Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8271/17.7T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
DIVISÃO DE QUOTA
DIVISÃO DE COISA COMUM
Nº do Documento: RP202112028271/17.7T8VNG.P1
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O art. 334º, do CC visa impedir o exercício abusivo de direitos, nomeadamente o pedido de divisão de uma quota social, apenas para evitar o exercício do direito legal de preferência dos outros comproprietários.
II - Se partes dessa quota já foram alienadas, e a sociedade adquirente já gere a sociedade é manifesto que o direito de divisão da quota está ser exercido contra a sua finalidade legal.
III - A sanção desse exercício é flexível, podendo, neste caso, ser mista, visando defender o exercício do direito de preferência, quanto à quota a dividir.
IV - Mas, no caso concreto essa solução não pode ser adotada, pois, não fez parte do pedido processual e não foi debatido pelas partes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.º nº 8271/17.78VNG.P1

Sumário:
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1 – Relatório
1. B… e esposa C…;
2. D…;
3. E… e esposa F…;
4. e G…, todos identificados nos autos;
intentaram a presente acção especial de divisão de coisa comum contra H… e esposa I… e J…, L.da, com sede na Rua …, n.º … e …, ….-… Vila Nova de Gaia, visando a divisão de uma quota da sociedade demandada da qual todos são contitulares.
Citados os réus, apenas o H… e a esposa vieram contestar, dizendo, em suma, que a presente ação configura uma situação de abuso de direito, na medida em que a mesma tem como único objetivo contornar o direito de preferência que lhes assiste no que se refere à aquisição da parte da quota que pertence aos autores.
Designada a conferência de interessados, não foi lograda a conciliação das partes, razão pela qual foi determinado que os autos prosseguissem.
Foi depois proferido despacho saneador tabelar, e fixados o objeto da ação e os temas de prova e procedeu-se a julgamento finda a qual o tribunal julgou a acção totalmente improcedente.
Inconformados vieram os AA interpor recurso ao qual foi fixado o seguinte regime de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

2.1. Apresentaram as seguintes CONCLUSÕES:
1.ª – O tribunal julgou incorretamente a matéria de facto.
2.ª – Não foram alegados factos concretos nem existem quaisquer outros elementos probatórios nos autos que legitimem a decisão do tribunal ao dar como provados os factos e ou conclusões insertas sob os nºs 10, 11 e 12 que o tribunal deu como provados.
3.ª – É completamente errada e sem qualquer fundamento a decisão proferida sobre tais concretos factos.
4.ª – Foi incorretamente julgada a matéria vertida na al. c) dos factos que o tribunal deu como não provados.
5.ª – Há nos autos prova, clara e inequívoca, de que os A.s. contactaram o Réu marido no sentido de procederem à divisão da quota em causa, designadamente os depoimentos do A. D… e da testemunha K… que foram parcialmente transcritos e cuja leitura se pede empenhadamente, o que impõem resposta diversa à dada pelo tribunal, ou seja provado.
6.ª – Por não se tratar de factos concretos mas sim de conclusões resultantes de raciocínios indutivos por parte do tribunal devem ser eliminados os pontos 10, 11 e 12 da alegada matéria de facto dada como provada, pois é vedado ao tribunal dar como provadas conjeturas subjectivas e muito menos fundar a decisão em tal matéria.
7.ª – No caso de assim se não entender impõe-se a resposta negativa a esses mesmos pontos pois não existem nos autos concretos meios probatórios que sustentem a resposta afirmativa.
8.ª – Alterada a decisão da matéria de facto, respondendo negativamente aos pontos 10, 11 e 12, dos factos considerados provados e respondendo positivamente ao facto vertido na al. c) dos factos dados como não provados, o que, empenhadamente, se pede, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a ação procedente.
9.ª – A sentença recorrida fez errada aplicação do direito, designadamente do artº 334º do C.C. e 607º e 615º do C.P.C e julgou erradamente.
10.ª – A sentença em causa baseou-se na seguinte tipologia do abuso do direito (texto de António Menezes Cordeiro): 13. Desequilíbrio I. O desequilíbrio no exercício das posições jurídicas constitui um tipo extenso e residual de actuações contrárias à boa fé. Ele comporta diversos subtipos; podemos apontar três: — o exercício danoso inútil; — dolo agit qui petit quod statim redditurus est; — desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem. Na presente ação não se verifica nenhum dos subtipos apontados senão vejamos: d) Não há exercício danoso e muito menos inútil e tal resulta claramente dos autos e da própria sentença. e) Os A. não agem com dolo e a sua pretensão é absolutamente legitima e está consagrada no nosso sistema legal. f) Não existe qualquer desproporção grave ou leve entre o beneficio do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem. O exercício do direito que os A.s. pediram ao tribunal é legitimo e não sacrifica em nada os Réus. Pretendem exercer os seus direitos reconhecendo aos Réus os direitos deles. O que vem de dizer-se é notório e incontornável e a sentença recorrida desrespeita esses elementares princípios. Atente-se em que na sua fundamentação o tribunal nem se pronunciou sobre a existência dos requisitos necessários à verificação do abuso de direito na modalidade que equacionou nem em qualquer modalidade.
11.ª - Esqueceu também o tribunal os seguintes preceitos, doutrina e jurisprudência aplicáveis ao caso em apreço, senão vejamos: Prescreve o art. 334º do Código Civil: “ É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” “O abuso de direito é um limite normativo manente ou interno dos direitos subjectivos – pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-juridicos do direito particular invocado que são ultrapassados” (Baptista Machado, CJ, 1984, 2º, - 17, citando Castanheira Neves, Questão de Facto e Questão de Direito, 526e nota 46). “ Para que exista abuso de direito é necessário que o titular do direito o exerça de uma forma anormal quanto à usa intensidade ou à sua execução e em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ultrapassando inequivocamente os limites referidos no artº 334º do Código Civil” (STJ, 10-4-1991; AJ, 18º-23). Nos termos do artº 334º do C.C., há abuso de direito e é, portanto, ilegítimo o seu exercício “ quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito. "Agir de boa fé-tanto no contexto deste artigo, como no artigo 762º, n.º 2, é “agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.” Os bons costumes entendem-se, por seu turno, como “ um conjunto de regras de conveniência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente, contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social “ In STJ, 10-12-1991: BMJ, 412º-460. O tribunal não ponderou corretamente nem a lei, nem a doutrina nem a jurisprudência aplicável ao caso e devia tê-lo feito. Não se pronunciou sequer sobre o porquê da conclusão que extraiu e errou clamorosamente. E não o fez porque não podia fazê-lo, e porque, resulta, clara e límpida, a certeza de que os A.s. não agiram em “abuso de direito”. Na sua lide não excederam nem manifesta, nem clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito que pretender exercer, e pretendem exercer o direito mais absoluto respeito pela justiça, e pelo sentimento jurídico socialmente dominante. E essa conclusão impõe-se e V.Exa. Srs. Desembargadores assim farão com as adequadas consequências.
12.ª – O tribunal fez uma errada interpretação e aplicação do previsto no artº 334º do C.C.
13.ª – Não estão preenchidos quaisquer dos requisitos que possam levar o tribunal a concluir pela atuação dos Réus em abuso de direito.
14.ª – Ao contrário resulta claramente de todo o processo que os A.s. pretendem, com a mais completa boa fé e respeito pelos direitos dos Réus, exercer o direito à divisão da quota que a lei lhes consagra.
15.ª – A manutenção da sentença recorrida vai impedir a concretização dos negócios pretendidos por todos os sócios à exceção do Réu H… e acarretará o aborto de tais negociações e a insolvência da sociedade Ré J…, Lda., com todas as consequências legais designadamente a perda de muitos postos de trabalho, prejuízo da economia nacional já muito debilitada e muitos encargos para o Estado
16.ª: - A sentença recorrida violou também os preceitos citados os artºs 607º e 615º do C.P.C., porque não fundamentou devidamente as suas decisões nem de facto nem de direito e não especificou minimamente os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão pelo que está ferida de nulidade o que deve decidir-se.

2.2. Foram apresentadas contra-alegações, que se dão por reproduzidas e se resumem nos seguintes termos:
Quanto à matéria de facto: O enunciado da motivação do recurso em sede de impugnação da douta decisão recorrida proferida sobre a matéria de facto afigura-se surpreendente – e até mesmo desconcertante! É que, quer o depoimento de parte do autor D…, quer os depoimentos das testemunhas L…, e K…, quer o teor das supra referenciadas actas de assembleias gerais da sociedade ré, confirmam integralmente a versão dos factos cuja prova os recorrentes pretendem infirmar.
Quando ao direito: Se há realmente o interesse (e a vontade) da maioria dos sócios da sociedade ré em “fazer negócio” com a “M…” por que razão não concretizaram eles ainda tal desiderato? A resposta é simples: porque a “M…” só pretende adquirir as quotas dos sócios que se mostraram disponíveis para o efeito depois de se assegurar que também logrará adquirir as quotas dos autores que resultarem da ajuizada divisão, sendo certo – como tem sido amplamente evidenciado – que o réu marido assumiu entretanto o interesse em adquirir a metade indivisa da quota comum pelo mesmo preço que a “M…” se propôs pagar aos autores. (E da) prova produzida nos autos resulta claramente a intenção dos autores em “prejudicar os legítimos interesses da contraparte”, visando “alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar”!

3. Questões
1. Apurar se a decisão de facto deve ou não ser alterada;
2. Determinar, depois, se a factualidade permite ou não a aplicação do instituto de abuso de direito.

4. Do recurso da decisão de facto
Os apelantes põem em causa a decisão de considerar provados os seguintes factos:
10 - A sociedade M…, L.da, e no que se refere à gestão da sociedade ré, já atua como se fosse a titular da maioria das quotas em que se divide o capital social desta, incluindo a quota em discussão no âmbito da presente ação. 11 - Os autores instauraram a presente ação apenas para defesa dos interesses da M…, L.da, ou, eventualmente, da N…, L.da. 12 – A presente ação tem por único objetivo contornar o direito de preferência que assiste aos primeiros réus na alienação das partes da quota de que os autores são titulares.
E, o seguinte facto não provado c) - Os autores abordaram já repetidas vezes os réus no sentido de, extrajudicialmente, procederem à divisão da quota em causa, mas estes recusaram.
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Ora, analisando globalmente os meios de prova produzidos não existem dúvidas fundadas para qualquer observador racional e independente, da bondade da decisão de facto.
Na verdade, bastará dizer, usando apenas o depoimento de algumas testemunhas:
(O…): Além do mais, refere que “foi adquirida pela M...”, sendo ela “quem manda lá”, mas actualmente, não sabe nada em concreto sobre a J....
L… (empregado da ré desde 1974) confirma, além do mais que desde 2017 (data que confirma mais tarde) as receitas da J… são geridas pela M…, já que é esta quem emite as faturas, depois, paga um valor mensal que é usado para liquidar as despesas desta (valor aproximado mensal de 14 mil euros). Diz que formalmente não houve qualquer cessão de quotas, mas informalmente pensa que terá havido.
Depois, se dúvidas houvesse importa frisar que foi junto aos autos um procedimento administrativo relativo ao objecto da empresa (transportes), nos termos do qual, os percursos explorados pela ré, “são imputados “à sociedade M… (documento junto em 18.10.2019).
Da restante prova documental resulta que o conteúdo das actas juntas com a petição demonstram que em agosto de 2016 a alienação das quotas dessa sociedade era premente e foi discutida entre os seus sócios. De tal modo que a sociedade M… entregou uma quantia (fundo tesouraria à sociedade J...), para resolver problemas imediatos.
Essa realidade é confirmada pelos depoimentos de parte prestados.[1]
O Sr. D…, por exemplo, admite ter celebrado um contrato promessa com a M…, nos termos do qual cedeu a sua quota dizendo que “todos queremos vender”, mas que ninguém ainda vendeu.
O autor Sr. E… para além de discussões inúteis, admite que nada despendeu para a instauração dessa acção.
Nos mesmos termos o autor G… admite que não pode usar a sua quota, que já recebeu uma proposta da M…[2], e que, apesar de não ter recebido qualquer dinheiro, não consegue explicar porque a empresa é gerida por alguém indicada da M…. E, esta mesma parte admite que recebeu uma carta com proposta de aquisição dos RR.
Ou seja, esses meios de prova comprovam de forma mais do suficiente os factos nsº 10 e 11.
Em sentido contrário, os AA dedicaram-se a analisar uma alienação anterior feita ao Réu (depoimento Sr. B…)[3], sem por em causa, afinal, a alienação concreta em causa nestes autos. Ou seja, não é certamente por alguém ter agido ilicitamente que os AA. podem agir da mesma forma.
Quanto ao facto nº 11 o autor Sr. D… admite também que foi a sociedade M… que indicou o advogado, que é o mesmo desta, que pagou a taxa de justiça, e que propôs a interposição da acção.
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O facto nº 12 é uma realidade quase conclusiva, mas que permite ser demonstrada pela existência de todos os restantes factos.
Na verdade, a valoração da prova pode (e deve) ser feita com base em «ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” (artigo 349.º do Código Civil). Estas presunções são “meios lógicos ou mentais de descoberta dos factos, operações probatórias que se firmam em regras da experiência conhecidas pelo homem médio suposto pela ordem jurídica”[4].
E, se quisermos, usando a terminologia da prova penal indiciária, é necessário que a prova indiciária, circunstancial ou indirecta, permita fundamentar um juízo de certeza que ocorre com os indícios sejam graves, precisos e concordantes.
Ora, in casu
• Sabemos que quem domina a gestão da ré é a sociedade M…, sendo esta que alienou autocarros, recebe as receitas e transfere mensalmente a quantia para liquidar despesas e salários (14 mil euros).
• Sabemos (resulta dos factos 1 e 2) que essas quotas representam uma parte relevante do capital da ré sociedade;
• Sabemos também, que esta celebrou contratos promessa com os AA, e que estamos perante uma venda pelo valor proposto pela M…[5];
• Sabemos, por fim que o Réu efetuou propostas de aquisição dessas mesmas quotas que não foram aceites;
• E, sabemos que quem pagou a taxa de justiça desta acção foi a sociedade M… (facto nº 13).
Ora, esses elementos são concordantes entre si, estão demonstrados de forma independente e apontam todos para a mesma direção, ou seja, quem liquida a taxa de justiça e decide interpor a acção, é quem irá, direta ou indiretamente beneficiar da mesma e que esta permite evitar, em concreto, o exercício de direito de preferência pelos RR.
Está assim demonstrado de forma óbvia e segura uma multiplicidade de factos que unidos entre si apontam para a mesma da conclusão e que permitem comprovar de forma segura o facto nº 12.
Por fim, sempre diremos que o Sr. K…[6] não é uma testemunha completamente independente, mas sim o irmão do Réu (anterior gerente da ré sociedade), com o qual tem manifestas discordâncias, pois chega a dizer que “ele renunciou à gerência para me tramar a mim”. Mas, fundamentalmente apesar do seu depoimento ter sido manifestamente dirigido na primeira instância, o certo é que quando inquirido pela parte contrária já diz “não tenho presente porque não assisti a essa conversa”; e fundamentalmente que assinou um contrato-promessa e prometeu alienar a sua quota à M…. Sendo que confirma que o réu enviou a si e aos AA uma proposta para adquirir as suas quotas.
Quanto ao facto não provado bastará dizer que não foi junto qualquer documento e que sempre seria estranho que essa matéria não implique uma carta ou email que possa ser junto aos autos.
Pelo exposto, teremos de considerar que a valoração da prova efectuada foi objetiva e socialmente justificável sendo, pelos motivos expostos, compartilhada por este tribunal.

5. Motivação de facto[7]
1- Os autores e os réus H… e esposa são titulares de uma quota social no valor nominal de 47.076,55 €, representativa de 18,85% no capital social da J…, Lda, nas seguintes percentagens: a) - ao autor B… pertencem 25% da quota referida no valor nominal de 11.769,14 €, que representam 4,71 % do capital social da segunda ré; b) - ao autor D… pertencem 16,66% da quota referida no valor nominal de 7.846,09 €, que representam 3,14% do capital social da segunda ré; c) - ao autor E… pertencem 4,17% da quota referida no valor nominal de 1.961,52 € na proporção de 0,79 % do capital social da segunda ré; d) - ao autor G… pertencem 4,17% da quota referida no valor nominal de 1.961,52 € na proporção de 0,79% do capital social da segunda ré; e) – aos primeiros réus pertencem 50% da quota referida no valor nominal de 23.538,28 € que representa 9,42% do capital social da segunda ré.
2 - O capital social da segunda ré é de 249.648,34 €.
3 - Em 20 de agosto de 2016, os sócios da sociedade ré reuniram em assembleia geral para deliberarem sobre a «apresentação, análise e tomada de decisão relativamente a propostas recebidas tendo como objetivo a aquisição da totalidade do capital social da referida sociedade.
4 - Dessa assembleia realizaram-se mais duas sessões, uma em 27 de agosto, e outra em 31 de agosto de 2016.
5 - No decorrer das três sessões em que se desdobrou aquela assembleia geral, foi tratado e decidido o seguinte: a) - a sociedade M…, Ld.ª apresentou uma proposta aos sócios da segunda ré para adquirir a totalidade das quotas em que se divide o capital social desta última; b) - todos os sócios se manifestaram concordantes no sentido de que a sociedade M…, Ldª, lhes adquirisse as quotas de que são titulares no capital social da segunda ré, pelo preço de 1.700.000,00 €.
6 - Em 14 de fevereiro de 2017, os sócios da sociedade ré voltaram a reunir em assembleia geral, em cuja ordem de trabalhos, entre outros assuntos, constavam os pontos seguintes: - análise, discussão e deliberação sobre a aceitação e forma de concretização do negócio de cessão de quotas já preliminarmente debatido e aceite proposto pelas sociedades M…, Ld.ª (…) e N…, Ldª (…) – ponto 1; - análise, discussão e deliberação sobre a forma como está a ser exercida a gestão da sociedade e, em face das dificuldades que esta atravessa, no contexto atual, a nomeação da nova gerência e ou a nomeação inclusão de mais um gerente não sócio – ponto 5.
7- No âmbito da discussão do citado ponto 1 da ordem de trabalhos, foi pelo sócio K… referido que todos os sócios tinham anteriormente concordado (no decurso da sessão da assembleia geral ocorrida em 31 de agosto de 2016) alienar as respetivas quotas pelo preço global de 970.000,00 €.
8 - No âmbito da discussão do citado ponto 5 da ordem de trabalhos da assembleia aludida no ponto 6 dos factos provados, os sócios deliberaram designar para a gerência da sociedade ré P….
9 - Nessa mesma ocasião, todos os sócios presentes (ou representados) declararam que vendiam às sociedades M…, l.da e a N…, L.da as quotas de que eram titulares no capital da sociedade ré, com exceção do primeiro réu marido, que declarou não aceitar esta última proposta.
10 - A sociedade M…, L.da, e no que se refere à gestão da sociedade ré, já atua como se fosse a titular da maioria das quotas em que se divide o capital social desta, incluindo a quota em discussão no âmbito da presente ação.
11 - Os autores instauraram a presente ação apenas para defesa dos interesses da M…, L.da, ou, eventualmente, da N…, L.da.
12 – A presente ação tem por único objetivo contornar o direito de preferência que assiste aos primeiros réus na alienação das partes da quota de que os autores são titulares.
13 – A taxa de justiça liquidada tendo em vista a propositura da presente ação foi paga pela sociedade M…, L.da.
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6. Motivação jurídica
A única questão jurídica desta acção é a aplicação do mecanismo de abuso de direito.
O art. 334.º, do CC, dispõe que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Conforme, refere CUNHA DE SÁ[8] existem concepções subjectivas do abuso – que atendem predominantemente ao estado subjectivo do agente –, objectivas – que propõem uma valoração independentemente da intenção de quem age –, e concepções mistas.
In casu estamos perante a tentativa de exercício de um direito (divisibilidade de uma quota), com directa intenção dos autores, pelo que não se coloca o problema da exigência subjectiva, nem a aplicabilidade do abuso de direito aos poderes, faculdades ou liberdades.[9]
Mas será que esse direito está a ser exercido de forma excessiva?
Desde logo, existem diferenças na graduação deste requisito.
Segundo alguma doutrina[10] esta expressão é explicada pela origem da norma, visando no fundo restringir a aplicação desta cláusula geral pelo julgador. Logo, nestes termos bastaria existir uma desproporcionalidade relevante entre o fim da norma e o seu concreto exercício.
Segundo outros deve sempre ser limitada a um excesso manifesto ou flagrante[11].
A posição, maioritária entre nós, no âmbito das situações bilaterais, é a primeira. Nesses termos e segundo o Ac da RP de 7.6.2018 (Joaquim Gomes), 8/17.7T8GDM.P1 O exercício ilegítimo de um direito subjetivo privado, por abuso de direito, só será manifesto e censurável, quando esse desempenho, para além de contrariar um dos seus critérios específicos (boa fé, bons costumes, finalidade económica ou social), conduzir, em concreto e atendendo à globalidade dos acontecimentos, a uma injustificada desproporção entre o benefício decorrente desse direito e a desvantagem resultante do correspondente dever para a contraparte, não surgindo aquele ou este, como necessários, adequados, na justa medida e para assegurar um interesse legítimo.
Sendo que, conforme ensinava ORLANDO DE CARVALHO, o abuso de direito existirá quando houver um exercício para lá do poder de autodeterminação que é o próprio fundamento dos direitos subjectivos. Como critério para delimitar esse pressuposto este autor propunha a falta de interesse no exercício do direito, a apreciar em abstracto ou concreto, e a transcendência do prejuízo em relação ao agente. [12]
Ora, aplicando estes critérios ao caso concreto, parece ser simples a conclusão pela existência de uma situação de abuso de direito.
Senão vejamos,
É pacífico entre nós que os direitos sociais dos contitulares inerentes à quota têm de ser exercidos imperativamente através de um representante comum, nos termos do art 222.º, n.º 1, do C. S. C. [13]
Acresce que o direito de exigir a divisão implica um juízo de melhor aproveitamento das utilidades da coisa ou direito, nomeadamente através da maior facilidade da sua administração, e alienação.
Logo, seria liquido concluir pela procedência da pretensão dos AA quanto à divisão da sua quota.
Mas, está provado que o real objetivo desta acção não é qualquer interesse na divisão da quota, mas sim, pelo contrário evitar o exercício do direito legal de preferência.
Pois, por um lado essa quota parte já foi alienada a terceiro (factos provados nº 8 e 9); depois, essa terceira sociedade já gere a sociedade (facto provado nº 9); e, por fim, a instauração da presente acção visou apenas evitar o normal exercício do direito de preferência por parte dos RR. nessa alienação (facto provado nº 12).
Logo, parece ser simples e evidente concluirmos pelo preenchimento do art. 334º, do CC já que recorde-se a conduta dos AA viola de forma flagrante as duas formas de abuso previstas já na antiguidade.
O Digesto[14] (1.3.29) estabelecia que:
a) Age contra a lei quem faz o que a lei proíbe;
B) (age) em fraude quem, respeitando as palavras da lei, as contorna («Contra legem facit qui id facit quod lex prohibet in fraudem vero qui salvis verbis legis sententiam eius circumvenit»).
Ora, in casu, os AA. já alienaram a parte da sua quota evitando assim o exercício do direito de preferência, pelo que está preenchida a primeira previsão.
E, por outro lado, a presente acção visa, através do quadro formal da divisão de uma coisa comum, evitar o exercício desse mesmo direito de preferência, pelo que a segunda previsão histórica está também preenchida.
Ora, importa referir que as obrigações legais de preferência existem em regra, entre titulares de direitos reais: art. 1380.° (terrenos confinantes), e no âmbito da mesma relação jurídica: art. 1409.° e 1410.° (compropriedade). Mas noutros casos esse direito existe no âmbito do arrendamento urbano e rural (art. 47.° a 49.° do RAU), e mesmo no âmbito da herança, já que os co-herdeiros gozam de direito de preferência na venda ou dação em cumprimento dos quinhões hereditários (art. 2130.°). E, que, na venda ou na adjudicação judicial de quotas têm preferência em primeiro lugar os sócios e, depois, a sociedade ou uma pessoa por esta designada (art. 239.°, 5 do Cód. Soc. Com.).
Entre nós o direito de preferência é habitualmente qualificado como um direito real de aquisição, quando se apresenta com eficácia real, em relação a terceiros.[15]
Logo, a conduta dos AA ao exigirem a divisão da quota visa impedir o exercício de um direito legal de preferência dos RR.
Diga-se por fim, que o exercício além de violar normas expressas (consagração do direito legal de preferência), viola ainda o fim social ou económico do direito subjectivo em causa[16]. Na verdade, a acção de divisão de uma quota, visa exercer as funcionalidades e utilidades da mesma, e não permitir que esta seja entregue a um terceiro que, aliás, já gere a sociedade.
Existe, por isso, um claro e evidente abuso de direito, pois, “se eu uso o meu direito, o meu acto é lícito; e quando ele é ilícito, é porque ultrapasso o meu direito e ajo sem direito”[17].

2. Das consequências do abuso de direito
O art 334º, do CC concede ao tribunal discricionariedade na determinação da consequência do abuso de direito, visando, em suma, que seja adotada uma consequência que impeça o concreto exercício ilegítimo[18].
Nestes termos, Coutinho de Abreu[19] defende que, no que diz respeito às deliberações sociais as mesmas podem ser anuláveis, em certos casos nulas e em relação a terceiros sancionáveis mediante a atribuição de uma indemnização.
Por isso, poderíamos estar aqui perante a possível aplicação de uma solução intermédia, nos termos da qual poderíamos conceder a divisão da causa, desde que as quotas já dividas pudessem também implicar o exercício do direito legal de preferência dos RR. Esta solução, permitiria certamente obviar à atuação abusiva dos AA, pois, o direito de preferência permaneceria operante, mas permitiria também, a divisão da quota social e assim o obviar de mais conflitos e futuras ações entre as partes.
Porém, essa solução mista, apesar de apelativa, não pode ser aplicada no presente caso, porque não foi objecto do concreto pedido formulado, nem alvo do contraditório das partes, constituindo assim uma questão nova e que transcende os pedidos processuais formulados.
Logo, nos termos dos arts. 3 e 4 do CPC estamos impedidos de aplicar essa solução.[20]
Deste modo, resta apenas, impedir o exercício do direito abusivo e por isso proibir, nestas circunstâncias a divisão da quota social.

6. Deliberação
Pelo exposto, este tribunal julga o presente recurso, improcedente por não provado e, por via disso, mantém integralmente a decisão recorrida.

Custas da apelação a cargo dos AA.

Porto em 2.12.2021
Paulo Duarte Teixeira
Ana Vieira
Deolinda Varão
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[1] Apenas a Sra. C… diz nada saber dizendo que o seu marido nada lhe disse.
[2] Foi preciso confrontar esse autor com o documento junto com a contestação para este admitir o valor constante do doc nº 6 junto com a contestação. Sendo que admite ter recebido a carta junta como doc nº 10 à qual diz não ter respondido.
A Sra. F… diz que são assuntos do seu marido e que não sabe qual a ideia da separação de quotas.
[3] Esta testemunha, afinal, admite que recebeu uma proposta de aquisição do Réu, e que celebrou um contrato promessa com a M….
[4] Antunes Varela RLJ, ano 122, 209 e segs.
[5] Ouça-se o depoimento sereno, minucioso e pormenorizado do Sr. Q… sobre essa venda que afirma “todos os outros sócios aceitaram a proposta da M…”.
[6] Este depoimento terá de ser ouvido na sua globalidade, pois, a parte inicial é contrariada pela contra instância.
[7] Dá-se por reproduzida a factualidade não provada.
[8] In Abuso de Direito, Cadernos de Ciência Fiscal Lisboa, 1973, p. 285 e seg., Manuel de Andrade, Teoria geral das obrigações, I, 2ª ed., Coimbra 1963, págs. 63 e segs; Carlos Mota Pinto, Cessão da posição contratual, Coimbra 1970, págs. 312 e segs., António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no direito civil, Coimbra, 1984, págs. 879 e segs e Tratado de Direito Civil, V, pág. 274 e segs; Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, I, pág. 298; Almeida Costa, in Direito das Obrigações, pág. 845; Baptista Machado in RLJ, 118, 227; Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, pág. 48 e segs.
[9] CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e responsabilidade Civil, 2004, Almedina, pág. 164 a 174.
[10] Menezes Cordeiro, (Tratado, cit., V, pág. 273) defende que “perante institutos modernos a adjetivação enérgica não faz sentido”.
[11] Nas palavras de Pereira Coelho, ob., cit., pág. 35 “é aquele que suscita uma viva e nítida reacção de reprovação ou censura”.
[12] Teoria geral do Direito Civil. Sumários, Centelha, 1981, polic., págs. 45 e segs., em termos semelhantes António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, Coimbra, 1990, pág. 733.
[13] Entre vários Ac. da R. G. de 04/05/2017, processo n.º 2983/16.0T8VNF.G1 (relatora Desembargadora Maria João Matos), e o recente Ac da RP de 2.12.21 (João Venade) não publicado, processo, 6665/17.7T8VNG-H.P1
[14] Apud Rui Pinto Duarte, A Fraude à Lei – Alguns Apontamentos revista direito comercial 2020-08-30, pág. 1587.
[15] cfr. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações (Parte Especial) – Contratos, 2.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2010, p. 265 .AUGUSTO DA PENHA GONÇALVES, Curso de Direitos Reais, 2.ª Edição, Universidade Lusíada – Departamento de Direito, 1994, p.229.
[16] OLIVEIRA ASCENSÃO, O Abuso do Direito, pág. 612 afirma: “Tem-se em vista a função que é atribuía a um direito e que o agente contrariaria com a sua actuação”.
[17] Apud, COUTINHO DE ABREU, Jorge Manuel, Do Abuso do Direito: Ensaio de um Critério em Direito Civil e nas Deliberações Sociais, Almedina, Coimbra, 1983, pág. 45, nota 92
[18] Segundo Daniel Bessa de Melo, O abuso do direito: contributos para uma hermenêutica do artigo 334.º do Código Civil português, in Julgar, outubro, 2020, pág. 1: “a noção de “ilegitimidade” é (…) uma expressão vaga (…) de forma propositada, desejando o legislador que o intérprete tivesse não só a discricionariedade de determinar quando é que há abuso, mas também a discricionariedade de determinar as consequências do ato abusivo”.
[19] In loc cit. Pág. 164 e segs.
[20] Mesmo, que neste caso, se aplicasse uma posição flexível do principio do pedido conforme decidido entre outros pelo Ac. do STJ de 11.2.2015 (Abrantes Geraldes), nº 607/06.2TBCNT.C1.S1 (acção de reivindicação versus decisão de compropriedade).