Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
70/19.8T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DOMINGOS MORAIS
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO LABORAL
ELEMENTO SUBJECTIVO
DOLO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
NULIDADE DA SENTENÇA
DIREITO DE DEFESA
Nº do Documento: RP2019121070/19.8T8VFR.P1
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO CONTRA ORDENAÇÃO LABORAL
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE, MANTIDA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Nas contra-ordenações laborais, em que a negligência é sempre punível, o elemento subjectivo - dolo ou negligência - tem de extrair-se da factualidade provada, que integra o elemento objectivo.
II - A mera especificação de pormenor na sentença, sem relevância na qualificação jurídica dos factos, não integra o conceito da alteração não substancial dos factos, para efeitos do disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea b), e 358.º, n.º 1, ambos do CPP.
III - A ausência das garantias do direito de defesa não se reporta à simples omissão do acto de notificação para exercício de tal direito (reconduzível, por conseguinte, uma inexistência “física”), mas a ausência processual, no sentido de impossibilidade do exercício de tal direito.
IV – Não há violação do direito de defesa quando a arguida foi: (i) notificada do auto de notícia e respondeu; (ii) notificada da decisão administrativa e impugnou-a; (iii) notificada da audiência de julgamento e apresentou os elementos de prova que lhe aprouve, incluindo para provar que não agiu com culpa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 70/19.8T8VFR.P1 - Recurso de contra-ordenação (Secção Social)
Origem: Comarca Aveiro-S.M.Feira-JuízoTrabalho-J2
Relator - Domingos Morais – R 838
Adjunta – Paula Leal de Carvalho

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. - Relatório
1. – B…, S.A., nos autos identificada, impugnou judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições do Trabalho que julgou improcedente o recurso de impugnação e manteve a decisão administrativa impugnada, que a condenou na coima de 305 U.C.’s, por violação do disposto no nºs 1 e 4 do artigo 29.º, do Código do Trabalho, no enquadramento dos artigos 13º, 58º e 59º da Constituição da República Portuguesa e determinou a responsabilidade solidária do representante legal da arguida pelo seu pagamento.
Termina pugnando pela procedência da impugnação com revogação da decisão do processo e a sua consequente absolvição.
2. - Recebida a impugnação pelo Tribunal, ora recorrido, o Ministério Público deduziu acusação nos termos previstos no artigo 37.º do Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14.09.
3. - A impugnação foi judicialmente admitida.
4. - Realizada a audiência de julgamento, o Mmo Juiz proferiu decisão:
“Nos termos de facto e direito expostos julga-se totalmente improcedente a impugnação judicial e, assim:
a) - Condena-se a arguida “B…, SA” pela prática da contraordenação muito grave, por violação do disposto no artigo 29º, nº1, do Código do Trabalho, na coima de 305 U.C.'s, correspondente a € 31.110 (trinta e um mil, cento e dez euros).
Mantém-se a responsabilidade solidária pelo pagamento da coima por parte do legal representante da arguida (cfr. artigo 551.º, n.º 3 do C.T.) e a sanção acessória de publicidade aplicada.
Custas pela arguida com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) U.C.'s, nos termos do artigo 8º, nº7 do RCP e tabela III anexa.
Cumpra-se o disposto no artigo 45º, n.º 3 da Lei n.º 107/2009, de 14-09.”.
5. A arguida, não se conformando com a sentença judicial proferida, interpôs recurso da mesma para este Tribunal da Relação do Porto.
Formulou as seguintes conclusões:
1ª A sentença recorrida aditou à matéria de facto provada o nº 38, sem prevenir previamente a recorrente de que pretendia alterar a matéria de facto e in pejus, no que concerne ao facto nº 38: Na decisão administrativa recorrida constava em vez desse facto a alínea mm), que é bem diferente do facto dado como provado nº 38, traduzindo a diferença entre a condenação por negligência (violação do dever de cuidado, constante da decisão administrativa) e o dolo (atuação com intenção, na sentença), qualificação contra a qual a recorrente se tinha insurgido no recurso.
2ª A senhora juiz a quo aditou esse facto nº 38, de forma dissimulada, pois não o refere em momento algum da fundamentação, nem que deixava cair a alínea mm) da decisão administrativa, para poder manter a condenação por dolo e pela infração ao artº 29º do CT, pois que se assim fosse não tinha alterado a matéria de facto: A própria sentença refere a pgs. 32 que «entende que para a prática da contraordenação em referência se exige o dolo, em qualquer das suas variantes» e a pgs. 36 «concorda-se que, para que se esteja perante assédio é necessário que exista a intencionalidade da conduta persecutória». Ou seja, se não fosse a alteração do facto nº 38 não estaria consubstanciada a intencionalidade, o dolo e a infração imputada do artº 29º do CT e por isso a sentença a operou.
3ª Ora a questão é que a decisão administrativa deu como assente ou provado um facto, o da alínea mm), que conduz à condenação por negligência, e depois puniu por dolo, sem fundamento, e no recurso dessa decisão a sentença do recurso alterou in pejus a decisão administrativa e o objeto do processo, que definia a vinculação temática, dissimuladamente e sem dar conhecimento à recorrente, em termos de sanar a contradição e a falta de fundamentação e de imputar a intencionalidade subjacente ao dolo, que antes não tinha sido imputada, para dessa forma poder integrar a situação no quadro de assédio.
4ª Tudo visto, a decisão administrativa era nula e contraditória nos seus próprios termos e padecia de falta de fundamentação, quanto ao dolo, e a sentença recorrida padece dos mesmos vícios, que não podia sanar, alterando de surpresa o objeto do processo e aditando factos in pejus que não tinham sido imputados à arguida, para dessa forma poder manter a decisão administrativa e a integração dos factos na infração do artº 29º do CT (assédio), que de outra forma nela não caberiam, por falta da intencionalidade indispensável ao tipo, como reconheceu.
5ª Assim atuando o fez em violação dos princípios da igualdade (artº 13º da CRP), do direito de defesa e da confiança e da segurança jurídica e de um processo equitativo (fair trail), previstos no artº 20º, nº 1, da CRP.
6ª Assim entendendo e interpretando o artº 15º da Lei 107/2009, que avocou, como base para poder proceder às alterações factuais supra referidas, de negligência para dolo, mesmo após a prolação da decisão administrativa de que se recorreu e que nessa medida (de falta de fundamentação do dolo) se impugnou, a sentença adotou um entendimento daquele artº 15º que é inconstitucional, por violar as garantias e princípios constitucionais anteriormente referidos.
7ª Não podendo subsistir o facto provado nº 38 da sentença e tendo desaparecido a alínea mm) da decisão administrativa, não pode sequer imputar-se a infração a título de negligência e a arguida deve ser absolvida por inexistir o elemento «culpa/dolo» exigido pelo artº 29º do CT.
Nestes termos, deve a sentença ser anulada e a arguida absolvida, com as consequências legais.”.
6. - O Ministério Público respondeu, concluindo:
“1ª São diferentes os valores em causa e os interesses protegidos no processo penal e no processo contra-ordenacional. E, como é natural, são também diferentes as exigências formais e de fundamentação.
2ª Como se refere à exaustão na maioritária jurisprudência sobre a matéria e, bem assim, já diversas vezes julgado em conformidade com os artigos 32.º, n.º 10 e 205.º da nossa lei fundamental pelo Tribunal Constitucional, em sede de ilícito de mera ordenação social não se colocam com a mesma profundidade e grau de exigência as necessidades de fundamentação impostas no processo criminal, visto serem diversos os fundamentos éticos subjacentes a estas decisões administrativas, sendo as correspondentes sanções instrumento de protecção de bens jurídicos não essenciais à vida em sociedade, não havendo que transformar as respectivas decisões em verdadeiras sentenças criminais, dotadas de procedimentos fortemente garantísticos, susceptíveis de manietar a capacidade de resposta da administração.
3ª Um dos momentos em que essa visão mais simplificada e menos formalista do processo contra-ordenacional em relação ao processo penal encontra consagração é precisamente na decisão administrativa.
4ª O que se pretende em sede de processo contra-ordenacional é que o arguido fique ciente dos factos que lhe são imputados e das sanções que lhe são aplicadas e que se possa defender dessas acusações, não sendo exigível que uma decisão administrativa contenha todos os requisitos que uma sentença penal tem que ter. 5ª Mesmo dando como assente que, numa perspectiva perfeccionista, se pudesse entender que a decisão administrativa devia ter expurgado do seu teor a sua alínea mm), a mesma é inócua, uma vez que se limita a reproduzir aquilo que numa fase inicial do processo se tornou evidente: que a conduta da recorrente devia ser punida a título de, no mínimo, negligência grosseira.
6ª Com o decurso das diligências de prova, tornou-se claro que a conduta da recorrente ultrapassava esse mínimo e devia ser qualificada como sendo dolosa.
7ª A decisão administrativa é clara nesse aspeto. A recorrente demonstrou ter percebido perfeitamente o que estava a suceder, não levantando qualquer questão a esse título e afirmando na sua impugnação judicial que: “Rejeita-se com toda a veemência a imputação de assédio e a natureza dolosa com que a recorrente foi sancionada, quando na acusação/auto lhe era imputada a infração a título de negligência (nº 37 do auto).
8ª Concluída a produção de prova, o Tribunal a quo concluiu também que a conduta da recorrente era dolosa e clarificou um pouco melhor essa situação, embora basicamente com os mesmos fundamentos da decisão administrativa.
Com efeito, nesta já se referia que:
- “hh) Estas situações configuram atitudes por parte da arguida com um notório objetivo de degradar a relação laboral e provocar desconforto e mal-estar na trabalhadora, contribuindo para o seu desgaste físico, mental e emocional…”
- “ii) Ao atuar de tal forma, a arguida causou à trabalhadora prejuízos graves, humilhando a mesma perante os demais trabalhadores…”
- “jj) Ora, este comportamento configurou uma situação de assédio…porquanto perturbou gravemente a trabalhadora, afetando a sua dignidade e criando-lhe um ambiente intimidatório, hostil, humilhante e degradante, com o propósito de a levar a despedir-se”.
9ª Perante essa conclusão, o Tribunal a quo considerou também que a referência que se fazia na decisão administrativa à punição mínima a título de negligência grosseira (e que provinha da fase inicial do processo, como a própria recorrente demonstrou ter conhecimento) era desnecessária e eliminou-a dos factos provados.
10ª O facto dado como provado sob o nº. 38 da douta decisão ora recorrida não veio substituir a alínea mm) da decisão administrativa, como quer fazer crer a recorrente. São coisas distintas. O facto 38 é apenas uma concretização, quiçá de uma forma tecnicamente mais correta, do que já resultava claro da decisão administrativa, designadamente das alíneas hh), ii), jj) e kk). A eliminação da al. mm) dos factos provados resulta da sua absoluta desnecessidade. Não há aqui qualquer substituição de factos dados como provados.
11ª Com isto, a douta decisão recorrida em nada alterou o sentido da decisão administrativa pelo que nada havia a comunicar à recorrente.
12ª Por tudo o exposto, consideramos não assistir razão à recorrente.
Pelo exposto, entendemos que deve o recurso interposto ser julgado improcedente e mantida a douta decisão recorrida, nos seus precisos termos.
Mas, julgando, Vossas Excelências farão a habitual Justiça!
7. - O Ministério Público, junto deste Tribunal da Relação, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
8. - Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação de facto
Na 1.ª instância foi proferida a seguinte decisão sobre a matéria de facto:
“Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1º- É arguida B…, S.A., com o NIPC ………, com sede e local de trabalho na Rua …, n.º …, …. – … …, com a atividade de Fabricação de Rolhas de Cortiça (CAE …..).
2º- A arguida é representada por C…, com o NIF ………, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração, com domicílio profissional na Rua …, n.º …, …. – … ….
3º- Em sede de visita inspetiva, efetuada no dia 29 de maio de 2018, pelas 14:30 horas, ao local de trabalho acima identificado foi verificado, que a arguida tinha ao seu serviço, no local de trabalho referido, a trabalhadora D…, admitida em 01 de junho de 2009, com a categoria profissional de Alimentadora/ Recebedora, a realizar funções não inerentes à sua categoria profissional, mais concretamente trabalhos de limpeza das instalações, ou seja limpeza industrial.
4º- Em respeito pelas ordens, poder de direção e orientações da empregadora, a trabalhadora D… encontrava-se sem qualquer tarefa atribuída na produção, inerente à sua categoria profissional de Alimentadora / Recebedora, por determinação da infratora, desde a sua reintegração, em 07/05/2018, determinada pelo Tribunal da Relação do Porto.
5º- Declarou este Tribunal a ilicitude do despedimento da trabalhadora, condenando a aqui arguida a proceder à respetiva reintegração, nos termos estabelecidos no artigo 389.º, n.º 1, alínea b), do Código de Trabalho.
6º- Tão pouco lhe foram atribuídas quaisquer outras funções alternativas ou no quadro de uma eventual mobilidade funcional, conforme aludido na própria sentença do Tribunal da Relação do Tribunal que refere, “Ora, sendo como se disse a categoria a que se refere o artigo 368º, n.º 2, alínea b), do CT, a interna, contratada e normativa, e não a funcional, competia à Ré/empregadora provar, o que não logrou alcançar – a menção constante da factualidade provada enquanto conclusiva foi daquela expurgada, nos termos anteriormente decididos –, que não dispunha de outro lugar compatível com a categoria de alimentador / recebedor (cortiça), de acordo com a definição que desse é dada no CCT aplicável (publicado no BTE, 1.ª série, n.º 34, de 15 de Setembro de 2016, Anexo II, assim: “Alimentador ou recebedor (cortiça) - É o profissional que recebe e alimenta determinadas máquinas não especificadas neste grupo.” De facto, não demonstrou a Ré/entidade patronal que não dispunha, em toda a sua estrutura organizativa, de outro posto de trabalho compatível com a categoria profissional da Autora, ou que todos os postos de trabalho destinados a trabalhadores com aquela mesma categoria de alimentador ou recebedor estavam ocupados/preenchidos – veja-se que o ponto 77.º provado, referente à deslocação da Autora para outra secção que estava em fase de remodelação, dizendo-se apenas “pois era necessária nesse período para abastecer as moegas”, não permite esclarecer a razão porque assim foi e, nomeadamente, a razão porque porventura teria deixado de ser necessária a Autora –, como era seu ónus, o que determina, nos termos do artigo 384.º, alínea a), do CT, a ilicitude do despedimento que operou [28]. Nos termos expostos, procede o recurso quanto a esta questão, do que decorre a revogação da sentença na parte em que considerou lícito o despedimento da Autora/recorrente e, em conformidade, a necessidade de conhecimento, por esta Relação, do pedido reconvencional pela mesma deduzido – conhecimento que ficou prejudicado na sentença recorrida.”.
7º- À data, confrontada a trabalhadora aqui em causa sobre as funções que fazia, referiu que, apesar de estar, naquele momento, a aspirar a zona fabril, anteriormente estivera a fazer paletes, ou seja, colocação de sacos de rolhas (5 sacos) sobre uma palete que, após concluída, eram retirados os cinco sacos de rolhas e assim sucessivamente, durante um dia de trabalho.
8º- Mais referiu que, tinham colocado outra trabalhadora com a categoria de escolhedora a realizar a sua função de a Alimentadora / Recebedora que, consistia em receber e alimentar determinadas máquinas, nos termos do CCT aplicável.
9º- E disse que lhe tinha sido destinada uma casa de banho diferente das restantes colegas que, estava fechada à chave, chave que estava apenas na posse de tais trabalhadoras e, não possuía qualquer cabide para pendurar os seus pertences.
10º- Confrontada a arguida, na pessoa de E…, Diretor Financeiro e, F…, administradora sobre as circunstâncias apuradas informaram que, o posto de trabalho da trabalhadora D… fora extinto, não havendo posto de trabalho para a mesma e, como tal, realizando esta tarefas de limpeza da fábrica ou fazer paletes (colocação de sacos sobre paletes), ou seja, o que se ia arranjando.
11º- Quanto à situação da casa de banho, foi referido que, dado a trabalhadora D… se recusar a limpar a casa de banho, contrariamente às outras trabalhadoras, foi-lhe atribuída outra casa de banho.
12º- Não está na esfera da categoria profissional das várias trabalhadoras proceder à limpeza das instalações sanitárias.
13º- Perante o apurado foi a arguida advertida que, deveria de imediato atribuir tarefas inerentes à categoria profissional da mesma, conforme determinado pelo Tribunal, ao que, aquela, mais uma vez retorquiu, alegando não ter tarefas inerentes à sua categoria para lhe atribuir, contrariamente ao pleiteado na sentença do Tribunal da Relação do Porto.
14º- Por carta datada de 08 de setembro de 2015 e, rececionada em 13 de setembro de 2015, pela trabalhadora D…, com a categoria profissional de Alimentadora / Recebedora, a entidade empregadora B…, S.A., a aqui arguida, comunicou a essa trabalhadora que “nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 367.º n.º1 do Código de Trabalho, vimos pela presente informar V. Exa. que é intenção da empresa proceder à extinção de um posto de trabalho…”, elencando os fundamentos para o mesmo.
15º- Não se conformando com a comunicação em causa, a referida trabalhadora dirigiu a este Centro Local de Entre Douro e Vouga da ACT um pedido de intervenção, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art.º 370.º do Código do Trabalho (CT), no qual solicita a verificação dos requisitos previstos nas alíneas c) e d) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 368.º do referido diploma legal.
16º- Para a realização deste relatório foi concretizada a competente visita inspetiva, com recolha de declarações junto da trabalhadora requerente, uma reunião com os representantes da empregadora, designadamente o Diretor Financeiro e a Engenheira responsável pela Seção de Escolha Manual, mais concretamente E… e H… e a análise da documentação solicitada, tendo-se concluído que, e sem prejuízo de melhor entendimento, parecem estar inseridas numa mesma “linha funcional”, não se podendo, assim, concluir inequivocamente pela inexistência de uma pluralidade de postos de trabalho de conteúdo funcional idêntico, na seção em causa.
17º- Posteriormente, tal despedimento não foi concretizado.
18º- Por carta registada, datada de 07 de novembro de 2016, enviada à trabalhadora em causa, a arguida, comunicou a esta trabalhadora que “nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do Artigo 367.º do Código de Trabalho, vimos pela presente informar V. Exa. que é intenção da empresa proceder à extinção do seu posto de trabalho…”.
19º- Tal comunicação devia-se ao facto da modificação da motivação inerente ao despedimento por extinção do posto de trabalho, assim sendo com a aquisição de duas máquinas eletrónicas de escolher deixou de ser necessário a utilização dos tapetes, já que as rolhas necessitarão de uma escolha ligeira que passará a ser efetuada nas duas mesas que entretanto foram colocadas à saída das máquinas, deixando também de ser necessária a alimentação dos tapetes, que inicialmente se previa automatizar.
20º- Perante a mesma, este Serviço da ACT, manteve o anterior Parecer.
21º- O despedimento preconizado pela arguida efetivou-se a 31 de janeiro de 2017, passando a trabalhadora a auferir Subsídio de Desemprego.
22º- Não se conformando com tal decisão da arguida, a trabalhadora intentou a respetiva ação de impugnação judicial de regularidade e ilicitude de despedimento no Tribunal de Trabalho de Santa Maria da Feira.
23º- Não se conformando com a procedência parcial da sentença neste tribunal, a mesma recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, a qual já transitou definitivamente em julgado no dia 07 de março de 2018.
24º- No Acórdão da Relação do Porto, foi declarada a ilicitude do despedimento da trabalhadora, condenando a arguida a proceder à respetiva integração na sua categoria interna normativa e não em sentido funcional.
25º- Na sequência da visita de 29 de maio de 2018, foi a arguida objeto de Notificação para Entrega de Documentos, nos termos da alínea e) do Artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de junho, que aprova o Estatuto da Autoridade para as Condições de Trabalho, para proceder à exibição de vários documentos, bem como, uma breve descrição sobre a reintegração da trabalhadora D… e da situação da casa de banho e não existência de qualquer meio para pendurar os seus pertences.
26º- No dia 4 de junho de 2018, deu resposta à Notificação a arguida e, não obstante, referir breve descrição sobre a reintegração e situação local identificado, nada juntou nesse âmbito.
27º- Em 05 de julho de 2018, entendeu-se ser pertinente realizar nova visita inspectiva ao local.
28º- De tal visita resultou o apuramento dos seguintes factos:
. A arguida não estava a dar total cumprimento ao Acórdão já referido, ou seja, a trabalhadora continuava sem estar reintegrada na sua categoria profissional / posto de trabalho de conteúdo funcional idêntico, continuando a empilhar manualmente sacos de rolhas, (Vide Fotografia n.º 2 recolhida no local), numa palete, até atingir 4 sacos em altura, sendo que são sempre os mesmos sacos e a mesma palete, logo numa operação de empilhamento e desempilhamento manual dos mesmos sacos e mesma palete, numa sequência de cerca de 30 vezes por dia (Vide Fotografia n.º 3 e 4 recolhidas no local).
.Tais sacos e palete encontram-se numa plataforma superior (Vide Fotografia n.º 5 recolhida no local) debaixo de cobertura de placas translúcidas que permitem a passagem de sol e calor e, que não possuía qualquer meio de ventilação.
. A trabalhadora continuava a utilizar uma casa de banho que, segundo esta não tinha privacidade, tendo-lhe sido negado papel higiénico, o que traz de casa;
. Foi proibida de estacionar dentro das instalações o seu carro (Vide Fotografia n.º 6 e 7 recolhidas no local), segundo a recorrente por não haver espaço;
. A trabalhadora tem uma hérnia discal e foi-lhe aconselhado medicamente que não exercesse carga e evitasse esforços, circunstância mencionada na sua ficha de aptidão, bem como, padece de síndrome vertiginoso, conhecido pela arguida.
29º- Mais uma vez advertida a arguida, na pessoa de um dos seus administradores, E… que, tais circunstâncias conferiam uma violação da Lei, referiu que a trabalhadora não tinha mais nada para fazer, estando a fazer paletes que, segundo este irão ter destino, sendo vendidas quando houver clientes.
30º- Mais referiu que, a trabalhadora até gostava daquela situação e, que o importante era receber o ordenado, o que se estava a verificar.
31º- A plataforma onde se encontrava a trabalhadora D… era um espaço com um desconfortável ambiente térmico, devido à forte influência solar, acrescido do facto de a trabalhadora estar exposta durante, pelo menos uma parte do seu dia de trabalho, a tais circunstâncias.
32º- O empregador tem o dever de ocupar condignamente o trabalhador.
33º- De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto não tinha a arguida logrado provar que não tinha posto de trabalho inerente às funções da trabalhadora para lhe atribuir.
34º- As situações supra referidas configuram atitudes por parte da arguida com um notório objetivo de degradar a relação laboral e provocar desconforto e mal-estar na trabalhadora, contribuindo para o seu desgaste físico, mental e emocional, já notório quando ouvida pelas inspetoras do trabalho, posto que se encontrava fragilizada emocionalmente, num claro desrespeito pela sua integridade física e mental e com consequências para a sua saúde que são já manifestas, bem como ao nível da respetiva auto-estima e confiança.
35º- Ao atuar de tal forma a arguida, causou à trabalhadora prejuízos graves, humilhando a mesma perante os demais trabalhadores e junto da própria Autoridade para as Condições do Trabalho, conduta que poderia ter evitado, tendo tido diversas oportunidades para o efeito.
36º- Este comportamento perturbou gravemente a trabalhadora, afetando a sua dignidade e criando-lhe um ambiente intimidatório, hostil, humilhante e degradante, com o propósito de a levar a despedir-se.
37º- Esta situação era visível e do conhecimento dos restantes trabalhadores da empresa arguida.
38º- Com esta conduta a arguida atuou com intenção de perturbar ou constranger a trabalhadora, afetando a sua dignidade e criando-lhe um ambiente hostil, degradante, humilhante e desestabilizador.
Mais se provou que:
- A temperatura na plataforma onde a trabalhadora foi colocada a fazer paletes era de, pelo menos, 26ºC e no Verão a temperatura é aí mais elevada e não havia ventilação.
- Os sacos de rolhas que a trabalhadora tinha de colocar em cima da palete pesam cerca de 20kg.
- A recorrente apresentou um volume de negócios de 14.157.994,00 Euros, de acordo com o Relatório Único de 2017.
- A recorrente não tem antecedentes contraordenacionais.
Factos não provados.
Com interesse para a decisão, não se provaram quaisquer outros factos diferentes e/ou contrários dos que especificadamente foram dados como provados, nomeadamente, que:
- não existe nenhum outro posto de trabalho vago e disponível que seja compatível com a categoria da trabalhadora e com a sua capacidade física debilitada;
- o único operário admitido desde que a trabalhadora foi despedida foi um broquista;
- já antes da reintegração a trabalhadora D… trabalhasse na plataforma onde foi colocada a fazer paletes após a reintegração.”.

III. – Fundamentação de direito
1. - Legislação adjectiva aplicável
Os presentes autos de recurso de contraordenação conheceram a sua génese nos Autos de Contraordenação supra referidos, cujos factos datam do ano de 2018, ou seja, quando já vigorava, nesta matéria, o Código do Trabalho de 2009, que iniciou a sua vigência a 17.02.2009[1], bem como o actual Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14.09, que começou a produzir efeitos no dia 1.10.2009, como, finalmente, as alterações introduzidas no Código de Processo de Trabalho, pelo Decreto-Lei n.º 259/2009, de 13.10, que tiveram começo de vigência em 1.1.2010.
Manteve-se, naturalmente e em termos subsidiários, o Regime Geral das Contraordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10) e o Código de Processo Penal.
Assim, será de acordo com o Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social (Lei n.º 107/2009, de 14.09) e com os demais diplomas legais de carácter supletivo, já acima identificados, que iremos apreciar as questões de índole adjectiva que eventualmente se suscitem neste recurso de contra-ordenação.

2. – Do objecto do recurso
- A imputação, no auto de notícia, a título de negligência, e punição, na decisão administrativa, a título de dolo.
- A nulidade da decisão administrativa, por contradição, ao fazer referência à imputação a título de negligência, mas aplicar a coima correspondente ao dolo.
- A declaração de nulidade da sentença e absolvição da arguida, por aditamento do ponto 38.º dos factos provados, em substituição da alínea mm) da decisão administrativa.
- A violação dos princípios da igualdade (artigo 13.º da CRP), do direito de defesa e da confiança e da segurança jurídica e de um processo equitativo (fair trail), previstos no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.

3. - Da imputação, no auto de notícia, a título de negligência, e punição, na decisão administrativa, a título de dolo.
3.1. - Nas conclusões do recurso, a arguida alega que, no auto de notícia, a infracção foi-lhe imputada a título de negligência, mas que na decisão administrativa foi punida a título de dolo.
3.2. - A questão da não inserção do elemento subjectivo no auto de notícia, foi apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Assento n.º 1/2003, Recurso n.º 467/2002, publicado no Diário da República, I Série-A, de 25 de Janeiro de 2003, no qual se pode ler:
“IV (a) — Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 10 dias após a notificação (artigos 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação [artigos 121.º, n.º 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações). Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.ºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações].”.
E fixou jurisprudência nos seguintes termos:
Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.° do regime geral das contraordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contraordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa”.
Este Assento teve como fundamento a ideia de que quando não sejam dados a conhecer todos os elementos relevantes para a determinação da sanção aplicável, nomeadamente no que respeita à verificação dos pressupostos da punição, sua intensidade e determinação da sanção aplicável, não se vê como possa existir, de facto, o direito de defesa plasmado no artigo 50.º do RGCC[2].
3.3. - O caso dos autos.
Do auto de notícia constava:
“32 - Estas situações configuram atitudes por parte da arguida com um notório objectivo de degradar a relação laboral e provocar desconforto e mal-estar na trabalhadora, contribuindo para o seu desgaste físico, mental e emocional, (…)”.
33 - Ao actuar de tal forma a arguida, causou à trabalhadora prejuízos graves, humilhando a mesma perante os demais trabalhadores e junto da própria Autoridade para as Condições do Trabalho, conduta que poderia ter evitado, tendo tido diversas oportunidades para o efeito.
34 – Ora, este comportamento configura uma situação de assédio, ao abrigo do n.º 1 do artigo 29.º, do Código do Trabalho, porquanto perturbou gravemente a trabalhadora, afetando a sua dignidade e criando-lhe um ambiente intimidatório, hostil, humilhante e degradante, com o propósito de a levar a despedir-se.”.
Na decisão administrativa, sob as alíneas hh), ii) e jj), foi dada como provada a matéria que constava nos pontos 32, 33 e 34 do auto de notícia.
Daqui decorre, pois, que, nesse aspecto, inexiste qualquer desconformidade entre o auto de notícia e a decisão administrativa notificada à arguida.
Dito de outro modo: a arguida não foi confrontada, na decisão administrativa, com factos novos, não constantes do auto de notícia, pois que, para além de outros, e como supra referenciado, as alíneas hh), ii) e jj) da decisão administrativa já constavam dos nºs 32, 33 e 34 do auto de notícia [tal como vieram também a constar da decisão judicial, como infra referido], os quais consubstanciam factualidade de onde se retirou o dolo.
E tanto assim é que, na impugnação judicial da decisão administrativa, a arguida pronunciou-se sobre essa matéria, nos seguintes termos:
Rejeita-se com veemência a imputação de assédio e a natureza dolosa com que a recorrente foi sancionada, quando na acusação/auto lhe era imputada a infracção a título de negligência (n.º 37 do auto).
Conclusão única: Não existe a infracção por que a recorrente foi sancionada”.
E indicou a prova que lhe aprouve.
Em síntese: na impugnação judicial da decisão administrativa, a arguida não só não invocou o vício da desconformidade, como, essencialmente, se prevaleceu do direito preterido, tendo-se pronunciado sobre as questões objecto do procedimento, negando, pelas razões que aduziu, a prática da infracção, mais tendo rejeitado a imputação do assédio e da natureza dolosa com que foi sancionada, e requerido diligências de prova.
Aliás, é de realçar, que, no auto de notícia, não é imputada a infracção, de forma taxativa, a título de negligência, pois, o que aí se diz é que a arguida “actuou, no mínimo, com negligência grosseira”.
Assim sendo, não só constava do auto de notícia/decisão administrativa a descrição da conduta culposa notificada à arguida, como esta entendeu, perfeitamente, o alcance da infracção imputada.
Inexiste, pois, o alegado vício da nulidade processual.

4. - Da contradição na decisão administrativa
Nas conclusões de recurso, a arguida alega contradição na decisão administrativa, por na sua alínea mm) fazer referência à imputação a título de negligência, mas depois aplicar-lhe coima correspondente ao dolo.
É certo que o teor do n.º 37 do auto de notícia - “Com esta conduta a autora actuou, no mínimo, com negligência grosseira, omitindo um dever objectivo de cuidado e diligência adequados, no sentido de evitar a produção daquele resultado, não procedendo com o cuidado a que, de acordo com as circunstâncias, está obrigada e de que é capaz.” -, foi transposto para a alínea mm) da decisão administrativa, decisão esta que, todavia, imputou a contraordenação a título de dolo, nela se consignado:
Os elementos constantes do auto de notícia permitem qualificar de dolosa a conduta da arguida.
Senão vejamos, o dolo é a consciência e vontade de praticar certo facto típico, ou de empreender certa actividade típica.
(…)
No caso em apreço e de acordo com os factos dados como provados estão presentes os elementos que constituem o dolo.
Assim, existe uma conduta persecutória intencional da entidade empregadora sobre a trabalhadora.
No entanto, não se pode deixar de dizer, com respeito, que a técnica constante da decisão administrativa não será, processualmente, a mais correta, pois que: (i)por um lado, o que se consignou na alínea mm) mais não é do que uma conclusão, pelo que não tem cabimento a sua inclusão em sede de decisão da matéria de facto, dela não devendo constar; e, (ii)por outro, se a sentença conclui, como conclui, pelo dolo, não faz sentido o que consta dessa alínea mm).
Não obstante, não se nos afigura que tal afecte a decisão administrativa do vício invocado pela arguida/recorrente.
Com efeito, a alínea mm), como conclusão jurídica que é, não devia constar da factualidade dada como provada; por outro, é indiscutível que resulta com toda a clareza da decisão administrativa que a infracção foi imputada a título de dolo, com fundamento, não nessa alínea mm), mas sim, como nela se refere, com base na restante factualidade também dela constante, imputação essa que a arguida bem entendeu, como decorre da impugnação judicial da decisão administrativa ao escrever, como supra referido: “Rejeita-se com toda a veemência a imputação de assédio e a natureza dolosa com que a recorrente foi sancionada, quando na acusação/auto lhe era imputada a infracção a título de negligência (nº 37º do auto).”
E mais se defende, invocando o que teve por conveniente, quanto aos factos que lhe foram imputados, designadamente quanto ao assédio, concluindo no sentido da inexistência da infracção e mais tendo requerido diversos meios de prova. E, daí e também, a eventual irregularidade da decisão administrativa se encontrar sanada, mais se concordando com o referido pelo Ministério Público nas suas contra-alegações ao dizer que “No entanto, a diferença de valores e de interesses protegidos no processo penal e no processo contraordenacional supra-descrita conduz a que, em sede de decisão administrativa, o que se pretende salvaguardar é que o destinatário da decisão perceba o teor da mesma, mesmo a nível do elemento subjetivo (o que, no caso concreto, como já referimos, é manifesto que aconteceu, sendo a própria recorrente a assumir que interiorizou que lhe estavam a ser imputados os factos a título doloso).”.
Inexiste, pois, a alegada contradição na decisão administrativa.

5.Da arguida nulidade da sentença recorrida
5.1. - O artigo 379.º - Nulidade da sentença – do CPP, dispõe:
1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º
3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.”. (negritos nossos)
Por sua vez, o artigo 374.º - Requisitos da sentença -, estabelece:
“1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;
d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.
2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém:
a) As disposições legais aplicáveis;
b) A decisão condenatória ou absolutória;
c) A indicação do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas;
d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal;
e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.
4 - A sentença observa o disposto neste Código e no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas.”. (negrito nosso)
Ora, basta ler a sentença recorrida, para se constatar que a mesma contem as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º do CPP.
Por outro lado, o artigo 1.º - Definições legais – alínea f), do CPP, dispõe:
Para efeitos do disposto no presente Código considera-se:
f) «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;”.
E o artigo 358.º - Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia -, determina:
“1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.” (negrito nosso).
No acórdão do STJ, de 20.12.2006, in www.dgsi.pt, é afirmado que “Constitui jurisprudência corrente deste STJ a orientação interpretativa dos arts. 1.º, al. f), e 358.º, n.º 1, ambos do CPP, segundo a qual inexiste alteração substancial dos factos da acusação ou da pronúncia quando na sentença melhor se concretizam os factos ali descritos, ou seja, quando os factos aditados se traduzem em meros factos concretizantes da actividade imputada sem repercussões agravativas ou diminuição das garantias de defesa do arguido.” (negritos nossos).
Por outro lado, como se pode ler no sumário do acórdão de 03.06.2014, do TRE, “I - As alterações nos factos que se traduzem em meras especificações de pormenor sem relevância na qualificação jurídica não integram alteração substancial; já as situações de crime alternativo (ou de alternatividade de crime) constituem alteração substancial de factos.”.
Tal sumário decorre da seguinte fundamentação:
Como se sabe, os factos que integram o dolo, os actos interiores ou internos, por respeitarem à vida psíquica raramente se provam directamente. Na ausência de confissão, em que o agente reconhece ter sabido e querido os factos do tipo objectivo, a prova do dolo far-se-á por ilações, a partir de indícios, através de deduções retiráveis de um comportamento exterior e visível do agente. O julgador resolverá, pois, a questão de facto apreciando se o agente agiu internamente da forma como o terá revelado externamente.
Dizer que os factos integrantes do tipo subjectivo de crime resultam frequentemente dos factos externos, não significa afirmar que assim o seja necessariamente, pois o dolo não se presume, a prova é “particularística sempre” e “o caso concreto pode ficar fora do caso típico” (Paulo de Sousa Mendes, A prova penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III).
No entanto, reportando-se aos factos do tipo objectivo, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, é natural e normal que os factos integrantes do dolo possam resultar daqueles.”. (negritos e sublinhados nossos)
É o que sucede no caso em apreço: uma mera especificação de pormenor, sem relevância na qualificação jurídica dos factos.
Dito de outro modo: o ponto 38.º da sentença limitou-se a concretizar, senão mesmo a “arrumar” ou a “sintetizar”, diremos, de uma forma técnico-jurídica mais correta e esclarecedora, o que já resultava claro da decisão administrativa, mormente, das suas alíneas hh), ii), e jj) e correspondentes pontos 32), 33) e 34) do auto de notícia, concretização essa sem repercussões agravativas ou diminuição das garantias de defesa da arguida.
As mencionadas als. hh), ii) e jj) da decisão administrativa [correspondentes aos nºs 32, 33 e 34 do auto de notícia] também ficaram a constar da sentença, mormente, dos seus pontos 34º [“34º- As situações supra referidas configuram atitudes por parte da arguida com (…) objetivo de degradar a relação laboral e provocar desconforto e mal-estar na trabalhadora, (…)”, contribuindo para o seu desgaste físico, mental e emocional, (…)”]; 35º [“35º- Ao atuar de tal forma a arguida, causou à trabalhadora prejuízos graves, humilhando a mesma perante os demais trabalhadores e junto da própria Autoridade para as Condições do Trabalho, conduta que poderia ter evitado, tendo tido diversas oportunidades para o efeito”]; 36º [“36º- Este comportamento perturbou gravemente a trabalhadora, afetando a sua dignidade e criando-lhe um ambiente intimidatório, hostil, humilhante e degradante, com o propósito de a levar a despedir-se.”].
E mesmo que, o ponto 38.º dos factos provados na sentença, dela não constasse, a restante factualidade nela contida, mormente os mencionados nºs 34º a 36º, permitem extrair a intencionalidade da conduta e a imputação subjectiva a título de dolo.
Na verdade, não se verificando, como não verifica, a alegada reformatio in pejus [pela simples razão de que a sentença recorrida confirmou – e não agravou - a decisão condenatória administrativa, ou seja, a condenação da arguida na coima de 305 U.C.´s, a título de dolo, pela prática de contraordenação muito grave, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do Código do Trabalho], a redacção do ponto 38.º da sentença recorrida traduz-se numa mera especificação de pormenor, de natureza clarificativa, sem qualquer relevância na qualificação jurídica dos factos e do valor da coima, que são, precisamente, iguais nas duas decisões – administrativa e judicial -, especificação clarificativa essa, que não se integra na previsão do artigo 358.º, n.º 1, do CPP, precisamente, por irrelevante para a decisão da causa, nos termos em que o foi.
É notório que “o propósito/intenção”, elemento subjectivo do dolo, está expresso no ponto 36.º dos factos provados na sentença recorrida - “Este comportamento perturbou gravemente a trabalhadora, afetando a sua dignidade e criando-lhe um ambiente intimidatório, hostil, humilhante e degradante, com o propósito de a levar a despedir-se” -, como já estava no ponto 34.º do auto de notícia – “este comportamento configurou uma situação de assédio, ao abrigo do n.º 1 do artigo 29.º do mesmo código, porquanto, perturbou gravemente a trabalhadora, afetando a sua dignidade e criando-lhe um ambiente intimidatório, hostil, humilhante e degradante, com o propósito de a levar a despedir-se”, e na alínea jj) da decisão administrativa (negrito e sublinhado nossos).
Deste modo, a arguida teve toda a possibilidade de defesa, apresentou todos os elementos de defesa que considerou pertinentes, incluindo no que reporta à imputação do propósito que a levou a comportar-se com a trabalhadora, nos termos descritos no auto de notícia e na decisão administrativa.
Em síntese: não se verifica nenhuma nulidade da sentença, das previstas no artigo 379.º, mormente, a do n.º 1, alínea b), por não verificada a previsão do artigo 358.º, n.º 1, ambos do CPP.

6. - Da violação dos princípios da igualdade (artigo 13.º da CRP), do direito de defesa e da confiança e da segurança jurídica e de um processo equitativo (fair trail), previstos no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.
6.1. - Nas conclusões 4.ª e 5.ª do recurso, a recorrente alega “a violação dos princípios da igualdade (artº 13º da CRP), do direito de defesa e da confiança e da segurança jurídica e de um processo equitativo (fair trail), previstos no artº 20º, nº 1, da CRP.”.
6.2. - O artigo 13.º (Princípio da igualdade) da CRP consagra:
“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”.
No dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, págs. 336 e segs, “O princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes do sistema constitucional global, conjugando dialecticamente as dimensões liberais, democráticas e sociais inerentes ao conceito de Estado de direito áemocrâtico e social (art. 2º). (...). Ao determinar a igualdade dos cidadãos perante a lei (nº 1, 2ª parte), a Constituição acolhe a versão historicamente adquirida da fórmula clássica do princípio da igualdade com que se pôs fim às desigualdades de nascimento e de estatuto jurídico no «antigo regime»: a igualdade no plano do direito (a «lei» está aqui no sentido de ordem jurídica), proibindo a diferenciação das pessoas em classes jurídicas distintas, com diferentes direitos e deveres, de acordo com o nascimento, a posição social, a raça, o sexo, etc.
Mas não fica por aí o alcance da protecção constitucional do princípio da igualdade, nem quanto ao seu conteúdo - que se veio enriquecendo - nem quanto ao seu âmbito, que se foi alargando. Ele é hoje um princípio disciplinador de toda a actividade pública nas suas relações com os cidadãos.”.
E o artigo 20.º - Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva - consagra:
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”.
Este preceito reconhece dois direitos, conexos, mas distintos: (i) o direito de acesso ao direito e (b) o direito de acesso aos tribunais.
Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, págs. 415, “O direito de acção ou direito de agir em juízo terá de efectivar-se através de um processo equitativo. O processo, para ser equitativo, deve, desde logo, compreender todos os direitos - direito de acção, direito ao processo, direito à decisão, direito à execução da decisão jurisdicional - atrás referidos (cfr. anot. X). Todo o processo - desde o momento de impulso da acção até o momento da execução - deve estar informado pelo princípio da equitatividade, através da exigência do processo equitativo (que já resultava de várias disposições constitucionais, mas que a LC nº 1/97 deu autonomia e carácter principal). O due process positivado na Constituição portuguesa deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa (exigência de um procedimento legislativo devido na conformação do processo), mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais. A densificação do princípio de processo equitativo pressupõe a análise dos dados jurisprudenciais, desempenhando aqui um papel de relevo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em torno do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), onde se consagrou expressamente o direito ao processo equitativo.”.
6.3. – Como supra referido, a ausência das garantias do direito de defesa não se reporta à simples omissão do acto de notificação para exercício de tal direito (reconduzível, por conseguinte, uma inexistência “física”), mas a ausência processual, no sentido de impossibilidade do exercício de tal direito.
No caso dos autos, não se verificou qualquer impossibilidade do exercício do direito de defesa por parte da arguida.
Na verdade, a arguida foi: (i) notificada do Auto de Notícia e respondeu; (ii) notificada da Decisão Administrativa e impugnou-a junto do Tribunal da 1.ª instância; (iii) notificada da audiência de julgamento e apresentou os elementos de prova que lhe aprouve, incluindo para provar que não agiu com culpa. E tendo tomado conhecimento da sentença, apresentou recurso da mesma para o Tribunal de 2.ª instância, alegando o que muito bem entendeu.
Se a arguida não conseguiu convencer o Tribunal da 1.ª instância de que não agiu com culpa, com o propósito/intenção de levar a trabalhadora a despedir-se, e com o objectivo de degradar a relação laboral e provocar desconforto e mal estar na trabalhadora, como decorre dos nºs 36 e 34 dos factos provados, é outra questão, completamente diversa da alegada violação do princípio da igualdade e do direito de defesa.
Improcede, pois, a alegada violação dos artigos 13.º e 20.º da CRP.
Em conclusão: improcedendo o recurso da arguida, é de manter a sentença recorrida.

IV – A Decisão
Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso ordinário interposto pela recorrente, B…, S.A., e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Após trânsito em julgado, comunique à ACT, com cópia certificada do mesmo.

Porto, 2019-12-10
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho
_______________
[1] Cf. arts. 548.º a 566.º do Código do Trabalho de 2009, tendo o seu artigo 560.º sido alterado pela Lei n.º 23/2012, de 25-06, com entrada em vigor em 1 de Agosto de 2012, convindo realçar que, de acordo com o artigo 12.º, número 3, alínea e) da Lei n.º 7/2009, de 12/02, que aprovou o atual Código do Trabalho, os artigos 630.º a 640.º do Código do Trabalho de 2003 (procedimento de contraordenações laborais) mantiveram-se em vigor até ao dia 30-09-2009, ou seja, até à entrada em vigor da mencionada Lei n.º 107/2009, de 14/09.
[2] Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10, aplicável às contraordenações laborais e da Segurança Social (COLSS) ex vi do art. 60.º deste diploma.