Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14338/18.7T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
PRESTAÇÕES
PENHOR FINANCEIRO
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RP2019121014338/18.7T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O penhor das prestações resultantes da celebração de um contrato de seguro constituiu um penhor financeiro regulado por legislação especial.
II - É lícito aos credores constituírem dois penhores sobre o mesmo direito financeiro e acordar o pagamento paritário dos seus créditos.
III - Nesse caso a graduação de créditos deve respeitar a estipulação contratual das partes e não aplicar a regra da prioridade temporal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 14338/18.7T8PRT - A.P1
1. Relatório
Por apenso ao processo de execução em que é exequente B… Sa e executado C… foi proferido decisão neste apenso de verificação e graduação de créditos sentença final, sem produção de prova na qual vieram reclamar créditos: - O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional invocando crédito global relativo a IVA , no valor de €28,520,69; - A D…, SA invocando um crédito no valor de 55.526,40, cuja garantia assenta em penhor sobre o seguro penhorado.
Inconformado com a decisão E…, S.A., Exequente veio interpor recurso de Apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
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O recurso foi admitido é próprio e tempestivo.
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II. Foram formuladas as seguintes conclusões
1. O presente recurso vem interposto da sentença que graduou o crédito do Recorrente atrás dos créditos reclamados pela D…, S.A.. e pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional.
2. O Banco Recorrente concedeu à sociedade F…, Lda, entretanto declarada insolvente, um financiamento no montante máximo global de €70.000,00.
3. Para garantia do cumprimento das obrigações emergentes do contrato celebrado, e nos termos do mesmo, foi entregue ao Banco Exequente uma livrança subscrita pela sociedade Mutuária e avalizada pelos Executado.
4. Também para garantia do cumprimento das obrigações emergentes do contrato celebrado, o executado C… constituíu a favor do Banco Exequente Penhor de Seguro sobre os direitos de crédito emergentes da celebração do Contrato de Seguro G1… AFORRO 2ª SÉRIE, no valor de €17.500,00.
5. Tal resulta, inequivocamente do contrato junto aos autos.
6. Por seu lado, beneficia o crédito reclamado pelo Ministério Público, de um privilégio mobiliário geral.
7. O penhor, nos termos do Artigo 666º, do Código Civil (CC) e conforme consta da sentença recorrida, “(…) confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertentes ao devedor ou a terceiro.”
8. “Ora como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, a tensão ou dilema decorrente da existência de um privilégio mobiliário geral concomitantemente com uma garantia real - rectius, penhor – deve ser resolvida em benefício deste.
9. O crédito exequendo, deve, assim e nos termos da lei, ser graduado em lugar anterior ao da Fazenda.
10. Veio o Credor D…, S.A. reclamar o crédito emergente de contrato celebrado, o qual, também, se encontra garantido pelo penhor.
11. Não está em causa o concurso entre dois penhores constituídos, mas uma situação em que ambas as partes (Exequente e Credor Reclamante) beneficiam exactamente da mesma garantia, do mesmo penhor.
12. Temos, assim, dois créditos garantidos exactamente da mesma forma, pelo mesmo meio e na mesma data.
13. O princípio geral em sede de garantia de cumprimento das obrigações é que, por este cumprimento, respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora - artigo 601º doCC..
14. Ainda nos termos do mesmo diploma, maxime artigo 604º, nº 1, não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor.
15. O crédito reconhecido à Credora D…, S.A. não pode ser graduados à frente do crédito do Recorrente E…, S.A., que goza da mesma garantia pignoratícia.
16. Os documentos juntos ao processo implicam necessariamente uma decisão diversa da de que se recorre, tendo a sentença proferida violado o Artigos 607º, nº 4, 2ª parte, do CPC e os Artigos 604º e 666º do CPC.
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Não foram apresentadas contra - alegações.
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III. A decisão recorrida deu como provado que:
1º- Na execução que constitui o processo principal procedeu-se em 27/6/2018 à penhora do Crédito que o executado detém junto da Entidade H…, S.A., em virtude do contrato de seguro E… Aforro 2.ª Série com apólice n.º 86/70590, no valor de € 21.005,48,descrita no auto de penhora junto aos autos principais, cujos demais termos se dão por reproduzidos;
2º- Até ao limite de € 17.500,00 do contrato de seguro identificado em 1º encontra-se constituído, por documento particular datado de 11/2/2013, penhor a favor da D…, Sa.
3º- O executado C… é devedor à Fazenda Nacional das seguintes quantias a título de Iva: - €4.443,01, relativa ao ano de 2003, inscrita para cobrança em 2014, com juros de mora vencidos desde 27-08-2014 no valor €996,24 o que perfaz um total de €5.439,25 – proc. execução fiscal 3182201401259865; - €11.836,61, relativa ao ano de 2014, inscrita para cobrança em 2014, com juros de mora vencidos desde 30-10-2014 no valor €2.539,00, o que perfaz um total de €14.375,61 – proc. execução fiscal 3182201481027850; - €1.866,88, relativa ao ano de 2014, inscrita para cobrança em 2014, com juros de mora vencidos desde 30-10-2014 no valor €400,46, o que perfaz um total de €2.267,34 – proc. execução fiscal 3182201481027869;
- €4.815,00, relativa ao ano de 2014, inscrita para cobrança em 2014, com juros de mora vencidos desde 26-11-2014 no valor €1.013,15, o que perfaz um total de €5.828,15 – proc. execução fiscal 3182201481091524; - €223,23, relativa ao ano de 2014, inscrita para cobrança em 2014, com juros de mora vencidos desde 30-12-2014 no valor €39,98, o que perfaz um total de €263,21 – proc. execução fiscal 3182201501028928; - €300,86, relativa ao ano de 2014, inscrita para cobrança em 2015, com juros de mora vencidos desde 30-06-2015 no valor €46,27, o que perfaz um total de €347,13 – proc. execução fiscal 3812201501186345 - no montante global de €23.485,59 e juros vencidos de €5.035,10, tudo num total de €28.520,69.
Com interesse para a decisão da questão decorrem ainda da tramitação processual os seguintes factos, comprovados com base nos documentos juntos e aceites pelas partes:
i. O Banco Recorrente alegou no seu requerimento executivo que concedeu à sociedade I…, Lda, entretanto declarada insolvente, um financiamento no montante máximo global de €70.000,00.
ii. Para garantia do cumprimento das obrigações emergentes do contrato celebrado, e nos termos do mesmo, foi entregue ao Banco Exequente uma livrança subscrita pela sociedade Mutuária e avalizada pelos Executados J… e C….
iii. Para garantia do cumprimento das obrigações emergentes do contrato celebrado, o Executado C… constituiu a favor do Banco Exequente Penhor de Seguro sobre os direitos de crédito emergentes da celebração do Contrato de Seguro G1… AFORRO 2ª SÉRIE, no valor de €17.500,00.2, acordo esse visado em 11.3.2013 conforme documento junto no processo principal com o requerimento executivo.
iv. Esse acordo foi celebrado ao abrigo do Protocolo assinado entre o Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P. («IEFP»), as Instituições de Crédito, as Sociedades L… e a K… – Sociedade de Investimento, S.A. («K…»), no mesmo ficou expressamente consignada a partilha de garantias, podendo o Banco Recorrente preencher a livrança por uma quantia que abranja os montantes a restituir (i) à L… (…) e ao (ii) IEFP, sendo que em caso de execução de qualquer garantia constituída no presente Contrato, o produto que daí resultar será dividido entre o G…, a L… e o IEFP na proporção dos respectivos créditos.
v. A reclamante D… SA celebrou com a sociedade F… um acordo nos termos do qual emitiu uma garantia autónoma à primeira solicitação emitida em 11.2.2013 conforme documento nº 1 junto com a reclamação de crédito e sujo teor se dá por reproduzido.
vi. Na cláusula 4 desse acordo a sociedade F… obrigou-se a constituir penhor do contrato de seguro G1… aforro 2º série, no montante de 17.500,00 euros em paridade e na proporção dos seus respectivos créditos,
vii. Por carta (junta no apenso verificação de créditos) enviada pelo apelante para a reclamante D…, veio este solicitar o pagamento de 47.748,97 euros correspondentes a 75% do valor objecto da garantia prestada por esta no âmbito do acordo referido em 1).
viii. A exequente recebeu esse valor conforme declaração de quitação constante desse apenso e cujo restante teor se dá por reproduzido.
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IV. Questões a decidir
A única questão a decidir é a de saber se a exequente é ou não detentora de uma garantia real anterior sobre os direitos de crédito emergentes da celebração do Contrato de Seguro G1… AFORRO e caso assim seja como deve ser graduada.
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V. Discussão
Os recursos visam evitar os erros judiciários. E, de facto a decisão recorrida omitiu qualquer consideração à existência ou não a favor da exequente de penhor sobre o objecto do seguro, tratando a mesma como beneficiária apenas da penhora realizada nos autos em 2018. Ora penhora e penhor são garantias distintas, constituídas em datas diferentes e com diferentes consequências jurídicas e financeiras.
In casu estamos perante a constituição de um penhor de direitos, máxime penhor de aplicações financeiras[1]. O penhor é uma garantia real, regulada nos arts. 666º, do CC e neste caso, em diversa legislação especial.
O Penhor financeiro apresenta-se sobre a forma de uma modalidade de contratos de garantia financeira, regulados pelo DEC.-Lei no 105/2004, de 08 de Maio, resultante da transposição da Directiva 2002/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6/6/2002.
Este diploma e suas sucessivas actualizações configuram o penhor financeiro como uma garantia acessória de uma obrigação financeira que, ao abrigo do art. 4 está limitado pelo seu objecto (toda a obrigação cuja prestação compreenda uma liquidação em numerário ou na entrega de instrumentos financeiros), pelos seus sujeitos e pela sua finalidade.
Nos termos do art. 6º, nº3, desse diploma (na redação introduzida pelo Decreto-Lei no 192/2012, de 23 de agosto): “Nas garantias financeiras que tenham por objeto créditos sobre terceiros, prestadas ao banco central pelas instituições de crédito no âmbito das operações de cedência de liquidez, a posse transfere-se para o beneficiário da garantia por mero efeito do contrato de garantia financeira.
E, de acordo com o Artigo 7, do mesmo diploma a sua prova deve ser feita “por documento escrito ou de forma juridicamente equivalente”.
Todos esses requisitos estão demonstrados no caso presente, já que a apelante demonstra a constituição desse penhor financeiro desde 2013, pelo que existiu empossamento e comprovação da realização desse penhor.
Por ser uma modalidade de penhor de direitos são-lhe aplicáveis as regras contidas no artigo 679 do CC e por remissão as relativas à penhora de coisas (arts. 669º e segs do Código Civil). In casu penhorou-se o direito do seguro de vida constituído que se encontra na disponibilidade do credor pignoratício, que neste caso não é apenas um mas vários “em paridade”[2].
Por isso, é inequívoco que a exequente possui também um penhor datado de 2013 sobre esse direito. Logo deveria ter sido graduado como tal.

2. No caso presente sobre o mesmo direito foram constituídos dois penhores; um a favor da exequente e outro a favor da reclamante. Tal realidade não apenas é possível como está expressamente regulado nos arts. 666 e 685º, nº3, do CC[3].
Mas sempre teríamos de estabelecer uma ordem de prioridade entre esses dois penhores. A situação seria de simples resolução pela aplicação da regra da prioridade temporal[4] “prior in tempore potior in jure”. Mas neste caso não se pode determinar a prioridade cronológica, por não ter sido alegada e comprovada a data de notificação do devedor.[5]
Todavia decorre também dos factos provados que não existe prioridade mas sim “paridade” entre esses dois penhores que foram constituídos da mesma forma, pela mesma ocasião e com o acordo de ambos os credores. Deste modo, assim estamos perante uma estipulação negocial acessória (consta do contrato celebrado com a reclamante) que deve ser respeitada e que constituiu a assunção de uma obrigação solidária, porque nos termos do art. 513º, do CC “A solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes”.
Por um lado, porque o penhor visa garantir o interesse desses credores, que assim regularam de forma distinta mas autónoma a sua esfera jurídica (art. 416º, do CC). Por outro, porque a constituição do penhor é em regra, derivada de um negócio jurídico, sendo que neste caso os dois (mutuo e garantia) se encontram coligados num mesmo negócio bilateral complexo. Deste modo teremos de concluir que ambos os credores possuem, no caso concreto, idêntica ordem de preferência nos termos do art. 666º, do CC.

3. A única questão, omitida nas alegações, é saber se com o recebimento de 75% da quantia mutuada no âmbito da garantia autónoma a exequente/apelante cedeu os seus direitos nos termos do art. 644º, do CC, bastando nos termos do art. 522º, do mesmo diploma provar o pagamento.
Ora, decorre dos factos provados que a apelante recebeu da reclamante 75% do capital em dívida para cujo pagamento tinha constituído a seu favor o penhor, pelo que este nessa medida já não existe no seu património desde a quitação desse pagamento.
Uma das regras aplicáveis ao penhor financeiro é, nos termos gerais a da acessoriedade, segundo a qual depende e segue a existência de um crédito, ao qual é dependente/acessório. Sendo que nos termos do art. 582.º, do CC “1. Na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”.
Logo, teríamos aqui, em princípio uma cedência relevante do crédito que por força dessa norma implicaria a cedência proporcional do penhor. Mas em rigor não sabemos qual a proporção do crédito total que foi cedida tendo em conta os juros e acréscimos legais vencidos nessa data.
E, nos termos do art. 516, do CC nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito.
Deste modo, a eventual questão da divisão do produto dessa garantia será atingida entre os credores pela aplicação do art. Artigo 533.º, do CC que dispõe: “O credor cujo direito foi satisfeito além da parte que lhe competia na relação interna entre os credores tem de satisfazer aos outros a parte que lhes cabe no crédito comum.”
Pelo exposto, face aos elementos do processo, o crédito exequendo será graduado em partes iguais com o do credor reclamante.
Por último este penhor deve ser graduado, tal como a decisão recorrida efectuou, com prioridade face ao privilégio creditório[6].
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VI. Deliberação
Nos termos supra expostos, este tribunal delibera julgar procedente a apelação, e por via disso revogar a decisão recorrida, determinando que o crédito exequendo seja graduado em primeiro lugar com o crédito da credora D…, para que cada um deles seja pago sobre metade do valor actual do contrato de seguro inicialmente com o valor de 17.500, euros e demais acréscimos, mantendo-se no mais a decisão recorrida.
Custas da apelação nos termos do art. 541º, do CPC por inexistir oposição e decaimento.

Notifique.

Porto, em 10.12.19
Paulo Duarte Teixeira
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
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[1] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, em “Garantias de Cumprimento”, 5.ª Edição, Novembro de 2006, Almedina, páginas 170 e seguintes afirmam «O penhor de aplicações financeiras, frequentemente utilizado pelas instituições de crédito, poderá revestir uma modalidade de penhor de direitos, ao qual se aplicam os artigos 679.º e seguintes do Código Civil.
[2] O penhor de aplicações financeiras constitui uma das modalidades do que se pode designar por penhor irregular, no qual se inclui o penhor de dinheiro, mercadorias e outras coisas fungíveis, cfr. C. Moreno La prenda irregular Pág. 87 e segs, apud ac da RP de 4.5.2004 nº in www.dgsi.pt. Mais recentemente o Ac da RL de 9.7.2009 nº 3529/08.9TVLSB-B.L1-6 analisou também esta modalidade de penhor.
[3] Por mais recente Maria Tomé in Comentário ao CC, UCP, II, pág. 880. [4] Art. 666 do CC e 794 do CPC quanto à penhora, 886 CC (hipoteca) e art. 6º Código Registo Predial.
[5] O Ac da RP de 10.7.2019 nº 18581/17.8T8PRT.P1decidiu um caso não análogo ao presente em que um único credor hipotecário era titular de diversas garantias constituídas para segurança dos mesmos direitos.
[6] Por um lado com base na diferente natureza dos dois institutos em análise: os privilégios gerais, não constituindo verdadeiros direitos reais de garantia (de gozo, de aquisição ou de preferência) sobre coisa determinada, devem ceder perante os direitos reais de garantia de terceiros, individualizados sobre bens concretos, conforme posição, entre outros, de Salvador da Costa, in "O Concurso de Credores, 2015, 58 Edição, pág. 239, Almedina, onde defende que "no confronto do direito de crédito garantido por privilégio mobiliário geral e do direito de crédito garantido por penhor ou retenção, são estes que prevalecem na ordem de graduação".