Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
13210/16.0YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
FALTA DE PAGAMENTO DO PRÉMIO
RESOLUÇÃO AUTOMÁTICA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP2018050713210/16.0YIPRT.P1
Data do Acordão: 05/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º274, FLS.187-220)
Área Temática: .
Sumário: I - A reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude dos poderes da 1.ª instância e visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, sendo de manter a decisão de facto proferida em 1ª instância quando apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório.
II - Do preceituado nos arts. 59º e 61º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL n.º 72/2008 de 16.04) decorre que é necessário o pagamento antecipado do prémio ou da sua fracção para que se verifique, consoante se trate da prestação inicial ou de uma prestação subsequente, o início da cobertura do risco ou a renovação do contrato de seguro, ou ainda, se se tratar de uma fracção do prémio no decurso de uma anuidade, para que não tenha lugar a sua resolução automática e imediata.
III - Age em abuso de direito na modalidade de «venire contra factum proprium» o segurado que, a coberto da resolução automática do contrato de seguro por força do não pagamento de uma fracção do prémio anual, se pretende eximir a esse pagamento, não obstante se tenha comportado perante terceiros (exibindo e fornecendo a identificação da respectiva apólice de seguro no decurso de sinistros que envolveram potenciais lesados e a intervenção autoridades policiais) e perante a própria seguradora (beneficiando da gestão de sinistros participados à mesma) como se o contrato permanecesse válido e eficaz, inculcando, assim, nesta última, a legítima expectativa de que o não pagamento do prémio não significava o termo do contrato mas um mero retardamento no pagamento do prémio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 13210/16.0YIPRT.P1 - Apelação
Origem: Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Oliveira de Azeméis.
Relator: Jorge Seabra
1º Adjunto Des. Maria de Fátima Andrade
2º Adjunto Des. Oliveira Abreu
* *
Sumário:
....................................................
....................................................
....................................................
....................................................
* *
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO:
1.Companhia de Seguros B…, S.A. “, com sede na Rua …, …, Porto, propôs a presente injunção transmudada em acção declarativa para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, contra “ C…, Lda. “, com sede na Rua …, lote …, fracção …, Oliveira de Azeméis, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €9.366,66, acrescida dos respectivos juros de mora vencidos, calculados à taxa comercial, desde a data de vencimento do prémio, no montante de €1.035,59, e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de seguro relativo ao ramo automóvel, com início em 14/04/2014.
O contrato em causa durou até 01/10/2014, data em que procedeu à sua resolução, fundado em incumprimento da ré da obrigação de pagamento do prémio, no montante de €9.366,66, respeitante ao período de tempo entre 13/07/2014 e 01/10/2014.
*
2. A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção, posto que, admitindo que celebrou com a autora o contrato de seguro em apreço, impugna que o mesmo tenha cessado somente em 01/10/2014.
Na verdade, a sua cessação reporta-se a 13/07/2014, data em que o mesmo foi resolvido automaticamente por falta de pagamento do prémio respectivo.
Como assim, invocou que no período em apreço – 13/7/2014 a 1/10/2014 – não estando em vigor o contrato também existe qualquer prémio em débito.
*
3. A autora pronunciou-se em relação à matéria de excepção alegada pela ré, referindo que o contrato de seguro tinha duração anual, mas o pagamento do prémio era trimestral.
O contrato não foi denunciado nem resolvido pela ré em data anterior a 01/10/2014.
Além disso, entre 13/07/2014 e 30/09/2014, foram participados e reclamados à autora diversos sinistros referentes a viaturas da ré, abrangidas pelo seguro em apreço, pelo que a ré continuou a utilizar e a beneficiar do mesmo.
Age a ré, por conseguinte, em claro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto pretende retirar um efeito preclusivo do não pagamento atempado do prémio, mas impôs à autora (e dessa imposição beneficiou) a transferência do risco coberto pelo contrato de seguro em causa.
*
4. Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, vindo a ser proferida sentença que julgou procedente a acção, condenando a ré no pagamento da quantia de €9.366,66, acrescida de juros de mora, à taxa legal supletiva (juros comerciais), desde 14.07.2014 e até integral pagamento.
*
5. Inconformada com a sentença, dela interpôs recurso de apelação a ré, oferecendo as respectivas alegações e aduzindo, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
I. A douta sentença proferida nos autos decidiu erradamente, tanto do ponto de vista da matéria de facto que julgou provada, como do ponto de vista do direito aplicável.
II. O Tribunal a quo deu como provado que: “ 6. Entre 13/7/2014 e 30/9/2014, foram reclamados à autora diversos sinistros referentes a viaturas da ré e abrangidas pelo seguro mencionado: a. Ocorrência 7140637 de 2.08.2014; b. Ocorrência 7206648, de 24.09.2014; c. Ocorrência 7231376, de 30.09.2014. 7. A Ré continuou nesse período de tempo a utilizar e a beneficiar, por diversas vezes, do seguro em causa; 8. A Autora assumiu o risco, no pressuposto de que a ré viria a cumprir a sua obrigação; 9. Em virtude do referido em 5), em 1.10.2014, a autora anulou o contrato de seguro em causa, com efeito nessa data, dia seguinte ao último sinistro ocorrido. 10. A Ré não resolveu nem denunciou o contrato em data anterior a 1.10.2014. “, mas, no entanto, estes factos, salvo o devido respeito, foram mal julgados, porquanto deveriam ter sido dados como não provados, atenta a prova produzida, nomeadamente a prova testemunhal que se encontra gravada, pelo que a recorrente entende que o Venerando Tribunal da Relação deve proceder a alterações à matéria de facto provada relativamente àqueles factos.
III. Desde logo, o depoimento da testemunha D…, que foi ouvido na sessão de julgamento de 24.01.2017, desde as 12:41:03 horas até às 13:39:19 horas, encontrando-se o seu depoimento gravado durante 57 minutos e 14 segundos, nomeadamente o que essa testemunha disse entre o minuto 04:41 até ao minuto 8:50, do minuto 19:25 ao minuto 20:18, do minuto 21:36 ao minuto 25:44 e do minuto 28:46 ao minuto 29:04 do seu depoimento gravado, bem como o depoimento da testemunha E…, que foi ouvida na sessão de julgamento de 20.02.2017, desde as 10:46:37 horas até às 11:04:08 horas, encontrando-se o seu depoimento gravado durante 17 minutos e 29 segundos e nomeadamente o que essa testemunha disse entre o minuto 00:58 até ao minuto 5:45, contradizem a factualidade inserta na douta sentença proferida dada como provada e nesta referenciada nos pontos 6, 7, 8, 9 e 10 de «II.A – Factos Provados.»
IV. Mas, ainda, dos documentos juntos pela Autora aos autos resulta, por um lado, que os sinistros que estiveram na origem das reclamações apresentadas e constantes de tais documentos não ocorreram por culpa da Ré e, logo por aí, a A. nunca teria responsabilidade indemnizatória pelos mesmos e, por outro, demonstra ter havido reclamações de sinistros a outras Cªs de Seguros que não a A. e que essas é que a contactaram, embora não o devessem ter feito, nem a A. consentido.
V. Nesses contactos entre seguradoras a Ré não teve participação direta, ativa ou voluntária e, logo, não pode ser responsabilizada pela existência desses contactos, ao contrário do concluído na douta decisão de que se recorre.
VI. A A. também não assumiu qualquer risco, nem existe nos autos qualquer documento ou foi prestado qualquer depoimento testemunhal no sentido de que a A. pagou ou suportou qualquer indemnização ou despesa decorrente de qualquer sinistro ocorrido com veículos da Ré no indicado lapso temporal entre 13.07.2014 e 30.09.2014.
VII. Para além disso, nenhum documento junto aos autos pela autora, ao contrário do concluído na douta sentença proferida, inquina ou afasta a credibilidade dos depoimentos das testemunhas indicadas supra na conclusão III.
VIII. Posto isto, em face da prova testemunhal gravada e acima indicada e particularmente da que resulta dos trechos atrás enunciados dos testemunhos indicados e da documentação junta ao processo, impõe-se concluir que os factos elencados na douta sentença proferida dados aí como provados sob os n.ºs 6, 7, 8, 9 e 10 se encontram incorrectamente julgados, devendo nessa parte a douta sentença ser reparada e substituída por outra que os julgue não provados.
IX. O contrato de seguro em causa nos presentes autos é um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
X. O prémio de seguro é a prestação pré-fixada, paga pelo tomador do seguro, que funciona como correspectivo do risco a comportar pelo segurador.
XI. Do disposto no art. 61º, n.º 3, a), do RJCS aplicável ao caso por força do disposto no art. 19º do RSORCA, resulta que a falta de pagamento de uma fracção do prémio no decurso de uma anuidade determina a resolução automática e imediata do contrato na data do respectivo vencimento.
XII. O disposto no referido artigo não configura uma situação de mora, em sentido jurídico, na medida em que a falta de pagamento do prémio tem como consequência imediata o incumprimento definitivo.
XIII. No caso em apreciação, a Ré efectivamente, tal como se encontra provado, como ela própria admite e como admite a própria Autora, não pagou no tempo devido, ou seja, na data do seu vencimento a fracção do seguro vencida a 14.07.2014.
XIV. Tendo conhecimento a Autora, porque tinha de saber (facto pessoal de que não podia deixar de ter conhecimento), que o prémio respeitante à fracção do seguro vencido em 14.07.2014 não tinha sido pago pela Ré, e tendo, ainda, a obrigação de saber, em virtude da actividade a que se dedica, que tal falta de pagamento acarretava por força da lei a resolução imediata do contrato, a A. tinha a obrigação, que a lei lhe impunha, de comunicar tal facto ao IMTT e este às autoridades fiscalizadoras do trânsito, bem como tinha a obrigação de não participar em quaisquer diligências que lhe fossem transmitidas por outra seguradora terceira, recusando-se a isso e comunicando que o seguro não estava válido por não ter sido pago, tudo por força do disposto no art. 9º-A do DL 142/2000 de 15 de Julho, conforme redacção do DL 291/2007 de 21 de Agosto.
XV. O não pagamento do prémio de seguro no caso em apreço deveu-se única, exclusiva e definitivamente à vontade e a facto imputável à Ré, razão pela qual acarretou a resolução automática e imediata do seguro em causa na data do vencimento da respectiva fracção, ou seja, em 14.07.2014, o que deveria ter sido considerado na douta sentença proferida e não foi.
XVI. E assim sendo, a Ré não deve à autora os valores que esta reclama nos autos.
XVII. Ao assim não ter considerado, o Meritíssimo Julgador do Tribunal a quo proferiu uma decisão ilegal e errada, que importa reparar.
XVIII. Pelas razões invocadas pela recorrente, a douta decisão proferida aplicou incorrectamente o disposto no art. 334º do CC e não atendeu, não aplicou e violou o disposto no art. 61º, n.º 3, a) do RJCS aplicável ao caso por força do disposto no art. 19º do RSORCA e art. 9º-A do DL 142/2000 de 15 de Julho, conforme redacção do DL 291/2007 de 21 de Agosto.
Concluiu, assim, a recorrente no sentido da procedência do recurso e consequente substituição da sentença recorrida, devendo ser a mesma ser absolvida do pedido.
*
6. A Autora ofereceu contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
*
7. Foram cumpridos os vistos legais.
*
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. arts. 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
No seguimento desta orientação, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
a)- da impugnação da decisão de facto, ou seja, se o tribunal recorrido incorreu em erro de valoração e apreciação dos meios prova produzidos nos autos e no que respeita à matéria de facto impugnada pela recorrente;
b)- do erro de julgamento ao nível da subsunção do regime jurídico aplicável e consequente mérito da sentença recorrida.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO:
III.I. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1) A autora é uma sociedade comercial que se dedica à actividade seguradora.
2) No exercício da sua actividade, a autora celebrou com a ré um acordo escrito, titulado pela apólice n.º ……., mediante o qual se comprometeu a pagar a terceiros os valores pecuniários emergentes da circulação de uma frota automóvel.
3) Tal acordo teve início em 14 de Abril de 2014 e uma duração anual.
4) A periodicidade de pagamento do prémio acordada entre as partes foi trimestral.
5) A fracção do prémio de seguro respeitante ao período de tempo de 13/07/2014 até 01/10/2014, titulada pelo recibo n.º 63604237, com data de vencimento em 14/07/2014, não foi paga pela ré.
6) Entre 13/07/2014 e 30/09/2014, foram reclamados à autora diversos sinistros referentes a viaturas da ré e abrangidas pelo seguro mencionado:
a. Ocorrência 7140637, de 02/08/2014.
b. Ocorrência 7206648, de 24/09/2014.
c. Ocorrência 7231376, de 30/09/20141.
7) A ré continuou nesse período de tempo a utilizar e a beneficiar, por diversas vezes, do seguro em causa.
8) A autora assumiu o risco, no pressuposto de que a ré viria a cumprir a sua obrigação.
9) Em virtude do referido em 5), em 01/10/2014, a autora anulou o contrato de seguro em causa, com efeito nessa data, dia seguinte ao último sinistro ocorrido.
10) A ré não resolveu nem denunciou o contrato em data anterior a 01/10/2014.
**
III.II. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
*
Impugnação da Decisão de Facto:
De acordo com o objecto do recurso, a primeira questão que importa dirimir refere-se à impugnação da decisão de facto deduzida pela recorrente.
Nesta matéria, a ré põe em crise a factualidade constante dos pontos 6, 7, 8, 9 e 10 do elenco dos factos provados da sentença recorrida, sustentando que a mesma factualidade deveria ter sido julgada como não provada e convocando, para tanto, em termos probatórios, os depoimentos das testemunhas D… e E… – referindo as passagens exactas dos seus depoimentos que considera relevantes e tendo por referência o respectivo ficheiro fonográfico da gravação da audiência - e, ainda, os documentos juntos aos autos pela autora.

Em sede de impugnação da decisão de facto, como é consabido, a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com toda a precisão dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, dos meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do Recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação, deduzindo a sua (própria) apreciação crítica da prova – cfr. art. 640º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Destarte, em obediência aos ditos ónus, deve o recorrente, sob cominação de imediata rejeição do recurso [e sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento [1], além de delimitar os concretos pontos da decisão de facto que pretende questionar, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões [2], motivar o seu recurso através da indicação dos meios de prova constantes dos autos ou que neles tenham sido registados e que impõem decisão diversa quanto a cada um dos factos, e relativamente aos pontos da decisão de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas cumpre-lhe, ainda, indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes, sem prejuízo da transcrição (facultativa) de tais excertos.
Por outro lado, ainda, terá o recorrente de deixar expressa a decisão que, no seu entendimento, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação, tendo em conta a (sua) apreciação crítica dos meios de prova produzidos. [3]
Cumpridos, assim, os pressupostos essenciais para a reapreciação da decisão de facto, como decorre do preceituado no art. 662º, n.º 1 do CPC, deve a Relação «alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
Como é hoje indiscutido, com a citada redacção do art. 662º, em contraponto com o art. 712º do CPC anterior, pretendeu-se realçar que, sem embargo da correcção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afectam a decisão de facto e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos à livre apreciação do julgador, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, sujeito às mesmas regras de direito probatório que são aplicáveis em 1ª instância, os elementos de prova que se mostrem acessíveis imponham uma solução diversa da antes acolhida.
Afastada está, assim, a tese que a modificação da decisão de facto só pode ter lugar em casos de erro manifesto ou grosseiro na apreciação dos meios probatórios ou, ainda, que a Relação, atentos os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, não poderá contrariar o juízo formulado em 1ª instância relativamente a meios de prova que ali foram objecto de livre apreciação.
Sem deixar de ter presente esses princípios e o seu relevo para a convicção do julgador e sem escamotear que o Juiz em 1ª instância se encontra, por via do contacto directo e imediato com a produção da prova, em condições privilegiadas para a realização do julgamento da matéria de facto [pois que tais condições não são exactamente repetíveis em sede de julgamento pela Relação, limitada que está, no actual sistema, pela audição dos registos da gravação de audiência], dúvidas não existem que a evolução legislativa e a solução consagrada no citado art. 662º, n.º 1 [e, ainda, no n.º 2 als. a) e b) do mesmo inciso] apontam no sentido de a Relação se assumir «como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem (…), assistindo-lhe, pois, plena autonomia decisória, «competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.» [4]
Assim, tendo em vista esta sua autónoma convicção, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido e os meios probatórios convocados por ambos, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados ou, ainda, outros meios probatórios que se mostrem acessíveis.
Em suma, o regime de reapreciação da prova pela Relação supõe o acesso a todos os meios probatórios disponibilizados pelo autos, neles incluindo os meios de prova pessoal objecto de gravação, enquanto meio de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade susceptíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que permite uma visão global e contextualizada de toda a prova e não apenas da que é convocada pelo recorrente e pelo recorrido, naturalmente permeáveis aos seus próprios interesses.

Por outro lado, ainda, a propósito da reapreciação da prova testemunhal é de referir que, que neste âmbito, vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil.
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjectiva (art. 607º, nº 4 do CPC) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos da motivação invocada pelo tribunal recorrido na fixação do quadro factual considerado provado e não provado que o Tribunal ad quem vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Com efeito, através da reapreciação da prova não se procura obter uma nova convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável, atendendo aos elementos que constam dos autos, e aferir se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo impugnante.
Na verdade, «o que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.» [5]
Tendo presentes e aplicando, assim, os princípios que antes se expuseram, e sendo certo que a recorrente deu cumprimento aos ónus de impugnação da decisão de facto antes referidos, cumpre conhecer da matéria de facto impugnada.
A matéria sob escrutínio é a seguinte:
Ponto 6: Entre 13/7/2014 e 30/9/2014, foram reclamados à autora diversos sinistros referentes às viaturas da ré e abrangidas pelo seguro mencionado:
a. Ocorrência 7140637, de 2/8/2014;
b. Ocorrência 7206648, de 24/09/2014;
c. Ocorrência 7231376, de 30/9/2014.
Ponto 7: A Ré continuou nesse período de tempo a utilizar e a beneficiar, por diversas vezes, do seguro em causa.
Ponto 8: A autora assumiu o risco, no pressuposto de que a ré viria a cumprir a sua obrigação.

Ponto 9: Em virtude do referido em 5), em 1/10/2014, a autora anulou o contrato de seguro em causa, com efeito nessa data, dia seguinte ao último sinistro ocorrido.
Ponto 10: A ré não resolveu nem denunciou o contrato em data anterior a 1/10/2014.
Relativamente à matéria ora em causa, o tribunal recorrido invocou a seguinte motivação (sic):
«…Das declarações amigáveis de acidente automóvel constantes de fls. 77 v.º e 78 (sinistro de 02/08/2014; também junto a fls. 93 v.º e 94), 78 v.º e 79 (sinistro de 24/09/2014) e 79 v.º e 80 (sinistro de 30/09/2014), decorre de forma inequívoca que diversos veículos segurados pertencentes à ré neles intervieram, bastando para o efeito atentar igualmente nas condições particulares da apólice (veículos com as matrículas ..-OI-.., ..-OH-.. e SX-..-...), tendo igualmente em todos eles sido indicada a apólice do contrato de seguro celebrado com a autora, incluindo junto das autoridades policiais (vide participação de acidente de fls. 104 v.º a 106 v.º).
E todos estes sinistros foram confirmados pelas testemunhas F… e G….
Assim, pela primeira testemunha, foi dito, além do mais, que interveio na gestão do sinistro de 24/09/2014, na sequência de reclamação apresentada pelo sinistrado, leia-se do outro interveniente no acidente que não a ré, pelo que, em face da descrição do acidente que foi feita na declaração amigável – contendo a indicação da apólice - e do auto elaborado pelas autoridades que entretanto obteve, não houve dúvidas quanto à responsabilidade do condutor do veículo segurado na produção do acidente (que não terá respeitado um STOP), assumindo desse modo a autora a responsabilidade. Contudo, esclareceu, antes de assumir o pagamento da indemnização dos danos a ré não foi contactada.
Relativamente ao sinistro de 30/09/2014, pelas 17H15, referiu que a sua regularização foi feita pela H…, tendo a autora procedido ao seu reembolso, o mesmo tendo sucedido no acidente de 02/08/2014, que terá sido regularizado pela I… e posteriormente feito o reembolso pela autora.
Reportou-se ainda a um outro sinistro ocorrido em 30/09/2014, mas pelas 14H30, em que terá intervindo o veículo ..-HQ-.., mas nenhuma documentação junta ao processo sustenta essa sua afirmação, porquanto a declaração amigável de fls. 76 a 77, nenhuma conexão possui com os presentes autos.
De todo o modo, questionado, disse que a ré não participou nenhum sinistro à autora, apesar de inclusivamente o perito averiguador ter contactado alguém que seria responsável pela ré nesse sentido, mas que se terá recusado a fazê-lo, em virtude de se encontrar em litígio com a autora. É de resto o que resulta do relatório de diligências constante de fls. 104 (referente ao sinistro de 30/09/2014, mas datado de 23/10/2014), que, para além de conter a menção a essa recusa de participação, ainda refere que a ré teria manifestado a intenção de junto do terceiro regularizar directamente o sinistro, sem intervenção das seguradoras.
Perante isto, esclareceu que, muito embora a autora tivesse conhecimento de que o prémio (a fracção do prémio, dado o seu pagamento ser convencionalmente trimestral, tendo o contrato um período de vigência anual, tal como a carta verde também é emitida com igual período de validade) não tinha sido pago pela ré, por razões de cariz comercial, havia instruções internas na companhia de seguros no sentido de a regularização dos sinistros ter lugar, aludindo a possível (mas não concretizado) acordo de regularização do pagamento do prémio. Com efeito, tendo em conta a relevância económica do contrato de seguro em apreço (um seguro de frota), é prática habitual da autora conceder uma dilação para pagamento, mantendo em vigor o contrato, não obstante a falta de pagamento do prémio.
Dir-se-ia que esta opção da autora, sem qualquer contacto prévio com os clientes, no sentido de se certificar que corresponde à sua vontade a manutenção do contrato, é algo temerária. No entanto, a verdade é que ao longo do período temporal em referência também não recebeu nenhuma comunicação da ré dando-lhe conta da intenção de não manter o contrato.
G…, gestor de dois dos sinistros alegados, concretamente dos ocorridos em 02/08/2014 e 30/09/2014, esclareceu que o primeiro sinistro foi regularizado pela I…, posto que foi o condutor do veículo por si segurado o responsável pelo acidente, sendo que o primeiro documento que instruiu o processo de regularização foi o email de 14/08/2014 que a ré enviou à autora (o qual consta de fls. 89 e 90, 107 e v.º). Este documento é, no entanto, pouco esclarecedor relativamente à iniciativa da participação do acidente, pois que, muito embora dele resulte que a ré enviou à autora uma participação (reclamação) de acidente automóvel, solicitando ainda a abertura do processo e a realização da peritagem ao veículo, não é menos verdade, que tal surge aparentemente na sequência de um pedido feito nesse sentido pela autora e após a participação ter sido remetida à I….
No entanto, tenha ou não a ré participado esse acidente à autora, a verdade é que nenhum obstáculo se lhe ofereceu ao envio da declaração amigável de acidente automóvel e ao pedido de peritagem do seu veículo com maior brevidade possível, ou seja, assumiu-se como beneficiária do seguro.
Ora, da carta enviada à ré em 26/08/2014, referente à regularização do sinistro ocorrido em 02/08/2014, o que resulta é que a autora não efectuou qualquer reembolso à I…, antes assumindo o pagamento dos prejuízos sofridos pela ré “por indicação e no interesse da seguradora responsável”, o que estaria, ainda assim, dependente de a ré autorizar a reparação (em consonância, aliás, com a documentação de fls. 102 v.º, relativa à peritagem do veículo segurado, e de fls. 108 v.º a 111, que se reporta ao contactos mantidos com a I…). Se a ré deu essa autorização, não o sabemos.
No que toca ao acidente de 30/09/2014, na mesma senda da anterior testemunha, disse que a participação foi efectuada pela outra seguradora, tendo a ré se recusado a participar o acidente. Quanto a este acidente, resulta da carta de fls. 108, que a sua regularização ficou a cargo da H…, mas com obrigação de reembolso por parte da autora.
J…, profissional de seguros, responsável pela anulação do contrato em apreço, para além de se ter reportado aos termos deste, concretamente, início de vigência, periodicidade de pagamento do prémio, validade anual da carta verde emitida, disse ainda que a falta de pagamento do prémio não determina a anulação automática do contrato, tendo neste caso sucedido que apenas ocorreu em Dezembro de 2014, mas com reporte a 01/10/2014, em virtude da regularização de sinistros que decorreu até essa data.
Acresce que, explicitando o procedimento adoptado pela autora nestas situações, tal como a primeira testemunha, acabou por referir que a resolução do contrato só teria lugar depois de haver uma indicação do departamento financeiro nesse sentido.
Por isso, percebeu-se o motivo pelo qual a autora fez operar a cessação do contrato a 01/10/2014 e não a momento anterior, designadamente à data de vencimento do prémio (13/07/2014) ou posterior, não havendo, pois, qualquer resolução do contrato por si operada (nem documentação existe nesse sentido).
Disse ainda não ter conhecimento de que a ré tenha enviado qualquer comunicação à autora com vista à denúncia ou resolução do contrato.
D…, contabilista da ré e também agente de seguros da autora, depôs de forma tranquila e ligeira assumindo que a ré, que sabia que não tinha pago nem ia pagar o prémio de seguro já vencido em Julho de 2014, continuou sem qualquer restrição a fazer circular os seus veículos e a usar a carta verde que a autora havia emitido para certificar a validade do seguro, o que não pode deixar de merecer censura.
Com efeito, demonstrando muito bem saber os procedimentos burocráticos adoptados pelas seguradoras e a gestão que é feita dos sinistros (nomeadamente a convenção de indemnização directa ao segurado e, por conseguinte, a possibilidade que havia de os acidentes em que interviessem fossem regularizados à luz desta convenção, sem que houvesse, por isso, necessidade de participarem de facto e directamente qualquer acidente à autora), declarou que a ré continuou a ter 70 veículos a circular durante cerca de dois meses “sem seguro”, isto porque não pagou o prémio em tempo devido. Mas este “sem seguro” é relativo, porque a verdade é que nenhuma instrução foi dada aos motoristas para recolherem ou não utilizarem as cartas verdes, melhor dizendo, para as não apresentarem em caso de fiscalização ou acidente.
Declarou, no entanto, que nenhuma participação de acidente a ré efectuou, não existindo prova segura de que efectivamente o tenha feito. Contudo, não mereceu credibilidade quando afirmou que “só agora soube que tinha havido reclamações de sinistros” em que intervieram veículos da ré.
Com efeito, tal não só é contrariado pelo teor do e-mail de 14/08/2014 (junto a fls. 89 e 90), enviado por uma funcionária da ré, como existe correspondência enviada pela autora à ré dando-lhe conta da regularização de sinistros (vide as cartas de fls. 103 v.º e 108), sabendo ainda a testemunha muito bem, porque o afirmou, que durante esse período de tempo, veículos da ré foram intervenientes em acidentes e que a autora procedeu à peritagem de um veículo. Isto para além das declarações amigáveis de acidente automóvel em cuja elaboração os motoristas da ré não se escusaram de colaborar e a participação de acidente de viação elaborada pela G.N.R. com a indicação completa dos dados do seguro contratado com a autora, os quais necessariamente tiveram de ser fornecidos pelo motorista da ré.
Além disso, se a ré estava convencida de que não tinha seguro, em virtude da falta de pagamento, porque não se apresentou perante as autoridades como incumpridora da obrigação de celebração do contrato de seguro, sujeitando-se às coimas daí decorrentes e apreensões dos veículos. E porque é que a ré não deu instruções nesse sentido aos seus motoristas? A testemunha não o soube explicar, admitindo mesmo que “provavelmente não terão dito nada aos motoristas para que devolvessem as cartas verdes”.
Portanto, inconcebível se torna que a testemunha por fim tivesse declarado que “só haveria problema se fossem responsáveis pelos acidentes”, pois que até aí nenhum obstáculo havia à utilização do seguro que já não existia, na sua perspectiva.
E…, funcionária da ré, confirmou que tinha instruções para não participar o acidente (de 30/09/2014) à autora, tendo enviado o e-mail de fls. 89/90 na sequência de um pedido da I… nesse sentido e após a anterior testemunha a ter autorizado a fazê-lo.
Aludiu a uma ordem de serviço que terá sido afixada em finais de Julho na empresa, dando conta da obrigação de “recolha das cartas verdes”, desconhecendo, no entanto, se foram ou não recolhidas. Não mereceu credibilidade esta sua afirmação, posto que nem sequer a pessoa “responsável pelos seguros”, a testemunha D…, teve a audácia de o declarar, sendo certo que E… se identifica como sendo “a moça de recados” da ré, que apenas cumpre ordens, a quem tal aviso não era por isso sequer dirigido, pelo que a sua memória algo imprecisa no que respeita ao contexto da elaboração do e-mail de que foi autora dificilmente se orientaria para uma questão que não lhe dizia respeito, surgindo pois esta sua declaração claramente do facto de estas duas testemunhas terem sido inquiridas em sessões de julgamento distintas.
De todo o exposto, não tendo havido, como não houve, qualquer restrição por parte da ré no uso perante terceiros do contrato de seguro que havia celebrado com a autora, pese embora julgamos que prova suficiente não foi carreada para os autos que sustente a conclusão de que tenha participado directamente à autora qualquer sinistro, dúvidas não restam que continuou a beneficiar desse mesmo seguro.»
Decidindo.
Tendo em vista a reapreciação da matéria de facto impugnada e a formação da sua autónoma convicção – decorrente da apreciação crítica de toda a prova documental junta aos autos e de toda a prova testemunhal produzida e gravada em audiência de julgamento -, procedeu-se, nesta instância, à audição dos depoimentos das testemunhas invocadas pela recorrente – D… e E… (funcionários da ré) -, invocadas pela recorrida – F…, G… e G… (funcionários da autora), assim como à análise de todos os documentos juntos pela Autora e pela Ré.
Dito isto e tendo presente os princípios acima referidos, relativamente à matéria constante do ponto 6 da sentença recorrida, e em sentido contrário ao propugnado pela recorrente, não se vislumbra qualquer razão para divergir da convicção firmada pelo tribunal recorrido.
A matéria de facto em causa resulta, em nosso ver, perfeitamente evidenciada do teor das participações de sinistros ocorridos com veículos da frota da Ré constantes dos documentos de fls. 77 a 80 dos autos [participações amigáveis de acidente em que é feita expressa referência por parte dos motoristas dos veículos da ré à apólice de seguro ora em apreço], conjugados estes com os depoimentos das testemunhas F… e G…, testemunhas estas que intervieram directamente na gestão dos sinistros em causa e procederam à descrição objectiva, circunstanciada e rigorosa das diligências encetadas pela Autora no âmbito da gestão de tais sinistros.
Por outro lado, nesta matéria, mesmo considerando os depoimentos das testemunhas convocadas pela recorrente (recorrente que, diga-se, se limita a citar e a transcrever excertos da versão das testemunhas por si arroladas, sem cuidar de fazer qualquer menção aos aludidos e concretos documentos juntos aos autos e aos depoimentos de sinal contrário, nem estabelecendo qualquer concatenação ou análise crítica desses outros depoimentos com a demais prova produzida, maxime da prova convocada na motivação da decisão de facto posta em crise), ou seja, os depoimentos das testemunhas D… e E…, não resulta qualquer prova que infirme a existência das participações de sinistro, sendo certo que, confrontados com as mesmas, nenhuma das testemunhas as pôs em causa, limitando-se, tão-só, a referir que essas participações e sinistros e consequente gestão dos mesmos pela Autora – que não negaram, repete-se – ocorreram à sua margem, isto é sem que a Ré (empresa) tenha efectuado, por sua iniciativa, essas participações perante a Autora, o que, aliás, é ressalvado na motivação do tribunal recorrido.
No entanto, é de recordar que nenhuma das testemunhas em apreço negou a existência dos sinistros ocorridos com as viaturas em causa, nem negou – bem pelo contrário – que os motoristas dos veículos intervenientes nos ditos sinistros (veículos que faziam parte da frota a que se reporta o contrato de seguro em apreço nos autos) tenham utilizado as «cartas verdes» referentes a tal contrato de seguro, fornecendo, pois, perante os terceiros envolvidos nos ditos sinistros e as próprias autoridades policiais, a indicação da apólice que documentava o contrato de seguro em apreço, dando, pois, origem à comunicação de tais sinistros à Autora e à sua consequente gestão por esta última.
Com efeito, nesta sede, ponderada a prova documental e apreciada de forma conjunta e critica, à luz das regras da experiência e da lógica, a prova pessoal produzida em audiência de julgamento, em particular perante o confronto entre os depoimentos das testemunhas F… e G… – funcionários da autora e gestores dos sinistros em causa – e os depoimentos das testemunhas D… e E…, nenhumas dúvidas nos ficaram quanto à sustentabilidade e credibilidade daquelas primeiras e quanto à realidade da matéria factual feita constar do ponto 6 dos factos provados na sentença recorrida.
O que significa, pois, que, conjugada toda a prova produzida, seja a prova documental antes citada, seja a prova pessoal – note-se, toda prova pessoal, e não apenas a prova pessoal indicada pela recorrente e, ainda que esta última, a nosso ver, nem permita a leitura/interpretação enviesada empreendida pela recorrente -, não ocorrem razões minimamente sérias e consistentes para divergir do julgamento da matéria de facto em apreço e deixar de ter como provada a matéria constante do ponto 6, que como tal deve manter-se.
No que se refere já ao ponto 7 é de referir que também a nossa convicção autónoma é no sentido de manter a dita factualidade como provada.
Nesta matéria, a posição invocada pela Ré e que, de facto, emerge dos depoimentos das testemunhas D… e E… (ainda que o depoimento desta testemunha se nos revele pouco relevante, pois que a mesma se limitou a secundar a posição e a versão antes carreada pela anterior testemunha, seu superior hierárquico na empresa Ré e cujas ordens/instruções a mesma se limitava a cumprir), é a de que, não tendo a Ré procedido ao pagamento da parcela do prémio do seguro em apreço vencida a 13.07.2014 (facto que é indiscutido – vide ponto 5 da factualidade da sentença e que não foi impugnada), tendo a Ré ficado convicta da cessação automática do contrato de seguro por via dessa omissão e não tendo procedido, a partir de 14.07.2014, à participação de qualquer sinistro ao abrigo de tal apólice, o dito contrato cessou todos os seus efeitos e, logicamente, a autora não pode reclamar, nem lhe é devido o valor do prémio (atinente ao período posterior 14.07.2014 a 1.10.2014).
Sucede, porém, que esta versão dos factos, exposta em termos lineares e engenhosos pela testemunha D… e secundada pela testemunha E…, não resiste a uma leitura e interpretação mais exigente, mais conforme com os demais meios de prova produzidos nos autos e sobretudo mais crítica, em função das regras da normalidade, da experiência e da lógica.
Se não, vejamos.
Dispõe o art. 4º, n.º 1 do DL n.º 291/2007 de 21.08 (adiante designado por RSORCA) que “ toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causado a terceiros por um veículo terrestre a motor (…) deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade….»
Por seu turno, ainda, neste conspecto, resulta do art. 162º, n.º 1 al. f) do Código da Estrada (aprovado pelo DL n.º 114/94 de 3.05) que deve ser apreendido qualquer veículo que se encontre em circulação e relativamente ao qual não tenha sido efectuado nos termos da lei seguro de responsabilidade civil; O mesmo resulta, ainda, do preceituado no art. 9º-A, n.º 3 do DL n.º 142/2000 de 15.07, na redacção introduzida pelo DL n.º 122/2005 de 29.07.
Dito isto, desde logo resulta do citado depoimento da testemunha D… que, não obstante a testemunha e os próprios gerentes da Ré bem saberem do dito regime legal, nenhum dos veículos (cerca de 70 veículos, pois que o seguro em apreço é um seguro de frota, abrangendo vários veículos utilizados pela Ré na sua actividade industrial/comercial) deixou de circular após o dia 13.07.2014; Mais: - além de nenhum dos citados veículos ter deixado de circular (como se impunha por força da lei, não sendo, para tal, suposto ou exigível, qualquer acção de fiscalização/diligência das autoridades policiais) também não há notícia que, no período em causa, algum dos ditos veículos tenha sido apreendido por falta de seguro, sendo certo que alguns desses veículos (nomeadamente os referidos nas declarações amigáveis de acidente de viação acima referidas) intervieram em sinistros envolvendo terceiros.
Impõe-se, assim, perguntar por que razão a Ré manteve em circulação tal frota de veículos abrangidos pelo contrato de seguro ora em apreço se bem sabia a Ré – como o reconheceu de forma clara a testemunha D… – que não tinha ela qualquer seguro válido e eficaz que cobrisse a sua responsabilidade civil perante terceiros e decorrente dessa circulação?
A razão é simples e decorre, em nosso ver, do próprio depoimento da mesma testemunha D… – cuja ligeireza é, a todos os níveis, de registar – quando o mesmo reconhece que, não obstante esse não pagamento (por dificuldades de tesouraria que a Ré atravessava naquela data), nada foi feito, em concreto, para recolher as «cartas verdes» dos veículos que se mantiverem em circulação, nem nada foi feito, em concreto, para comunicar aos motoristas da empresa dessa ausência de seguro dos veículos tripulados pelos mesmos; Em suma, o que o quadro circunstancial antes referido evidencia, como bem refere a recorrida nas suas contra-alegações, é que a Ré, sob instruções ou orientações da própria testemunha D… – que se assumiu como responsável pela gestão da matéria em causa no seio da empresa Ré -, almejava o melhor de dois mundos, quais sejam, não obstante as suas dificuldades financeiras – que não lhe permitiam a pagar o prémio de seguro de responsabilidade civil automóvel atinente aos veículos que utilizava no desempenho da sua actividade e que deveria conduzir à imediata cessação da respectiva circulação -, pretendia, por um lado, não pagar o prémio do seguro que antes acordou, mas, não obstante isso, pretendia continuar a fazer circular a respectiva frota automóvel, necessária para a sua actividade, apresentando, se fosse esse o caso (nomeadamente, em caso de fiscalização aleatória das autoridades policiais ou, em caso de sinistro, com intervenção e terceiros e/ou das autoridades policiais), o contrato de seguro ora em apreço – evitando, à partida, a sua própria responsabilidade perante o potencial lesado e, ainda, a própria apreensão dos veículos em causa por falta de seguro, com as consequentes penalidades e demais prejuízos decorrentes da paralisação dos veículos em causa.
E a prova claríssima deste ínvio propósito da Ré, sob a orientação da própria testemunha D… – e cuja credibilidade é, neste contexto, a nosso ver, claramente reduzida – é, não só, a circunstância de a Ré ter mantido a dita frota automóvel em circulação, a circunstância de não ter feito recolher as «cartas verdes» que possuía em seu poder, a circunstância de não ter dado qualquer conhecimento de tais factos aos motoristas dos seus veículos (que certamente não aceitariam conduzir veículos sem qualquer seguro) e, ainda, a circunstância de nos sinistros ocorridos (pelo menos nos que se mostram retratados nas participações amigáveis constantes dos autos e já antes referidas) ter sido indicado como seguro atinente a tais veículos o contrato ora em apreço, titulado pela respectiva apólice.
O que significa, pois, que, no período subsequente a 13.07.2014 e até à data da anulação do contrato de seguro por parte da autora, não obstante o não pagamento do prémio vencido a 13.07.2014, a ré pretendeu, como fez, continuar a utilizar e a beneficiar, nos termos expostos, do seguro automóvel em causa, agindo, pelo menos perante terceiros (intervenientes em sinistros que envolveram veículos abrangidos pela dita apólice de seguro e autoridades policiais), como se o mesmo se mantivesse plenamente em vigor.
Temos, pois, que, em nosso julgamento, reapreciada, neste segmento, a decisão de facto, nenhuma razão válida existe para, em termos de meios probatórios convocados e respectiva convicção – emergente da sua análise crítica -, chegar a convicção e conclusão diversa da firmada pelo tribunal recorrido, antes se impondo manter como provada a matéria do ponto 7 da sentença recorrida.
No que se refere aos pontos 8 e 9, não obstante a ré/recorrente contra eles se insurja, certo é que, nesta parte, os depoimentos pela mesma convocados, quais sejam os depoimentos das testemunhas D… e E… se mostram, de todo, irrelevantes; Na verdade, a prova de tais factos – que foram abordados apenas de forma conclusiva e genérica por parte das citadas testemunhas em conformidade com a sua versão já antes referida – resultou perfeitamente evidenciada e sustentada no depoimento da testemunha G…, testemunha esta que explicitou, de forma circunstanciada e objectiva, os termos do contrato, a sua vigência, a validade (anual) da respectiva «carta verde», assim como a gestão dos sinistros antes referidos, justificando a posterior anulação do contrato de seguro efectuada em Dezembro de 2014 (mas reportada a 1.10.2014) assim como as razões de ordem comercial que estiveram na origem de a autora não ter considerado, desde logo, isto é, a partir do não pagamento do prémio de 13.07.2014, resolvido o contrato de seguro e de ter procedido à gestão dos aludidos sinistros que lhe foram participados.
Aliás, neste conspecto, da versão da testemunha D… produzida em audiência em julgamento não emerge qualquer facto concreto que contradiga a verificação dos factos ora em referência, mas antes o fundamento ou consistência (jurídica) de tal comportamento comercial assumido pela autora, questão que só no âmbito da decisão jurídica do pleito se pode (e deve) colocar e onde será, naturalmente, abordada em função das questões suscitadas pela recorrente.
O que vale, pois, por dizer que nenhumas razões fundadas existem para nesta instância divergir quanto ao julgamento da matéria de facto contante dos pontos 8 e 9 da sentença recorrida, sendo, pois, de manter essa matéria como provada.
Por último, impugna, ainda, a recorrente a factualidade feita constar do ponto 10.
Não lhe assiste, porém, também qualquer razão.
Desde logo, a Ré não procedeu à junção aos autos de qualquer documento onde tenha comunicado à Autora o seu propósito de «resolver» ou «denunciar» [leia-se pôr termo] ao contrato de seguro em data anterior a 1.10.2014, o que lhe seria perfeitamente acessível se uma tal comunicação tivesse, de facto, existido entre as partes, sendo certo que, como se vê da troca de comunicações escritas entre as partes juntas aos autos, essa comunicação existia e era até usual.
Por outro lado, a inexistência de uma tal comunicação no sentido de pôr termo ao contrato por parte da Ré à Autora foi, de forma clara e consistente, confirmada pela testemunha J….
Mas, ainda, este outro facto colhe todo o sentido em face da própria versão da ré, corroborada pelas testemunhas D… e E…; Com efeito, sustentando as ditas testemunhas, em particular a testemunha D…, que o contrato de seguro em causa cessou automaticamente com o não pagamento do prémio vencido a 14.07.2017, não faria sentido que a ré procedesse à «resolução» ou «denúncia» de um contrato que a própria já considerava sem efeito desde aquela data; Ao invés, partindo a Ré do pressuposto de que o contrato de seguro cessara automaticamente em 14.07.204 (isto é, sem que fosse exigível a prática de qualquer outro acto seu perante a Autora que lhe colocasse termo) – como emerge de forma expressa do depoimento da testemunha D…, o que faz sentido e se mostra consentâneo com tal posição é que a Ré não tenha, de facto, procedido a qualquer comunicação a por termo ao contrato (por resolução ou denúncia do mesmo) entre 14.07.2014 e 1.10.2014.
O que significa, pois, que também neste outro segmento da matéria de facto não se vislumbra qualquer razão para divergir da convicção evidenciada pelo tribunal recorrido.
Ao invés, como resulta do exposto, da reapreciação de toda a prova produzida no seu conjunto efectuada por este Tribunal, procedendo a novo julgamento, restrito à matéria de facto impugnada, em busca da nossa própria convicção, não se mostram evidenciadas quaisquer razões para nos afastarmos da convicção evidenciada em 1.ª instância, sendo certo que não se vislumbra qualquer desconformidade entre a dita prova e a respectiva decisão, em violação dos princípios que devem presidir à apreciação da prova, ou seja, critérios de valoração racional, objectiva e lógica dos meios de prova por parte do julgador.
Da análise crítica da prova indicada como fundamento da impugnação, conjugada esta com toda a demais prova produzida e a que antes se fez referência, não resulta, em nosso ver, a convicção indicada pela recorrente e sustento para a procedência da sua impugnação.
E é essa análise crítica e integrada dos depoimentos com os outros meios de prova que os juízes devem fazer, pois que a sua actividade, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos ou de versões parciais carreadas pelas testemunhas, antes se lhe impondo uma análise conjunta, cuidadosa e atenta de toda a prova, aferindo, em função das regras da experiência e da lógica, da respectiva sustentabilidade, compatibilidade e credibilidade.
Neste conspecto, diga-se, aliás, que a motivação da decisão de facto empreendida pelo tribunal de 1ª instância – e acima parcialmente transcrita - mostra-se particularmente criteriosa, objectiva e fundamentada e colhe pleno suporte nos meios probatórios constantes dos autos, a cuja reapreciação se procedeu nesta instância, tendo sido feita pelo tribunal recorrido uma correcta análise do seu valor probatório.
O que, em conclusão, significa que é de manter na íntegra a decisão de facto quanto aos pontos impugnados, que se mantêm como provados.
*
Da resolução automática do contrato de seguro – Abuso de Direito:
Fixado, assim, o quadro factual relevante para a decisão do presente litígio, cumpre conhecer das demais questões suscitadas pela Ré/Recorrente.
A primeira questão refere-se às consequências jurídicas que decorrem do não pagamento da fracção do prémio do contrato de seguro automóvel obrigatório em apreço, sendo que se mostra indiscutido que o contrato de seguro em causa teve o seu início a 14.04.2014, tinha um prazo de duração anual, o pagamento do dito prémio era trimestral e a 2ª fracção desse prémio – respeitante ao período de tempo de 13.07.2014 até 1.10.2014 -, titulada pelo recibo n.º 63604237, com vencimento a 14.07.2014, não foi paga pela segurada, a ora Ré – vide factos provados sob os n.ºs 2, 3, 4 e 5 da sentença recorrida.
Nesta matéria, preceitua o art. 19º, n.º 1 do já citado DL n.º 291/2007 que «[A]o pagamento do prémio do contrato de seguro [de responsabilidade civil automóvel] e consequências pelo seu não pagamento aplicam-se as disposições legais em vigor.»
Esta remissão para o regime legal em vigor reconduz-nos, assim, no que respeita ao pagamento do prémio [6] e consequências da respectiva omissão, para o regime da nova Lei do Contrato de Seguro – LCS - (aprovada pelo DL n.º 72/2008 de 16.04) [7], lei esta aplicável ao contrato de seguro a que se referem os presentes autos, datado de 14.04.2014.
Neste domínio avulta, como é indiscutido, o princípio geral “ no premium no cover ou “ no premium no risk “, ou seja de que não há cobertura do seguro enquanto o prémio não for pago, princípio que colhe expressa consagração no art. 59º da LCS quando ali se consigna expressamente que a «cobertura dos riscos depende do prévio pagamento do prémio.»
Neste sentido, e de forma expressa, referia-se já no preâmbulo do citado DL n.º 122/2005 de 29.07 (que alterou o regime jurídico do pagamento dos prémio de seguro constante do DL n.º 142/2000 de 15.07) [8] que «… importa aplicar em toda a sua extensão (…) o princípio segundo o qual o contrato de seguro só deve produzir os seus efeitos com o pagamento do prémio ou fracção por parte do tomador. (…) Deste modo, o seguro apenas é válido, produzindo os seus efeitos, com o pagamento do prémio ou fracção, não sendo eficaz, quanto às obrigações de ambas as partes, se não se verificar o pagamento. [9]
Este princípio geral colhe, depois, aplicação específica em função das particularidades da duração do contrato e do vencimento das fracções do prémio no art. 61º, n.ºs 1, 2 e 3 da mesma LCS, preceito este que consigna:
«[A] falta de pagamento do prémio inicial, ou da primeira fracção deste, na data do vencimento, determina a resolução automática do contrato a partir da data da sua celebração. (n.º 1).
A falta de pagamento do prémio de anuidades subsequentes, ou da primeira fracção deste, na data de vencimento, impede a prorrogação do contrato. (n.º 2)
A falta de pagamento determina a resolução automática do contrato na data do vencimento de:
a) Uma fracção do prémio no decurso de uma anuidade;
b) Um prémio de acerto ou parte de um prémio de montante variável;
c) Um prémio adicional resultante de uma modificação do contrato, fundada num agravamento superveniente do risco.» (n.º 3)
Resulta, assim, do sobredito regime legal a absoluta necessidade do pagamento antecipado do prémio ou fracção para que se verifique, consoante se trate da prestação inicial ou de uma prestação subsequente, o início da cobertura do risco ou a renovação do contrato de seguro, ou ainda, no caso de estar em causa fracção do prémio no decurso da anuidade, a sua não resolução automática e imediata.
Em suma, como salienta a doutrina, através deste regime específico o legislador confere ao tomador a faculdade de fazer cessar unilateralmente o contrato de seguro, limitando-se, para isso, a não pagar o prémio na data do respectivo vencimento, sendo certo que, em contrapartida desse não pagamento, cessa imediatamente a cobertura proporcionada pelo seguro. Como refere P. ROMANO MARTINEZ, «em relação ao contrato de seguro, em caso de falta de pagamento do prémio não há cobertura, não produzindo efeito, e a resolução é automática apesar de o incumprimento corresponder a uma hipótese de simples mora.» [10] [sublinhado nosso]
A consagração deste regime específico, como é consabido, visou descongestionar os tribunais dos inúmeros processos de cobrança de dívidas de prémios de seguro, estabelecendo-se que, em caso de não pagamento do prémio, por um lado, o risco não chega a estar coberto em nenhum momento e, por outro, por força da cessação automática do contrato, também deixa de existir dívida a cargo do segurado ou tomador do seguro, deixando, em consequência, o pagamento do prémio de poder ser exigido pela seguradora.
É, aliás, a estrita aplicação deste regime que a Ré/Recorrente convoca para a resolução do presente litígio, pois que, na sua perspectiva, não tendo ela procedido ao pagamento da fracção do prémio correspondente ao período entre 13.07.2017 e 1.10.2017 e vencida a 14.07.2014, esse não pagamento importou, à luz do preceituado no art. 61º, n.º 3 al. a) da citada LCS, a imediata e automática resolução do contrato de seguro e, logicamente, a cessação da respectiva cobertura e a sua correspectiva obrigação de pagamento do prémio reclamado pela Autora/Recorrida.
É, ainda, esta outra perspectiva que conduz a Ré à discordância em face do decidido pelo tribunal recorrido e a sustentar que este último fez incorrecta aplicação do citado regime jurídico.
Sucede, porém, que o que está em causa não é a aplicação estrita do citado regime jurídico, sendo certo, aliás, que a consequência deste regime jurídico é expressamente admitida e reconhecida na sentença recorrida quando ali se escreve: «Isto posto, tendo resultado provado que a ré não procedeu ao pagamento da fracção do prémio referente ao trimestre que se iniciou em 13.07.2014, tal inadimplemento implicaria, em consonância com o disposto na alínea a) do n.º 3 do art. 61º, a “ resolução automática do contrato, na data do vencimento “ daquela fracção do prémio devido e, consequentemente, nada mais por si seria devido que respeitasse ao período temporal em referência.» (vide pág. 119, verso, dos autos)
Na verdade, e como também emerge da sentença recorrida, mais do que a aplicação formal das consequências que emergem do regime jurídico antes citado – e que são indiscutidas – é saber se a conduta da própria Ré, ao pretender extrair essas consequências jurídicas para a seu coberto se eximir ao pagamento do prémio em causa, é legítima ou, ao invés, se se apresenta como abusiva por se mostrar contraditória com a sua própria conduta, sendo certo que esta excepção material de «abuso de direito» foi expressamente arguida pela Autora e ora Recorrida.
É este o cerne do litígio e é da resposta a esta questão que há-de resultar, como é bem evidente, a procedência da apelação deduzida pela Ré ou, ao invés, a sua improcedência e consequente confirmação da sentença recorrida.
Vejamos.
Segundo o disposto no art. 334º do Cód. Civil é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular excede em termos manifestos os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O legislador consagrou no aludido normativo um critério objectivo, segundo o qual o abuso de direito se manifesta na oposição à função social do direito, na violação da boa-fé e dos bons costumes, sem indagar da consciência ou intenção do agente em concreto. [11]
A boa-fé corresponde, neste contexto, a um princípio normativo de conduta, pelo qual todos devem actuar num quadro de honestidade, correcção, probidade e lealdade, de forma a não defraudar as legítimas expectativas e a confiança geradas na outra parte.
De todo o modo, é de realçar que para ocorrer abuso de direito é imperioso que o modo concreto do seu exercício, objectivamente considerado, se apresente ostensivamente contrário à boa-fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito em causa, ou seja que exista um excesso clamoroso ou inaceitável no exercício de um direito ou de uma determinada posição jurídica.
Uma das vertentes do abuso de direito consiste na denominada conduta contraditória ou «venire contra factum proprium».
Como se refere em recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça [12], a proibição de comportamento contraditório, embora não constitua uma regra geral de direito civil, mostra-se perspectivada, hoje em dia, como uma cláusula geral de segundo grau, cuja função essencial consiste em corrigir as distorções que existiriam com a aplicação meramente formal do direito. Assim, fazendo-se apelo a critérios ético-jurídicos, maxime, os resultantes do princípio da confiança, poder-se-á obtemperar uma solução que, embora aparentemente conforme à Lei, exceda os limites impostos pela boa-fé, porque violadora daquele princípio.
Conforme vem sendo sustentado a nível doutrinário, a censura do «venire contra factum proprium» supõe que o titular do direito crie naquele com quem entre em relação uma situação de confiança que veio a frustrar por conduta posterior contrária à que motivou essa confiança. A confiança digna de tutela deve ser objectivamente motivada, sendo, pois, aquela que resulte de uma apreciação objectiva do conjunto dos actos e comportamentos das partes no quadro económico e social em que se desenvolve o processo de constituição e exercício das relações jurídicas entre elas. Essa confiança deve assim filiar-se em conduta da outra parte que, objectivamente considerada, revele intenção de se vincular a determinado modo de agir futuro, sendo nessa conduta concludente que a contraparte cria expectativas legítimas, nela confiando e investindo, orientando a sua vida em conformidade.
Na verdade, contraria o princípio da boa-fé que alguém exerça um direito em contradição com conduta anteriormente assumida, frustrando as legítimas expectativas da outra parte que adquiriu convicção fundada de que aquele não viria a adoptar conduta oposta ou contrária no futuro.
Neste sentido, ensina A. MENEZES CORDEIRO [13], que a figura do «venire contra factum proprium» compreende os seguintes elementos ou pressupostos, a saber:
- 1º uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia;
- 2º uma justificação alheia para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do facto alheio seja plausível à luz de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocarem essa crença plausível;
- 3º um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base da crença fundada, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo «venire») e o regresso à situação anterior se traduzam numa clara injustiça;
uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja que a situação de confiança seja recondutível a uma a acção ou omissão do agente atingido pela protecção dada ao confiante.
Em suma, no «venire contra factum proprium» deparamos com uma relação especial entre o agente e o confiante, sendo a confiança assim estabelecida nessa relação (atingida por uma conduta que a pretende contrariar) que, por definição, leva à proibição do comportamento contraditório. [14]
Ora, perante este enquadramento, estamos em crer, com o devido respeito por opinião oposta, que, de facto, e como se salienta na sentença recorrida, a conduta assumida pela Ré consubstancia um caso evidente de abuso de direito na modalidade de comportamento contraditório, o que obstará a que a mesma se possa aproveitar da resolução automática do contrato de seguro para se eximir, como pretende, do pagamento do prémio ora reclamado pela Autora/Recorrida.

Neste conspecto, como bem se refere na sentença recorrida «Na verdade, a ré não pagou a fracção do prémio de seguro que por si era devida, mas continuou de forma incólume a fazer circular os seus veículos (uma frota de veículos) fazendo uso das cartas verdes que a autora emitira para, em caso de sinistro, se apresentar perante os demais intervenientes, incluindo autoridades, como beneficiária de um seguro válido.
Note-se que, a carta verde constitui documento comprovativo de seguro válido e eficaz em Portugal (artigo 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08), pelo que a sua apresentação dá a aparência de que o mesmo existe e nessa circunstância se escudou a ré para, sem quaisquer escolhos, manter os seus veículos em circulação.
Mas mais, perante três sinistros em que intervieram veículos seus, não se escusou de beneficiar das diligências que a autora encetou no sentido da sua regularização.
Não ficou demonstrado, é certo, que os participou. Contudo, julgamos que tal facto é irrelevante, pois que do seguro beneficiou, na medida em que perante a aparência de existência de seguro, os trâmites normais de gestão de um sinistro foram adoptados.
A ré não se apresentou em nenhum dos sinistros como não tendo seguro válido, sujeitando-se à coima e apreensão do veículo, à intervenção do Fundo de Garantia Automóvel e quiçá ao eventual direito de sub-rogação a ser por este exercido.
Além disso, nunca perante a autora, em face de tais sinistros e das diligências que esta fez, lhe referiu expressamente que não pretendia beneficiar do seguro, criando pois nesta a convicção de que a falta de pagamento verificada constituía somente um atraso no cumprimento a ser regularizado em momento ulterior.
Poderia objectar-se que a autora foi negligente ou temerária na condução deste processo, continuando a intervir na regularização de sinistros sabendo bem que a ré incorrera em incumprimento.
Se bem que se reconheça que a autora poderia ter adoptado uma postura mais assertiva na clarificação da vontade subjacente à conduta da ré, não é menos verdade que, em nosso entendimento, tal não é susceptível de por si só afastar a censurabilidade da conduta da ré, pois que a autora não teve durante largo período de tempo qualquer indício de que a postura assumida pela ré fosse outra que não a assunção de que o contrato se mantinha (veja-se o dito e-mail de 14/08/2014, em que a ré solicita até brevidade na realização da peritagem), nem a ré também visou obter esse esclarecimento/clarificação, mediante declaração sua expressa nesse sentido.
Ora, esta conduta da ré encontra precisamente correlação no pagamento do prémio que a autora reclama nos autos, pelo que, permitir que a ré beneficie da resolução automática do contrato que decorreria da aplicação singela das regras do contrato de seguro acima explicitadas, excederia, na nossa perspectiva, os limites impostos pela boa fé, pondo em causa o equilíbrio no exercício das posições jurídicas de ambas as partes
Note-se, aliás, além do já referido na sentença recorrida, que a Ré, não obstante possuir em circulação uma frota de veículos, não evidenciou ter celebrado ou sequer ter negociado (com qualquer outra seguradora) a celebração de outro contrato de seguro atinente a tais veículos, sinal bem evidente que pretenderia continuar a usufruir do contrato de seguro em apreço nestes autos para manter a circulação da sua frota e a sua actividade comercial, pois que, de outra forma, sempre teria que por termo imediato à circulação dos veículos, sendo certo que bem sabia que os mesmos não poderiam circular sem possuírem seguro válido e eficaz.
O que significa, pois, em face do antes exposto, que, tendo-se por verificados, nos termos descritos na douta sentença proferida em 1ª instância e que aqui se secundam, todos os pressupostos para a paralisação da pretensão da Ré e ora Recorrente por via da procedência da excepção de abuso de direito (art. 334º do Cód. Civil), tal significa, logicamente, que nenhuma censura nos merece a sentença recorrida, na parte em que a mesma Ré foi condenada no pagamento do valor do prémio em apreço (atinente ao período entre 13.07.2014 e 1.10.2014) e demais juros legais supletivos, sendo certo que um tal acto decisório não encerra qualquer violação do regime legal aplicável ao caso dos autos e, em particular, qualquer violação do preceituado no art. 334º do Cód. Civil ou, ainda, do regime jurídico que decorre do preceituado no art. 61º, n.º 3 al. a) da LCS ex vi do art. 19º do DL n.º 291/2007, devidamente interpretados e conjugados entre si.
E, por conseguinte, será de concluir pela total improcedência da apelação e consequente confirmação da sentença recorrida, o que se julga.
**
IV. DECISÃO:
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
**
Custas pela Ré/Recorrente, pois que ficou vencida – art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
**
Porto, 7.05.2018
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Oliveira Abreu
A redacção do presente acórdão não segue as regras do novo acordo ortográfico.
_______
[1] Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, “ Recursos No Novo Código de Processo Civil ”, Almedina, 2ª edição, pág. 134.
[2] Vide, neste sentido, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 132 e, por todos, AC STJ de 23.02.2010, relator FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt.
[3] Vide, ainda, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 132-133.
[4] Vide, neste sentido, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 232-233, ou, ainda, por todos, AC RP de 24.03.2014, relator OLIVEIRA ABREU [ora 2º Juiz Adjunto], AC STJ de 6.12.2016, relator GARCIA CALEJO, AC STJ de 26.01.2017, relator ABRANTES GERALDES, AC STJ de 18.05.2017, relator ANA LUÍSA GERALDES, AC STJ de 7.09.2017, relator TOMÉ GOMES, todos in www.dgsi.pt.
[5] ANA LUÍSA GERALDES, “ Impugnação e Reapreciação da Decisão de facto ”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. José Lebre de Freitas, I volume, pág. 589 e segs.
[6] Segundo A. MENEZES CORDEIRO, “ Direito dos Seguros ”, 2013, pág. 684, «o prémio é a contrapartida da cobertura (de risco) acordada.» Em igual sentido refere MARGARIDA LIMA REGO, “ Temas de Direito dos Seguros ”, 2012, pág. 197, que «o prémio é a contrapartida da cobertura ou da suportação do risco pelo segurador.» - art. 51º, n.º 1, da LCS.
[7] Diploma que entrou em vigor a 1.01.2009 (cfr. art. 7º do preâmbulo do mesmo diploma) e cujo regime jurídico é aplicável ao presente contrato de seguro, celebrado a 14.04.2014.
[8] Diplomas estes que foram revogados pela nova Lei do Contrato de Seguro - vide art. 6º do preâmbulo do DL n.º 72/2008 de 16.04 – e cujo regime passou para os arts. 51º a 61º da citada nova Lei.
[9] Vide, neste sentido, por todos, P. ROMANO MARTINEZ, “ Lei do Contrato de Seguro Anotada ”, 2009, pág. 222-223 e A. MENEZES CORDEIRO, op. cit., pág. 689-690 e 692-696.
[10] Vide, neste sentido, P. ROMANO MARTINEZ, op. cit., pág. 223 e MARGARIDA LIMA REGO, op. cit., pág. 202.
[11] Vide, neste sentido, por todos, P. LIMA, A. VARELA, “ Código Civil Anotado ”, I volume, 4ª edição, pág. 298 e I. GALVÃO TELLES, “ Direito das Obrigações ”, 6ª edição, pág. 13-14.
[12] AC STJ de 3.10.2017, relator ANA PAULA BOULAROT, in www.dgsi.pt.
[13] A. MENEZES CORDEIRO, “ Tratado de Direito Civil Português – Parte Geral ”, Tomo I, 3ª edição, pág. 411.
[14] L. MENEZES LEITÃO, “ Direito das Obrigações ”, I volume, 7ª edição, pág. 59.