Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1457/10.7TBOAZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: INVENTÁRIO
LICITAÇÃO
ANULAÇÃO
Nº do Documento: RP201505071457/10.7TBOAZ-A.P1
Data do Acordão: 05/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Sobre a anulação da licitação apenas disciplinava o artigo 1372º do Código de Processo Civil, na versão anterior à reforma introduzida pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.
II - Todavia, assumindo a licitação em inventário a estrutura de uma arrematação, pode a mesma ser anulada, em princípio, além dos casos contemplados no referido normativo, sempre que ocorra circunstância que possibilite a anulação da venda judicial, nos termos dos artigos 908º e 909º do Código de Processo Civil.
III - Pode, assim, ser anulada, a pedido do interessado, quando tenham ocorrido vícios que hajam afectado o acto, designadamente erro sobre o bem licitado, sendo-lhe aplicáveis as regras gerais de direito substantivo relativas à invalidade dos actos jurídicos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1457/10.7TBOAZ-A.P1
Comarca de Aveiro
Oliveira de Azeméis– Inst. Local – Secção Cível– J1

Relatora: Judite Pires
1ºAdjunto: Des. Aristides de Almeida
2º Adjunto: Des. José Amaral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO
1. No processo de inventário instaurado por óbito dos inventariados B… e C…, e no qual é cabeça-de-casal D…, na sequência da conferência de interessados, em que se procedeu a licitações das verbas relacionadas e descritas, vieram a interessada E… e marido requerer a anulação da referida conferência de interessados, na qual procederam à licitação da verba 2 da relação de bens.
Para o efeito, invocam erro na licitação da verba nº 2, que lhes foi adjudicada, alegando que só posteriormente a esse acto tomaram conhecimento que dela não faziam parte nem a eira, nem o terreno de cultivo, os quais integram prédios com artigos distintos, licitados por outro interessado, estando a mesma onerada com uma servidão de passagem e que tivesse conhecimento desses factos não teria licitado na aludida verba nº 2 ou teria licitado também nas verbas que integram os prédios nos quais se acham abrangidos a eira e o terreno de cultivo.
Notificado o cabeça-de-casal e os demais interessados, impugnou aquele os factos alegados pela interessada E… através de requerimento também subscrito pelos interessados F…, G… e H…, os quais pediram a condenação da interessada E… como litigante de má fé em multa e indemnização, no montante de € 250,00, a favor de cada um deles.
Foi então proferida decisão que indeferiu o requerido pela interessada E…, com fundamento em que incorreu em erro por culpa sua, não se mostrando verificados os requisitos que permitam anular a sua declaração, condenando-a e ao seu marido, como litigantes de má fé, em multa no valor de € 200,00 e aos interessados F…, G… e H… no montante de € 100,00, a cada um deles, a título de compensação pelos honorários devidos aos seus mandatários judiciais.
2. Não se conformaram com tal decisão a interessada E… e marido, I…, pelo que dela interpuseram recurso de apelação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
“a) – A cabeça de casal não descreveu a verba 2 da relação de bens conforme é preceituado pela 1ª parte do art. 1345º do Código Civil, já que omitiu as confrontações e o ónus da servidão de passagem.
b) – Por outro lado, a certidão matricial junta à relação de bens que suporta e verba 2, referente ao artigo matricial 745 da freguesia …, está descrita pelas estremas que sempre teve e com a área de 1900m2.
c) – No entanto, a harmonização do teor das verbas com os artigos matriciais compete à cabeça de casal, sob pena de induzir em erro os interessados e influi nas licitações.
d) – Ao licitar a verba 2 da relação de bens, que compreendia o artigo matricial 745º da freguesia …, concelho de Oliveira de Azeméis, a recorrente esposa sempre teve a convicção que estava a licitá-la conforme está descrita na certidão matricial que está junto à relação de bens.
e) – Foi determinante para os recorrentes a incorrecta descrição da verba 2 da relação de bens pela cabeça de casal, já que o prédio urbano identificado pelo artigo matricial 745 da freguesia ..., tinha sido alterado com a desanexação que foi feita do eido do prédio urbano, visto a recorrente estar ausente desde os 12 anos de idade e não ter relação de amizade com os restantes interessados.
f) – Diz o artigo 251 do C.C. que – o erro que atinja os motivos determinantes da vontade quando se refira (...) ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do art. 247º.
g) – Quanto à descrição da verba 2, sequer era susceptível requerer a sua correcção porque a recorrente desconhecia as propriedades rústicas identificadas pelo art. 600 e 614 (verbas 6 e 7) desanexadas do prédio urbano e por outro lado,
h) – Caso a licitação não seja anulada, por virtude do erro na descrição da verba 2 pela cabeça de casal, os recorrentes ficam gravemente e irremediavelmente prejudicados.
i) – Também, ao contrário do decidido pelo MMº Juiz do tribunal recorrido, os recorrentes não agiram com dolo contra a vontade dos factos por si conhecidos por isso não devem se condenados como litigantes de má fé.
A decisão proferida pelo Tribunal Recorrido violou o art. 251º do Código Civil, já que os recorrentes foram induzidos em erro pela descrição das verbas na relação de bens, nomeadamente da verba nº 2 que comporta o art. 745º da freguesia … e também fez errada aplicação do art. 542º do C.P.C. já que os recorridos no seu requerimento não agiram com dolo.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão proferida e consequente conferência de interessados, por assim ser de inteira justiça”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar se:
- O erro em que incorreram os recorrentes ao licitarem a verba nº 2 constitui fundamento para anulação da licitação;
- Existe fundamento para condenar os requerentes, por haverem requerido a anulação da licitação, como litigantes de má fé.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos/incidências processuais relevantes à apreciação do objecto do recurso são, além dos descritos no relatório introdutório, os seguintes:
1. Na relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal foram, entre outros, relacionados os seguintes imóveis:
- Verba 2:
“1 prédio urbano, descrito como O…, afeto à habitação, sito no …, inscrito na matriz predial da freguesia …, sob o artigo 745”;
- Verba 6:
“1 prédio rústico, descrito como P…, com 60 metros de ramada, sito no …, confrontando de Norte com J…, do Sul K…, de Nascente com J… e do Poente com L…, inscrito na matriz predial da freguesia … sob o artigo 600”,
- Verba 7:
“1 prédio rústico, descrito como Q…, sito no …, confrontando do Norte com M…, do Sul com K…, Nascente com N… e do Poente com K…, inscrito na matriz predial da freguesia … sob o artigo 614”.
2. Na certidão do Serviço de Finanças de Oliveira de Azeméis, junta com a relação de bens, o artigo matricial 745 é descrito como casa de dois pavimentos e eira, com afectação a habitação, com as seguintes áreas:
Área total do terreno: 1.990,0000 m2
Área de implantação do edifício: 50,0000 m2
Área bruta de construção: 100,0000 m2
Área bruta dependente: 0,0000 m2
Área bruta privativa: 100,0000 m2.
3. A interessada E… mandou proceder à avaliação do imóvel inscrito no artigo matricial urbano 745.
4. No relatório dessa avaliação o imóvel surge assim descrito quanto à sua composição: “o prédio é composto por uma casa de dois pavimentos, sendo o primeiro andar constituído por cozinha, quartos, sala e instalações sanitárias. O rés-do-chão é composto por currais, dependências agrícolas e arrumos. (...)
O restante terreno é constituído por área de cultivo, outrora com ramada, árvores e horta (...).
5. Na conferência de interessados realizada a 04 de Dezembro de 2013, a verba 2 foi licitada pela interessada E… pelo valor de € 49.600,00.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Reclamaram a interessada E… e marido, ora apelantes, a anulação da licitação efectuada sobre bens da herança dos inventariados no decurso da conferência de interessados realizada no inventário aberto por óbito destes.
Alegam fundamentalmente que, por incorrecta descrição da mesma, licitaram na verba 2 convencidos de que, além da casa, dela faziam parte uma eira e uma parte rústica que, vieram a tomar conhecimento posteriormente, estas integravam artigos matriciais autónomos, constituindo verbas distintas, licitadas por outros interessados na herança.
Admitindo a existência do invocado erro, entendeu, no entanto, o tribunal recorrido que o mesmo era censurável, considerando que a interessada E… incorreu em erro por culpa sua ao não indagar junto do cabeça-de-casal “onde se situam e quais os limites de todos os imóveis” e, sustentando-se nessa análise, indeferiu a requerida anulação, mantendo as licitações efectuadas, condenando ainda aquela interessada e marido como litigantes de má fé.
É contra tal decisão que se insurgem os apelantes, clamando pela sua revogação.
Sobre a forma como devem ser relacionados os bens imóveis esclarece Lopes Cardoso[1]: “relativamente aos prédios rústicos e urbanos deverá o cabeça-de-casal fazer menção expressa da respectiva localização (...), confrontações (...), nomes, números de polícia (urbanos), pertenças e servidões”, recaindo sobre ele o dever de “...indicar nas suas relações as confrontações dos bens imóveis quando elas se tornem necessárias para a perfeita indicação dos prédios”[2].
Segundo o nº1 do artigo 1386º do Código de Processo Civil, na versão aqui aplicável, “A partilha, ainda depois de passar em julgado a sentença, pode ser emendada no mesmo inventário por acordo de todos os interessados ou dos seus representantes, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes”.
Da conjugação deste normativo com o artigo 1387º do mesmo diploma legal resssalta que a emenda à partilha pode concretizar-se por um de dois meios: como incidente do próprio processo de inventário, havendo acordo de todos os interessados – artigo 1386º, nº1 -, ou, na falta desse acordo, em acção própria de emenda à partilha, a isntaurar e a processar-se em dependência ao processo de inventário – artigo 1387º.
Em todo o caso, em qualquer das referidas situações não se cuida de anular qualquer acto, mas antes de proceder à emenda de partilha com fundamento em erro que a tenha viciado, tendo por princípio a manutenção ou conservação, na medida do possível, do acto a emendar[3].
Salienta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.02.2010 que “o objecto e típica funcionalidade da acção de emenda da partilha não se traduz numa reapreciação crítica dos actos praticados no decurso do inventário já findo, mas apenas em apurar se um acto, específico e determinado, do processo – a partilha – padece ou não de alguma das deficiências ou irregularidades tipificadas nos arts. 1386º e 1387º do CPC: erro na descrição ou qualificação dos bens partilhados ou outro erro susceptível de viciar a vontade das partes – que deverão ser sanadas, tanto quanto possível, sem pôr em causa a validade e eficácia da partilha globalmente realizada, cujos efeitos se deverão, em princípio manter, já que o acto não é objecto de anulação”.
No caso aqui em debate, ainda antes de finda a partilha, realizada a conferência de interessados no decurso da qual se procedeu a licitações dos bens das heranças, reclamou a interessada E… a anulação da licitação, invocando erro, ao licitar a verba 2, sobre a real composição da mesma por considerar não ter sido a mesma correctamente relacionada pelo cabeça-de-casal.
Na relacionação de tal verba a mesma surge apenas identificada como “prédio urbano, descrito como O…, afeto à habitação, sito no …, inscrito na matriz predial da freguesia …, sob o artigo 745”, omitindo o cabeça-de-casal, designadamente, as suas confrontações.
É certo que com a relação de bens foi junta certidão relativa ao artigo matricial 745. Mas não indica esta as confrontações do imóvel em causa, e ainda que dela constassem, tal menção não desoneraria o cabeça-de casal de as indicar porquanto é pacificamente aceite que os elementos identificativos dos imóveis constantes da matriz ou mesmo do registo predial são meramente declarativos e não constitutivos da realidade física dos prédios neles descritos.
Alega a interessada E… que ao licitar a verba 2 estava convencida de dela faziam parte a eira e um terreno de cultivo e só após aquele acto se veio a certificar que tal não correspondia à verdade, e que quer a eira, quer o terreno constituíam artigos matriciais autónomos, correspondendo a duas verbas distintas, licitadas por outros interessados.
A decisão aqui objecto de sindicância não contraria a existência desse erro, apenas o imputa à própria conduta omissiva da referida interessada.
Vejamos se com razão ou não.
A licitação tem a estrutura de uma arrematação, mas não constitui uma verdadeira venda judicial: embora equiparável a este negocio jurídico, “…busca mais propriamente uma escolha de bens e actualização de valores, na certeza de que não implica desde logo a atribuição da propriedade exclusiva dos bens sobre que recaiu àquele que ofereceu o maior lanço”[4].
Sobre a anulação da licitação apenas disciplina o artigo 1372º do Código de Processo Civil, na versão indicada.
Todavia, assumindo a licitação em inventário a estrutura de uma arrematação, pode a mesma ser anulada, em princípio, além dos casos contemplados no referido normativo, sempre que ocorra circunstância que possibilite a anulação da venda judicial, nos termos dos artigos 908º e 909º do Código de Processo Civil.
Pode, assim, ser anulada, a pedido do interessado, quando tenham ocorrido vícios que hajam afectado o acto, designadamente erro sobre o bem licitado[5], sendo-lhe aplicáveis as regras gerais de direito substantivo relativas à invalidade dos actos jurídicos.
Como refere o acórdão da Relação de Coimbra de 17.04.2012[6], “O erro sobre o objecto da licitação verifica-se, por isso, nos casos seguintes:
a) Quando, depois da licitação, se reconhece a existência de um ónus ou limitação que não foi tomada em consideração e que excede os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, i.e., quando sobre o bem recai, por exemplo, um direito real ou pessoal de gozo ou um ónus de que não foi dado conhecimento ao licitante, e que deva subsistir depois da licitação (artº 908 nº 1ª parte, do CPC).
b) Quando se comprova a falta de conformidade da coisa licitada como o que foi relacionado (artº 908, nº 1, 2ª parte, do CPC.
É igualmente possível que a licitação seja inválida com base numa divergência entre a vontade real e a declarada, decorrente quer da falta de consciência da declaração ou de coacção física quer de erro na declaração (artºs 246 e 247 do Código Civil). Apesar da falta de previsão específica sobre estas situações, estas não podem deixar de ser relevantes na venda executiva e, por extensão de regime, na licitação em processo de inventário”.
O erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, quando referido ao objecto do negócio, torna este anulável desde que o declaratário conheça, ou não deva ignorar, a essencialidade, para o declarante, do objecto sobre que haja recaído o erro (artigos 251º e 247º, nº2 do Código Civil), sendo certo que “a qualidade de um objecto se reporta a todos os factores determinantes do valor ou da utilização pretendida”[7].Note-se que uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para o negócio conforme a finalidade económica ou jurídica deste. A essencialidade do erro tem de ser analisada sob o aspecto subjectivo do errante e não sob qualquer outro.
Quer o simples erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quer o dolo, só geram anulabilidade do negócio quando forem essenciais para a formação da vontade da parte que o invoca.
Ao erro sobre os motivos subjaz uma ideia inexacta sobre a existência, subsistência ou verificação de uma circunstância, presente ou actual, que era determinante para a declaração negocial, ideia inexacta essa sem a qual a declaração negocial não teria sido emitida nos termos em que o foi.
Por seu lado, comete dolo quem provoca artifício, sugestão ou embuste, que sabe e quer que o enganado preste a declaração que de outro modo não prestaria: “…a concretização do dolo pressupõe um erro da parte do declarante, erro esse determinado intencionalmente por outrem (o próprio declaratário ou um terceiro). Por isso, a vítima não só não se engana (como no caso do erro), mas ela é, além disso, enganada. Deste modo, o dolo pode também ser designado como erro qualificado”[8].
De todo o modo, para que esse erro ou engano releve como fundamento da anulabilidade do negócio é necessário que o erro seja essencial, exigindo-se, além disso, que exista nexo de causalidade entre o dolo e a actuação[9].
Com efeito, “há erro sobre a base do negócio quando a falsa representação incide sobre as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar. Sendo o contrato plurilateral, em princípio a anulabilidade do negócio fundada no dolo só pode ser usada relativamente a quem actuar com intenção de enganar”[10].
Revertendo o que se deixa exposto para a realidade traduzida nos autos: a interessada E… licitou a verba 2 da relação de bens convencida que a mesma apresentava determinadas características que posteriormente veio a constatar não lhe corresponderem. Por conseguinte, a falsa representação da realidade condicionou-a quer quanto à formação de vontade na aquisição dos bens que supunha integrarem a verba sobre a qual licitou, quer quanto à declaração negocial que emitiu.
E será, como defende a decisão sob recurso, de imputar a ela própria o erro em que incorreu?
Não cremos.
A verba 2 é identificada na relação de bens como prédio urbano composto de casa de habitação de dois pavimentos e eira afecta à habitação, havendo total omissão quanto às suas confrontações, como já se fez notar.
O artigo 745 da matriz – correspondente àquela verba – surge na respectiva certidão matricial novamente identificado como casa de habitação e eira, apresentando como área total do terreno 1.990, 00 m2.
Sendo a área de implantação do edifício de 50,00 m2 e a área bruta de construção de 100,00 m2, seria legítimo supor que a área sobrante do prédio – não abrangida pela construção – constituísse terreno não absorvido pela edificação da habitação, mas a ela afecto.
A conclusão extraída dessa interpretação surge reforçada pelo conteúdo do relatório da avaliação que aquela interessada mandou efectuar em relação ao artigo matricial 745.
Nesse relatório de avaliação, que incidiu sobre o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 745 e um jazigo – e não sobre quaisquer outros, como parece apontar a decisão aqui escrutinada -, aquele imóvel é descrito como “casa de habitação de dois pavimentos, eira e terreno de cultivo”, com as áreas descritas na certidão matricial correspondente.
O mesmo relatório, após identificação das características da casa de habitação, que qualifica de “típica casa de lavoura”, referindo-se ao terreno que integra aquele artigo matricial, descreve-o como sendo “constituído por área de cultivo, outrora com ramada, árvores e horta” e actualmente em estado de abando, com ervas e silvas.
Se adicionarmos a tudo isto o facto de em nenhuma das demais verbas relacionadas se mostrar identificada qualquer eira, e que as verbas 6 e 7 – que, ao que parece, integram, em artigos matriciais distintos, terrenos que antes faziam parte do dito artigo 745 -, facilmente se compreende o erro que se gerou quanto à real composição da verba 2.
Ao contrário do que se sustenta na decisão sob recurso, o erro em que incorreu a interessada E… não se deveu a culpa sua, nem é censurável esse erro, que, desconhecendo ela a realidade física que integrava a verba 2, dificilmente poderia evitar.
A circunstância de a referida interessada ter estado presente na conferência de interessados, aceitando-se que esteve acompanhada por advogado, como refere aquela decisão, a mesma não permite fundamentar qualquer juízo acerca da evitabilidade do erro criado acerca da real natureza do bem que licitou, pois as referências documentais a que se aludiu facilmente fariam supor que, além da casa, da verba 2 também fazia também parte a área sobrante do terreno que a construção não ocupara.
E nem se argumente, para imputar àquela interessada qualquer culpa pelo erro em que foi induzida relativamente à realidade que estava subjacente à verba que licitou, que esta deveria ter indagado junto do cabeça-de-casal onde se situavam e quais os limites dos imóveis relacionados, ou, estando desavinda com os demais herdeiros, que deveria ter incumbido dessa tarefa o seu advogado.
É que, como já antes se destacou, é sobre o cabeça-de-casal que recai a obrigação de, na relacionação dos bens, designadamente dos imóveis, proceder à sua correcta e completa identificação, de forma a não deixar dúvidas quanto à realidade que traduzem.
Ora, no caso não só o cabeça-de casal não identificou a verba 2 em conformidade com o bem que nela relacionou – apenas a habitação -, como a certidão matricial relativa ao artigo 745 facilmente faria supor que dela fazia parte, além do edifício habitacional, a área sobrante do terreno, ideia que sairia ainda reforçada pelo relatório de avaliação mandada efectuar quanto àquele artigo matricial.
Os aludidos elementos contribuíram decididamente para a convicção formada pela interessada E… de que a verba que estava a licitar era composta, para além da casa, por eira e terreno de cultivo e foi determinada por esse convencimento que licitou na verba 2, vindo só mais tarde a aperceber-se que dela apenas fazia parte a casa.
Essa desconformidade entre a vontade real e a vontade declarada, que, repete-se, não pode ser imputada àquela interessada, ora apelante, incidindo sobre facto determinante para a conclusão do negócio, constitui fundamento para a anulação do acto de licitação.
Essa anulação não deve, todavia, afectar a licitação de todas as demais verbas, mas apenas aquela sobre a qual recaiu a vontade viciada da interessada E…, que a licitou convencida que dela fazia parte também a eira e um terreno de cultivo.
2. Da litigância de má fé.
O decidido quanto à anulação da licitação da verba 2 não pode deixar de se reflectir sobre a condenação dos apelantes como litigantes de má fé, sendo indiscutível a inexistência dos pressupostos necessários a tal condenação.
Também nesta parte procede a apelação, revogando-se a decisão que condenou os apelantes como litigantes de má fé em multa e indemnização a favor dos demais interessados.
*
Síntese conclusiva:
- Sobre a anulação da licitação apenas disciplinava o artigo 1372º do Código de Processo Civil, na versão anterior à reforma introduzida pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.
- Todavia, assumindo a licitação em inventário a estrutura de uma arrematação, pode a mesma ser anulada, em princípio, além dos casos contemplados no referido normativo, sempre que ocorra circunstância que possibilite a anulação da venda judicial, nos termos dos artigos 908º e 909º do Código de Processo Civil.
- Pode, assim, ser anulada, a pedido do interessado, quando tenham ocorrido vícios que hajam afectado o acto, designadamente erro sobre o bem licitado, sendo-lhe aplicáveis as regras gerais de direito substantivo relativas à invalidade dos actos jurídicos.
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, julgando procedente a apelação, em revogar a decisão recorrida que indeferiu a anulação da licitação efectuada pelos apelantes sobre a verba 2 da relação de bens e os condenou como litigantes de má fé e em custas do incidente, devendo, consequentemente, ser proferida decisão que ordene a repetição do acto anulado e demais actos processuais que dele dependam.
Custas pelos apelados.

Porto, 07 de Maio de 2015
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
José Amaral
__________
[1] “Partilhas Judiciais”, Livraria Almedina, Coimbra, vol. I, pág. 475.
[2] Rev. Leg. Jur., 55-220.
[3] Cfr. Capelo de Sousa, “Lições de Direito das Sucessões”, vol. II, pág. 372.
[4] Lopes Cardoso, ob. cit., vol. II, pág. 294.
[5] Cfr. Carvalho de Sá, “Do inventário”, pág. 151.
[6] Processo nº 188/2001.C1, www.dgsi.pt.
[7] Manuel de Andrade, “Teoria Geral”, vol. II, 235 e 248.
[8] Heinrich Horster, “Parte Geral do Código Civil Português”, 1992, págs. 583 e 584.
[9] Cf. Acórdão do STJ, 13/5/04, www.dgsi.pt.
[10] Acórdão Relação do Porto, 26/5/97, www.dgsi.pt