Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10/09.2S1LSB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: ARMA PROIBIDA
MATERIAL PIROTÉCNICO
Nº do Documento: RP2012053010/09.2S1LSB.P1
Data do Acordão: 05/30/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não integra a prática de um crime (mas apenas de um ilícito contraordenacional) o armazenamento fora das condições legais de material pirotécnico usado em fogos-de-artifício.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 10/09.2S1LSB.P1
Secção Única do T.J. de Resende

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No T.J. de Resende, processo supra referido, foi julgado B…, tendo sido proferida Sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julga-se a acusação pública totalmente procedente, por provada, e consequentemente, decide-se condenar o arguido B… na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (na redacção da Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio), suspensa na sua execução por idêntico período (cf. artigo 50.º/5 do Código Penal).”
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Desta Sentença recorreu o arguido/condenado B…, formulando as seguintes conclusões:
“1° O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito
da sentença proferida nos presentes autos que condenou o recorrente pela pratica crime previsto e punido no art° 86 n° 1, a) da Lei n° 5/2006.
2° O Tribunal a quo considerou provado que no pretérito dia 7 de Julho de
2007, se constatou na oficina de pirotecnia do recorrente a existência de um telheiro amovível, tipo barraca, sem características de paiol e sem constar dos locais permitidos para o deposito e manuseamento de explosivos licenciados em alvará e onde se encontravam 2082 bombetas e 200m de rastilho.
- Num terreno exterior pertencente ao arguido e nas instalações da oficina de pirotecnia, dois contentores, em cujo interior encontraram:
176 balonas de 176
40 Kg de Po de Incêndio
25 Kg de Perclorato de Potássio
440 balonas de 65 mm
8 baterias de 25 disparos de cor
16 baterias de 100 disparos de cor
16 baterias de 49 disparos de cor
5 baterias de 36 disparos de cor
6 baterias de 200 disparos de cor
- O arguido não estava legalmente autorizado a deter, utilizar, guardar ou a deter por fabrico os referidos objectos nas condições de armazenamento do telheiro de construção amovível sem constar como local permitido para deposito ou manuseamento de explosivos no alvará, nem nos dois contentores.
3° Tal convicção assentou apenas nos agentes de autoridade, que se revelaram pouco claros, imprecisos e incoerentes, sem fundamentação técnica, não tendo ficado provado os factos.
4° O barracão já existe nas instalações fabris há mais de 25 anos aquando da compra das mesmas pelo recorrente já este lá existia, é usado apenas para a secagem de material o que não representa qualquer perigo e é pratica utilizada por todos os pirotécnicos como ficou demonstrado na audiência de discussão e julgamento.
5° O material aprendido no interior dos dois contentores era totalmente inerte, e nunca nenhuma testemunha afirmou com conhecimento de causa (formação química) o contrário, apenas dizendo que o material estava dentro de caixas com nome afixados que não as verificaram em concreto.
6° O recorrente estava autorizado a deter, utilizar, guardar ou a deter para fabrico os referidos objectos, de acordo com o seu alvará n° …, no qual consta que campos de ensaios, meios de protecção contra incêndios, zona de segurança, deposito de fogo feito e ainda consumo de cloratos anualmente consumidos é de 800kg.
Na sua carta de estanqueiro n° …., esta autorizado o recorrente a deter 25 dúzias de foguetes, 150 dúzias de canudos calcados e 100.000 bombas diversas 70 Em face do exposto os factos ocorridos a 7 de Julho de 2007, foram incorrectamente julgados.
8° O tribunal apenas fundamentou a sua convicção nos depoimentos das testemunhas C…, D…, E…, F… e G…, desconsiderando o depoimento das testemunhas H… e I…, que foram isentos, imparciais, coerentes e que demonstraram profundo conhecimento técnico da actividade profissional desenvolvida pelo arguido.
9º O recorrente sempre foi um cumpridor da lei e colaborador da mesma, e por isso mesmo possui um agradecimento emitido pela Policia de Segurança Publica (Departamento de Armas e Explosivos), aquando da recolha de produtos explosivos em ….
10º O recorrente exerce a sua actividade profissional há 25 anos e nunca nas suas instalações fabris ocorreu qualquer acidente, devido ao cumprimento exemplar das normas de segurança que esta actividade exige.
11º Pelo que consideramos que os factos foram incorrectamente julgados.
12° O Tribunal a quo ao dar como provados os factos ocorridos no dia 7 de Julho de 2007, que fundamentou a sentença, violou entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art° 127 do C.P.P.
13º Por outro lado, ao dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência e julgamento, violou ainda, o disposto no art° 355, n° 1 do C.P.P.
14° A Lei presentemente não tipifica criminalmente o uso e guarda de Engenhos Explosivos Civis, fora das condições legais. (Acórdão da Relação do Porto n°11/09.0S1LSB.P1).
15° Em suma, não restam dúvidas que o recorrente não praticou o crime em que foi condenado.
16° Nos termos do supra alegado e não tendo o recorrente praticado o crime em que foi condenado, deve o mesmo ser absolvido.”
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Em 1ª Instância, o MºPº defendeu a improcedência do recurso.
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, igualmente, pela improcedência do recurso.
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Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor da Sentença recorrida.
Factos Provados:
“Após a realização da audiência de julgamento, resultaram provados os seguintes factos:
1) No dia 07 de Julho de 2007, em hora não concretamente apurada, o arguido B…, proprietário e responsável técnico de uma empresa de pirotecnia, conhecida pela denominação “J…”, sita no …, localidade de …, concelho de Resende, foi alvo de uma fiscalização de rotina pela Equipa de Fiscalização da DAE/DIF da DN/PSP quanto ao manuseamento e consumo de explosivos e matérias perigosas.
2) Aí chegados esta Equipa de Fiscalização da DAE/DIF da DN/PSP detectou na área das instalações da oficina de pirotecnia do arguido a existência de um telheiro de construção amovível, tipo barraca, sem características de paiol e sem constar dos locais permitidos para depósito ou manuseamento de explosivos licenciados em alvará, onde se encontravam:
1. 2082 (duas mil e oitenta e duas) bombetas de composição pirotécnica;
2. 200 (duzentas) metros de rastilho.
1) Mais detectou num terreno exterior pertencente ao arguido e nas imediações da oficina de pirotecnia a cerca de 150/200 metros da zona de segurança dois contentores, em cujo interior encontraram:
1. 176 (cento e setenta e seis) balonas de 75 mm;
2. 40 (quarenta) quilos de pólvora com a designação “Pó de incêndio” (carvão, salitre e enxofre);
3. 25 (vinte e cinco) quilos de perclorato de potássio;
4. 440 (quatrocentos e quarenta) balonas de 65mm;
5. 8 (oito) baterias de 25 disparos de cor;
6. 16 (dezasseis) baterias de 100 disparos de cor;
7. 16 (dezasseis) baterias de 49 disparos de cor;
8. 5 (cinco) baterias de 36 disparos de cor;
9. 6 (seis) baterias de 200 disparos de cor.
1) O arguido não estava legalmente autorizado a deter, utilizar, guardar ou a deter por fabrico os referidos objectos nas condições de armazenamento do telheiro de construção amovível sem constar como local permitido para depósito ou manuseamento de explosivos no alvará, nem nos dois contentores localizados a cerca de 150/200 metros fora da zona de segurança da sua oficina.
2) O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, conhecendo as características dos objectos que guardava e onde os guardava, bem sabendo que não estava, para o efeito, legalmente autorizado, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei e, ainda assim, querendo realizá-la.
Mais se apurou que:
3) O arguido é casado.
4) Tem 3 filhos, com 30, 32 e 33 anos.
5) Vive com a esposa, em casa própria.
6) Suporta cerca de 300 euros com crédito à habitação.
7) Aufere cerca de 500/600€ no exercício da sua actividade profissional.
8) Tem o 6.° ano de escolaridade.
9) É pessoa integrada social, familiar e profissionalmente.
10) Não tem antecedentes criminais.”
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Motivação da convicção do Tribunal:
“O Tribunal formou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, fundamentalmente na prova testemunhal e na prova documental junta aos autos.
De referir desde logo o carácter absolutamente preponderante dos depoimentos das testemunhas C…, D…, E…, F… e G… que não só descreveram as circunstâncias de tempo e espaço, como descreveram as características dos materiais apreendidos.
Pela relevância que os mesmos assumiram, atentemos resumidamente em cada um deles.
Assim, referiu a testemunha C… (agente Principal da PSP no Departamento de armas e explosivos na divisão de investigação e fiscalização da direcção nacional) que nas circunstâncias de tempo e espaço descritas na acusação foram fiscalizar a oficina do arguido e que detectaram a existência de dois contentores, no meio de um pinhal, não licenciados, contendo no seu interior material que carecia de autorização, designadamente pólvora e balonas.
Mais constataram a existência de um telheiro não contemplado pelo alvará.
Concretizando, referiu que os contentores estariam a cerca de 200 metros de distância da área de oficina pirotécnica.
Relativamente ao “telheiro”, esclareceu que o mesmo não estava licenciado e que se encontrava implantado no interior da fábrica, o qual não reunia condições de segurança.
Já no que concerne ao material apreendido, deu conta que era material muito instável e perigoso.
Com relevância, referiu ainda que o material apreendido não era inerte, contrariamente ao sustentado pelo arguido.
A testemunha D… (agente da PSP) que na altura também se deslocou ao local, tal como a testemunha anterior, referiu que constataram a existência de um “pavilhão” e de dois contentores (estes fora do local de segurança) sem qualquer tipo de licenciamento.
Descrevendo, referiu que os contentores estavam fechados, mas fora do perímetro de segurança. Relativamente ao pavilhão, não hesitou em afirmar que o mesmo não tinha condições para ali estar.
A testemunha E… (chefe da PSP do Departamento de inactivação de explosivos e segurança e subsolo, em Viseu), referiu que na altura se deslocaram ao local a pedido da equipa de fiscalização.
Referindo-se ao material apreendido, disse que parte do mesmo foi destruído de imediato no local porque não podia ser transportado (dada a sua instabilidade).
O restante material acabaria por ser transportado para um outro local onde viria a ser destruído, integralmente.
Reportando-se directamente às características do material apreendido, não hesitou em referir que o mesmo estava activo e era muito perigoso, pois era instável, sensível ao choque, à fricção e à chama.
A testemunha F… (Chefe da PSP, departamento de armas e explosivos em Lisboa) e que na altura também se deslocou ao local, disse que viram dois contentores contendo explosivos no seu interior fora do perímetro de segurança.
Acrescentou que parte do material foi destruído naquele local e outro foi transportado para outro local, onde viria a ser destruído.
Com significado, deu nota que os materiais apreendidos estavam guardados em locais não licenciados.
Tal como as demais testemunhas, não hesitou em referir que os materiais em causa não estavam inertes, pois de outro modo, não seriam apreendidos, como o foram.
Por fim, também a testemunha G… (agente da PSP, técnico de inactivação de explosivos do Centro de Inactivação de Explosivos e Segurança nos sub-solos, em Viseu) referiu que o material que foi apreendido era todo perigoso e, por essa razão, foi destruído.
Ora, não obstante o arguido e as testemunhas H… e I… terem tentado transmitir a ideia de que o material apreendido e o modo como se encontrava acondicionado não representava perigo, certo é que os mesmos não lograram abalar a convicção criada pela demais prova testemunhal, designadamente que os materiais apreendidos na oficina do arguido eram efectivamente perigosos e não se encontravam armazenados de acordo com as condições legalmente impostas.
Por outro lado, refira-se que muito embora o arguido tenha afirmado que todo o material apreendido se encontrava inerte, a realidade que emergiu do julgamento foi bem diferente, pois, como se viu, nenhum dos agentes que se deslocou ao local e/ou que contactou com o referido material hesitou em afirmar que o mesmo se mostrava activo e era efectivamente perigoso.
Razão pela qual não colheu a versão do arguido qualquer credibilidade.
Por último, de referir apenas que no que concerne às condições sócio-económicas do arguido, teve-se em consideração as próprias declarações deste e os depoimentos das testemunhas H… e I… (que, nesta parte, se apresentaram credíveis), sendo que no que concerne aos antecedentes criminais o Tribunal teve em conta o certificado de registo criminal junto aos autos.”
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Enquadramento Jurídico-Penal:
“Vem o arguido acusado pela prática, em autoria imediata, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.°, n.° 1, alínea a) da Lei n.°5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei n.°17/2009, de 6 de Maio.
Ora, prevê tal preceito que “quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência, ou exportação, usar ou trouxer consigo: (...) a) equipamentos, meios militares e material de guerra, arma biológica, arma química, arma radioactiva ou susceptível de explosão nuclear, arma de fogo automática, explosivo civil engenho explosivo ou incendiário improvisado é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos (...)».
Pois bem, tal como decorre claramente da configuração dada pelo legislador, o crime em análise é um crime de perigo (ou, como também é chamado, crime de mera actividade), pois para que o mesmo se considere preenchido basta verificar-se a acção descrita na norma, não comportando a verificação de qualquer resultado, pois pretende-se com tais incriminações antecipar a protecção de outros bens jurídicos, tais como a vida, a integridade física e a paz social que as mesmas são susceptíveis de violar e de causar um dano em objecto indeterminado.
Pelo que, se pode afirmar com relativa segurança, que o bem jurídico protegido por este tipo de ilícito é a segurança da própria comunidade perante os riscos decorrentes da circulação não controlada da detenção de armas, engenhos e matérias explosivas ou instrumentos que objectivamente sejam considerados perigosos para a segurança e integridade física das pessoas.
Doutrinalmente, este crime pode-se ainda classificar como um crime de perigo abstracto, considerando que a lei parte do pressuposto que determinados comportamentos são susceptíveis de produzir perigosidade, não exigindo, como se referiu, que o perigo se verifique em concreto, bastando-se pois com o desvalor da acção.
Além disso, importa também salientar que com o regime legal aprovado pela Lei n.°5/2006, de 23 de Fevereiro, o legislador visou não só reforçar a segurança, como disciplinar o comércio e uso de armas de fogo, bem como reforçar os processos de controlo, fiscalização e responsabilização por comportamentos ilícitos, sendo importante destacar (no que à detenção, uso e porte de uma arma de fogo se refere) que há que ter sempre presente a sua perigosidade, de tal forma que o Estado condiciona a sua utilização apenas àqueles a quem reconhece capacidade para uma boa utilização.
Pois bem, chegados a este ponto e tendo presentes as considerações antecedentes, torna-se necessário concluir perante o cotejo da factualidade dada como provada, que a previsão normativa incriminadora se encontra preenchida.
Senão vejamos.
Realizado o julgamento, considerou-se, além do mais, provado que:
1) No dia 07 de Julho de 2007, se constatou na oficina de pirotecnia do arguido a existência de um telheiro de construção amovível, tipo barraca, sem características de paiol e sem constar dos locais permitidos para depósito ou manuseamento de explosivos licenciados em alvará e onde se encontravam 2082 (duas mil e oitenta e duas) bombetas de composição pirotécnica e 200 (duzentas) metros de rastilho,
2) Num terreno exterior pertencente ao arguido e nas imediações da oficina de pirotecnia, a cerca de 150/200 metros da zona de segurança, dois contentores, em cujo interior encontraram:
176 (cento e setenta e seis) balonas de 75 mm;
40 (quarenta) quilos de pólvora com a designação “Pó de incêndio”
(carvão, salitre e enxofre);
25 (vinte e cinco) quilos de perclorato de potássio;
440 (quatrocentos e quarenta) balonas de 65mm;
8 (oito) baterias de 25 disparos de cor;
16 (dezasseis) baterias de 100 disparos de cor;
16 (dezasseis) baterias de 49 disparos de cor;
5 (cinco) baterias de 36 disparos de cor;
6 (seis) baterias de 200 disparos de cor;
1) O arguido não estava legalmente autorizado a deter, utilizar, guardar ou a deter por fabrico os referidos objectos nas condições de armazenamento do telheiro de construção amovível sem constar como local permitido para depósito ou manuseamento de explosivos no alvará, nem nos dois contentores localizados a cerca de 150/200 metros fora da zona de segurança da sua oficina.
Ora, face a estes elementos, dúvidas inexistem que a conduta do arguido preenche todos os elementos do tipo do imputado crime.
Pois, como decorre do disposto no artigo 5.° do Regulamento sobre o Licenciamento dos Estabelecimentos de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos (aprovado pelo Decreto-Lei n.°376/84, de 30 de Novembro) a instalação de qualquer estabelecimento de fabrico e/ou armazenagem está sempre dependente da obtenção prévia de licenciamento.
De modo que, tendo resultado provado que os materiais apreendidos em causa revestiam natureza explosiva e que se encontravam armazenados em local não licenciado, não subsiste, na perspectiva deste Tribunal, qualquer dúvida que o arguido detinha os referidos materiais (de natureza explosiva) fora das condições legais.
Além disso, tendo-se ainda provado que o arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, conhecendo as características dos objectos que guardava e onde os guardava, bem sabendo que não estava, para o efeito, legalmente autorizado, e não se vislumbrando quaisquer causas eximentes ou de desculpação que obstem à afirmação do facto típico, ilícito e culposo e, nessa medida, obstem à punibilidade do arguido, é mister concluir que o arguido, com a sua conduta, praticou o crime pelo qual vinha publicamente acusado.”
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o recorrente B… pretende suscitar as seguintes questões:
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Não tipificação criminal da provada conduta do recorrente.
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Antes de mais, uma correcção de um erro material a que nem o recorrente nem os restantes sujeitos processuais fazem referência:
Os factos foram praticados em 07/07/2009, pelo que há manifesto lapso de escrita na descrição dos factos provados, onde surge: “no dia 07 de Julho de 2007”.
Com efeito, o auto de apreensão é de 07/07/2009 e na acusação figura essa data, o erro tem origem na Pronúncia e foi mantido na Sentença, sem que ninguém dele se apercebesse.
Procedendo-se agora a essa correcção, nos termos do art. 380º, nºs 1 e 2 do CPP, dado que de erro material se trata, no nº 1 dos factos provados, onde surge escrito “no dia 07 de Julho de 2007”, deverá passar a constar: “no dia 07 de Julho de 2009”.
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Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Na peça de recurso indicam-se como factos incorrectamente julgados, os provados sob os números 1, 2 e 3 da decisão sobre a matéria de facto.
No entanto, extrai-se da mesma que, efectivamente, o que se pretende impugnar é não a detenção e armazenamento do material pirotécnico em causa, descritos nos nºs 1 e 2, mas tão somente que o recorrente o tivesse armazenado sem autorização e fora das condições legais, e que o mesmo fosse perigoso («o recorrente estava autorizado a deter, utilizar, guardar ou a deter para fabrico os referidos objectos, de acordo com o seu alvará n° …», «do depoimento das testemunhas não resultou que o produto apreendido nos contentores fosse minimamente perigoso»).
O que se encontra provado a esse respeito é o seguinte: o recorrente “não estava legalmente autorizado a deter, utilizar, guardar ou a deter por fabrico os referidos objectos nas condições de armazenamento do telheiro de construção amovível sem constar como local permitido para depósito ou manuseamento de explosivos no alvará, nem nos dois contentores localizados a cerca de 150/200 metros fora da zona de segurança da sua oficina”.
Na peça de recurso, indicam-se como provas que impõem decisão diversa os depoimentos do H… e do I…, qualificados de «isentos, imparciais e coerentes», ao contrário dos produzidos pelos «agentes da Autoridade», «pouco claros, imprecisos e incoerentes, sem fundamentação técnica».
Sem razão, porém.
Tal como referido na decisão sob reexame, os agentes policiais que lá se deslocaram, referem-no de forma clara e circunstanciada, sem margem para dúvidas, como se exemplifica com o depoimento do C…, referindo-se aos contentores “dentro desses contentores havia lá alguns produtos que são considerados explosivo civil, porque carecem e dependem de autorização da polícia, Direcção Nacional, neste caso. Havia balonas, havia perclorato de sódio, substâncias que são proibidas no fabrico de pólvoras cloratadas. Havia pólvora também. Hum… penso que era isso. Havia ainda uma quantidade razoável de material explosivo. Há também dentro da oficina pirotécnica, foi detectada uma unidade, diga-se assim, uma unidade fabril que não constava do alvará, que era um telheiro aberto onde estavam a ser fabricadas umas bombetas, também não constava do alvará e o seu uso também não é permitido” e referindo-se ao telheiro “existia, sim senhor, que era onde estavam a fabricar, e nós constatámos isso, e isso também foi apreendido, umas bombetas que estavam lá a ser fabricadas, com rastilho. Hum, penso que foram umas duas mil ou duas mil e tal bombetas que foram apreendidas na altura, que também não constava do alvará e era um… Também não tinha as mínimas condições de segurança”.
E, ao contrário do referido pelo recorrente, esses agentes têm conhecimentos técnicos na área de explosivos: o C…. estava no Departamento de Armas e Explosivos na Divisão de Investigação e Fiscalização da Direcção Nacional da PSP; o E… no Departamento de Inactivação de Explosivos e Segurança e Subsolo de Viseu; o F… no Departamento de Armas e Explosivos em Lisboa; o G… também no Departamento de Inactivação de Explosivos e Segurança e Subsolo de Viseu.
O por eles afirmado é consonante com a prova documental constituída pelos autos de apreensão de fls. 14 e 17 e pelas fotografias de fls. 21 a 25, prova também produzida e analisada em Audiência, como resulta da Acta de fls. 219.
Os depoimentos do H… e I… (de que se fornecem pequenas transcrições, descontextualizadas) não impõem decisão diversa, centrando-se, essencialmente, numa pretensa ausência de perigosidade do material em causa.
Em conclusão, o recurso em matéria de facto não merece provimento, mantendo-se o decidido quanto à mesma.
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Invocada não tipificação criminal da provada conduta do recorrente.
Em síntese, encontra-se provado o seguinte:
O recorrente B… é proprietário e responsável técnico de uma empresa de pirotecnia, em cujas instalações constituídas “por um telheiro de construção amovível, tipo barraca, sem características de paiol e sem constar dos locais permitidos para depósito ou manuseamento de explosivos licenciados em alvará” foram encontrados “2.082 bombetas de composição pirotécnica e 2.200 metros de rastilho”.
Em dois contentores, nas imediações da oficina de pirotecnia, foram encontrados “176 (cento e setenta e seis) balonas de 75 mm; 40 (quarenta) quilos de pólvora com a designação “Pó de incêndio” (carvão, salitre e enxofre); 25 (vinte e cinco) quilos de perclorato de potássio; 440 (quatrocentos e quarenta) balonas de 65mm; 8 (oito) baterias de 25 disparos de cor; 16 (dezasseis) baterias de 100 disparos de cor; 16 (dezasseis) baterias de 49 disparos de cor; 5 (cinco) baterias de 36 disparos de cor; 6 (seis) baterias de 200 disparos de cor”.
O recorrente “não estava legalmente autorizado a deter, utilizar, guardar ou a deter por fabrico os referidos objectos nas condições de armazenamento do telheiro de construção amovível sem constar como local permitido para depósito ou manuseamento de explosivos no alvará, nem nos dois contentores localizados a cerca de 150/200 metros fora da zona de segurança da sua oficina”.
Na subsunção dos factos ao Direito, é considerado que revestindo os materiais apreendidos natureza explosiva e encontrando-se armazenados em local não licenciado, o recorrente “detinha os referidos materiais (de natureza explosiva) fora das condições legais”.
No recurso afirma-se que «o recorrente estava autorizado a deter, utilizar, guardar ou a deter para fabrico os referidos objectos, de acordo com o seu alvará n° …, no qual consta que campos de ensaios, meios de protecção contra incêndios, zona de segurança, deposito de fogo feito e ainda consumo de cloratos anualmente consumidos é de 800kg» e «na sua carta de estanqueiro n° …., está autorizado o recorrente a deter 25 dúzias de foguetes, 150 dúzias de canudos calcados e 100.000 bombas diversas».
Defende-se que «os produtos apreendidos eram artefactos pirotécnicos utilizados no fogo de artifício», e que «o comportamento do recorrente perante a lei vigente, constitui contra ordenação às normas legais sobre o armazenamento de tais produtos e não crime para efeitos das armas e munições».
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Tendo os factos sido praticados em 07/07/2009, é aplicável a 3ª versão da Lei 5/2006 (Regime Jurídico da Armas e suas Munições), introduzida pela Lei 17/2009 de 06/05 (entrada em vigor em 05/06/2009); é a constante da acusação e foi a aplicada na Sentença sob reexame, apesar do lapso acima corrigido.
A previsão típica em causa tem a seguinte redacção (no que ao caso interessa):
Art. 86º (Detenção de arma proibida e crime cometido com arma)
1 – Quem, sem se encontrar autorizado, fora das conduções legais ou em contrário prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:
a) Equipamentos, meios militares e material de guerra, arma biológica, arma química, arma radioactiva ou susceptível de explosão nuclear, arma de fogo automática, arma longa semiautomática com a configuração de arma automática para uso militar ou das forças de segurança, explosivo civil, engenho explosivo ou incendiário improvisado é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;
(…)
Art. 2º (Definições legais)
Para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação e com vista a uma uniformização conceptual entende por:
(…)
5 (outras definições)
l) «Explosivo civil» todas as substâncias ou produtos explosivos cujo fabrico, comércio, transferência, importação e utilização estejam sujeitos a autorização concedida pela autoridade competente;
m) «Engenho explosivo civil» os artefactos que utilizem produtos explosivos cuja importação, fabrico e comercialização está sujeito a autorização concedida pela autoridade competente;
n) «Engenho explosivo ou incendiário improvisado» todos aqueles que utilizem substâncias ou produtos explosivos ou incendiários de fabrico artesanal não autorizado;
(…)
Na versão actual (a 5ª) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, conferida pela Lei 12/2011 de 27/04, a previsão típica acima transcrita mantém-se igual.
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A questão a decidir é, pois, se o material pirotécnico usado em fogos de artifício – tradição bastante enraizada no nosso País, em especial na Beira e no Minho – armazenado fora das condições legais, se encontra abrangido por aquela previsão criminal (ou se integrará apenas a prática de ilícito contra-ordenacional).
No texto da Lei, o material pirotécnico nunca é específica e expressamente referido, como resulta das transcrições acima efectuadas.
A considerar-se abrangido na previsão em causa, teria de integrar o conceito de “explosivo civil”, o único – dos referidos na previsão – susceptível de aqui ser aplicável.
Mas, tal como se interroga com alguma perplexidade no Acórdão deste Tribunal, proferido em 06/07/2011 (publicado no sítio www.dgsi.pt), “dá que pensar” que a detenção ou armazenamento de material pirotécnico “seja encarada do ponto de vista de um eventual sancionamento penal ao mesmo nível de uma arma nuclear ou biológica”.
Nessa decisão, proferida a propósito da detenção de «cartuchos pirotécnicos», refere-se que “nem todos os engenhos que utilizam substâncias explosivas são, em termos de mera detenção, enquadráveis na Lei das armas, por força da legislação que trata especificamente a circulação e posse – aquisição e disponibilização a consumidores – desses artigos, como são actualmente os artigos de pirotecnia, entre os quais aqueles que se destinam a actividades lúdicas”, reforçando-se que “os artefactos pirotécnicos com finalidade lúdica são tratados em legislação específica”.
Efectivamente, a legislação sobre «substâncias explosivas» é numerosa e fragmentária (por vezes desencontrada):
De entre ela recenseia-se, sem preocupação de a esgotar, a seguinte:
- Dec. Lei 34/2010 de 15/04, procede à definição “das regras que estabelecem a livre circulação de artigos de pirotecnia” e estabelece “os requisitos essenciais de segurança que os artigos de pirotecnia devem satisfazer tendo em vista a sua colocação no mercado”, transpondo para a Ordem Interna a directiva nº 2007/23/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23/05.
- Dec. Lei 265/94 de 25/10, aplicável aos explosivos “tal como são definidos na classe 1 do Acordo Europeu relativo ao transporte internacional de mercadorias perigosas por estrada”, transpõe para a Ordem Jurídica Interna a directiva nº 93/15/CEE respeitante “colocação no mercado e ao controle dos explosivos para utilização civil”.
No seu art. 2º exclui, a par dos explosivos destinados a ser utilizados pelas Forças Armadas, os artigos de pirotecnia.
- Dec. Lei 303/90 de 27/09, aplicável “ao fabrico, armazenagem, comércio e emprego de artifícios pirotécnicos luminosos, fumígenos ou sonoros, destinados a sinalização”, onde se estabelece no seu art. 2º, nº 1, que “o fabrico de artifícios de sinalização só poderá realizar-se em estabelecimentos identificados que, dispondo de instalações adequadas, tenham sido devidamente legalizados pela Inspecção dos Explosivos”, cominando com a prática de contra-ordenação as infracções ao nele disposto.
- Dec. Lei 376/84 de 30/11, que estabelece o regulamento sobre o licenciamento dos estabelecimentos de fabrico e de armazenagem de produtos explosivos, em que se abrangem as fábricas de pirotecnia.
Deste recenseamento conclui-se, no entanto, o seguinte:
- Existe legislação específica sobre material pirotécnico;
- Nalguma dessa legislação (concretamente, no Dec. Lei 265/94 de 25/10) estabelece-se uma diferenciação entre «explosivos para utilização civil» e «artigos de pirotecnia».
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Não sendo o texto da previsão típica (e da norma auxiliar interpretativa) expresso e claro; não sendo, igualmente, clara a vontade legislativa em criminalizar a detenção e armazenamento, fora das condições legais, de material pirotécnico – existindo legislação específica sobre a matéria que estabelece a distinção entre «explosivo para utilização civil» e «artigos de pirotecnia» – há que recorrer às regras de interpretação da Lei Penal que proíbem o recurso à analogia (art. 1º, nº 3, do C.P.) e restringem o recurso à interpretação extensiva, por violadora do princípio da legalidade.
Saliente-se que se não trata da aplicação do princípio in dubio pro reo (circunscrito ao Direito Probatório), o qual não tem qualquer cabimento em matéria de interpretação da Lei Penal.
Trata-se, sim, de respeitar os princípios gerais da interpretação e as regras a eles atinentes, de entre elas a veiculada pelo conhecido brocardo: “«favorabilia amplianda, odiosa restringenda», isto é as normas favoráveis aos cidadãos devem ou podem ser ampliadas, mas as normas muito desfavoráveis («odiosas») devem ser restringidas”.
Por estas razões, entendemos que a expressão «explosivo civil», constante da norma típica, não abrange o material pirotécnico em causa nestes autos.
Em termos de precedente, a similar conclusão se chegou no, já referenciado, Acórdão deste Tribunal de 06/07/2011: “o legislador da actual «Lei das Armas», ao referir-se a engenho explosivo civil, não teve em mente os artefactos pirotécnicos destinados a uso lúdico e enquadrados por regulamentação específica”.
Em conclusão, a previsão típica não se encontra preenchida, devendo o recorrente ser absolvido da prática do crime por que se encontra condenado, dando-se provimento ao recurso.
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Nos termos relatados, decide-se julgar procedente o recurso, revogando-se a Sentença recorrida e absolvendo-se o B… da prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (na redacção da Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio), por que vinha condenado.
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Sem custas.
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Porto, 30/05/2012
José Joaquim Aniceto Piedade
Airisa Maurício Antunes Caldinho