (ilidíveis) da existência de um contrato de suprimento, como a duração efectiva e o prazo estipulado.”.
Por tal razão, faculta-se aos sócios interessados a possibilidade de poderem ilidir a presunção de permanência demonstrando que o diferimento de créditos corresponde a circunstâncias relativas a negócios celebrados com a sociedade, independentemente da qualidade de sócio”.
Com efeito, o contrato de suprimento “consiste no empréstimo ou mútuo (em dinheiro ou outros bens fungíveis) efetuado pelo sócio em prol da sociedade, com caráter de permanência – entendendo-se que esta corresponde a uma disponibilização financeira superior a um ano (cfr. art. 243º, nº2) -, ficando a sociedade obrigada a restituir bens do género e qualidade dos que forem disponibilizados, ou é o contrato pelo qual o sócio acorda com a sociedade o diferimento, por prazo superior a um ano, do vencimento de créditos que tem sobre a mesma (cfr. art.º 243.º, n.º 1)” [8] [9].
Deixa Paulo Olavo Cunha claro que o legislador, ao regular no Capítulo IV (art. 243º a 245º), do Título III (Sociedades por Quotas), do Código das Sociedades Comerciais o contrato de Suprimento, limitou-se a tipificar um negócio que era, já, socialmente típico e que:
“Nos termos do regime legal:
- O caráter de permanência constitui característica essencial dos suprimentos, permitindo diferênciá-los dos simples empréstimos e dos atos de tesouraria (cfr. art. 243º);
- Quando não estiverem contratualmente previstos, os suprimentos só são obrigatórios para os sócios que derem o seu consentimento à respetiva prestação (cfr. art. 244º, nº2)”,
acrescentando ser “pressuposto do contrato a qualidade (de sócio) de um dos sujeitos” [10].
E analisando o regime jurídico de tal contrato, agora legalmente típico, e durante muito tempo apenas socialmente típico, que pressupõe “a específica relação entre o sócio e a sociedade”, refere “O contrato de suprimento – que é uma espécie de mútuo (cfr. arts. 1142º e seguintes do Código Civil), tal como o empréstimo mercantil (cfr. arts 394º a 396º, do Código Comercial), mas que constitui, todavia, uma categoria jurídica contratual autónoma – e, desde 1986, um contrato regulado na lei, nos artigos 243º a 245º do CSC, no título das sociedades por quotas, mas sendo aplicável a todos os tipos societários”[11] (negrito e sublinhado nosso).
Esclarece que, no momento da celebração do contrato de suprimento, “deverá ser estabelecido o regime aplicável, designadamente quanto à eventual onerosidade do mútuo e ao prazo e condições do respetivo reembolso” e analisa que na fixação do regime jurídico aplicável “haverá que respeitar os princípios enformadores fundamentais do Direito das Sociedades Comerciais”[12].
E bem abordou o Ac. RP 15/1/2019 as diferenças entre o contrato de suprimento e o contrato de mútuo, aí se referindo “Nos termos do artigo 243º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, desde que o respetivo crédito fique tendo carácter de permanência. E constituem índices do carácter de permanência a estipulação de prazo de reembolso superior a um ano ou a não utilização da faculdade de reembolso pelo prazo de um ano.
Estes índices ou presunções legais de permanência são ilidíveis e o contrato de suprimento não exige qualquer forma especial e pode ser celebrado, salvo convenção em contrário, sem necessidade de prévia deliberação dos sócios (artigos 243º/6 e 244º/3 do CSC). Embora o contrato de suprimento tenha, na sua génese, a subcapitalização das sociedades por quotas e assuma muita importância no seu desenvolvimento social, ele não supõe uma situação de crise da sociedade, podendo justificar-se pela expansão da atividade social”[13].
Tal contrato “apresenta dois requisitos comuns ao contrato de mútuo - como este, é um contrato real quoad constitucionem -, e dois requisitos específicos, que lhe conferem individualidade no mundo dos contratos típicos: a qualidade dos sujeitos (do empréstimo há-de ser credor o sócio e devedor a sociedade) e o carácter de permanência do crédito”, consagrando os nºs 2 e 3 do artigo 243 “dois índices do carácter de permanência: 1. - a estipulação de um prazo de reembolso superior a um ano, seja essa estipulação contemporânea ou posterior à constituição do crédito; 2. - a duração de facto, efectiva, do empréstimo durante um ano, contado da constituição do crédito”, sendo estes “meras presunções juris tantum do requisito da permanência, o credor pode demonstrar o contrário (artigo 350, n. 2, do C.Civil)”[14].
E “O contrato de suprimento é um negócio jurídico estabelecido entre a sociedade e o sócio, que vem representando uma das formas mais frequentes de financiamento do ente societário; traduz, efectivamente, um investimento do sócio na “sua” sociedade, através da realização de empréstimos a esta e corresponde à fórmula mais antiga da ambição lucrativa: obter fortuna, sem correr risco empresarial.[8][15]
Como refere Alexandre Mota Pinto[9][16], no meio da heterogeneidade dos diversos modos possíveis de financiamento da sociedade, o capital alheio combina-se, tantas vezes com o capital próprio, como acontece quando um sócio realiza um empréstimo ou difere créditos, misturando a qualidade de sócio com a de credor.
Ora, o pressuposto primeiro da realização de suprimentos está na liberdade dos sócios quanto ao financiamento da sociedade, na medida em que, cumprida a obrigação de formação e conservação do capital social, cada sócio decidirá livremente, quando, em que montante e de que modo financia a sociedade.
Os sujeitos do contrato de suprimento são, linearmente, o sócio e a sociedade; aquele, como se tem entendido, pode ser também o accionista (da sociedade anónima), desde que seja o accionista empresário e não (apenas) o accionista investidor[10][17]; esta pode ser, por isso, uma sociedade anónima.[11][18].
O objecto do contrato de suprimento, o seu objecto imediato, é a entrega de– financiamento por–dinheiro (o mais habitual) ou de outra coisa fungível (243.º, n.º 1 do CSC), mas apenas devem ser sujeitos ao regime especial do contrato de suprimento os créditos que desempenhem na sociedade “a função económica de substituição do capital próprio”, mas como o seu apuramento nem sempre se revela capaz foi encontrado um critério, mais facilmente reconhecível e que o CSC considera ser a “permanência dos créditos dos sócios na sociedade”.
A permanência é, portanto, um elemento objectivo muito relevante, assente no tempo de duração dos créditos e indicador de que a entrega do sócio, que passou para a disponibilidade da sociedade, não foi feita de forma transitória, antes preenche as finalidades próprias de uma entrada de capital, os fins semelhantes aos do capital.
E como, ainda assim, a permanência continuava a ser um critério algo indeterminado, o legislador criou “índices de permanência”, isto é, presunções (ilidíveis) da existência de um contrato de suprimento, como a duração efectiva e o prazo estipulado”[19].
Bem conclui o Tribunal a quo que “no caso do contrato de suprimento, estamos no âmbito próprio do exercício de direitos sociais, mostrando-se as obrigações em causa não só especialmente ligadas à qualidade de sócio, mas igualmente reguladas especificamente no Código das Sociedades Comerciais.
Razão pela qual, ao contrário do que acontece relativamente aos empréstimos concedidos por sócios sem o referido carácter de permanência ou por terceiros, o reembolso do contrato de suprimento mostra-se condicionado pelas regras próprias definidas no artigo 245º do Código das Sociedades Comerciais.
Prevendo não só que o reembolso em causa leve em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade, mas igualmente impedindo o seu titular de requerer a insolvência da sociedade com esse fundamento.
Não se ignora que no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/04/2018 (base de dados da DGSI, processo nº 21978/15.4T8LSB.L1-6), que a ré cita, foi proferida decisão no sentido de que:
“I– O sentido e alcance do conceito de “exercício de direitos sociais” está estritamente ligado ao exercício dos direitos que resultam para os sócios do contrato de sociedade celebrado. Parece visar-se, com a norma constante do art.º 128.º n.º1 c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), o estabelecimento duma competência especializada quando estão em causa as posições jurídicas que os sócios pretendem fazer valer para defesa dos seus interesses societários.
II– No caso de o Autor propor acção com vista a exercer o direito de ser reembolsado do valor que entregou à sociedade para esta fazer face a dificuldades de tesouraria, tal acção não se integra no conceito de “exercício de direitos sociais”, independentemente da qualificação dada a tal contrato, quer seja de mútuo ou se suprimento.”.
No entanto, não se poderá aderir a tal conclusão, considerando que, como se referiu, o sócio que prestou suprimentos à sociedade fê-lo nessa mesma qualidade e no exercício de um direito societário para atingir finalidades que não apenas as decorrentes de mero financiamento transitório.
Mostrando-se tal reembolso condicionado pelas descritas regras previstas no regime próprio regulado no Código das Sociedades Comerciais.
O que já não sucede nos casos em que, aquilo que está em causa, é um mero mútuo.
Como bem se sumariou no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/03/2009 (base de dados da DGSI, processo nº 10562/08-2):
“3- Dos diferentes modos de constituição da relação jurídica de suprimentos (entrega de dinheiro ou de outra coisa fungível do sócio à sociedade; diferimento do vencimento de créditos do sócio sobre a sociedade – art 243º C Com, a que se deverá fazer acrescer a aquisição pelo sócio de um crédito de terceiro sobre a sociedade, com vencimento diferido, por negócio entre vivos) resulta terem em comum o estabelecimento de uma relação contratual entre um sócio e a sociedade, sendo ínsita a essa relação a permanência no tempo do crédito sobre a sociedade.
4-Mas são também características do contrato de suprimento as limitações ao direito de reembolso dos créditos de suprimentos, que se destinam, em primeiro lugar, a salvaguardar os interesses dos restantes credores sociais e, em segundo lugar, a assegurar uma certa estabilidade no gozo desses dinheiros ou coisas fungíveis por parte da sociedade.
5-O regime legal dos suprimentos, “maxime” quando os mesmos revestem natureza estatutária, mas também quando revestem natureza contratual, implica um conjunto de cautelas que se destinam a evitar o abuso da personalidade colectiva pelos sócios, visto que estes créditos, ao contrário de outros de diferente natureza que eventualmente tenham sobre a sociedade, desempenham uma função que deveria ser preenchida por capital social.”.
Não temos assim dúvidas de que, pretendendo o autor o reembolso de um empréstimo concedido à sociedade, da qual é ou foi sócio, mas alegando que o mesmo não teve o carácter de permanência previsto no artigo 243º do Código das Sociedades Comerciais ou visando ilidir tal presunção, não estaremos perante exercício de direitos sociais, pela simples razão de que então o que estará em causa é o mero reembolso de um mútuo. Nesses casos serão já competentes os juízos cíveis.
No entanto, estando em causa, assumidamente, um contrato de suprimento, então a competência estará atribuída por Lei ao juízo de comércio”[20].
Bem decidiu o Tribunal a quo, sendo, também essa a orientação da Jurisprudência mais recente.
A pretensão formulada pelo sócio, dirigida contra a sociedade a quem, naquela qualidade, efetuou suprimentos, no sentido desta ser condenada a restituir-lhe, não pode deixar de constituir o exercício de um direito social, um direito do sócio exercido contra ela, pelo referido, com um regime específico e enformado pelos princípios fundamentais do Direito das Sociedades Comerciais, cabendo, por isso, na competência do Tribunal de Comércio[21], agora Juízo de Comércio. Na verdade, sendo o “contrato de suprimento um tipo próprio, autónomo, em que concorrem elementos comuns ao contrato de mútuo, mas onde também há um elemento social a considerar, pois que, na prestação do sócio que contrata por ser sócio, está presente o fim social” e “direitos sociais os que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais - o direito social traduz sempre a situação jurídica de quem participa numa sociedade, face à própria entidade desta a que está ligado pelo vínculo societário”, “Compete aos juízos do comércio, além do mais, a apreciação das acções relativas ao “exercício de direito sociais”, isto é, ao exercício de direitos que emergem especificamente do regime jurídico das sociedades comerciais e, assim, nomeadamente, fundando-se a acção em alegados suprimentos de um sócio à sociedade, cuja constituição está vedada a não sócios e cujo reembolso tem de respeitar as limitações impostas pelo art.º 245 do CSC, é de considerar que o juízo do comércio é materialmente competente para preparar e julgar a acção (art.º 128º, n.º 1, alínea c) da LOSJ), pois quando um sócio acciona a sociedade invocando um contrato de suprimento está no exercício de um direito social”[22] [23].
Também a Relação de Lisboa decidiu “A competência material do Tribunal determina-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca (causa de pedir). O Tribunal de Comércio é, de entre vários outros (cfr. artº 78º da LOFTJ), um Tribunal de competência especializada e ao qual incumbe, designadamente, preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais (cfr. artº 128º, nº1, alínea c), da Lei da Organização do Sistema Judiciário). Os direitos sociais, como é entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência, são todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais, ou seja, são direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade. Atendendo a que a causa petendi da presente acção relaciona-se com invocados suprimentos do autor a uma sociedade comercial, na qualidade de sócio, é de considerar que o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a presente acção é o Tribunal de Comércio, nos termos do artº 128º, nº1, alínea c), da Lei da Organização do Sistema Judiciário - Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - pois quando um sócio acciona a sociedade invocando um contrato de suprimento está no exercício de um direito social”[24].
Assim, contrariamente ao que conclui a apelante, a causa de pedir e o pedido formulado pelo autor, referente a empréstimos em dinheiro que alega ter feito à sociedade a título de suprimentos, configura exercício de direitos sociais, subsumindo-se o caso ao disposto no artigo 128º, nº 1, c), da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ), pois que o direito que o Autor pretende fazer valer na ação resulta para ele, na qualidade de sócio, do contrato de sociedade celebrado, estando a fazer valer um interesse seu, enquanto sócio.
O direito social que o Autor pretende fazer valer integra-se na esfera jurídica do sócio, por força do contrato de sociedade, sendo inerente à qualidade e estatuto de sócio e dirigido à proteção dos seus interesses enquanto tal.
Na verdade, sendo o contrato de suprimento é um contrato especial, relativo a direitos sociais, a ação a exercê-lo, tem de ser julgada pelo Juízo de Comércio, materialmente competente.
E integrando-se a ação, na qual o A. pede a restituição de suprimentos, na previsão da al. c), do nº1, do art. 128º, da LOSJ, sendo, por isso, da competência do Juízo de Comércio, não se subsume à competência residual do Juízo Cível.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 21 de junho de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª Edição, 2017, Almedina, pág 92
[2] Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência nos Tribunais Comuns, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1987, pág 54.
[3] Acs. do STJ de 10/12/2015, Processo 83/14 Sumários 2015, pág 688 e da Rel. Do Porto de 19/10/2015: Processo 1643/15.3T8PRT.P1. dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, 2017, Ediforum, pág 164-165.
[4] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, 2017, Ediforum, pág 151.
[5] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol.I, 2018, Almedina, pág 97
[6] Cfr., entre muitos, Acs. do STJ. de 20/6/2006, CJ STJ 2006, 2º, pág 121, de 7/4/2016, Processo 411/2014, Sumários, Abril 2016, pág 29, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, 2017, Ediforum, pág 165 e de 22/10/2015, Processo 678/11.0TBABT.E1.S1; Acs da Rel. Do Porto de 7/7/2016, Processo 30982/15.1T8PRT.P1 e de 10/11/2015, Processo 43048/15.5YIPRT; Ac. da Rel. de Lisboa de 10/3/2016, Processo 1245/14; Ac. da Rel. de Évora de 3/12/2015, Processo 502/14.1T8PRT.E1, todos in base de dados da dgsi.
[7] Cfr. in dgsi.pt, designadamente o Ac. STJ de 01.06.2017, onde se decidiu que “A apreciação da competência material dos tribunais afere-se em função do pedido e da causa de pedir expostos na petição inicial em confronto com as normas delimitadoras da competência” e “A criação de secções dos tribunais judiciais de 1ª instância com competência especializada visa proporcionar melhores condições para a correcta e célere apreciação das matérias em causa”.
[8] Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 7ª edição, Almedina, pág 964 e seg
[9] Cfr. Ac. RP 15/11/2018, proc. 357/17.4T8AMT.P1, in dgsi.pt
[10] Paulo Olavo Cunha, idem, pág. 965 e segs.
[11] Ibidem, pág. 968
[12] Ibidem, pág. 970
[13] Ac. RP 15/1/2019, proc. 5211/17.7T8VNG.P1, in dgsi.pt
[14] Ac. do STJ de 9/2/1999, proc. 98A1083, in dgsi.pt
[15] Cfr. Código das Sociedades Comercias, Vol. III, Coordenação de Jorge M. Coutinho de Abreu Almedina, 2001, p. 627.
[16] Do Contrato de Suprimento, O financiamento da sociedade entre capitais próprios e capital alheio, Coimbra, Almedina, 2002, p. 27
[17] Embora o STJ tenha vindo a seguir o entendimento – proposto por Raúl Ventura – de o regime dos suprimentos só abranger accionistas detentores de, pelo menos, dez por cento do capital social (STJ, 14.02.94 e 9.02.99, CJ/94, T. III e CJ/99, T. I).
[18] Alexandre Mota Pinto, obra citada, pág. 299.
[19] Ac. RP de 29/4/2019, proc. 10776/15.5T8PRT.P1, in dgsi.pt
[20] Aí se referem “nesse sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/06/2011, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/03/2009 e acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/04/2008 (base de dados da DGSI, respectivamente, processos nºs 612/08.4TVPRT.P1.S1, 10562/08-2 e 0832420)”.
[21] Cfr. Ac do STJ de 7/6/2011, proc. 612/08.4TVPRT.P1.S1, in dgsi.pt, onde se refere “I – O contrato de suprimento é um tipo próprio, autónomo, em que concorrem elementos comuns ao contrato de mútuo, mas onde também há um elemento social a considerar, pois que, na prestação do sócio que contrata por ser sócio, está presente o fim social.
II – Direitos sociais são todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais.
III - São direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade.
IV – Fundando-se a acção em alegados suprimentos de um sócio à sociedade, cuja constituição está vedada a não sócios e cujo reembolso tem de respeitar as limitações impostas pelo citado art. 245 do C.S.C., é de considerar que o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a presente acção é o Tribunal de Comércio, nos termos do art. 89, nº1, al. c) da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, pois quando um sócio acciona a sociedade invocando um contrato de suprimento está no exercício de um direito social”.
[22] Ac. da RC de 11/4/2019, proc. 591/18.0T8LRA.C1, in dgsi.pt
[23] Aí se desenvolve “os direitos sociais podem ser vistos como uma das manifestações da situação ou posição jurídica (conjunto de direitos, deveres, ónus, expectativas jurídicas) dos sócios perante a sociedade; nesta linha de entendimento, o direito social traduz sempre a situação jurídica de quem participa numa sociedade, titular do direito social é o sócio e pressuposto dessa titularidade é a existência de uma sociedade, a cujo corpo ele pertence.
Assim, os direitos sociais são direitos dos membros da corporação ou pessoa jurídica, enquanto tais; o direito do sócio não é um direito único, mas antes um feixe de direitos diversos, de vária natureza e conteúdo, sendo esse conjunto que exprime a sua posição ou participação na sociedade – a sua quota – ou, de outro modo dito, o seu estado jurídico – o estado de sócio.
Mas, sendo os sócios os sujeitos do contrato de sociedade, os direitos sociais não se esgotam na sua titularidade, desde logo, porque, gozando as sociedades de personalidade jurídica, será difícil recusar a qualificação de sociais aos direitos de que ela, uma vez constituída, é titular e que emergem especificamente do contrato de sociedade ou da lei societária (imperativa ou meramente supletiva).
Com efeito, no desenvolvimento das actividades da sociedade na prossecução do respectivo objecto social (ou do que, como tal, for entendido) e na implementação das inerentes operações sociais podem gerar-se situações que reclamam tutela jurídica que não respeitam necessariamente aos sócios, mas a terceiros e à própria sociedade, pois que esta, como se sabe, sendo dotada de personalidade jurídica, é um centro autónomo de congregação e imputação de interesses que justificam certo tipo de procedimentos vocacionados para os assegurar, sem que isso signifique a existência de oposição ou conflito com outrem, sócios ou terceiros.
Têm todos estes casos em comum a circunstância de sempre respeitarem à vida da sociedade, sendo através do recurso a juízo que se viabiliza e alcança o respectivo tratamento, com a consequente harmonização dos interesses envolvidos”.
E “Uma vez constituída a sociedade, titulares dos direitos sociais tanto podem ser os sócios, como a própria sociedade; logo, os direitos sociais são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.[3]”.
A competência dos tribunais/juízos de comércio prende-se com questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais.
Na atribuição de competência especializada aos juízos de comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais e que têm por objecto questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais, releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução, sendo necessários, naturalmente, conhecimentos especiais para que estão mais vocacionados os tribunais a que foi atribuída competência especializada nessa área (juízos do comércio) relativamente aos juízos cíveis com o objectivo de melhorar a administração da justiça quando os conflitos emergem de aspectos específicos do direito comercial ou do direito das sociedades comerciais.[5] (…)
Relativamente à questão da determinação da competência material para conhecer dos pedidos (…) reembolso dos suprimentos prestados pelo A. à Ré (…) trata de uma pretensão dirigida ao exercício de direitos sociais, nos termos e para efeitos do art.º 128°, al. c), da LOSJ, não cabendo na competência residual atribuída aos juízos cíveis (…).
Não se questiona a existência de um contrato de suprimento - in casu, enquanto empréstimo ou mútuo efectuado pelo sócio em prol da sociedade, com um carácter de permanência (disponibilização financeira superior a um ano), ficando a sociedade obrigada a restituir bens do género e qualidade dos que lhe foram disponibilizados (art.º 243º, n.ºs 1 e 2 do CSC) - figura definida pelo elemento social/fim social que lhe subjaz e a justifica, conformando-a, e que se encontra regulada nos art.ºs 243º a 245º do CSC.
Estamos, na verdade, perante uma questão entre um (ex) sócio e a sociedade, em razão dos respectivos direitos consignados na lei das sociedades comerciais, porquanto o A. vem pedir o pagamento (reembolso) dos invocados suprimentos que, enquanto sócio e por ter essa qualidade, fez à sociedade Ré.
E é entendimento largamente maioritário na jurisprudência e na doutrina que tal figura apenas ganha relevo no seio da regulamentação das sociedades comerciais, considerando-se que o contrato de suprimento é um tipo próprio, autónomo, em que concorrem elementos comuns ao contrato de mútuo, mas onde também há um elemento social a considerar, pois que, na prestação do sócio que contrata por ser sócio, está presente o fim social; pois, direitos sociais são todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais -nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade.[6]
Por conseguinte, fundando-se a acção em alegados suprimentos de um sócio à sociedade, cuja constituição está vedada a não sócios e cujo reembolso tem de respeitar as limitações impostas pelo citado art.º 245º do CSC, é de considerar que o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a presente acção é o juízo de comércio, pois quando um sócio acciona a sociedade invocando um contrato de suprimento está no exercício de um direito social.
Ademais, no regime do contrato de suprimento, estabelecido no art.º 245 do CSC, sobressaem, principalmente, as limitações ao direito de reembolso dos créditos de suprimentos, em primeiro lugar para salvaguardar os interesses dos restantes credores sociais e, em segundo lugar, para assegurar uma certa estabilidade no gozo dos empréstimos por parte da sociedade.[7]
Baseando-se o mencionado segmento do peticionado na acção em alegados suprimentos cuja constituição está vedada a não sócios (devendo-se atender ao momento em que o pretenso direito invocado se constituiu, não releva o facto do A., entretanto, ter deixado de ser sócio da Ré[8] - o invocado direito veio à sua esfera jurídica enquanto era sócio da sociedade devedora e por causa de o ser; o reembolso terá de respeitar as referidas limitações), é de concluir que a competência material para preparar e julgar o peticionado (…) cabe ao juízo de comércio e não ao juízo central cível.
[24] Ac. RL de 18/1/2018, proc. 1757-14.7T8LSB.L1-6, in dgsi.pt