Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
131/12.4TELSB-P.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO APENSOS A PROCESSO CRIME
RECURSO
INCOMPETÊNCIA DA SECÇÃO CRIMINAL DA RELAÇÃO
Nº do Documento: RP20211104131/12.4TELSB-B.P1
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: São competentes, em razão da matéria, para julgar um recurso interposto num processo de embargos de terceiro, que corre termos na instância Central Criminal do Porto, por apenso a um processo de natureza criminal, as secções cíveis do Tribunal da Relação do Porto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 131/12.4TELSB-P.P1

Ao abrigo do disposto no art.417º nº 6 do Código de Processo Penal, profere-se a seguinte:

DECISÃO SUMÁRIA:

1. Relatório
B…, Recorrente nos autos, veio interpor recurso do despacho proferido em 08/06/2021, que indeferiu liminarmente os embargos de terceiro por si deduzidos, considerando-os extemporâneos, nos seguintes termos:
“B… veio, ao abrigo do disposto no artigo 342º, do C.P.Civil, deduzir embargos de terceiro, relativamente à decisão proferida em datada de 9 de Fevereiro de 2021, no âmbito do Apenso K, de arresto do veículo automóvel de marca Porsche, modelo …, com a matrícula ..-FF-.., invocando para tal, em suma e em síntese, apesar de tal veículo estar registado no nome do falecido C…, e agora pertencer à sua herança indivisa, é sua pertença.
Importa assim e antes de mais aferir da regularidade da instância, uma vez que a mesma constitui uma questão prévia que poderá tornar inútil a subsequente tramitação.
Efetivamente por decisão proferida em 9 de Fevereiro de 2021, foi determinado, ao abrigo do disposto no artigo 228º, do C.P.Penal, o arresto preventivo dos bens no mesmo identificados, dos quais, e para o que o caso interessa, do veículo da marca Porsche …, de matrícula ..-FF-.., no valor de 60.000,00€, o qual se encontrava apreendido desde 19 de Novembro de 2013, como resulta de fls. 3540 dos autos principais.
Como é sabido, o arresto decretado no âmbito de processo crime é realizado nos termos da lei processual civil, como decorre claramente do artigo 228º, nº1, do C.P.Penal. O referido 228, do C.P.Penal, remete o decretamento do arresto para as leis processuais civis, mais consagrando o nº4, do referido normativo que em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil, mantendo-se, no entanto, o arresto, decretado.
Assim o artigo 342º, do C.P.Civil, prevê mecanismos de reacção ao decretamento de um arresto, nos casos em que não houve audiência prévia, consubstanciando-se em oposição mediante embargos de terceiro, dispondo o referido normativo que:
“Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.”
Todavia o artigo 344º, nº2, do C.P.Civil, consagra o prazo de 30 dias, mediante petição, subsequentes aquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa.
Ora no caso, e como o próprio requerente o afirma na sua petição, o bem cuja propriedade se arroga foi apreendido em 19 de Novembro de 2013, tendo desde então vindo a ser administrado pelo GAB, momento em que teve conhecimento de que a sua posse/propriedade ficou ofendida, o que significa dizer que os presentes embargos são manifestamente extemporâneos, pois o acto judicial de apreensão ocorreu nesse momento constituindo o arresto um meio de garantia patrimonial a fim de, no caso, assegurar o pagamento das quantias fixadas no acórdão, ao que acresce, de qualquer, que a eventual procedência dos presentes embargos não acarretaria efeito útil ao ora requerente, o qual dispõe de outros meios legais a fim de ver satisfeita a sua pretensão de reconhecimento de propriedade.
Assim e por todo o exposto indefiro, por extemporaneidade, os embargos de terceiro ora deduzidos”.
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Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o embargante B…, para este tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
CONCLUSÕES:
I- Pelo presente recurso pretende o Recorrente manifestar a sua discordância contra o douto despacho proferido em 08/06/2021, que indeferiu liminarmente os embargos de terceiro deduzidos pelo Recorrente, considerando-os extemporâneos.
II- Entende o Recorrente, salvo o devido respeito que, os embargos de terceiro por si deduzidos deveriam ter sido admitidos, porquanto foram deduzidos, no prazo legal.
III- Estabelece o artigo 344.º n.º 2 do C.P.C. que “O embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas.”
IV- In casu, a apreensão do veículo foi ordenada em 19/11/2013 e posteriormente, foi decretado o arresto preventivo do veículo em 05/08/2016.
V- Por acórdão datado de 20/11/2020, no ponto D2) e F2) do dispositivo, ordenou-se a extinção e o levantamento do arresto decretado quanto ao veículo acima identificado, bem como a sua restituição ao falecido arguido C…, sem prejuízo do disposto no artigo 34.º n.º 1 als. b) e d), do Regulamento das Custas Processuais.
VI- O ponto D2) e F2) do dispositivo do acórdão, não foi objecto de recurso, tendo nessa parte transitado em julgado (trânsito em julgado parcial), antes de ser decretado o arresto preventivo em 09/02/2021.
VII- Tendo transitado o acórdão, na parte em que ordenou a extinção e o levantamento do arresto quanto ao veículo supra identificado, a ofensa ao direito de propriedade do Recorrente, cessou nesse preciso momento.
VIII- O novo arresto preventivo decretado em 09/02/2021, sobre o veículo, constituiu uma nova ofensa ao direito de propriedade do Recorrente.
IX- Ora, tendo o Recorrente tido conhecimento da existência de novo arresto preventivo decretado em 09/02/2021, apenas em 26/05/2021, e tendo deduzido embargos de terceiro em 27/05/2021, forçoso será concluir que os embargos de terceiro deduzidos são tempestivos.
X- Em face do exposto, o douto despacho recorrido violou o artigo 344.º n.º2 do C.P.C., devendo ser revogado e ser substituído por outro que admita os embargos de terceiro deduzidos pelo Recorrente, por serem tempestivos.
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Por despacho proferido em 5.07.2021 foi o recurso regularmente admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que o recurso interposto pelo arguido deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
1 – O recorrente / requeridos vêm recorrer do douto despacho proferido nos autos de Embargos de Terceiro – Apenso P dos autos, em 08.06.2021, pelo qual se indeferiu, por extemporaneidade, os embargos de terceiro deduzidos, delimitando o seu recurso, em súmula, à questão da tempestividade dos embargos de terceiro deduzidos, por violação do artigo 344º, nº2, do C.P.Civil;
2 - Refere-se o seu pedido ao arresto de veículo automóvel no Procedimento Cautelar de Arresto – Apenso K dos autos, em 09.02.2021, pelo qual se julgou procedente o pedido de arresto preventivo de bens ali deduzido pelo Ministério Público, entre os quais o veículo de C… ora em causa, e consequentemente, se decretou o arresto preventivo para garantia do pagamento do valor em que os arguidos/requeridos foram condenados a pagar ao Estado, ex vi das disposições conjugadas nos art.ºs 228.º, do Código de Processo Penal, 110.º, do Código Penal e 391.º a 393.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC);
3 - Resulta dos autos que o veículo automóvel de marca e modelo “Porsche …”, de matrícula ..-FF-.. foi apreendido no âmbito destes autos, em fase de Inquérito, mas veio a ser já objeto de ARRESTO, entre outros bens do mesmo requerido, C…, conforme requerimento do Ministério Público de 21 de Julho de 2016, no âmbito do Apenso B – Procedimento Cautelar, por despacho de 25-07-2016, nos termos e ao abrigo do disposto no artº. 10º, nºs 1, 2 e 3, com referência ao nº. 1 do artº 7º, e artº 1º - 1 al. a), todos da Lei nº5/2002, de 11 de Janeiro.
4 - Ora, não pode o recorrente enquanto alegado terceiro face ao referido veículo, contornar o facto de que o douto acórdão proferido em primeira instância, condenou o falecido C… a título de perda de valor de vantagem criminosa, nos termos aplicáveis do artigo 110º, nº4, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei nº30/2017 de 30.05, constante do dispositivo do acórdão proferido em primeira instância, nos seguintes termos:
1.1. O arguido C… (ora representado pela herança): a quantia de € 22.772.346,53 (vinte e dois milhões, setecentos e setenta e dois mil trezentos e quarenta e seis Euros e cinquenta e três cêntimos) – cfr. C1.2) do dispositivo;
1.2. Os arguidos C…/D…/E…, S.A. solidariamente, a quantia de € 6.817.996,51 (seis milhões, oitocentos e dezassete mil, novecentos e noventa e seis Euros e cinquenta e um cêntimo) – cfr. C1.3) do dispositivo.
5 - Assim sendo, temos que, de acordo com a decisão penal proferida nos autos principais, ainda que não transitada, constitui-se um crédito previsível do Estado sobre os referidos arguidos, pelos supra referidos montantes totais, em virtude da prática dos enumerados crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, nº1, al. a) e 104º, nº1 (pena aplicável) e nº2, al. a), do RGIT, na redação conferida pela Lei nº 64-B/2011, de 30.12; de burla tributária, p. e p. pelo art. 87º, nºs 1 e 3, do RGIT: e de branqueamento de capitais, na forma consumada, p. e p. pelo art. 368º-A, nºs 1, al. j), 2, 3 e 4 do Código Penal.
6 - No âmbito do Apenso K operou-se a conversão do arresto tendo em conta o título / crédito previsível do Estado pelo qual o bem em causa se encontrava arrestado e se mantém arrestado nos autos, face à improcedência do pedido de perda alargada quanto a este arguido falecido (agora a prosseguir contra a sua herança indivisa), mas fortalecida a legítima expetativa do Estado pela condenação dos arguidos, não num valor incongruente, mas sim num valor liquidado como vantagem patrimonial diretamente obtida pelo arguido/requerido com a prática dos crimes.
7 - De contestar também a asserção do recorrente de que já havia transitado em julgado a ordem de levantamento do arresto anterior, quando na verdade o arresto ora em questão foi decretado no apenso em 09.02.2021 – ou seja, antes que qualquer trânsito em julgado tenha sido verificado nos autos;
8 - Por um lado, não se haviam ainda esgotado os prazos para interposição de recurso pelo Ministério Público e arguidos, já que os prazos em curso encontraram-se suspensos com efeitos retroativos a 22.01.2021, por força do artº 6º-B, nº 1, introduzido em aditamento à Lei nº1-A/2020 pela Lei nº4-B/2021 de 01.02 – como estabelecido por força do despacho judicial de 11.02.2021, proferido nos autos principais.
9 - Por outro lado, sempre seria de entender que ao levantamento de apreensões/arrestos não será de atribuir efeitos imediatos, em processo penal, como se de um trânsito parcial condicional se tratasse, antes devendo aguardar-se a decisão final em matéria penal, devidamente transitada em julgado.
10 - Mas tal efeito da decisão de levantamento nem sequer se coloca, como referido e evidenciado da leitura dos autos principais, em que a medida cautelar claramente precedeu e preveniu tais eventuais efeitos imediatos da “libertação” do bem.
11 - Acresce que tal cessação de efeitos do anterior arresto implicaria necessariamente a integração do bem na herança indivisa do arguido falecido/requerido do arresto – e nunca diretamente para a esfera patrimonial de um terceiro alegadamente adquirente, cuja boa fé se ignora, devendo a sua pretensão ser aferida em competente ação cível.
12 - Não ocorreu, ao contrário do alegado, qualquer “nova” ofensa a um hipotético direito de terceiro sobre o mesmo bem ora em apreço.
13 - Por outro lado, de acordo com o disposto no artigo 186º, nº5, do C.P.P., apenas não se procederá à restituição de bens apreendidos e não perdidos a favor do Estado, “no caso em que a apreensão de objetos pertencentes ao arguido ou ao responsável civil deva ser mantida a título de arresto preventivo, nos termos do artigo 228.º” – o que ressalva e legitima a conversão, no âmbito do processo penal, da apreensão em arresto preventivo, medida mais garantista;
14 - Consagra-se aqui uma continuidade nas providências cautelares decretadas em processo penal, sendo certo que tal alteração – da medida de apreensão a medida de arresto - há muito foi decretada no aludido Procedimento do Apenso B, ao qual o recorrente não reagiu.
15 - Ora, como bem refere a decisão recorrida, de acordo com o disposto no artº 344º nº 2 do Código de Processo Civil, os embargos de terceiro devem ser deduzidos no prazo de 30 dias, contados desde a data da realização da apreensão, que se pretende atacar ou da data em que o embargante teve conhecimento dessa apreensão.
16 - Nessa perspetiva, não assiste razão ao recorrente ao vir arguir um direito sobre um bem há muito apreendido e, após, sujeito a arresto validamente nos autos, sem que se tenha oposto pelos meios processuais penais próprios, como seja o incidente de terceiro, nos termos do artigo 178º, nº6, do C.P.P. – até final da fase de julgamento, cfr. artigo 347º-A do C.P.P. – a fim de vir fazer valer o direito que alega.
17 - Nessa conformidade, não se pode obviar à constatação de que, face à condenação penal do titular comprovado do bem – C… (HERANÇA INDIVISA), ainda que não transitada e correspetiva condenação na perda de vantagem a favor do Estado, em primeira instância (pressupostos da existência de crédito provável do Estado e do “bonus fumus iuris”, ou antes, do “bonus fumus comissi delicti”), pelos crimes de fraude fiscal qualificada e de burla tributária, além dos demais, o arresto em causa foi decretado nos termos do artº228º do C.P.P., mas na sequência de providências cautelares anteriores, sem que o alegado terceiro proprietário tenha deduzido em tempo oposição nos termos processuais penais previstos na lei, pelo que a sua pretensão não merece provimento.
18 - Em suma, a decisão recorrida aplicou corretamente o regime processual quanto ao prazo para a dedução de embargos de terceiro no âmbito de Procedimento Cautelar desta natureza, pelo que deverá ser mantida.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando os considerandos constantes da resposta do Ministério Público na 1ª instância, pugna pela improcedência do recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida.
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Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o recorrente nada disse.
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Após exame preliminar o relator profere decisão sumária sempre que alguma circunstância obste ao conhecimento do recurso – art. 417º, nº 6, al. a) do Código de Processo Penal.
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2. Fundamentação:
O presente recurso, que foi interposto e admitido como de apelação, tem por objeto a apreciação do despacho indeferiu liminarmente a petição de embargos de terceiro deduzidos por B… por apenso aos autos de procedimento cautelar de arresto preventivo decretado em 9 de fevereiro de 2021 no apenso K.
O procedimento cautelar de arresto preventivo previsto no art. 228º do Código de Processo Penal, segue a lei do processo civil (cfr. arts. 391º e ss.), de harmonia com o disposto no nº1 do aludido preceito legal e os embargos de terceiro, estão regulados nos arts. 342º e ss do Código de Processo Civil.
Nessa conformidade a aplicação do regime do Código de Processo Civil revela-se adequada uma vez que estamos perante recurso de decisão proferida em oposição, mediante de embargos de terceiro, que tem natureza indubitavelmente civil e não tem natureza penal, visto não ser regulado por normas penais ou processuais penais.
A competência dos tribunais em razão da matéria, o que vale para as Secções do Tribunal da Relação, assenta exclusivamente na natureza da relação jurídica substancial em litígio [1].
É irrelevante a circunstância de a decisão recorrida correr num processo apenso a um processo criminal, visto o critério definidor da competência ser o da natureza da causa” [2].
Relativamente à competência material, a organização judicial interna do Tribunal da Relação assenta nas Secções, distintas em razão da matéria – secções cíveis; secções criminais e secção social – art. 54º da Lei nº 62/2013 de 26/08 (doravante designada por LOSJ), por força do art. 74º da mesma Lei.
Assim, as secções criminais julgam as causas de natureza penal; as secções sociais julgam as causas de natureza cível da competência material dos tribunais de trabalho; e as secções cíveis julgam as causas que não estejam atribuídas a outras secções (art. 54º da LOSJ).
De acordo com o art.12º, nº 3, al. b), do CPP, compete às secções criminais das relações julgar recursos «em matéria penal», estatuindo o art.73º, alínea a), da LOSJ, que compete às secções da Relação “segundo a sua especialização julgar os recursos”.
Em matéria de recursos, como referido, a natureza das causas é o critério orientador que permite aquilatar a competência das diferentes secções da Relação em função da sua especialização material.
Retomando o caso dos autos, a causa a julgar são os embargos de terceiro e não o arresto preventivo, de nada valendo aqui convocar a natureza processual penal deste ou mesmo da apreensão e do arresto previsto no art.10º da Lei nº5/2002, de 11 de janeiro, que o antecederam [3].
Nos embargos de terceiro, não está em causa a reapreciação dos fundamentos da decisão de decretar o arresto preventivo. O objeto do processo de embargos não é o de sindicar a decisão e os seus fundamentos do arresto preventivo.
O que verdadeiramente se trata nos embargos de terceiro é a apreciação da questão de saber se o embargante tem a posse efetiva e real dos bens arrestados, ou seja, se existe uma relação material entre o detentor e a coisa detida que possibilite a sua fruição –, em consequência de garantias reais legalmente constituídas, e se tem o animus – cfr. RL 23-12-2020 (Margarida Vieira de Almeida) www.dgsi.pt.
Haverá que apreciar, à luz do que vem previsto desde logo no artº 342º, do Código Processo Civil, se o arresto preventivo decretado no apenso K sobre o veículo da marca Porsche 997 ofende a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência de que seja titular quem não é parte na causa, o que levará a apreciar os direitos do terceiro que são ofendidos pela providência decretada, sem que para tanto sejam convocadas as normas e os princípios vigentes no direito penal.
A questão central a decidir é a da propriedade do embargante quanto ao veiculo “contra” cujo arresto são deduzidos os embargos de terceiro, não tendo estes qualquer ligação de natureza substancial ou processual com o processo crime do qual, quer aquele arresto, quer o presente incidente são apensos.
Posto isto, não tendo natureza penal o objeto dos embargos de terceiro, o recurso aqui interposto é da competência das secções cíveis [49.
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Em suma, são competentes, em razão da matéria, para julgar um recurso interposto num processo de embargos de terceiro, que corre termos na instância Central Criminal do Porto, por apenso a um processo de natureza criminal, as secções cíveis do Tribunal da Relação do Porto, o que determina a incompetência absoluta desta secção, de conhecimento oficioso – arts. 96, 97º, e 99º do Código de Processo Civil, aplicável ao Processo Penal, por força do art. 4º do CPP.
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3. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) excecionar a competência absoluta desta secção criminal, por não ter competência em razão da matéria para julgar o recurso que incide sobre o despacho recorrido, sendo competentes, para tanto, as secções cíveis deste Tribunal da Relação do Porto.
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Nos termos do art.33º, nº 1, do Código Processo Penal, após trânsito em julgado determino a remessa dos presentes autos de recurso à distribuição pelas secções cíveis deste Tribunal da Relação, por serem as competentes para o julgar.
Notifique.
Decisão elaborada pelo signatário em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP)

Porto, 4.11.2021
João Pedro Pereira Cardoso
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[1] A distribuição de competência pelos vários tribunais especializados assenta no pressuposto da maior idoneidade desse tribunal para a apreciação das matérias que lhe são atribuídas, de forma a que as causas sejam julgadas por magistrados com a preparação específica adequada - cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Processo Civil, Coimbra Editora, vol. I, pg. 107, citado no Ac. RP 8.02.2017 (Maria Dolores da Silva e Sousa, processo nº 290/07.8GBPNF-C.P1) www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido o Ac. do STJ de 26/04/2012 (Manuel Braz) e RC de 03.02.2016 (Alice Santos). Também o Ac. do TRP de 8/02/2017 (Maria Dolores Silva e Sousa), este em matéria de decisão de um incidente de execução apensa a processo crime, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Do mesmo modo o ac STJ de 14.07.2010 (Henriques Gaspar), in www.dgsi.pt, salienta: “A matéria que está em causa no objecto do recurso é, como se salientou, de natureza exclusivamente civil, e o objecto das decisões não constitui uma “causa” (no sentido de questão, determinação, controvérsia, objecto e matéria, e não no sentido adjectivo e formal de tipo ou espécie de processo) de natureza criminal. A circunstância de o acórdão recorrido ter sido proferido num processo penal, por força do princípio da adesão, não altera nem a natureza da «causa» nem a matéria sobre que versa. A espécie de processo em que foi proferido o acórdão recorrido não é, para este efeito, relevante”.
[3] Manuel da Costa Andrade e Maria João Antunes, distinguindo claramente o arresto preventivo do art.228º, do Código Processo Penal, a apreensão prevista no art.178º, nº1, do Código Processo Penal e o arresto estabelecido no art.10º da Lei nº5/2002, de 11 de janeiro, recordam que “o arresto preventivo é uma medida de garantia patrimonial de natureza processual penal, aplicada de acordo com o disposto no CPP, sendo subsidiariamente aplicável a lei do processo civil em tudo o que o código não preveja e se harmoniza com os princípios gerais do processo penal.”247 Mais à frente estes ilustres professores dizem-nos ainda que “O recurso à lei do processo civil já ocorria, de resto, por força da redação primitiva do artigo 228.º, n.º 1, do CPP. (..) - Manuel da Costa Andrade e Maria João Antunes, “Da natureza processual penal do arresto preventivo”, in Revista portuguesa de ciência criminal, Vol. 27, nº1 (2017), pág. 141-5.
[4] No mesmo sentido RG 03-04-2017 (Isabel Cerqueira) www.dgsi.pt. Também o Ac RP 26-02-2021 (Cláudia Sofia Rodrigues) no Processo: 2199/19.3JAPRT-G.P1, 4ª sec., inédito.