Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
53/17.2GFPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA PELO RESULTADO
TENTATIVA
UTILIZAÇÃO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
DIGNIDADE PENAL
Nº do Documento: RP2018061353/17.2GFPNF.P1
Data do Acordão: 06/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º28/2018, FLS.71-78)
Área Temática: .
Sumário: I - A utilização de um veículo automóvel consubstancia meio particularmente perigoso para atingir outrem na sua integridade física.
II - O uso de modo anormal e ilícito, e absoluto desrespeito pelas normas estradais e ao contrário do agir que elas impõem - pois que em vez de ceder passagem ao peão, ao aproximar-se da passadeira, acelerou e aumentou a velocidade, assim enganando o peão confiante e incauto – revela especial censurabilidade e perversidade.
III - Estando em causa o crime, qualificado, na forma de tentativa, não se pode falar do princípio da insignificância ou de adequação social por inexistentes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 53/17.2GFPNF.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. C. S. nº 53/17.2GFPNF do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo Local Criminal de Penafiel em que foi julgado o arguido B….

Após julgamento, por sentença de 15/2/2018 foi decidido:
“Tudo visto e ponderado, o tribunal decide:
a) Condenar o arguido B… pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de ofensa à integridade fisica qualificado previsto e punido pelo artigo 143° e 145°, nº l , al. a) nº2 e 132°, nº2, al. h) do Código Penal, na pena de um 10 meses de prisão, substituída por 300 dias de multa, à taxa diária de €7,00, no montante global de €2.100,00 (dois mil e cem euros).
b) Condenar o arguido nas custas do processo (artigos 513° e 514° Código de Processo Penal), fixando-se em 2 U.C.'s a taxa de justiça.”

Recorre o arguido o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
1. O tribunal a quo considerou o ora arguido/recorrente foi autor material do crime, na forma tentada, de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo artigo 143° e 145° n° 1 al. a), n° 2 artigo 132 al. h) do CP e, por isso, condenou-o na pena de prisão de 10 meses de prisão, substituída pelo pagamento de uma multa no montante global de €2.100,00.
2. O crime de ofensa à integridade física, na forma tentada, é imputado ao recorrente é qualificado com fundamento na previsão da al. h) do n.° 2 do art. 132°, no segmento de utilização de meio particularmente perigoso.
3. As circunstâncias enumeradas no n.° 2 do artigo 132°, suscetíveis de revelar esse "algo de especial", são meros indícios, indicadores ou referenciais que poderão ser afastados ante condutas que, embora identificando-se com as mesmas, não revelam, contudo, a exigida especial perversidade ou censurabilidade, por ocorrerem circunstâncias extraordinárias que destaquem claramente a sua ilicitude ou culpa do exemplo padrão.
4. Todavia, não é pelo facto de se verificar em concreto uma qualquer das circunstâncias referidas nos exemplos padrão ou noutras substancialmente análogas que fica preenchido o tipo, deduzindo-se daquelas a especial censurabilidade ou perversidade; é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade.
5. Com efeito, a apetência do meio para ser particularmente perigoso tem de ser aferida e correlacionada com o ato ofensivo ou lesivo da integridade física e não com o ato ofensivo ou lesivo da vida.
6. Meio particularmente perigoso é, assim, sinónimo de meio muito desproporcional a causar o resultado pretendido pelo agente, ou seja, que para além deste resultado visado, coloca ou tem virtualidade de colocar em perigo outros bens jurídicos, em enorme desproporção com aqueles que era necessário e suficiente colocar em perigo para obter o fim pretendido pelo agente. É, pois, meio diferente dos instrumentos usuais de agressão, que são aptos a produzir o resultado querido pelo agente e que são insuscetíveis de colocar em perigo outros bens que não são objeto de referência do dolo do agente. É aquele meio que, quando usado na prática de ofensa à integridade física, encerra uma potencialidade de dano muito superior aos meios e instrumentos normalmente usados na prática de agressões físicas.
7. No entanto, tais características não podem ver-se em abstrato, mas sim em concreto, não devendo atender-se unicamente à espécie ou características do instrumento, mas a um conjunto de elementos, factos e circunstâncias de que resulta o modo como o mesmo foi usado, para daí se inferir se tal uso era suscetível e adequado a causar graves danos para a saúde ou fazer perigar a vida.
8. Volvendo ao caso concreto, um veículo automóvel pode efetivamente ser utilizado e revelar-se como meio particularmente perigoso, posto que é adequada, em abstrato, a causar lesões mortais ou ferimentos graves. Mas não se pode considerar tal facto, por si só, como revelador de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
9. Com efeito, haverá ainda que ponderar todas as circunstâncias que rodearam o caso concreto, porquanto será desse conjunto, no contexto da atuação do agente, que se há de retirar essa especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, um grau de culpa agravado. Em suma, haverá sobretudo que ter em conta a forma como foi utilizado.
10. Ora, no caso em apreço, não existe qualquer prova relativamente ao modo como o veículo foi utilizado, além do que a ofendida não sofreu quaisquer lesões.
11. Do circunstancialismo que envolve a acção, não se retira uma especial culpa ou culpa agravada na utilização do veículo.
12. Também, como se viu, não só o meio utilizado - veículo automóvel - não foi capaz de produzir qualquer lesão efectiva.
13. Neste contexto, não custa aceitar então, que a sua utilização não traduza o emprego de um meio particularmente perigoso.
14. Por tudo isto, no nosso entender a mera circunstância da utilização de um veículo automóvel não revela só por si uma especial perigosidade do instrumento utilizado, para além do que resulta da sua própria natureza. Efetivamente, esses elementos permitem concluir, com a necessária segurança, que a ter existido, a tentativa de agressão perpetrada não foi suscetível e adequada a causar graves danos para a saúde ou fazer mesmo perigar a vida da ofendida.
15. Assim, não subsistem dúvidas sobre o NÃO preenchimento da circunstância qualificativa em apreço, traduzida na utilização de meio particularmente perigoso para, na forma TENTADA, perpetrar a ofensa à integridade física, mostrando-se, pois, incorreta a qualificação jurídica dos factos feita na sentença recorrida.
16. Nos termos supra expostos, deveria o tribunal a quo ter desqualificado o crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143°, n° 1, 145°, n.° 1, alínea a) e n° 2, com referência ao artigo 132°, n° 2, alínea h), 14°, n° 1 e 26° todos do CP.
17. O que impõe a absolvição do arguido, relativamente à prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143°, n° 1, 145°, n° 1 al. a) e n° 2, com referência ao artigo 132°, n° 2 al. h) do CP.
18. No caso em apreço e atento ao exposto, a ilicitude, dentro da moldura penal apurada, é muito diminuta, como são também muito diminutas as exigências de prevenção geral.
19. Já as exigências de prevenção especial mostram-se muito atenuadas, pois o arguido é considerado pessoa pacífica, trabalhadora, bem inserida profissional e familiarmente e estimada no seu meio social; não regista antecedentes criminais. Tendo o ora arguido auferido, em 2016, o montante de €5.418,29.
20. Assim, atento ao exposto o crime deve ser convertido no seu tipo base, pelo que ficamos com um crime de ofensa à integridade física simples na forma tentada. Nos termos do artigo 143° do Código Penal a pena prevista para este ilícito, tendo em conta a atenuação especial, prevista no n.° 2 do artigo 23° do Código Penal e pela aplicação do artigo 73° do mesmo Diploma, baliza-se entre um mês e uma ano.
21. Assim, nos termos do artigo 23.°, n.° 1, do Código Penal e porque o artigo 143.° não prevê a punibilidade da tentativa, deveria o Recorrente ter sido absolvido deste crime, por inexistente (cfr. art.°s 143.°, n.° 1, 23.°, n.°s 1 e 2, e 73.°, n.°1 do Cód. Penal).
22. Esteve mal o Tribunal ao condenar o Recorrente tendo errado na determinação da norma devendo ter aplicado a constante do artigo 143° e do artigo 23° do Código Penal.
23. Nestes termos, deverá pois procede este segmento do recurso, absolvendo-se o arguido.
24. Não obstante, sempre se dirá que no caso em apreço estamos perante um crime de crime material e de dano, cujo bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana.
25. Contudo, a o ofensa ao bem jurídico - ao corpo ou à saúde - não poderá ser insignificante. Sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta.
26. A apreciação da gravidade da lesão não se deve deixar fundar em motivos e pontos de vista pessoais do ofendidos, necessariamente subjectivos e arbitrários, antes deverá partir de critérios objectivos, se bem que não perdendo totalmente de vista factores individuais.
27. O caso concreto, porém, convoca, ao nível do preenchimento do tipo de ilícito, a temática das chamadas causas de atipicidade ou de exclusão da tipicidade, ou seja, na definição de Luzón Pena - [Diego-Manuel Luzón Pena, Causas de Atipicidade in AAVV, Problemas Fundamentais de Direito Penal. Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada Editora-2002, p. 111 e sgs], que seguimos de parte nesta matéria.
28. Significa o princípio da insignificância que não podem ser penalmente típicas ações que apesar de, em princípio, encaixarem numa descrição típica e de conterem algum desvalor jurídico, ou seja, que não se encontrem justificadas e não sejam plenamente lícitas, apesar disso no caso concreto o seu grau de ilicitude é mínimo, insignificante: porque, de acordo com o seu caráter fragmentário, as condutas penalmente típicas só devem ser constituídas por ações que sejam gravemente antijurídicas, não por factos cuja gravidade seja insignificante.
29. Referindo-se especificamente aos crimes de ofensa à integridade física, que aqui nos interessam, diz C… que "todo o mau trato através do qual o agente [passivo] é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante", o que nos leva à conclusão de que face à factualidade provada e designadamente ao facto da ofendida não ter descrito quaisquer danos e lesões que tivesse eventualmente sofrido pela ação do arguido, não existem quaisquer relatório periciais e/ou médicos juntos no processo que provem que a ofendida padeceu de qualquer tipo de lesões ofensa na sua interidade física e/ou saúde..
30. Isto posto, salvo melhor opinião, atenta matéria dada como provada e aquela que não resulta da prova dos autos , não pode deixar de reputar-se insignificante do ponto de vista da afetação da integridade física, enquanto bem jurídico tutelado pelo crime pelo qual vem condenado a conduta do ora arguido.
31. Assim, concluímos que a concreta configuração da acção do arguido/recorrnete não teve nem dimensão nem intensidade, do ponto de vista da afetação da integridade física e da qual não resultaram quaisquer consequências para a ofendida, impõem que se considere não ser a conduta do arguido suficiente para preencher materialmente o tipo legal de ofensa à integridade física, dada a insignificância do respetivo grau de ilicitude.
32. Isto é, ao preenchimento aparente do tipo não corresponde, no caso sub judice, a concretização do juízo de ilicitude material subjacente à sua formulação, pelo que se revela atípica a conduta do arguido recorrente, impondo-se a sua absolvição do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos artigos 143.° e 145°, n° 1, al. a) por referência ao art, 132.°, n° 2, al. h), ambos do Código Penal, pelo qual o arguido vinha condenado na pena de 10 meses de prisão .

O Mº Pº respondeu defendendo a improcedência do recurso
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o artº 417º2 CPP
O arguido respondeu reiterando os fundamentos do seu recurso

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta da sentença recorrida (transcrição):
“II - Fundamentação
A) Factos Provados
1. No dia 01.03.2017, na Estrada Nacional (E.N.) …, junto ao Centro Comercial "D…", sito …, em Penafiel,
2.Cerca das 16h30m, e quando a ofendida E… se encontrava do lado oposto a tal Centro Comercial, preparando-se para atravessar a faixa de rodagem na passagem para peões assinalada aí existente,
3. Surgiu de forma imprevista o arguido B… conduzindo o seu veículo com a matrícula .. – IR - .., e quando a ofendida já se encontrava na passadeira, ao ver esta última, aquele acelerou a marcha do automóvel por si conduzido, na direção da E….
4. Só a não atingindo, em virtude da E… ter de imediato recuado, dando um passo atrás.
5. O arguido não parou e seguiu a sua marcha.
6. O arguido agiu com o propósito de molestar o corpo e a saúde de E… com o automóvel de matrícula .. – IR - .. por si conduzido no dia 01.03.2017, o que não conseguiu por motivos estranhos à sua vontade.
7. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, apesar de saber que o automóvel é um meio particularmente perigoso para lesar a integridade fisica e que a sua conduta era proibida e punida penalmente.
8. Tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei.
9. O arguido não tem antecedentes criminais.
10. Em sede de IRS respeitante a rendimentos do ano de 2016, o arguido declarou o montante de €5.418,29.
11. O arguido encontra-se a trabalhar na Bélgica.
*
B) Fundamentação de Facto
Os factos considerados provados foram descritos pela ofendida. De facto, as declarações da ofendida foram bastantes para convencer o tribunal da veracidade dos factos imputados ao arguido, uma vez que explicou, de forma coerente, sequencial e sem hesitações, onde estava, que os carros que vinham no sentido oposto tinham parado para ela atravessar na passadeira e, quando estava a meio, o arguido em vez de parar, acelerou na sua direção e só não a atropelou porque ela andou para trás, tendo os outros veículos que estavam no local começado a apitar ao arguido.
A ofendida não teve dúvidas na identificação do arguido, uma vez que o conhecia por ser namorado de uma colega de trabalho com quem ela tinha problemas pessoais, e porque conhecia o carro do arguido (sendo que de fls. 26 resulta que aquele veículo era propriedade do arguido). A ofendida refere que viu perfeitamente quem conduzia o carro porque passou mesmo à sua frente.
Ora, atendendo a que as declarações da ofendida foram prestadas de forma convincente (como supra se explanou) e inexistindo elementos de prova nos autos que infirmam as suas declarações, o tribunal considerou os factos provados.
A ausência de antecedentes criminais do arguido resultam do CRC junto aos autos.
Os seus rendimentos declarados referentes ao ano de 2016 resultam do documento de fls. 66 e seguintes, sendo que do requerimento de justificação de falta do arguido à segunda sessão de julgamento resulta que o mesmo se encontra a trabalhar na Bélgica.”
*
São as seguintes as questões a apreciar:
- Qualificação jurídica / circunstância qualificativa / meio particularmente perigoso
- A tipicidade / princípio da insignificância da lesão
*
O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), mas há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in DR. I-A de 28/12 - tal como, mesmo sendo o fundamento de recurso só de Direito: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou o erro notório na apreciação da prova (Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 do seguinte teor :“ é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100 - e constitui a chamada “ revista alargada” como forma de sindicar a matéria de facto.
Tais vícios não são alegados em si mesmo e vista a decisão recorrida também não os vislumbramos.

Invoca o arguido que o crime deve ser desqualificado, pois que não ocorre a circunstância qualificativa de especial perigosidade do meio utilizado.
Conhecendo:
O arguido foi condenado como autor material e na forma tentada, de um crime de ofensa à integridade fisica qualificado previsto e punido pelo artigo 143° e 145°, nº l, al. a) nº2 e 132°, nº2, al. h) do Código Penal, porque quis atingir a ofendida na sua integridade física, utilizando o veículo automóvel, como meio particularmente perigoso e revelando por esse meio uma especial censurabilidade ou perversidade.
Não é apenas a Doutrina e a Jurisprudência que são concordantes em considerar que as alíneas do nº 2 do artº. 132º CP são exemplificativos e não são de funcionamento automático e referem-se á culpa (cfr. Ac. STJ 5/1/86 BMJ 354º, 285º de 9/11/94 (STJ) III, 239, Acs. STJ 26/4/89 BMJ 386, 273 Actas da Comissão Revisora e F. Dias Parecer, C.J. XII, 4, 51 e ss), mas também o legislador o reconhece, no preâmbulo do DL 101 A/88, sendo certo também que aquelas alíneas contêm circunstâncias susceptíveis de revelar especial perversidade ou censurabilidade (do artº. 132º 2 C.P), e defende-se que pode ocorrer a qualificação do crime sem que se preencha qualquer uma das circunstâncias qualificativas ali previstas, como se refere no Ac. STJ 7/7/94 CJ STJ, 94, 3, pág.195, e STJ /11/06 CJ XIV, STJ, III, pág.218 (no entanto, cf. ac. do TC 852/ 2014 e em face da sua doutrina o Ac do STJ de 25/03/2015, CJ, Acs do STJ, XXIII, tomo I, pg. 232 e www.dgsi.pt) entendimento que não há razões para alterar face ao C.P. 1995.
A ideia da especial censurabilidade e perversidade re­sulta do facto de o autor de um ilícito não responder a certas exigências feitas pelo Direito à personalidade do homem - F. Dias, Liberdade, Culpa e Dtº Penal, pág. 176.
Diz-se na sentença recorrida:
O bem jurídico protegido pela incriminação é a integridade da pessoa humana, fisica e psíquica, a qual merece, reconhecimento constitucional, como acima se faz referência. Trata -se de um crime material e de dano cujo resultado se subsume à lesão do corpo ou da saúde de outrem.
A ação típica objetiva mostra-se consumada mediante a produção de uma ofensa no corpo ou na saúde, entendendo-se aquela primeira lesão como "todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem- estar físico de uma forma não insignificante" (C… ln Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 205).
A conduta que preenche objetivamente este tipo de ilícito basta-se com um qualquer contacto que provoque dor, desconforto ou incómodo, com intenção de causar tal. Por maioria de razão, tal tipo de ilícito dá-se como preenchido quando, estão em causa atuações que envolvem a diminuição da substância corporal, de que é exemplo a perda de órgãos; lesões de substância corporal, como nódoas negras, cortes; alterações físicas e, outrossim, perturbações de funções físicas (crime de realização instantânea).
Ora, resultando provado que o arguido pretendia atingir a ofendida com o carro que conduzia, causando-lhe, necessariamente, lesões e dores, é inequívoco que a conduta do arguido se subsume na previsão normativa em referência - na forma tentada (só não conseguiu os seus intentos por razões alheias à sua vontade - artigo 22°, nº1 e 2 do C.P.).
Nos termos do disposto no artigo 145°, nº1, al. a), se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, a pena será agravada.
O nº 2 daquela disposição legal estabelece que ((são suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n °2 do artigo 132°".
Por sua vez, a al. h) daquela norma prevê, como circunstância apta a revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, "utilizar meio particularmente perigoso".
Importa, então, verificar se o instrumento que o arguido utilizou para agredir o assistente deve ser considerado particularmente perigoso.
Trata-se de um automóvel. Com o mesmo o arguido pretendia atingir a ofendida.
Atentos estes factos provados, quase que é desnecessário referir os motivos pelos quais só se pode concluir que se trata de um instrumento particularmente perigoso. De facto, resulta claro que o instrumento utilizado tem a potencialidade de causar lesões muito graves e extensas quando utilizado com o propósito de ofender o corpo de outrem.
As características deste instrumento fazem dele uma potencial arma letal, uma vez que facilmente pode causar a morte ou ferimentos muito graves.
As circunstâncias previstas no artigo 132° nº2 do Código Penal, para o qual remete o artigo 145° nº2 do mesmo diploma, não qualificam de forma automática o crime de ofensa à integridade fisica. Tratam-se de exemplos¬padrão de uma situação especial perversidade ou censurabilidade do agente.
((A especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer dos fatores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de atuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada (cf Fernando Silva, Direito Penal Especial Crimes Contra as Pessoas, pág. 48 e ss.); ou, como entende Teresa Serra, citando Sousa Brito (Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 64), a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.
Por sua vez, a especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável; a decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis; o agente toma a decisão sob grande reprovação, atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento, deixa-se motivar por fatores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto (cf Fernando Silva, ibidem, pág. 51); ou, como refere Teresa Serra (ibidem, pág. 64), a lei tem aqui em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, daí que o acento tónico ou componente da culpa se refira aqui ao agente" - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18/10/2008, processo 06P2679, disponível em www.dgsi.pt.
Resta, então, verificar se o arguido agiu com especial censurabilidade ou perversidade.
Só podemos concluir que sim.
Isto porque, o arguido, sem que nada o justificasse, lançou o seu veículo automóvel na direção do corpo da ofendida, pretender causar-lhe lesões.
Ou seja, não se bastando em utilizar um meio particularmente perigoso, porque potencialmente letal, o arguido decidiu praticar os factos sem que nada o fizesse prever.”
Ora que o arguido utilizou o veículo automóvel que conduzia para desse modo atingir a integridade fisica de outrem não há dúvida, e que tal não ocorreu porque a visada recuou na sua acção de atravessar a via também não, pois tais factos estão provados e não são contestados.
O veículo automóvel consubstancia meio especialmente perigoso para atingir outrem na sua integridade fisica?
Parecemos evidente que sim, não só pela sua aptidão e capacidade lesiva e efeitos do seu embate, como pela sua abrangência (largura e certeza no atingir o visado) e pela velocidade e surpresa que permite ao lesante e menor defensabilidade perante o seu uso por parte do visado, para além de poder ser usado com uma aparência de legalidade ou encobrir uma acção dolosa com aparência de negligencia (mero acidente de viação), e depois não é o meio próprio ou normal para atingir outrem na sua integridade fisica, nem é esse o seu uso, face à sua natureza de meio de locomoção e não meio de agressão.
Importa saber se sendo um meio particularmente perigoso (convirá salientar que a condução de veiculo automóvel na via publica é em si mesma uma actividade perigosa – ac. STJ 17/6/2010 www.dgsi.pt) ele foi usado como tal, de modo a preencher a circunstância qualificativa em causa.
E não há duvida que sim, pois que o arguido conduzia o veiculo e ao avistar a ofendida na passadeira a atravessar a via acelerou o veiculo de modo a poder apanhá-la na via e a atingi-la com ele, nela embatendo (atropelando-a) e causando-lhe lesões emergentes desse embate, o que não ocorreu porque a visada se apercebeu e retrocedeu e o arguido continuou a sua marcha.
Daqui resulta à evidencia que o arguido usou de modo anormal e ilícito o veiculo que conduzia como o fez em absoluto desrespeito pela normas estradais (ceder passagem ao peão, parando se necessário, e sempre reduzindo a velocidade ao aproximar-se de uma passadeira,) e ao contrario do agir que elas impõem pelo que ao acelerar e aumentar a velocidade ao aproximar-se da passadeira porque vê a ofendida a iniciar essa travessia não apenas faz um uso objectiva e subjectivamente de um meio especialmente perigoso para o cometimento do crime de ofensa à integridade física como revela desse modo uma especial censurabilidade ou perversidade, enganando um peão confiante e incauto, ofendendo desse modo o principio da confiança no cumprimento das regras estradais, aproveitando esse facto para o cometimento de um crime gravemente ofensivo da integridade fisica, pela sua potencialidade lesiva.
Expressa-se o STJ no ac 3/03/2010, proc. 242/08.0GHSTC.S1, in www.dgsi.pt “I - No crime de homicídio, a verificação dos exemplos padrão não faz funcionar automaticamente o tipo de culpa agravado a que respeitam. A sua ausência, por seu turno, não postula necessariamente a não configuração do crime qualificado, desde que se detecte especial censurabilidade e perversidade do agente, embora a não verificação de qualquer dos exemplos padrão constitua forte indício do crime de homicídio simples. II - A especial censurabilidade, documenta no facto, referentemente ao agente, uma forma da respectiva realização especialmente desvaliosa. A especial perversidade evidencia que o agente na materialização do facto é portador de qualidades altamente desvaliosas ao nível da personalidade, merecedor de um juízo de culpa agravado, neste sentido (cf. Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I volume, pág. 29). III - A perigosidade de certos instrumentos não releva em muitos casos a se, mas em função conjugada das circunstâncias concomitantes, envolventes, ao seu uso; noutros casos a perigosidade avulta sem mais, autónoma e isoladamente, como por exemplo, uma granada, um engenho explosivo e outros. IV - Um automóvel, usado na prática da agressão, agrega objectivamente a si uma perigosidade muito superior aos demais meios de agressão letal, normalmente usados, pela indefesa que causa a um peão, indefesa maior quando olhada a aceleração previamente imprimida ao automóvel de forma a embater violentamente na vítima por forma a que o processo letal em curso não falhasse, colocando em inevitável, iminente e previsível risco a vida humana”.
Assim o arguido utilizou o veículo automóvel como meio particularmente perigoso para o prática do crime que decidira cometer e revelando a especial censurabilidade e perversidade exigida pelo tipo legal.
Improcede assim esta questão, dada a ausência de razões para desqualificar o crime em análise.

No que à segunda questão respeita, é manifesto que o arguido não tem razão, pois se fosse como diz não haveria tentativa de crimes puníveis, os quais por natureza não podem causar o dano ou lesão que a consumação do crime exige.
Na verdade alega o arguido que não ocorreu nenhuma lesão ou dano e qualquer conduta que não gere um dano ou este seja insignificante não deve ser típica, pois o crime impõe a ocorrência de um dano não insignificante.
Sem razão.
Tendo por base o artº 18º CRP, que impõe a mínima restrição aos direitos fundamentais individuais (e a máxima liberdade), e que no âmbito do dto penal constitui o preceito enformador da criminalização das condutas, por essa via, vem-se defendendo que condutas sem danosidade ou sendo esta insignificante, não têm dignidade penal, não devendo por isso ser criminalizadas, ao lado daquelas em que inexiste um bem jurídico a defender pela lei penal.
No caso em análise afigura-se-nos manifesto que o recorrente não tem razão, desde logo por incumbir ao legislador ordinário, mandatado pela CRP para delimitar o âmbito das condutas a criminalizar, e que por essa via define o que considera passível de ser punido criminalmente (definir o que é crime).
A lesão do bem jurídico causada pelo crime, e que a lei considera irrelevante, resultante da lesão de acordo com a aceitabilidade social etc., nada tem a ver com o princípio da insignificância do dano causado, mas com a adequação social ou exclusão da ilicitude pela ordem jurídica considerada na sua globalidade (v.g. artº 31º CP), sem que daí resulte qualquer inaplicação normativa por (in)constitucional.
Por fim a incriminação no caso e a lesão subjacente á mesma, tem em vista o facto consumado e (o resultado) visado com o acto lesivo praticado, e não com o facto que evitou esse resultado pretendido em que se constitui a tentativa.
Assim estando em causa uma ofensa corporal grave visada pelo arguido com a sua actuação não se pode falar do princípio da insignificância ou de adequação social, porque inexistente.
Improcede assim esta questão
Na ausência de outras questões de que cumpra conhecer improcede o recurso;
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Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e em consequência mantém a sentença recorrida.
Condena o arguido no pagamento da taxa de justiça de 5 Uc e nas demais custas.
Notifique.
Dn
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Porto 13/06/2018
José Carreto
Paula Guerreiro