Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3716/13.8TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: SEGURO FACULTATIVO
DECLARAÇÃO AMIGÁVEL DE ACIDENTE
VALOR PROBATÓRIO
Nº do Documento: RP201412013716/13.8TBVNG.P1
Data do Acordão: 12/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A eficácia probatória de um documento particular diz apenas respeito à materialidade das declarações e não também à exactidão das mesmas.
II - A veracidade daquelas só fica provada quando for contrária aos interesses de quem a emitiu e esses interesses estejam em causa.
III - Não obedece a tal característica a “declaração amigável” na qual se descreve a produção de um acidente, descrição essa favorável ao Autor da acção.
IV - A contratualização de um seguro de danos próprios não isenta a autora de alegar e provar o modo como esses danos ocorreram, não sendo o seguro uma pura e simples garantia de reparação, mas um meio de transferir a responsabilidade pela ocorrência de danos que são consequência directa de um evento aleatório previsto no contrato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3716/13.8TBVNG.P1-Apelação
Origem-Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, 2ª Vara de Competência Mista.
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Caimoto Jácome
2º Adjunto Des. Macedo Domingues
5ª Secção
Sumário:
I- A eficácia probatória de um documento particular diz apenas respeito à materialidade das declarações e não também à exactidão das mesmas.
II- A veracidade daquelas só fica provada quando for contrária aos interesses de quem a emitiu e esses interesses estejam em causa.
III- Não obedece a tal característica a “declaração amigável” na qual se descreve a produção de um acidente, descrição essa favorável ao Autor da acção.
IV- A contratualização de um seguro de danos próprios não isenta a autora de alegar e provar o modo como esses danos ocorreram, não sendo o seguro uma pura e simples garantia de reparação, mas um meio de transferir a responsabilidade pela ocorrência de danos que são consequência directa de um evento aleatório previsto no contrato.
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, residente na Rua …, n.º.., em Vila Nova de Gaia, vem propor a presente acção declarativa contra C…–Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua …, n.º .., em Lisboa, pedindo que seja a ré condenada a:
- pagar à autora a quantia de € 30.787,06, correspondente ao valor do veículo segurado, acrescido de juros de mora;
- pagar à autora a quantia de € 37.500,00, resultante do incumprimento do prazo para regularização do sinistro, com juros demora desde a citação.
Para o efeito, alega, em síntese, ter contratado um seguro de danos próprios com a Ré, cuja cobertura activou na sequência de um sinistro sofrido pelo veículo objecto do contrato, tendo a Ré, após ultrapassar os prazos de regularização do sinistro, negado o pagamento do valor do veículo, que sofreu perda total.
A autora pediu a intervenção do ISP como seu associado, incidente que foi liminarmente indeferido.
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Citada veio a Ré impugnar a existência do sinistro, alegando que o veículo segurado não interveio no acidente relatado na petição inicial, sendo justificado o prazo dilatado na regularização do sinistro pela suspeita de fraude. Alega, por último, que a Autora não sofreu qualquer dano, não sendo proprietária do veículo em causa.
Pede a condenação da autora como litigante de má-fé.
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Por despacho de fls.145 e ss. foi fixado o valor da acção, definido o objecto do litígio e elencados os temas de prova, que vieram a sofrer aditamento por efeito de articulado superveniente apresentado em audiência de julgamento.
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Procedeu-se a audiência de julgamento com observância das legais formalidades, tendo a autora solicitado, no seu decurso, a condenação da ré como litigante de má-fé.
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A final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo a Ré, C…, Companhia de Seguros, S.A. dos pedidos contra si deduzidos pela autora, B….
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Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
A) Deveria a douta Sentença recorrida, em face da prova produzida, ter dado como provada a ocorrência do acidente dos autos em 09.06.2009, bem como o facto de a Declaração Amigável de Acidente de Automóvel de fls. 13 e 14 ter sido subscrita por ambos os condutores envolvidos.
B) Tal conclusão decorre não só da prova documental e testemunhal carreada aos autos, mas também se extrai de elementares regras de plausibilidade e senso-comum.
C) Ao não a perfilhar, existiu, por parte do Tribunal recorrido, manifesto erro de julgamento da matéria de facto, com a consequente incorrecta aplicação do Direito–tendo, nomeadamente, violado o disposto nos artigos 342.º n.ºs 1 e 3, 376.º e 374.º todos do C.C..
D) O montante dos danos sofridos pela Apelante deveria igualmente ter sido dado como provado, visto que foi elaborado pela empresa D…, S.A., a pedido da Apelada, um primeiro relatório pericial que apontava para a perda total do veículo propriedade da Apelante, fixando os danos, para efeito de ressarcimento, em € 30.787,06, conforme consta de fls. 212 a 232 dos autos.
E) No dia 09.06.2009 ambos os veículos se encontravam imobilizados na rotunda …, em Vila Nova de Gaia, sabendo-se (cfr. o Relatório de fls. 213 a 232) que o ..-GQ-.., ao chegar ao local antes do acidente não apresentava os danos que dele decorreram–pois o mais importante deles (o motor partido) obviamente não teria permitido que a viatura se deslocasse pelos seus próprios meios antes disso, impondo-se, portanto, considerar provada a existência do acidente.
F) O facto de no Relatório de fls. 194 e ss. se referir que “os danos nos dois veículos não são compatíveis entre si” (cfr. fls. 202), facto que foi dado como provado (cfr. a alínea j) dos Factos Provados), não significa que os mesmos não pudessem apresentar já danos anteriores–danos esses que só por um implausível acaso poderiam mostrar-se compatíveis com os danos ocasionados ao ..-GQ-...
G) Independentemente da causa concreta dos danos verificados no seu veículo automóvel, sempre a Apelante teria direito a ser indemnizada pela Apelada, nenhum sentido fazendo recorrer a qualquer expediente fraudulento do género do que esta (que abertamente fala de simulação e fraude) fantasiosamente insinua ter existido, tudo em virtude de o contrato de seguro existente entre Apelante e Apelada, que se encontra junto a fls. 55 a 128 importou a transferência para esta última da cobertura de responsabilidade civil por danos causados a terceiros e danos próprios, conforme se encontra provado nos autos (cfr. a alínea d) dos Factos Provados).
H) O “Relatório de Averiguação de Acidente de Viação” de fls. 194 a 211, longe de se cingir a dados concretos e objectivos, frequentemente resvala para a formulação de meras conjecturas ou suposições, o que é sobretudo visível a partir de fls. 202, muito particularmente, através do “Anexo” de fls. 207 a 211, unicamente destinado a tentar descredibilizar a Apelante, e que influiu decisivamente na douta Decisão recorrida.
I) Por efeito do contrato de seguro, definido como se encontra no artigo 1.º do DL. 72/2008, 16.04., o segurador cobre um risco determinado do tomador de seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente.
J) Demonstrada que foi nos autos a ocorrência do aludido evento aleatório, dai decorre naturalmente a obrigação a cargo da Apelada de ressarcir a Apelante dos danos por esta sofridos e documentados nos autos; entendimento diverso viola não apenas o sobredito artigo 1.º, mas igualmente os artigos 123.º e 128.º do aludido diploma legal.
K) Violou ainda a douta Sentença recorrida o disposto no artigo 414.º do C.P.C., na medida em que o veículo segurado sofreu um evento aleatório previsto no contrato de seguro, encontrando-se os danos assentes e absolutamente demonstrado e provados; e tal dúvida, se existisse, aproveitaria à A..
L) Coisa bem diferente é saber se o evento aleatório ou o acidente ocorreu ou não rigorosamente conforme os termos plasmados na Declaração Amigável, ou saber se o veículo segurado já teria sido anteriormente acidentado; ora, tal facto, meramente hipotético (e de que não se fez qual prova), aproveitaria à Ré, pelo que seria sobre ela que recairia o ónus da prova.
M) Ao não entender conforme expandido, violou a douta Sentença recorrida o disposto nos artigos 342.º n.ºs 1 e 3, 376.º e 374.º, todos do C.C., o artigo 414.º do C.P.C. e os artigos 1.º, 123.º e 128.º do DL. 72/2008, de 16.04.
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Devidamente notificada veio a Ré apresentar as respectivas contra-alegações, concluindo pelo não provimento do recurso.
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Foram dispensados os vistos legais.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do C.P.Civil).
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
b)- decidir em conformidade tendo em conta a decisão que venha a recair sobre a impugnação da matéria de facto.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

São os seguintes os factos que o tribunal recorrido deu como provados:

a) Em 17.06.2009 a autora entregou a declaração amigável do acidente com o teor constante de fls. 13 e 14 na delegação de Vila Nova de Gaia da ré C… (n.º1) dos factos assentes – 12º da petição inicial).
b) O veículo GQ foi peritado pelos serviços da ré em 18.06.2009, tendo o relatório de peritagem concluído pela existência de perda total, atribuindo ao veículo o valor patrimonial de € 30.787,06 (n.º2) dos factos assentes-13º/14º da petição inicial).
c) Em 20.07.2010 a ré remeteu à autora a carta com o teor constante de fls. 16, recusando o sinistro com fundamento na circunstância de os danos serem incompatíveis com o acidente (n.º3) dos factos assentes–16º da petição inicial, parcial).
d) Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º………, com início em 27.10.2008 e termo/renovação no dia 27.10 de cada ano, alterada em 27.10.2009, a autora transferiu para a ré a cobertura de responsabilidade civil por danos causados a terceiros e danos próprios do veículo de matrícula ..-GQ-.., nas condições melhor descritos no contrato cujas condições gerais e particulares se encontram descritas no documento de fls. 55 a 128, que aqui se dão por reproduzidas (n.º4) dos factos assentes 6º da petição inicial e 47º da contestação).
e) O contrato aludido em d) tinha por objecto um veículo ligeiro de passageiros, marca: Mercedes-Benz, modelo …, com a ali referida matrícula (prova parcial do facto 1º da petição inicial).
f) No dia 09/06/2009 o veículo GQ foi transportado por reboque a partir da rotunda …, em Vila Nova de Gaia, tendo sido levado para as instalações da E…, onde foi objecto de perícia ordenada pela ré (parte do artigo 13º da petição inicial, com esclarecimento).
g) A declaração amigável junta a fls. 13 e 14 foi assinada em nome da F… e G…, ali identificados como condutores dos veículos intervenientes no acidente participado (documento de fls. 13 e 14, cujos termos se dão por reproduzidos).
h) O relatório de peritagem referido em b) foi elaborado pelo Sr. H… perito da D… (doc. de fls. 212).
i) A participação referida em a) deu entrada nos serviços da ré ao abrigo da convenção IDS, onde a ré funcionava como entidade credora (12º da contestação).
j) Não existia enquadramento entre os danos apresentados pelo veículo GQ e os danos do veículo Rover, de matrícula OX-..-.., mencionado na participação aludida em a) (20º da contestação).
k) O veículo OX apresentava um vinco na parte central do capot, com amolgadela para o seu interior, junto ao centro (22º da contestação).
l) O veículo GQ apresentava danos na parte lateral esquerda, na parte frontal e na parte lateral direita (25º da contestação).
m) O sinistro participado no dia 17.06.2009 não foi causa dos danos sofridos no GQ e peritados pela ré (21º a 29º da contestação).
n) A ré iniciou uma investigação por suspeita de fraude (36º da contestação).
Provou-se ainda que:
o) Deu entrada nos serviços da ré, com data de 24.08.2010, nova declaração amigável, com o teor de fls. 192 e 193, descrevendo o mesmo local e data referidos em a) e assinada pelo declarado condutor do veículo GQ (documento sob referência, que aqui se tem por reproduzido).
p) Em data e por valor não apurado, os danos que o veículo GQ apresentava, peritados nos moldes referidos em b), foram reparados.
q) O veículo GQ encontra-se registado em nome da I… por apresentação datada de 22.05.2013, tendo sido vendido pela autora, fixando-se o preço de venda em € 15.000,00.
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III- O DIREITO

A primeira questão que importa decidir é, como se referenciou:

a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.

A apelante quanto a este segmento recursório entende que deveria ser alterada a matéria de facto devendo ser dados como provados os factos constantes do ponto I dos temas de prova e que a sentença recorrida considerou não provados sob os nºs 1) a 6).
Quid juris?
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no art. 655.º, nº 1, do CPC: “o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”-actual 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Evidentemente que isto não invalida que a Relação não possa formar a sua própria convicção, aliás, deve fazê-lo desde que disponha de elementos probatórios para o efeito.
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
Como já noutro passo se referiu, a apelante entende que deveria ter sido dada como provada a matéria factual constante do ponto I dos temas de prova cujo conteúdo era o seguinte:
“I) O veículo de matrícula ..-GQ-.., marca Mercedes, modelo …, foi interveniente num acidente de viação, em que interveio igualmente o veículo de matrícula OX-..-.. que
a) ocorreu no dia 09.06.2009;
b) teve lugar na rotunda …, em Vila Nova de Gaia;
c) ocorreu quando o veículo GQ circulava no interior da rotunda e foi embatido pelo veículo OX, que entrava na referida rotunda;
d) traduziu-se num embate entre a frente do veículo OX e a parte lateral do veículo GQ, conduzido por G…, que, em consequência do embate, perdeu o controle do veículo e foi embater no separador central.”
Cremos, porém, salvo do devido respeito, que não assiste qualquer razão à apelante.
Analisando.
O primeiro dos concretos meios probatórios que a apelante convoca para que se altere a decisão da matéria de facto diz respeito “À declaração Amigável de Acidente Automóvel” constante de fols. 13/14 dos autos.
Refere a este respeito a apelante que foi ignorado o seu valor probatório já que as assinaturas dele constantes não foram objecto de impugnação.
Labora, todavia, a apelante em manifesto equívoco quanto a ao valor probatório do documento em questão.
No artigo 373.º do C.Civil (diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem) estabelecem-se os requisitos dos documentos particulares: estes devem ser assinados pelo seu autor ou por outrem a seu rogo (nº 1), admitindo-se, em certos casos, a substituição da assinatura por simples reprodução mecânica (nº 2).
Só os documentos particulares que satisfaçam os requisitos previstos naquele normativo podem ter força probatória formal nos termos previstos nos artigos 374.º a 376.º.
A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular, consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe terem sido atribuídos, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras (artigo 374.º, nº 1).
Como refere Vaz Serra[3] a assinatura é requisito essencial do verdadeiro e próprio documento particular. A assinatura é o acto pelo qual o autor do documento faz seu o conteúdo deste, o acto, portanto, que lhe confere a sua autoria e que justifica a força probatória do mesmo documento.
Os documentos que não tenham os requisitos legais-o que, tratando-se de documentos particulares, repetimos, são os que não contenham a assinatura do seu autor-não podem fazer prova plena nem quanto às declarações atribuídas ao seu autor, nem quanto aos factos contidos nas mesmas, nos termos do citado artigo 376.º.
Os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida nos termos do normativo anterior, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (artigo 376.º, nº 1).
Já os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão (nº 2 do mesmo normativo).[4]
Portanto, este normativo estabelece:
a)- por um lado a força probatória formal-o documento prova que as declarações nele contidas foram realmente emitidas pelos seus autores (o que não significa, desde logo, que essas declarações sejam verdadeiras)[5] -nº 1;
b)- e por outro a força probatória material-as declarações vinculam o respectivo autor, na medida em que forem contrárias aos seus interesses-nº 2.
Resulta daqui que, quando o nº 2 do artigo em questão diz que “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados”, isso significa que as declarações feitas no documento exprimem a verdade, e, portanto, obrigam o declarante, até onde sejam contrárias ao interesse deste.[6]
Postos estes princípios gerais, como dizer que a partir do citado documento se pode dar como demonstrada a ocorrência do sinistro.
Saliente-se, desde logo, que embora a Ré apelada não tenha impugnado a veracidade das assinaturas do mencionado documento, impugnou o seu teor como, aliás, resulta do artigo 79º da respectiva contestação.
Para além disso, mesmo que o teor do documento não tivesse sido impugnado como o foi pela Ré apelada, nunca o mesmo poderia fazer prova do acidente.
Com efeito, a eficácia probatória de um documento particular diz apenas respeito à materialidade das declarações e não também à exactidão das mesmas, como supra se referiu, a veracidade daquelas só fica provada quando for contrária aos interesses de quem a emitiu e esses interesses estejam em causa.
Ora, como nos parece evidente, a declaração amigável não é contrária aos interesses da Autora apelante quando produzida pelo marido, ou seja, ela não tem qualquer valor confessório para os efeitos pretendidos.[7]
Aliás, era o que mais faltava que uma simples declaração favorável aos interesses do declarante fizesse prova dos factos nela contidos.
Por outro lado, e ao contrário do que refere a apelante, a decisão recorrida discorreu sobre o valor probatório do documento em causa, bastando para o efeito, atentar na respectiva decisão cujo excerto se transcreve:
Do exposto resulta que, para além dos documentos juntos sob intervenção oficiosa do tribunal, os únicos elementos probatórios apresentados pela autora para prova da existência do sinistro no dia e hora referidos correspondem à participação amigável do acidente que, enquanto documento particular cujas declarações são favoráveis à própria autora e produzidas pelo seu marido, não tem valor confessório, correspondendo a meras declarações, prestadas, aliás, por duas vezes, com e sem indicação do veículo terceiro, como resulta de fls. 13/14 e 192/193”.
E as mesmas considerações valem mutais mutandis em relação às declarações dos intervenientes no alegado sinistro reproduzidas no “Relatório de Averiguação do Acidente” constante de fols. 194 e seguintes e que foram retiradas do auto elaborado pelas autoridades policiais.
Esgrime depois a apelante com o “Relatório de Perda Total” consta de fols. 212 e ss. dos autos elaborado pela empresa “D…, SA”.
Acontece que, este relatório se limita a descrever os danos que o veículo “GQ” apresentava àquela data, sendo, portanto, inócuo quanto à ocorrência do sinistro e ao enquadramento dos danos.
Traz depois à liça a apelante o depoimento da testemunha J… subscritor do relatório de fols. 194 e ss.
Ora, ouvido o depoimento em questão e em concreto as passagens transcritas pela apelante nas respectivas alegações, não vemos como a partir dele, ainda que concatenado com outros elementos, se possa dar como demonstrada a verificação do acidente.
Na verdade, respigando o depoimento da referida testemunha o que perpassa é precisamente o contrário, ou seja, que o veículo “OX” tenha estado envolvido no sinistro em causa.
Isto dito, evidentemente, que existem adquiridos no processo determinados elementos objectivos que nos indicam, nomeadamente, que os veículos “OX” e “GQ” se encontravam no local onde se diz ter ocorrido o acidente, que apresentavam os danos descritos em K) e l) dos factos provados, que o “GQ” foi transportado por reboque a partir da rotunda …, em Vila Nova de Gaia, tendo sido levado para as instalações da E….
E perante tais elementos objectivos a dúvida que assalta a apelante e a qualquer outro cidadão colocado no seu lugar é esta: então o sinistro não ocorreu?
É facto que o “GQ” foi transportado do alegado local onde terá ocorrido o acidente por um reboque e isto como referiu a testemunha J… não podia circular pelos seus próprios meios.
Bom, mas se assim é, e não tendo ocorrido o sinistro, como chegou ao local de onde foi rebocado.
Terá sido rebocado até esse local e aí colocado?
Ou pelo contrário o “GQ” embateu nesse local contra o separador e central indicado na fotografia 6 junta a fols. 206?
E esse embate foi precedido de um outro nesse mesmo veículo pelo “OX”?
A verdade é que, se o embate ocorreu pela forma descrita nos artigo 7º a 11º da petição inicial, os danos que ambos os veículos apresentam são, com efeito, incompatíveis.
Efectivamente, se a colisão é na parte lateral direita do veículo “GQ” com a frente do “OX” como podem ambos os veículos apresentar aqueles danos?
De facto, o “OX” apresenta uma amolgadela na zona central do capot e que só pode ter sido produzida por um objecto ou superfície vertical que incidiu nessa zona, e nunca resultante do embate no veículo “GQ”, sendo que, este apresenta uma amolgadela vertical profunda na lateral direita e que também nunca pode ter sido resultante do embate tal como descrito pela Autora na sua petição inicial.
Os danos em ambos os veículos só podem ter resultado de embates em superfícies verticais, pois que, pela forma descrita de embate, os danos teriam que ter outra configuração, mais concretamente em disposição horizontal.
Poder-se-ia condescender que o dano apresentado pelo “GQ” na sua parte lateral direita podia ter sido resultado do embate do “OX”, todavia, os danos deste teriam que se localizar na frente esquerda e nunca no centro do capot com aquela configuração.
Portanto, não existem nos autos um elemento probatório seguro, para além da dúvida razoável, que nos permita, com a segurança necessária, dizer que os danos em ambas as viaturas resultaram num primeiro momento do embate ocorrido entre elas e, num segundo, do despiste do “GQ”, resultante desse embate, contra o separador central das duas vias.
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Decorre do exposto que a apreciação da Mmª juiz surge-nos, assim, como claramente sufragável, com iniludível assento na prova produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando por isso a respectiva alteração.
O presente caso, manifestamente, não se reconduz, pois, a um daqueles casos flagrantes e excepcionais em que essa alteração é de ocorrência forçosa, por ter havido, na primeira instância, um manifesto erro na apreciação da prova, uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto, sendo que, por outro lado, dos autos não existem elementos probatórios não valorados que permitam a esta Relação formar uma convicção diferente daquela que a Mmª juiz exarou nos autos, de molde a alterar a decisão sobre a matéria de facto.
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Ora, mantendo-se inalterada a decisão da matéria de facto, não existe fundamento para a sua revogação.
Na verdade, ao contrário do que refere a autora apelante da ocorrência do evento aleatório não decorre necessariamente a obrigação de indemnizar a cargo da Ré apelada.
Analisando.
A Autora com a presente acção pretendia ser indemnizada dos danos que o seu veículo “GQ” alega ter sofrido em consequência de um acidente, que descreve e situa, no tempo e no espaço, sendo tal indemnização peticionada com apoio na cobertura de danos próprios, no âmbito de contrato de seguro automóvel celebrado com a Ré apelada.
Trata-se, por isso, de uma acção que se situa no âmbito do seguro facultativo automóvel (danos próprios) e que toca aspectos exclusivamente ligados ao instituto da responsabilidade contratual.
O contrato de seguro encontra-se definido no artigo 1º do Anexo ao Decreto-Lei n.º72/2008, de 16.04 (aplicável quando não esteja em causa o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, regulado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08)–RJCS–como sendo o contrato por efeito do qual o segurador cobre um risco determinado do tomador de seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato.
Como assim, isto é, em consequência do facto de estarmos perante uma acção indemnizatória, destinada ao ressarcimento de um dano contratualmente seguro (no caso, danos sofridos pelo veículo em consequência de sinistro), incumbia à Autora apelante alegar e provar a factualidade conducente desse dever de indemnizar, traduzidos, designadamente, no facto/sinistro (acidente de viação)–que consubstancia o evento aleatório-, no valor dos danos sofridos em consequência deste evento, que podem ou não coincidir com o valor do próprio veículo (em caso de perda total), no nexo de causalidade entre o evento e o dano, a partir de cuja concatenação o tribunal concluiria pela operância da cobertura decorrente do contrato de seguro celebrado, sendo todos estes factos elementos constitutivos do direito exercido–cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CCivivil e artigos 123.º e ss., designadamente o artigo 128.º, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo D. Lei n.º 72/2008, de 16-04.
Acontece que, da análise da matéria de fato provada apenas resultou assente que no dia em que foi deslocado para a oficina em que veio a ser peritado, o veículo “GQ” apresentava danos mas que não se ajustavam descrição sumária do acidente efectuada pelo condutor daquele e pelo terceiro, numa primeira ocasião, e exclusivamente pelo condutor do GQ, na segunda participação efectuada.
Destarte, não resta senão concluir que a autora não provou os factos constitutivos do seu direito.
É que, como bem se refere na decisão recorrida, a contratualização de um seguro de danos próprios não isenta a autora de alegar e provar o modo como esses danos ocorreram, não sendo o seguro uma pura e simples garantia de reparação, mas um meio de transferir a responsabilidade pela ocorrência de danos que são consequência directa de um evento aleatório previsto no contrato.
Efectivamente, não se provando o modo como sobrevieram os danos no veículo “GQ”, designadamente o modo como ocorreram, não se pode considerar que existe responsabilidade da Ré apelada e, sobretudo, quando se apura que a versão do acidente tal como foi participada (e que, a ser verdadeira, geraria para a Ré recorrida um direito de ser reembolsada junto da seguradora do terceiro responsável pelo acidente) não ocorreu ou não foi causa directa dos danos participados.
A circunstância, de serem aplicáveis as condições especiais previstas nos pontos 001 e 002 do contrato de seguro (fls. 55 e 69/70), implicaria que, para que se considerasse verificado o evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato (responsabilidade civil facultativa por efeito de choque ou colisão), tivesse a Autora provado que os danos que o veículo apresentava à data da participação eram consequência de embate contra qualquer corpo fixo ou consequência de um embate sofrido quando o veículo estava imobilizado (definição de choque constante do artigo 1º do ponto 002 do contrato) ou de embate entre o veículo e qualquer outro corpo em movimento (noção de colisão expressa no ponto 2) e que, naturalmente, tais eventos houvessem ocorrido no dia, hora, local e condições participados, únicos passíveis de serem sindicados pela seguradora e únicos em consequência dos quais seria devido o accionamento da cobertura.
Ora, sendo todos esses factos desconhecidos e sendo a realidade expressa na participação algo que se provou não corresponder à causa dos danos participados, não logrou a Autora apelante fazer prova dos factos constitutivos do seu direito, pelo que não existe obrigação de indemnizar por parte da Ré recorrida, não sendo devida prestação contratualmente convencionada, o que teria que conduzir, como foi sentenciado, à improcedência da acção.
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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pela apelante e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente por não provada a apelação, confirmando-se assim a decisão recorrida.
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Custas pela Autora recorrente sem prejuízo da decisão que vier a recair sobre o pedido de apoio judiciário por ela solicitado (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 01 de Dezembro de 2014.
Manuel Domingos Fernandes
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
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[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201 “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] In BMJ 111º-155 e 161.
[4] Escreve o seguinte Vaz Serra in “Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 114, pág. 287 “Os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte, nos termos da confissão, sendo indivisível a declaração nesses termos. Portanto, nessa medida, o documento pode ser invocado como prova plena, pelo declaratário contra o declarante em relação a terceiros, tal declaração não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal”.
[5] É que a força probatória de um documento particular concerne tão só à materialidade das declarações nele contidas e não à sua veracidade.
[6] Cfr. no mesmo sentido Alberto dos Reis, Código Processo Civil Ant. Vol. III, pág. 436.
[7] Neste sentido veja-se o Ac. do STJ de 22/11/1994 in www.dgsi.pt, cujo sumário ora se transcreve:
I - A declaração expressa em documento com reconhecimento autêntico faz prova plena contra o declarante se se for contrária aos seus interesses
II- Não obedece a tal característica a participação do segurado à seguradora na qual aquele declara ser responsável pelo acidente de viação coberto pelo contrato de seguro.