Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
153/20.1PFMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME DE EXPLORAÇÃO ILÍCITA DE JOGO
ELEMENTOS DO TIPO
CONTRA ORDENAÇÃO
Nº do Documento: RP20220406153/20.1PFMTS.P1
Data do Acordão: 04/06/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA (RECURSO DO MP)
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Há duas razões para optar pelo entendimento seguido pelo AFJ n. 4/2010. Uma relativa ao princípio da legalidade e à rigidez da definição do tipo penal em causa. Essa definição não se basta com a noção genérica do citado artigo 1.º, há que a completar com o elenco que consta do artigo 4.º. Não basta que o resultado do jogo dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte. É necessário que se esteja perante um dos tipos de jogo elencados no artigo 4.º, o que não se verifica com as máquinas em questão no acórdão. Uma outra razão na base do entendimento perfilhado pelo acórdão é de ordem teleológica, relativa à ratio da incriminação e aos princípios da dignidade penal da carência de pena e da máxima restrição penal. A criminalização da exploração de uma máquina de jogo há-de justificar-se à luz de prementes necessidades de proteção de bens jurídicos de particular relevo social. Tal não se verifica, de acordo com o acórdão em relação a máquinas que funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas. Nestas o risco assume pouco significado, pois a «expectativa é limitada ou predefinida», o «impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação», ao contrário do que sucede com os jogos de casino, os quais possibilitam «uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente»
II - À luz da doutrina deste acórdão, não são consideradas máquinas de jogo de fortuna ou azar as máquinas que funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas mecânicas, porque nelas a expetativa é limitado ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação, mas já o serão máquinas que possibilitam uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente, em que os pontos adquiridos pode ser usados em jogos sucessivos e o próprio funcionamento do jogo induz à acumulação de pontos e a essa utilização em jogos sucessivos, pois as induzem comportamentos compulsivos com reflexos sociais danosos, que a criminalização da exploração ilícita do jogo pretende combater.
III - Integram-se na primeira dessas categorias (e, por isso, não foram consideradas máquinas de jogo de fortuna ou azar) as máquinas que deram origem aos processos a que são relativos os acórdãos da Relação de Coimbra de 18 de março de 2015, proc. n.º 27/10.4EATCT.C1, relatado por Belmiro Andrade; da Relação do Porto de 17 de setembro de 2014, proc. n.º 480/13.4 EAPRT. P1 relatado por Artur Oliveira; de 4 de fevereiro de 2015, proc. n.º 514/13.2EAPRT.P1, relatado por Alves Duarte; e de 31 de maio de 2017, proc. n.º 604/12.9EAPRT.P1, relatado por Pedro Vaz Pato; e da Relação de Évora de 31 de maio de 2011, proc. n.º 10/07.6TACCH.E1, relatado por Alves Duarte; de 28 de fevereiro de 2012, proc. n.º 81/10.9GCMN.E1, relatado por Ana Bacelar Cruz, e de 10 de maio de 2016, proc.n.º 271/11.7ECCLSB.E1, relatado por João Amaro (todos acessíveis em www.dgsi.pt). Integram-se na segunda dessas categorias (e, por isso, foram consideradas máquinas de jogo de fortuna ou azar) as máquinas que deram origem aos processos a que são relativos os acórdãos (invocados na douta sentença recorrida) da Relação do Porto de 4 de fevereiro de 2015, proc. n.º 60/10.6PEMTS.P1, relatado por Neto Moura; e de 7 de maio de 2014, proc. n.º 970/10.0GALSD.P1, relatado por Pedro Vaz Pato (ambos acessíveis em www.dgsi.pt). E também as máquinas que deram origem aos processos a que são relativos os acórdãos da Relação de Lisboa de 5 de abril de 2011, proc. nº 728/06.1GBVFX.L1-1, relatado por Jorge Baptista Gonçalves; da Relação de Coimbra de 15 de fevereiro de 2012, proc. nº 41/07.7FDCBR.C1, relatado por Paulo Guerra; e de 21 de março de 2012, proc. nº 354/10.0GDACB.C1;, relatado por Paulo Valério; e da Relação do Porto de 27 de junho de 2012, proc. nº 217/08.0GCPV.P1, relatado por Francisco Marcolino; de 25 de novembro de 2011, proc nº 34/09.0FAPRT.P1, relatado por Luís Teixeira; e de 19 de outubro de 2011, proc. nº 324/10.9GBGDM.P1, relatado por Pedro Vaz Pato (todos também acessíveis in www.dgsi.pt), e também se integra na segunda dessas categorias a máquina em apreço nestes autos.
IV - Como resulta do relatório do exame pericial junto aos autos e consta da descrição dos factos provados, a máquina em apreço permite a acumulação de pontos que podem ser usados em jogadas sucessivas e o próprio funcionamento do jogo induz à acumulação de pontos e a essa utilização em jogadas sucessivas. Sempre com o risco de numa jogada ulterior serem perdidos os pontos acumulados (por isso, pode falar-se em “apostas”). Não pode dizer-se em relação ao jogo em apreço nestes autos, como pode dizer-se das máquinas que funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas mecânicas a que ser reporta o acórdão nº 4/2010, que «a expectativa é limitada ou predefinida», ou «o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação». Pelo contrário, dela pode dizer-se, como pode dizer-se dos jogos de casino, que possibilita «uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente». Neste aspeto, os efeitos do uso da máquina em apreço nestes autos podem ser substancialmente equiparados aos jogos dos casinos, independentemente dos valores envolvidos, que são certamente diferentes. A indução de comportamentos compulsivos com reflexos sociais danosos representa um malefício que a criminalização da exploração ilícita do jogo pretende combater e, porque tal risco se verifica no uso da máquina em questão, justifica-se a criminalização da sua exploração ilícita.
V - Não pode, pois, dizer-se, que o impulso para um novo jogo é renovado apenas de cada vez que se volta a introduzir a moeda. Não, esse impulso é fortemente estimulado pela possibilidade de acumulação de pontos que depende da realização de novos jogos. A atracão dos prémios não está pré-definida e circunscrita, vai crescendo de forma eventualmente ilimitada. E sempre com o risco de perda dos pontos sucessivamente acumulados. Certamente que a menor dimensão dos valores envolvidos há de ser considerada na determinação da medida da pena aplicável, mas essa menor dimensão não é fator decisivo para excluir a criminalização da conduta em apreço.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 153/20.1PFMTS.P1


Acordam os juízes, em audiência, no Tribunal da Relação do Porto

I – O Ministério Público veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Matosinhos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que absolveu AA e BB da prática, em coautoria, de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108.º, n.ºs 1 e 2, com referência aos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de dezembro.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
1) A Meritíssima Juiz a quo fez uma incorreta interpretação da norma incriminadora (artigo 108.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, com a redação introduzida pelos Decretos Lei n.ºs 10/95 de 19.01 e 40/2005 de 17.02), ), bem como dos arts. 1.º; 3.º n.º 1; 4.º n.º 1; 6.º; 8.º e 9.º do referido diploma legal, conjugado com o art. 16.º do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 316/95, de 28-11, ao entender que a máquina de jogo apreendida nestes autos (tipo roleta eletrónica) não desenvolve um jogo de fortuna e azar e que em consequência nenhuma responsabilidade criminal poderá ser assacada a ambas as arguidas, quando deveria ter concluído precisamente o contrário.
2) A máquina tipo roleta apreendida nos autos desenvolve claramente um jogo de temática de fortuna e azar, só podendo ser desenvolvida em casinos, não se aplicando no caso sub judice, a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador invocado, dada as diferentes caraterísticas das máquinas em questão num e noutro caso (nestes autos tipo roleta; no AUJ invocado espécie de rifas ou tômbolas mecânicas).
3) Portanto, a incorreta interpretação dos mencionados preceitos, levou a que a Mma. Juiz considerasse erradamente que a máquina apreendida nestes autos não desenvolvia um jogo de fortuna ou azar, e em consequência, desse como não provado o elemento subjetivo do tipo, absolvendo ambas as arguidas.
4) A sentença padece de erro notório na apreciação da prova: de fato, e na sequência do que acima se disse, como consequência errada interpretação das citadas normas legais, o tribunal recorrido deu como não provado os elementos subjetivos do tipo, em especial os fatos iv) e v), razão pela qual, e em primeiro lugar, se pugna pela respetiva correção: ambos deverão ser dados como provados, como consequência da acertada interpretação dos descritos preceitos.
5) Ora, a correta interpretação dos preceitos legais acima indicados, conjugada com a assertiva valoração dos elementos de prova supra descritos, analisados à luz das regras da experiência comum, conduziriam, inevitavelmente, a que o tribunal recorrido tivesse que ter dado como provada toda a factualidade constante da acusação pública, condenando ambas as arguidas pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo (sendo que a arguida AA explorava a máquina de jogo, enquanto funcionária do estabelecimento em questão).
6) De fato, perante o auto de notícia e prova testemunhal corroborante (agente autuante) que confirma a exploração da máquina apreendida nas condições de tempo e lugar descritas na acusação pública; o auto de apreensão; a prova pericial elaborada pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos; a prova documental que comprova que a gerência do estabelecimento competia à arguida BB (talão de máquina e outro) e que o que se disse na sentença a propósito da outra arguida (“(…) resultou que a arguida AA estava a servir clientes no dia e que a máquina foi apreendida”, sendo esta a única pessoa responsável pelo estabelecimento no momento em que a máquina foi apreendida, assim se identificando perante a agente da autoridade - cfr. auto de notícia), a decisão proferida nestes autos, à luz das regras da experiência comum, só poderia ter sido no sentido de terem sido dados como provados todos os fatos da acusação pública, o que conduziria inevitavelmente à condenação de ambas as arguidas (que, de resto, nem sequer refutaram a sua prática, na medida em que nem sequer compareceram à audiência de discussão e julgamento).
7) De acordo com as regras da experiência comum, ambas tinham necessariamente conhecimento da máquina exposta num balcão do estabelecimento, à vista de toda a gente, e nessa medida mantiveram-na em exposição pública de acordo com um plano traçado por ambos, ainda que de forma tácita (cada uma exercia o seu papel na exploração da máquina em questão); por outro lado, é preciso não esquecer que a ação de fiscalização que deu origem ao presente processo, foi realizada na sequência de uma denúncia anónima, o que nos leva a concluir que há já algum tempo era explorada no referido local, visando ambas, naturalmente, o lucro obtido com a mesma (embora se admita que uma de forma mais direta do que outra)
8) A Mma Juiz fundamentou de forma manifestamente insuficiente a fatualidade dada como não provada (em dois parágrafos, num total de cinco fatos), excluindo desta forma a responsabilidade criminal de ambas as arguidas.
9) A sentença padece de contradição insanável na fundamentação, porquanto o tribunal recorrido quando analisa o caso concreto entra em contradição com o que expôs previamente em termos teóricos, e isto com particular acuidade no que toca à forma como foi excluída a responsabilidade da arguida AA.
10) Diz-se na sentença recorrida: “(…) A formulação do preceito incriminador aponta para alguma elasticidade ao estatuir que “quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados”(sublinhado nosso), inculcando a ideia de que a conduta infratora pode revestir uma multiplicidade de variedades (…)”; no entanto, não aplica esta doutrina pois exclui a responsabilidade criminal da arguida AA por ser mera funcionária do estabelecimento (diz-se na sentença recorrida que a arguida AA era a pessoa que servia os clientes no dia em que a máquina foi apreendida, única que foi identificada como responsável pelo estabelecimento no referido momento – cfr. auto de notícia).
11) A sentença padece de omissão de pronúncia, uma vez que a Mma Juiz conclui que os fatos descritos na acusação pública quando muito consubstanciam a prática de um ilícito de mera ordenação social (“do nosso ponto de vista apenas relava para a configuração do tipo contra-ordenacional (artigo 161.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro”), sem todavia daqui extrair qualquer consequência, nomeadamente a condenação pelo mesmo.»

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnado pelo provimento do recurso.


II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se a exploração da máquina em apreço configura a prática, por ambas as arguidas, do crime de exploração ilícita de jogo por que elas vinham acusadas.
Não estamos perante algum eventual erro notório na apreciação da prova (está em causa uma questão de qualificação jurídica), nem uma eventual contradição insanável da fundamentação (a fundamentação não é contraditória, é suscetível de ser questionada nos termos adiante indicados).
Quanto à alegada omissão de pronúncia, no que se refere à eventual condenação pela prática da contra-ordenação p. e p. pelo artigo 163.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, ela estará dependente da resposta negativa à questão de saber se não estaremos antes perante a prática do crime de exploração ilícita de jogo p. e p. pelo artigo 108.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma


III – É o seguinte o teor da fundamentação da douta sentença recorrida:

«(…)
III. Fundamentação
De facto
Factos Provados
Com interesse para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos (tendo sido expurgados aqueles que constituem matéria conclusiva ou são uma transcrição dos meios de prova, e que serão tidos em consideração em sede de fundamentação da matéria de facto):
1. Desde data não concretamente apurada até ao momento, mas que se situou antes de 25 de outubro de 2020, inclusive, ligada à eletricidade e em funcionamento, no estabelecimento comercial que a primeira exploram, denominado Bar ..., situado na Rua ..., Matosinhos, uma máquina de jogo tipo roleta eletrónica de cor cinzenta, sem qualquer inscrição destinada a um jogo e a ser utilizada pelos frequentadores do referido estabelecimento.
2. A máquina supra indicada organizava-se, era utilizada e era composta da forma como a seguir se descreve:
2.1. Uma máquina de pequenas dimensões, com móvel de um só corpo, estrutura em madeira de cor cinzenta, sem qualquer designação;
2.2. A máquina examinada não apresenta qualquer referência exterior quanto à origem. fabricante. número de fabrico ou de série;
2.3. Características Exteriores:
Móvel tipo portátil, com estrutura em madeira, com um painel em vidro acrílico na zona frontal. Na lateral direita da máquina encontra-se o mecanismo de introdução e eventual rejeição de moedas (0.50€, 1€ e 2€);
O cofre moedeiro encontra se na parte traseira da máquina;
Ao centro do já referido painel existe um mostrador circular dividido em aproximadamente 64 (sessenta e quatro) led, sendo que apenas 8 (oito) estão identificados pelos seguintes números e dizeres: + 10: 1; 50; 2; 100; 5; 20; 200;
No centro do mostrador circular existe uma janela digital onde são apresentados os pontos/créditos ganhos no decorrer do jogo e acumulados nas jogadas seguintes;
Sempre que é selecionado um dos led premiados todo o círculo se ilumina e é creditado na janela digital os créditos/pontos ganhos;
Por cima do mostrador circular existe uma janela digital existe uma outra janela digital que marca os créditos introduzidos, sendo que uma moeda de €0,50 correspondem 0.50 créditos, sendo este o valor mínimo para proporcionar uma jogada;
Na parte lateral direita da máquina está instalado um pequeno botão verde que tem como função efetuar jogadas por conta dos pontos ganhos (por cada ponto a máquina efetua duas jogadas consecutivas);
Na parte traseira da máquina encontra-se pequeno botão azul que tem como objetivo efetuar o reset à máquina, isto é, proceder à desmarcação de créditos provenientes de jogadas premiadas.
2.3. Funcionamento
Após a introdução de uma das moedas aceites, automaticamente é disparado um ponto luminoso que percorre os vários orifícios existentes no mostrador circular, de uma forma continua e desacelerando com o decorrer do tempo, iluminando-os à sua passagem, fixando-se aleatoriamente num dos orifícios;
Neste momento duas situações pedem ocorrer:
- O led em que se fixou o ponto luminoso corresponde a um dos oito identificados pelos números já referidos e, neste caso, o jogador terá direito aos pontos correspondentes, pontos estes que são imediatamente visualizados/creditados na janela digital que se encontra no centro do mostrador;
- O ponto luminoso fixou-se num dos restantes led sem qualquer referência de pontos, pelo que o jogador não terá direito a qualquer prémio, restando-lhe a hipótese de tentar de novo a sua sorte.
Caso o jogador tenha ganho alguns pontos o mesmo pode receber o prémio correspondente, ou optar por fazer jogadas com esses mesmos pontos acumulados. Para o efeito utiliza o botão verde (já referido) que se encontra na parte frontal da máquina, que lhe permite efetuar duas jogadas por cada ponto anteriormente ganho/cumulado.
Enquanto a máquina tiver créditos, a mesma faz jogadas sucessivas até esgotar os mesmos na sua totalidade
Os pontos são posteriormente convertidos em dinheiro, à razão de € 1,00 por cada ponto.
A máquina acima identificada, que proporcionava a prática daquele jogo de fortuna e azar, foi, pelo menos no período acima referido, até à sua apreensão, mantida pelas arguidas, sempre em execução de um plano por ambas traçado, no mencionado estabelecimento e para utilização dos seus clientes, sendo efetiva e constantemente utilizada por estes.
*
Factos não provados
Com relevo para a decisão da causa não resultaram provados os seguintes factos:
i) A arguida AA explorava o estabelecimento comercial identificado no ponto 1. dos factos provados.
ii.) As arguidas atuando em execução de um plano por ambas delineado, mantiveram em exposição pública a máquina descrita nos factos provados.
ii.) As arguidas, no âmbito do plano vindo de descrever, colocaram a acima identificada máquina no estabelecimento comercial supra indicado com o propósito concretizado de obter para si ganhos proporcionados pela utilização pelos clientes do jogo atrás descrito com o objetivo de ganhar quantias em dinheiro de montantes superiores àqueles que eram entregues pelos clientes.
iii.) Durante o tempo em que a referida máquina se encontrou naquele estabelecimento e em que foi, efetivamente, utilizada por diversas vezes e por diversos indivíduos, as arguidas retiraram dessa utilização os lucros correspondentes.
iv.) Agindo da forma descrita, as arguidas tinham a vontade livre e a perfeita consciência de, em execução de um plano por ambas delineado e executado, explorar ilicitamente um jogo de fortuna e azar fora dos locais legalmente autorizados, sendo sua intenção fazê-lo, bem sabendo que a máquina utilizada continha um jogo cujo resultado dependia unicamente do acaso.
v.) Sabiam as arguidas, além do mais, que tal conduta é punível e proibida por lei.
*
Indicação, valoração e análise crítica da prova
O Tribunal tendo em conta os princípios e regras legais sobre os meios de prova admissíveis, modos da sua obtenção e valor probatório por lei atribuído, e designadamente o disposto no artigo 127.º do C.P.P., segundo o qual – salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada à luz das regras da experiência (aferida pelo padrão comum e em função da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica) e a livre convicção da entidade competente (considerando que tais regras não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjetivas incontroláveis, antes têm, sempre, de se reconduzir, objetiva e fundadamente, às provas produzidas e examinadas em audiência, em ordem à descoberta da verdade material, prático-jurídica), sem perder de vista as exigências por vezes afirmadas pelo Tribunal Constitucional sobre a matéria.
O Tribunal baseou a sua convicção a partir da valoração do seguinte acervo probatório:
» Testemunha: CC, agente da PSP que levou a cabo a ação de inspeção ao estabelecimento comercial referido no ponto 1, tendo relatado de forma objetiva e com pormenor a forma como a mesma foi levada a cabo.
» Foi valorada a prova pericial, concretamente considerou-se o teor do relatório da perícia junto a folhas 65 a 67, sendo considerado o que decorre do artigo 163.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, nos termos do qual presume-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo de natureza técnica, científica ou artística, podendo o julgador divergir desse juízo desde que fundamente tal divergência e a sua convicção o suporte.
» Considerou-se os diversos elementos documentais juntos aos autos, cujo teor saiu incólume em sede de audiência de julgamento, designadamente o auto de notícia de fls.6, quanto à data e local dos factos; o auto de apreensão de fls.8, fotografias de fls.11 e talão de fls. 12.
No que concerne à factualidade não provada o tribunal não alcançou que as arguidas tenham atuado em concertação de esforços, desde logo porque do teor do depoimento da testemunha CC, apenas resultou que a arguida AA estava a servir clientes no dia em que a máquina foi apreendida (conforme depoimento da testemunha) e que era a arguida BB quem explorava o estabelecimento (conforme depoimento da testemunha e informação do talão de fls.12).
Acresce que, como adiante se irá explicitar em sede de motivação de direito, entendendo-se que a factualidade em causa não consubstancia a prática de um ilícito criminal, necessariamente os referidos factos teriam que ser considerados como não provados.
*
B) O Direito
Prescreve o art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 422/89 que Jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva e fundamentalmente na sorte. O art.º 3.º, n.º 1 do mesmo diploma diz que “A exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excecionados nos artigos 6.º a 8.º”.
De acordo com o artigo 9.º, o direito de explorar jogos de fortuna ou azar é reservado ao Estado e pode ser exercido por empresas constituídas sob a forma de sociedades anónimas a quem o Governo adjudica a respetiva concessão mediante contrato administrativo.
Por sua vez o n.º 1 do artigo 4.º dispõe que nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de fortuna ou azar: g) Jogos em máquinas que, não pagando diretamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
Finalmente, o artigo 108.º, n.º 1 relativo à exploração ilícita de jogo, determina que quem, por alguma forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias. Estendendo o n.º 2 do mesmo preceito a punição a quem for encarregado da direção do jogo, mesmo que não a exerça habitualmente, bem como os administradores, diretores, gerentes, empregados e agentes da entidade exploradora.
A primeira questão que se coloca é, assim, a de determinar o que sejam jogos de fortuna ou azar, pois é esta categoria de jogo que está na génese dos ilícitos imputados.
Para distinguir o que sejam máquinas de jogo lícito das máquinas de jogo ilícito importa atender ao prescrito pelo artigo 16.º do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 316/95 de 28/11 que configura juridicamente as máquinas de diversão detentoras de jogos lícitos e que são:
a) Aquelas que, não pagando prémios em dinheiro, fichas ou coisa com valor económico, desenvolvem jogos cujos resultados dependem exclusiva ou fundamentalmente da prática do utilizador, sendo permitido que o utilizador seja concedido o prolongamento da utilização gratuita da máquina face à pontuação obtida;
b) Aquelas que, tendo características definidas na alínea anterior, permitam a apreensão de objetos cujo valor económico não exceda três vezes a importância despendida pelo utilizador.
Do confronto destes preceitos com as disposições citadas resulta que o que distingue os jogos de fortuna ou azar dos jogos lícitos é o facto de os primeiros assentarem única e exclusivamente na sorte do jogador enquanto os segundos se baseiam na sua perícia.
Por isso é irrelevante na avaliação da ilicitude o prémio ou valor obtido com o jogo, porquanto existem jogos que, não pagando prémios em fichas ou moedas desenvolvem jogos de fortuna ou azar e, quando explorados fora das zonas legalmente autorizadas, consubstanciam um ilícito penal. Neste sentido se escreveu no Ac. da RL de 4/11/98 in CJ, V, pág. 138, que “não é elemento do tipo legal do crime de exploração de jogo de fortuna ou azar que o jogador tenha ganho ou perda de natureza económica; basta que façam depender os resultados obtidos pelo jogador exclusivamente de sorte sem que o mesmo tenha possibilidade de os influenciar”[1].
Resulta que o legislador quis que as máquinas cujos jogos tenham resultados dependentes essencialmente do acaso tenham o seu uso confinado às zonas de jogo autorizadas e que os jogos proporcionados pelas mesmas sejam considerados de fortuna e azar quer paguem quer não paguem diretamente prémios em dinheiro ou fichas. Assim, “não é elemento do tipo legal do crime de exploração de jogo de fortuna e azar que o jogador tenha ganho ou perda de natureza económica consoante o resultado do jogo porquanto o legislador quis prevenir o mero perigo de isso de poder verificar”[2].
Daqui decorre que constituem elementos do tipo legal de crime em análise[3]:
- exploração de jogos de fortuna ou azar – o que consubstancia o objeto da ação delituosa;
- que essa exploração se processe por qualquer forma – o que nos remete para o modo de ação do agente do crime;
- que a exploração de tais jogos e por tais formas ocorra fora dos locais legalmente autorizados – circunstância que concretiza a ofensa do bem jurídico tutelado;
- a existência de dolo, em qualquer uma das suas modalidades – facto que aponta para o elemento subjetivo do crime.
Efetivamente, para a consumação do crime de exploração ilícita do jogo de fortuna ou azar basta a colocação da máquina de jogos em local a que o público tenha acesso e em condições de funcionamento[4].
Não é necessário, para a consumação do crime em causa, que a máquina em questão estivesse em funcionamento efetivo e a ser utilizada por alguma outra pessoa que jogasse o jogo de fortuna ou azar.
Basta que a máquina com capacidade de desenvolver o jogo ilícito esteja em condições de funcionamento, colocada em local público, para que se considere preenchido o tipo legal respetivo, “por assim se criar uma situação em que é possível a lesão do bem jurídico tutelado”.
Resulta dos art.º 3.º, 4.º, 6.º e 8.º da Lei do Jogo que o direito de explorar jogos de fortuna e azar é reservado ao Estado, apenas podendo ser exercido por sociedades anónimas a quem o Governo adjudica a respetiva concessão, confinando-se a sua exploração e prática a casinos em zonas de jogo ou outros estabelecimentos para tal autorizados.
A formulação do preceito incriminador aponta para alguma elasticidade ao estatuir que “quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados” (sublinhado nosso), inculcando a ideia de que a conduta infratora pode revestir uma multiplicidade de variedades.
No entanto, tendo em consideração a máquina de jogo apreendida e examinada nos autos, consideramos que estamos perante um jogo que se configura como uma tômbola mecânica ou eletrónica em que o valor arriscado pelo jogador é diminuto ou de pequena dimensão e o prémio a que se habilita está logo à partida predeterminado, devendo, por consequência, ser qualificado como modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar.
De facto, a circunstância da pontuação variar entre 1 e 200, que se traduzem em euros não é evidentemente o mesmo que pagar diretamente prémios em fichas ou moedas (al. f) do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro), pelo que do nosso ponto de vista apenas relava para a configuração do tipo contra-ordenacional (artigo 161.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro).
Por outro lado, a nosso ver a máquina apreendida não desenvolve nenhum jogo de temática de fortuna ou azar.
Na verdade a máquina aqui em causa, ainda que não totalmente coincidente, diz respeito a um jogo com identidade substancial, nas suas características típicas relevantes, com a máquina em causa na apreciação efetuada pelo Acórdão do S.T.J para uniformização de jurisprudência n.º 4/2010, de 04 de Fevereiro de 2010, que fixou a seguinte jurisprudência obrigatória: Constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 159.º, n.º 1, 161.º, 162.º e 163.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que direito a um prémio pecuniário no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público.
Nesta conformidade, consideramos constituir critério diferenciador, fundamental das modalidades afins, a predeterminação do prémio e a pequena dimensão daquilo que o jogador arrisca, pelo pequeno valor da aposta e pela certeza, pré-definida, dos prémios, característicos de rifas, tômbolas ou concursos.
Por outro lado, nas máquinas em causa nos autos, inexiste uma álea desproporcionada e imprevisível (fortuna ou azar) inerente aos jogos de fortuna ou azar – do género (iguais ou equivalentes) aos jogos típicos definidos na lei como reservados aos casinos, em que as probabilidades de perder a aposta são incomensuravelmente superiores à de ganhar o prémio, além do valor desproporcionado do prémio possível e incertíssimo em relação à aposta.
Pelo que a exploração das máquinas por onde o jogo corria não constitui um crime de exploração ilícita de jogo.
A conduta apurada nos autos constitui a contraordenação prevista e punida pelos artigos 159.º, 160.º, n.º 1, 161.º. n.º 3 e 163.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro.
Neste sentido o Acórdão da Relação de Évora, de 28-02-2012, Processo n.º 81/10.9GCMMN.E1, Relator: Ana Bacelar Cruz, bem como o Acórdão da Relação de Coimbra, de 18-03-2015, Processo n.º 27/10.4EASTR.C1, Relator: Belmiro Andrade, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Por fim, no mesmo sentido, perante uma situação em todo idêntica à dos autos, o Acórdão da Relação do Porto, datado de 9.07.2014, Relator Alves Duarte, igualmente disponível para consulta em www.dgsi.pt, no qual foi considerado que “deve ser considerado como de modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar o jogo que se configura como uma tômbola mecânica ou eletrónica em que o valor arriscado pelo jogador é diminuto ou de pequena dimensão e o prémio a que se habilita estava logo à partida predeterminado”.
Face ao referido, e com os fundamentos aí vertidos, devem as arguidas serem absolvidas da prática do crime de que vêm acusadas.
*
IV. Da perda de objetos
Encontra-se apreendidos a favor dos autos o objeto descrito a folhas 8 e a quantia monetária de €11,50.
Considerando que o referido objetos oferece, pelas suas características, sério risco de serem utilizados no cometimento de factos ilícitos típico contraordenacional, nos termos do disposto no artigo 109.º, n.º1 do Código Penal é de declarar o seu perdimento a favor do Estado e subsequente destruição.
Relativamente à quantia monetária apreendida a mesma deve ser declarada igualmente perdida a favor do Fundo de Turismo (art. 117.º, do DL n.º 422/89, de 2 de dezembro).
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V. Das custas processuais.
Absolvidas as arguidas do crime que lhes é imputado nos autos não há lugar a custas 513.º, n.º1 a contrario do Código de Processo Penal.
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(…)»

IV – Cumpre decidir.
Vem o recorrente Ministério Público alegar que estão preenchidos os elementos constitutivos do crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de dezembro.
Não é esse o entendimento seguido pela douta sentença recorrida. Nesta se considera que a máquina em apreço é equiparável (substancialmente idêntica) à que deu origem ao acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2010 e, portanto, à luz da doutrina desse acórdão, não deve ser considerada máquina de jogo de fortuna ou azar, mas modalidade afim. Será assim atendendo à pequena dimensão do risco que envolve a utilização dessa máquina, considerando o pequeno valor da aposta e a certeza pré-definida dos prémios (característicos de rifas, tômbolas ou concursos) e à inexistência da álea desproporcionada e imprevisível inerente aos jogos de fortuna e azar (em que as probabilidades de perder a aposta são incomensuravelmente superiores às de ganhar um prémio de valor desproporcionado, mas em si mesmo muito incerto).
Vejamos.
Estatui o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, que são jogos de fortuna e azar «aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte». O artigo 4.º do mesmo diploma define os tipos de jogos de fortuna e azar, autorizados apenas nos casinos, constando dessa lista os jogos em máquinas que, não pagando diretamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte (alínea g) do nº 1).
Decisivo é, pois, saber se está preenchida a previsão destes artigos.
Considera a douta sentença recorrida que a máquina em apreço é equiparável à que foi objeto do processo que deu origem ao acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2010.
Este acórdão fixa jurisprudência nos seguintes termos:
«Constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 159.º, n.º 1, 161.º, 162.º e 163.º do Decreto -Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do Decreto -Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário, no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público».
Há, então, que apurar se os fundamentos em que se baseia esse acórdão para a jurisprudência em causa levarão, em coerência e por identidade de razão, a que se conclua que também a máquina a que se reporta o presente processo deva ser incluída não entre os jogos de fortuna e azar, mas entre as modalidades a eles afins (reguladas nos artigos 159.º e seguintes do mesmo diploma).
Estatui o n.º 1 deste artigo 159º que modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar são as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico. Nelas se incluem, nomeadamente, rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos (n.º 2 do mesmo artigo).
Impõe-se, assim, uma breve análise do referido acórdão nº 4/2010.
A questão por este dirimida, e que dividia até então a jurisprudência, diz respeito a máquinas que funcionam como espécies de rifas ou tômbolas mecânicas e atribuem prémios com valor económico de acordo com resultados que dependem exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
De acordo com a definição ampla do artigo 1.º atrás citado, poderia pensar-se que essas máquinas configuram um jogo de fortuna ou azar pelo facto de os seus resultados dependerem da sorte.
Não é, no entanto, esse o entendimento perfilhado pelo acórdão nº 4/2010. Na sua fundamentação afirma-se a dado passo:
«Todas as modalidades de jogos que não correspondam às características descritas e especificadas nos referidos artigos 1.º e 4.º do Decreto -Lei n.º 422/89, na redacção do Decreto -Lei n.º 10/95, embora os seus resultados dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, revertem para as modalidades afins, como se defende no acórdão fundamento.
No caso das máquinas de jogos, só são de considerar como jogos de fortuna ou azar:
Os jogos em máquinas pagando diretamente prémios em fichas ou moedas;
Os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte. O facto de os jogos em máquinas terem desaparecido do elenco exemplificativo do artigo 159.º, n.º 2 (modalidades afins), após as alterações introduzidas pelo Decreto–Lei n.º 22/85, de 17 de janeiro, não significa que todos os jogos em máquinas se dividam, pura e simplesmente, em jogos de fortuna ou azar e jogos de diversão, estes de resultados dependentes exclusiva ou fundamentalmente da perícia do utilizador e não pagando prémios em dinheiro, fichas ou coisas com valor económico, nos termos do artigo 1.º do
Decreto -Lei n.º 21/85, também de 17 de janeiro.
Ora, os jogos nas máquinas automáticas em causa nos acórdãos em conflito (cf. supra n.os 6.1 e 6.2), se apresentavam resultados que dependiam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não desenvolviam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar nem pagavam directamente prémios em fichas ou moedas. Por conseguinte, não podiam ser enquadradas em qualquer dos tipos de jogos de fortuna ou azar praticados em máquinas automáticas, tal como descritos nas referidas alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 10/95, revertendo, antes, para as modalidades afins referidas no artigo 159.º, pois constituem uma espécie de sorteio por meio de rifas ou tômbolas mecânicas.
É certo que os referidos jogos proporcionavam também prémios em coisas com valor económico e em dinheiro, ou só em dinheiro, mas tal circunstância, se não é permitida pelo artigo 161.º, n.º 3, do referido diploma legal, também não é suficiente, por si só, para integrar a «específica configuração em que está definido o pagamento de prémios (pagamento directo em fichas ou moedas) nos jogos de fortuna ou azar», como se diz no acórdão fundamento
E a razão para seguir tal entendimento é a seguinte:
«Como vimos atrás, o tipo legal de crime é dotado de uma certa rigidez, que o constitui como tipo de garantia, sendo essa precisamente uma das manifestações do princípio da legalidade. Assim, aquela circunstância não retira aos jogos em causa a natureza de modalidade afim.
Acresce que a tutela penal adscrita à proibição dos jogos de fortuna ou azar fora dos locais autorizados encontra fundamento, como se viu (cf. supra n.º 7.1.1), em valores de relevante ressonância ético -social, nomeadamente pelos efeitos devastadores a nível social, familiar, económico e laboral, com incremento de criminalidade grave, não só de carácter patrimonial mas também de carácter pessoal (vida, integridade física, ameaça, coacção) que a dependência de jogos de grande poder aditivo e potenciação de descontrolo pode acarretar.
Tal não sucede relativamente aos jogos em máquinas automáticas que funcionam como espécies de rifas ou tômbolas mecânicas, em que o que se arrisca assume dimensão pouco significativa, pois a expectativa é limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação, ao contrário do que sucede com os jogos de casino, mesmo em máquinas, possibilitando uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente
Há. assim, duas razões para optar pelo entendimento seguido pelo acórdão.
Uma relativa ao princípio da legalidade e à rigidez da definição do tipo penal em causa. Essa definição não se basta com a noção genérica do citado artigo 1.º, há que a completar com o elenco que consta do artigo 4.º. Não basta que o resultado do jogo dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte. É necessário que se esteja perante um dos tipos de jogo elencados no artigo 4.º, o que não se verifica com as máquinas em questão no acórdão.
Uma outra razão na base do entendimento perfilhado pelo acórdão é de ordem teleológica, relativa à ratio da incriminação e aos princípios da dignidade penal da carência de pena e da máxima restrição penal. A criminalização da exploração de uma máquina de jogo há-de justificar-se à luz de prementes necessidades de proteção de bens jurídicos de particular relevo social. Tal não se verifica, de acordo com o acórdão em relação a máquinas que funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas. Nestas o risco assume pouco significado, pois a «expectativa é limitada ou predefinida», o «impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação», ao contrário do que sucede com os jogos de casino, os quais possibilitam «uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente»
À luz da doutrina deste acórdão, não são consideradas máquinas de jogo de fortuna ou azar as máquinas que funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas mecânicas, porque nelas a expetativa é limitado ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação, mas já o serão máquinas que possibilitam uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente, em que os pontos adquiridos pode ser usados em jogos sucessivos e o próprio funcionamento do jogo induz à acumulação de pontos e a essa utilização em jogos sucessivos, pois as induzem comportamentos compulsivos com reflexos sociais danosos, que a criminalização da exploração ilícita do jogo pretende combater.
Integram-se na primeira dessas categorias (e, por isso, não foram consideradas máquinas de jogo de fortuna ou azar) as máquinas que deram origem aos processos a que são relativos os acórdãos da Relação de Coimbra de 18 de março de 2015, proc. n.º 27/10.4EATCT.C1, relatado por Belmiro Andrade; da Relação do Porto de 17 de setembro de 2014, proc. n.º 480/13.4 EAPRT. P1 relatado por Artur Oliveira; de 4 de fevereiro de 2015, proc. n.º 514/13.2EAPRT.P1, relatado por Alves Duarte; e de 31 de maio de 2017, proc. n.º 604/12.9EAPRT.P1, relatado por Pedro Vaz Pato; e da Relação de Évora de 31 de maio de 2011, proc. n.º 10/07.6TACCH.E1, relatado por Alves Duarte; de 28 de fevereiro de 2012, proc. n.º 81/10.9GCMN.E1, relatado por Ana Bacelar Cruz, e de 10 de maio de 2016, proc.n.º 271/11.7ECCLSB.E1, relatado por João Amaro (todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Integram-se na segunda dessas categorias (e, por isso, foram consideradas máquinas de jogo de fortuna ou azar) as máquinas que deram origem aos processos a que são relativos os acórdãos (invocados na douta sentença recorrida) da Relação do Porto de 4 de fevereiro de 2015, proc. n.º 60/10.6PEMTS.P1, relatado por Neto Moura; e de 7 de maio de 2014, proc. n.º 970/10.0GALSD.P1, relatado por Pedro Vaz Pato (ambos acessíveis em www.dgsi.pt). E também as máquinas que deram origem aos processos a que são relativos os acórdãos da Relação de Lisboa de 5 de abril de 2011, proc. nº 728/06.1GBVFX.L1-1, relatado por Jorge Baptista Gonçalves; da Relação de Coimbra de 15 de fevereiro de 2012, proc. nº 41/07.7FDCBR.C1, relatado por Paulo Guerra; e de 21 de março de 2012, proc. nº 354/10.0GDACB.C1;, relatado por Paulo Valério; e da Relação do Porto de 27 de junho de 2012, proc. nº 217/08.0GCPV.P1, relatado por Francisco Marcolino; de 25 de novembro de 2011, proc nº 34/09.0FAPRT.P1, relatado por Luís Teixeira; e de 19 de outubro de 2011, proc. nº 324/10.9GBGDM.P1, relatado por Pedro Vaz Pato (todos também acessíveis in www.dgsi.pt),
E também se integra na segunda dessas categorias a máquina em apreço nestes autos.
Na verdade, como resulta do relatório do exame pericial junto aos autos e consta da descrição dos factos provados, a máquina em apreço permite a acumulação de pontos que podem ser usados em jogadas sucessivas e o próprio funcionamento do jogo induz à acumulação de pontos e a essa utilização em jogadas sucessivas. Sempre com o risco de numa jogada ulterior serem perdidos os pontos acumulados (por isso, pode falar-se em “apostas”).
Não pode dizer-se em relação ao jogo em apreço nestes autos, como pode dizer-se das máquinas que funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas mecânicas a que ser reporta o acórdão nº 4/2010, que «a expectativa é limitada ou predefinida», ou «o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação». Pelo contrário, dela pode dizer-se, como pode dizer-se dos jogos de casino, que possibilita «uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente». Neste aspeto, os efeitos do uso da máquina em apreço nestes autos podem ser substancialmente equiparados aos jogos dos casinos, independentemente dos valores envolvidos, que são certamente diferentes. A indução de comportamentos compulsivos com reflexos sociais danosos representa um malefício que a criminalização da exploração ilícita do jogo pretende combater e, porque tal risco se verifica no uso da máquina em questão, justifica-se a criminalização da sua exploração ilícita.
Não pode, pois, dizer-se, que o impulso para um novo jogo é renovado apenas de cada vez que se volta a introduzir a moeda. Não, esse impulso é fortemente estimulado pela possibilidade de acumulação de pontos que depende da realização de novos jogos. A atracão dos prémios não está pré-definida e circunscrita, vai crescendo de forma eventualmente ilimitada. E sempre com o risco de perda dos pontos sucessivamente acumulados.
Certamente que a menor dimensão dos valores envolvidos há de ser considerada na determinação da medida da pena aplicável, mas essa menor dimensão não é fator decisivo para excluir a criminalização da conduta em apreço.
Deve, pois, ser concedido provimento ao recurso quanto a este aspeto.
Alega o recorrente Ministério Público que ambas as arguidas deverão ser condenadas pela prática do crime de exploração ilícita de jogo por que vinham acusadas: a arguida BB por explorar o estabelecimento comercial onde estava a máquina em apreço e a arguida AA por ser empregada desse estabelecimento, sendo ela a única pessoa que aí se encontrava a servir os clientes quando tal máquina foi apreendida.
Não se nos afigura, porém, que possa afirmar-se que esta última arguida explorava a máquina em questão. Exercia o seu trabalho dependente por conta da outra arguida, a quem cabiam os lucros decorrentes da utilização dessa máquina (como a esta cabiam os lucros da exploração do estabelecimento). Não pode, pois, certamente, dizer-se que ela, arguida AA, explorava tal máquina.
Neste aspeto, não deverá ser concedido provimento ao recurso.
Poderá, assim, haver lugar à condenação da arguida BB pela prática do crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro.
Não dispomos, porém, nesta sede, de todos os elementos necessários para tal, cabendo, por isso, ao Tribunal de primeira instância apurar tais elementos (ao abrigo do disposto nos artigos 410.º, n.º 2, c), e 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Esses elementos são os seguintes:
Há que apurar, em primeiro lugar, se estão, ou não, provados, os factos que, em relação a esta arguida, configuram a atuação com dolo e consciência de ilicitude. A douta sentença recorrida afastou liminarmente essa prova por, de acordo com o entendimento seguido, não estarmos perante a prática de um crime. Há que apurar se, tais factos se provam uma vez assente que estamos perante a prática dos elementos que objetivamente configuram a prática do crime em questão.
Em segundo lugar, e se tais factos se provarem, vindo esta arguida a ser condenada, há que apurar factos necessários à determinação da pena em que ela seja condenada: factos relativos à sua situação social e económica e aos seus antecedentes criminais.
Deverá, ainda, ser suprida a ambiguidade da redação do ponto 1 do elenco dos factos provados constante da sentença recorrida, no que se refere à identidade da pessoa que explora o estabelecimento comercial também nesse ponto indicado.

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público, determinando o reenvio do processo ao Tribunal de primeira instância, nos termos do artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para novo julgamento que se restringirá ao apuramento das questões acima indicadas.

Notifique

Porto, 6/4/2022
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo [Vencida conforme declaração em anexo] - Vencida, porquanto entendo que os factos em causa nos autos não integram um crime de exploração ilícita de jogo, mas antes um ilícito contraordenacional, entendimento que manifestei no Ac. Desta Relação de 11.12.2013 (proferido no Proc.n° 626/11.7GDGDM.P1, disponível em www.dgsi.pt).
Com efeito, os efeitos devastadores a nível social, familiar, económico e laboral, com incremento de criminalidade grave, não só de carácter patrimonial, mas também de carácter pessoal que a dependência de jogos de grande poder aditivo e potenciação de descontrole pode acarretar, não ocorrem “relativamente aos jogos em máquinas automáticas que funcionam como espécies de rifas ou tômbolas mecânicas, em que o que se arrisca assume dimensão pouco significativa, pois a expectativa é limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação, ao contrário do que sucede com os jogos de casino, mesmo em máquinas, possibilitando uma série praticamente limitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente”.
O tipo de máquina em causa nos presentes autos, bem como o “jogo” que desenvolvia da forma descrita – cujo resultado dependia exclusivamente da sorte nos termos acima indicados e não da perícia do jogador – como é claro não se integra em qualquer dos tipos de “jogos de fortuna ou azar” previstos no artigo 40 do cit. DL n°422/89 (nem a qualquer deles se equipara).

Por outro lado, considerando o seu modo de funcionamento, valores da respetiva “aposta” e prémios que atribuía, entendemos estar perante máquina que desenvolve uma “modalidade afim”, tal como definida no art. 163º n°1, por referência aos arts. 159º, 160° nº 1 e 161° do cit. DL nº 422/89, pelo que a sua exploração nos moldes descritos na decisão recorrida, não integra a prática do crime imputado às arguidas na acusação, correspondendo antes a um ilícito contraordenacional previsto no artigo 159° do Decreto-Lei n.° 422/89, de 02 de Dezembro.
Razão porque, concordando com a decisão que fez vencimento quanto à absolvição da arguida AA, daria provimento parcial ao recurso interposto pelo Mº Público, considerando que a arguida BB praticou a contraordenação p. e p. nos artºs. 159º, 160º, 161º e punível com coima prevista no 163º do Dec-Lei nº 422/89 de 02.12. Francisco Marcolino
__________________
[1] No mesmo sentido cf. ainda Ac. RE de 12/10/99 in CJ, IV, pág. 296.
[2] Cf. Ac. da RP de 24/5/95, in CJ, III, pág. 259.
[3] Cf. Ac. da Relação do Porto, de 25/09/2002, Processo n.º 0210716, www.dgsi.pt.
[4] Cf. Ac. RL de 21/05/02, in CJ, Ano XXVII, tomo III, pág. 128 e o Ac. desta Relação, de 05/02/97, in CJ, Ano XXII, tomo I, pág. 249