Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
540/17.2GBILH.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO LUÍS CARVALHÃO
Descritores: CRIME DE CONDUÇÃO DO VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE PSICOTRÓPICOS
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
ELEMENTOS DO TIPO
MEIOS DE PROVA
Nº do Documento: RP20190220540/17.2GBILH.P1
Data do Acordão: 02/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: DECRETADO O REENVIO DO PROCESSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º790, FLS.6-14)
Área Temática: .
Sumário: I – São elementos integrantes do crime de «condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas», p. e p. pelo n.º 2 do art.º 292º do C. Penal:
a) a condução de veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada; b) que o condutor se encontre sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou
psicológica;
c) que devido à influência de tais estupefacientes, substâncias ou produtos, o condutor não esteja em condições de fazer com segurança tal condução;
d) que o agente tenha atuado pelo menos com negligência.
II – Trata-se de um crime de perigo, sendo valorado o mero perigo de lesão de bens jurídicos.
III - Não basta a presença de estupefaciente, substância psicotrópica ou produto com efeito análogo no corpo do condutor, sendo necessário que a mesma influencie e o torne incapaz de conduzir com segurança, sendo este um facto a alegar e demonstrar.
IV – A prova da condução sob influência do consumo de estupefacientes terá de resultar de perícia médica.
V – Já a prova de que a substância psicotrópica ou produto com efeito análogo no corpo influenciou o condutor e o tornou incapaz de conduzir com segurança pode ser alcançada por outros meios de prova, como seja a prova testemunhal e a prova indirecta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal n.º 540/17.2GBILH.P1
Comarca de Aveiro
Juízo de Competência Genérica de Ílhavo – Juiz 2

Acordam em conferência na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO
Por sentença proferida no Juízo de Competência Genérica de Ílhavo – Juiz 2, da Comarca de Aveiro, processo comum com intervenção do Tribunal Singular nº 540/17.2GBILH foi decidido absolver o arguido B… da prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.ºs 1 e 2, e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por referência à tabela I-C do DL 15/93, de 22-01.

Não se conformando com a sentença proferida, dela veio o MºPº interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES[1]
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O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, e com efeito suspensivo.

O arguido apresentou resposta, concluindo dever o recurso ser julgado improcedente e, em consequência, ser a sentença recorrida mantida.

O Sr. Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual se pronunciou pela procedência do recurso, aderindo aos fundamentos do recurso do Ministério Público na 1ª instância, acrescentando: na verdade, parece que a prova de condução pelo arguido sob efeito de psicotrópicos não se terá de fazer depender de perícia científica; bastando para o efeito os elementos testemunhais e o conhecimento das regras da experiencia de vida.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Conforme têm considerado a doutrina e a jurisprudência, à luz do disposto no art.º 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, em que resume as razões do pedido, sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

Aquilo que importa apreciar e decidir é saber se a prova produzida leva a concluir, ao contrário do que entendeu o tribunal a quo, que o arguido quando conduziu o ciclomotor com a matrícula .. – GT - .. no dia 08.06.2017, pelas 10h30m, na Rua …, o fazia sem se encontrar em condições de efetuar uma condução segura.

Na sentença objeto de recurso foram dados como assentes os seguintes factos:
1. No dia 8 de Junho de 2017, pelas 10h30m, o arguido conduzia o ciclomotor com a matrícula .. – GT - .., na Rua …, na …, e, ao efetuar uma curva, embateu num muro ali existente, junto do n.º 10.
2. Na altura o arguido tinha consumido recentemente substâncias estupefacientes e tinha 13 nanogramas por mililitro de tetrahidrocanabinol no sangue.
3. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
4. O arguido não desenvolve qualquer atividade, vive com a filha, de 17 anos, estudante, em casa dos sogros, beneficia de pensão de viuvez no valor de €180,00, tem por habilitações literárias o 4.º ano de escolaridade.
5. O arguido é seguido no Centro de Respostas Integradas de Aveiro, há mais de 10 anos, por adição a substancias psico ativas, em processo de manutenção opióide com buprenorfina.
E foram dados como não provados os seguintes factos:
- O arguido sabia que, em virtude do facto dados como provado em 2., não se encontrava em condições de conduzir com segurança, tendo, mesmo assim, decidido conduzir o ciclomotor supra referido, acabando por sofrer um despiste.
- Atuou de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a condução de veículos, na via pública, nas condições em que o fez, é proibida e punida pela lei penal.
Na motivação da decisão da matéria de facto foi escrito o seguinte:
«Nos termos do disposto no artigo 374.º n.º 2 do Código de Processo Penal, deve o Tribunal indicar as provas que serviram para formar a sua convicção e bem ainda proceder ao exame crítico das mesmas.
No caso sub judice a convicção do Tribunal sobre a factualidade considerada provada radicou na análise crítica e ponderada da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, globalmente considerada e de acordo com as regras da experiência comum.
O arguido não prestou quaisquer declarações, esclarecendo o tribunal apenas e só relativamente às suas condições pessoais, familiares e profissionais.
O militar da GNR, C…, que lavrou a participação de acidente de viação, referiu que o arguido assumiu, de forma espontânea, ter consumido haxixe “alguns dias antes” e que o mesmo se encontrava com discurso coerente e marcha correta, nada indiciando no seu comportamento que estivesse sob a influência de qualquer substância.
No que concerne à presença de substância estupefaciente no organismo teve este tribunal em consideração o teor do exame pericial de fls. 5 e 6, demonstrativo da quantia de substância acusada pelo arguido, após a produção do acidente e na data referida em 1.
De tal exame pericial decorre a ingestão prévia de produto estupefaciente de origem canabinóide, sendo que a tal conclusão não se opõe a análise da declaração junta pelo arguido respeitante ao seu acompanhamento pelo Centro de Respostas Integradas de Aveiro, sendo que em sede de análises regulares não é feita a pesquisa de cannabis e não sendo o princípio ativo da medicação a que se encontra sujeito semelhante ao acusado em exame de sangue constante de fls. 5 e 6.
Acresce que inexiste qualquer outro elemento pericial ou clínico complementar que auxilie na demonstração do efeito de tal substância na capacidade de condução do arguido, facto a que não será alheia a circunstância de tal exame ter decorrido de recolha no sangue e o resultado ter sido obtido em data posterior à recolha, o que coartou a possibilidade de realização de exames complementares.
No que concerne à (in)demonstração de que o arguido não estava desse modo em condições de exercer aquela condução de veículo automóvel, a prova produzida, de natureza testemunhal, revela-se insuficiente no sentido de permitir afirmar, com a certeza necessária, tal facto que constitui um nexo causal, suscitando-se, assim, a este Tribunal dúvida que terá de ser resolvida a favor do arguido.
Efetivamente, os militares da GNR ouvidos na qualidade de testemunha, D… e E…, referiram ter sido chamados ao local por ocorrência de um acidente de viação por meio de despiste e aí chegados verificaram que o arguido se encontrava ferido, que junto a si se encontrava um ciclomotor com marcas de embate, que o arguido ofereceu resistência à assistência médica, apresentando-se muito alterado e com discurso desconexo, se movimentava de forma desordenada, tendo sido transportado para o Hospital, local onde manteve o mesmo comportamento. Referiu o militar D…, de forma vívida, que o arguido apresentava um enorme “galo” na cabeça, facto que não foi confirmado pelo colega, que referiu não recordar tal pormenor, sendo certo que tal debilitou a credibilidade do primeiro. Referiu que não logrou integrar o comportamento anómalo do arguido em qualquer causa de apreensão imediata, tendo – antes de conhecedor do resultado do exame sanguíneo – considerado a hipótese de se dever a impacto na cabeça.
As declarações prestadas pela testemunha F…, residente nas imediações do local do acidente, que não assistiu à produção do acidente e não depôs de forma segura sobre o comportamento assumido pelo arguido, não revestiu relevância no esclarecimento do segmento factual relevante de demonstração de inexistência de condições para o ato da condução.
Assim, a demonstração do estado de alteração do arguido e a desconexão de discurso, no contexto vivenciado, de ocorrência de acidente de viação, surge elemento indiciário parco para a demonstração de que, por força da presença de produto estupefaciente no sangue, não se encontrava em condições de conduzir, tanto mais que resulta das declarações de um dos militares a ocorrência de embate na zona da cabeça, este passível de igualmente provocar alterações comportamentais.
Assim, os elementos apurados importam a conclusão pela não prova dos factos vertidos na acusação nos termos supra expostos, mediante a convocação do princípio do in dubio pro reo, basilar do ordenamento jurídico-penal, o qual “não constitui uma regra probatória em sentido próprio, i.e., uma regra relativa à produção ou valoração da prova, nomeadamente à dúvida sobre credibilidade de um dado meio de prova individualmente considerado, reportando-se, antes, às consequências da não realização de prova suficiente sobre a verdade ou falsidade de um facto, depois de concluído o processo de valoração da prova produzida.” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 09.02.2005 – Processo nº 0444034, in www.dgsi.pt).
Não é, naturalmente, qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido, mas sim uma dúvida motivada, a qual não é suscetível de ser ultrapassada com recurso a critérios objetivos na sua fundamentação, o que sucede in casu, atento o exposto e analisado supra.
No que concerne à situação pessoal e à personalidade do arguido teve este Tribunal em consideração as declarações pelo mesmo prestadas.
Mais se atendeu ao teor do certificado de registo criminal do qual nada consta, ao teor de fls. 19 a 23 (participação de acidente de viação) e 160.
Os factos dados como não provados decorrem da ausência de prova consistente da sua afirmação, nos termos supra expostos.»

Deixa-se consignado que a referência na motivação da decisão da matéria de facto da sentença recorrida ao “militar da GNR, C…, que lavrou a participação de acidente de viação” é manifesto lapso, porquanto dos autos não se recolhe qualquer intervenção de alguém com esse nome, estando o auto de «participação de acidente de viação» assinado pelo Guarda Principal D… (ouvido em julgamento) – fls. 29 –, pelo que se tem por não escrito o 4º parágrafo da motivação, a fls. 71, que acima se transcreveu em letra diferente (courier new).
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Prevê o art.º 292º, nº 2 do Código Penal o crime de «condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas», dispondo que nele incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.
Assim, são elementos integradores do crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópica:
a) a condução de veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada;
b) que o condutor se encontre sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica;
c) que devido à influência de tais estupefacientes, substâncias ou produtos, o condutor não esteja em condições de fazer com segurança tal condução; e
d) que o agente tenha atuado pelo menos com negligência.
Ou seja, não basta a presença de estupefaciente, substância psicotrópica ou produto com efeito análogo no corpo, sendo necessário que a mesma influencie e torne o condutor incapaz de conduzir com segurança, sendo este um facto a apurar.
À semelhança do que acontece com o crime de condução de veículo em estado de embriaguez (previsto no nº 1 do mesmo art.º 292º do Código Penal), também o crime aqui em causa é de qualificar como crime de perigo, ou seja, é valorado o mero perigo de lesão de bens jurídicos, e abstrato porquanto é a própria ação em si que é considerada perigosa, atendendo à experiência comum, independentemente de na situação concreta se ter criado um perigo de violação de determinados bens jurídicos, como seja a vida, a integridade física ou os interesses patrimoniais de outrem.
Todavia, o crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópica associa de forma inelutável a influência pelo consumo de estupefacientes à perturbação da aptidão para conduzir, pois a integração da conduta no tipo legal pressupõe que o agente não esteja “em condições de o fazer com segurança”.
Sendo assim, terá sempre que se demonstrar, em concreto, que a substância teve efeitos perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.
Tal está claro na «exposição de motivos» da Proposta de Lei nº 69/VIII[2] (que levou à Lei nº 77/2001, de 13 de julho, que alterou o Código Penal, entre o mais o art.º 292º acrescentando o nº 2), onde é referido a propósito do crime agora em causa: … criminaliza-se a condução sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, por via do aditamento de um n.º 2 ao artigo 292.º do Código Penal. A fundamentação da iniciativa incriminadora é idêntica à subjacente ao crime de condução em estado de embriaguez previsto no n.º 1 do referido artigo, dado que em ambas as situações se pode presumir perigo para a segurança da circulação rodoviária. / Este crime não se confunde com a contra ordenação prevista no Código da Estrada (alínea j) do artigo 147.º), nem com o crime de condução perigosa já previsto no artigo 291.º no Código Penal. Ao contrário do que sucede no âmbito do ilícito de mera ordenação social, ter-se-á de provar nesta nova incriminação que o agente não estava em condições de conduzir com segurança. Mas não será necessário provar a criação de um perigo concreto para bens jurídicos como a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de valor elevado, assim se distinguindo tal incriminação do crime previsto no artigo 291.º, que é mais grave.
Em resumo, impõe-se que se demonstre que o agente se encontrava a conduzir veículo na via pública ou equiparada, influenciado pelo consumo de produtos estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos de efeito análogo perturbador da aptidão física, mental ou psicológica, e se constate que o agente não estava em condições de exercer a condução com segurança.

No caso em apreço, ficou assente que o arguido conduzia ciclomotor na via pública e que na altura tinha consumido recentemente substâncias estupefacientes, apresentando 13 nanogramas por mililitro de tetrahidrocanabinol no sangue (pontos 1. e 2. dos factos assentes).
Mas já não ficou demonstrado que o arguido sabia que não se encontrava em condições de conduzir com segurança, não ficando, assim, demonstrado que o consumo de estupefacientes o impedia naquela ocasião de conduzir com segurança.
Importa primeiro saber como pode ser feita essa prova, designadamente se carece de prova médica ou pericial.

Ora, como se escreve no acórdão do TRE de 24.05.2016[3], a prova de que o condutor se encontrava em estado de influenciado por substâncias psicotrópicas terá de ser feita por algum dos meios médico-periciais respetivamente previstos nos arts. 12.º e 13.º do Regulamento anexo à Lei n.º 18/07 de 17/5, sendo admissível lançar mão do segundo apenas quando a produção do segundo se mostrar inviável, mas a demonstração de que o mesmo não está em condições de conduzir com segurança operar-se-á mediante a consideração de todo acervo probatório, pericial ou não (sublinhou-se).
Cita esse aresto, o acórdão também do TRE de 11.07.2013[4], no qual se refere de forma clara como pode ser feita a prova: Deste modo e por oposição ao seu nº 1 – relativo à condução sob o efeito de álcool – não basta, para o preenchimento do crime, que o condutor se encontre sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas, sendo necessário provar que isso o impede de exercer a condução com segurança. / Onde se discorda contudo, do atrás decidido é que essa conclusão apenas possa ser adquirida por via do exame médico que atrás se mencionou. / Na verdade, este exame visa assegurar que o condutor conduzia influenciado pelo consumo de estupefacientes, mas a valoração se tal consumo o impedia, ou não, de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência. / A insegurança
na condução dependerá, assim, do circunstancialismo do caso concreto, não se podendo olvidar o comum conhecimento dos efeitos do produto estupefaciente ou substância psicotrópica sobre o organismo humano e a noção, consabida, da diminuição que o seu consumo significativamente provoca em determinadas funções e aptidões humanas, nomeadamente, as necessárias para o exercício da atividade da condução. / Estamos, como se disse, perante um crime de perigo comum, contra a segurança das comunicações rodoviárias, que visa punir condutas que violem determinados bens jurídicos que necessitam de ser tutelados, face à dinâmica evolutiva da sociedade atual, nomeadamente, no que concerne aos avanços tecnológicos, suscetíveis de fazerem perigar o bem estar e segurança da comunidade em geral. / Sendo as características de tais substâncias sobejamente conhecidas pela comunidade em geral, o agente que exerce a condução sob o efeito do consumo de estupefaciente ou substância psicotrópica, sabe que tal consumo lhe diminuirá tais aptidões, e que, por via disso, poderá potenciar a criação de resultados anómalos e danosos, nomeadamente a ocorrência de acidentes de viação, colocando em causa a segurança da circulação rodoviária e, reflexamente, outros bens jurídicos penalmente tutelados, como a vida, a integridade física e o património de terceiros. / Ora, se assim é, não se pode fazer depender a verificação da falta de condições de segurança para a condução decorrentes do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de um elemento científico ou pericial que, em concreto, confirme que o agente, naquela determinada ocasião, não se encontrava na posse da totalidade das suas aptidões ou capacidades para o exercício da condução. / Essa exigência, de demonstração cirúrgica, de que o condutor tinha esta ou aquela função diminuída, em função do consumo daquele tipo de produto ou substância, só assim se podendo concluir que não podia conduzir com segurança, seria, na prática, quase irrealizável, ou pelo menos, faria recair a demonstração do crime naquilo a que comummente se denomina por prova diabólica. / Não se fala aqui de estabelecer um qualquer nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de drogas no sangue e o acidente ocorrido, mas apenas de se consignar uma verdade que parece ser pouco discutível: a de que quem conduz influenciado sob o efeito de tais substâncias está a colocar em perigo, não só a sua vida e integridade física, mas também, a vida e a integridade física de todos aqueles com quem se cruza na estrada. / Se assim não fosse seria incompreensível a inserção sistemática efetuada pelo legislador no que respeita ao crime em referência. / Ora, se a prova da influência do consumo de estupefacientes sobre o condutor terá de resultar de perícia médica, já a demonstração de que tal consumo o impedia de conduzir com segurança pode e deve, ser logrado, com todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória responsável, ponderando o caso concreto e apoiando-se, como em toda a atividade jurisdicional, no conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida (sublinhou-se).
Assim, assentamos que a prova da perturbação da condução por estar o agente sob a influência de estupefacientes, pode ser alcançada por outros meios que não a prova pericial, como seja pela prova testemunhal.

No caso sub judice, o tribunal a quo convocou o princípio in dubio pro reo para dar como não provados os factos que permitiriam dizer que o consumo de estupefacientes impediam naquela ocasião o arguido de conduzir com segurança.
Tal princípio, sendo corolário da garantia constitucional da presunção de inocência (art.º 32.º, n.º 2, CRP), constitui princípio probatório, dirigido à apreciação dos factos objeto de um processo penal e impõe que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos imputados ao arguido, o tribunal deve decidir a favor deste.
Portanto, a aplicação do princípio in dubio pro reo tem lugar somente quando se verifique a existência de dúvida razoável e insanável quanto à verificação de certa factualidade.
O princípio de inocência in dubio pro reo, deve estar sempre presente na mente do julgador, mas por outro lado deve conjugar-se com a observância do princípio da livre apreciação da prova, cabendo ao julgador fazer uma apreciação crítica da conjugação dos vários elementos probatórios, valorando e credibilizando uns em detrimento de outros.
Como é sabido, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção (cfr. art.º 127º do Código de Processo Penal), regendo, pois, o princípio da livre apreciação da prova, o qual significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Só quando for impossível chegar a um juízo de certeza, perante uma dúvida irremovível, é que o tribunal na dúvida deve decidir a favor do arguido, em obediência à presunção de inocência de que beneficia.
Assim, no caso sub judice podemos reformular a pergunta a que importa responder deste modo: estamos perante um non liquet que se impõe valorar em sentido favorável ao arguido – como aconteceu na decisão sob recurso – ou se com a prova produzida foi destruída a presunção da inocência, de modo que os factos não provados devem ser considerados como provados – como defende o recorrente?

Ora, no caso em apreço aquilo que ressalta é que antes de se poder falar numa situação de non liquet se impunha complementar a prova produzida, porquanto não se nos afigura que se tenha esgotado o
apuramento dos factos que era possível apurar, ou seja, ter-se chegado ao ponto em que já se pudesse dizer estar-se perante uma situação de dúvida irremovível, como se passa a explicar.
É que, está em causa saber se deve ser considerado assente que o arguido não estava em condições de exercer a condução com segurança, e tal facto, na ausência de prova pericial, terá que ser demonstrado com recurso a outro meio de prova.
E, atendendo a que a prova testemunhal não teve a perceção direta desse facto, terá que ser com recurso a prova indireta, com base em factos de que as testemunhas tiveram perceção e que têm uma ligação direta e precisa, segundo as regras da experiência comum, com esse facto (que se pretende demonstrar).
Com efeito, é claro que para concluir estar-se perante uma situação que não é de non liquet pode o tribunal suportar-se em provas indiretas (total ou parcialmente).
Na verdade, é possível em processo penal o recurso à denominada “prova indiciária”[5], a qual está ligada a factos que, não sendo representações dos factos a provar, permitem contudo afirmar, isoladamente ou em conjugação com outros meios de prova, com maior ou menor probabilidade, que os factos a provar existiram ou, ao invés, não existiram [6].
Como se escreveu no Acórdão do STJ de 06.02.2014[7], na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica do juiz.
A prova indiciária realizar-se-á, para tanto, através de três operações: em primeiro lugar a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento; a prova indiciária parte de um facto certo, conhecido, para por presunção se concluir outro, desconhecido, mas em relação causal com o indiciante.
A lógica tratará de explicar o correto da inferência e será a mesma a outorgar à prova capacidade de convicção.
Assim, os indícios devem ser sujeitos a uma constante verificação que incida não só sobre a sua demonstração como também sobre a capacidade de fundamentar uma lógica dedutiva; devem ser independentes, firmes e concordantes entre si.
Requisito de ordem material é estarem os indícios completamente provados por prova direta, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.
O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência [8].
Ou ainda, como se retira do Ac. do STJ de 07.04.2011[9], a avaliação dos indícios pelo juiz implica uma especial atenção que devem merecer os factos que concorrem em sentido oposto, os contraindícios também eles valorados livremente pois é da sua superação que podem impor-se como tal; o funcionamento do contra indício, ou do indício de teor negativo, tem como pressuposto básico a afirmação de uma regra de experiência que permita, perante um determinado facto, a afirmação de que está empobrecida a presunção de culpabilidade à luz das regras de experiência, concebidas como critérios generalizantes de inferência lógica e que permitem, de acordo com o que é usual ocorrer em casos semelhantes e extrair uma conclusão segura de que também assim deverá ser.
Parte-se do pressuposto de que “em casos semelhantes existe um idêntico comportamento humano” (id quod plerumque accidit), e este relacionamento permite afirmar um facto histórico não com plena certeza mas, como uma possibilidade mais ou menos ampla.
A máxima da experiência é uma regra e, assim, não pertence ao mundo dos factos. Consequentemente, origina um juízo de probabilidade e não de certeza.
Os indícios, devem ser valorados conjuntamente com as demais provas e não isoladamente, desconexos; hão de ser graves, resistentes às objeções; e ter uma elevada carga de persuasividade, como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade.
Por seu turno, o indício é preciso quando não é suscetível de outras interpretações; o facto indiciante deve estar amplamente provado e, por fim devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão do facto indiciante, assim se convertendo o conhecimento provável, encoberto, em conhecimento límpido e firme à luz do dia.

Neste âmbito, a Mmª Juiz concluiu estar perante uma situação de non liquet que se impõe valorar em sentido favorável ao arguido referindo: a demonstração do estado de alteração do arguido e a desconexão de discurso, no contexto vivenciado, de ocorrência de acidente de viação, surge elemento indiciário parco para a demonstração de que, por força da presença de produto estupefaciente no sangue, não se encontrava em condições de conduzir, tanto mais que resulta das declarações de um dos militares a ocorrência de embate na zona da cabeça, este passível de igualmente provocar alterações comportamentais.
O recorrente contrapõe, para concluir não haver dúvida razoável e insanável: a circunstância de ter resultado apurado que o arguido sofreu um despiste, quando conduzia um veículo (automóvel) sob a influência de estupefacientes, apresentando após a sua verificação um discurso desconexo, é suficientemente demonstrativo, em face da experiência comum e da normalidade das coisas, de que o mesmo não se encontrava em condições de efetuar uma condução segura.

Ora, está assente que o arguido conduzia na via pública ciclomotor sob a influência de substâncias estupefacientes que havia consumido e despistou-se, e, ouvidos os depoimentos dos militares da GNR que estiveram na ocorrência, podemos ter com assente, como “facto básico”, que o arguido nessa altura apresentava um discurso desconexo e um comportamento que se pode dizer de agitação.
Considerando apenas esse facto, ou seja, a não existir outro facto que interfira em retirar essa conclusão, apelando às regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida, esse facto levaria nos a dizer – “facto consequência” – que o arguido não se encontrava em condições de efetuar uma condução segura, pois são consabidas as consequências do consumo de estupefacientes (em geral) na condução de veículos, que levaram o legislador a criar um tipo legal de perigo abstrato como se deixou expresso supra.
Todavia, no caso em análise, o arguido ao despistar-se, o ciclomotor que conduzia embateu num muro, e ouvidos ambos os depoimentos dos militares da GNR que estiveram na ocorrência e no hospital, pode também ter-se por indiciado que o arguido embateu com a zona da cabeça (sendo até referido, por D…, que o capacete poderá ter-se soltado com a colisão, caso o arguido seguisse sem estar apertado com a fivela).
Só que, não estão no processo registos clínicos relativos à ida do arguido ao hospital, que poderiam esclarecer que ferimentos apresentava e em que zona do seu corpo, e até, quem sabe, se os mesmos interferiram nessa desconexão do discurso.
Acresce que, não esclarecendo o Relatório de fls. 5 qual o nível da interferência na condução da presença de 13 nanogramas por mililitro de tetrahidrocanabinol no sangue, quando o arguido havia consumido recentemente substâncias estupefacientes, impunha-se questionar o INML (ouvindo diretamente perito – presencialmente ou com recurso a videoconferência –, ou solicitando a informação por escrito) sobre essa interferência.
Ou seja, sem esclarecer essas questões, que estão ao alcance do tribunal de forma fácil, não podemos partir para a afirmação de que estamos perante uma dúvida razoável e insanável quanto à verificação da factualidade em causa: o arguido não se encontrava em condições de conduzir com segurança.
O mesmo é dizer, sem esclarecer essas questões, não podemos partir para a aplicação do princípio in dubio pro reo.

Chegando a esta conclusão, pergunta-se que solução merece a situação.
Ora, dispõe o nº 2 do art.º 410º do Código de Processo Penal, que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) erro notório na apreciação da prova.
Estes vícios da sentença são de conhecimento oficioso (cfr. acórdão do STJ uniformizador de jurisprudência nº 7/95, de 19 de outubro[10]).
Assim, detenhamo-nos na al a), que prevê a insuficiência para decisão da matéria de facto provada, que significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão (por exemplo, para a escolha ou determinação da pena)[11].
No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente, que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa[12].
Este vício há de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, aquilo que é usual acontecer e que funcionam como critérios de orientação da decisão, probabilidades forte de acontecimento, critérios generalizantes de inferência lógica.
Abre-se um parêntesis para referir que a insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a alegação da insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados: na primeira critica-se o tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda
censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal.
Ora, conjugando com o acima exposto, concluímos que o tribunal a quo deixou de indagar todos os factos que deviam ter sido apurados em audiência necessários para a decisão a tomar, estando por apurar factos necessários para se poder dizer que é insanável a dúvida sobre o facto o arguido não se encontrava em condições de conduzir com segurança.
Com efeito, sem apurar quais as lesões apresentadas pelo arguido na sequência do despiste e sem apurar qual o efeito na condução da presença no sangue de 13 nanogramas por mililitro de tetrahidrocanabinol, não é possível concluir haver essa dúvida insanável, existindo uma lacuna na averiguação dos factos.
E o art.º 340º do Código de Processo Penal prevê que o tribunal ordene, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, dando conhecimento (no caso de não constarem da acusação ou pronúncia) com a antecedência possível aos sujeitos processuais.
A consequência deste vício da sentença é o reenvio para novo julgamento, conforme prevê o art.º 426º, nº 1 do Código de Processo Penal, no caso limitado ao apuramento das questões acima identificadas.
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DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em anular a sentença proferida por se verificar o vício previsto na al. a) do nº 2 do art.º 410º do CPP, em consequência, ao abrigo do disposto no art.º 426º, nº 1 do Código de Processo Penal, reenviar o processo para novo julgamento relativamente às questões supra enunciadas, a saber:
- quais as lesões apresentadas pelo arguido na sequência do despiste sofrido?
- qual o efeito na condução da presença no sangue de 13 nanogramas por mililitro de tetrahidrocanabinol?
para após ser proferida nova sentença.
Sem tributação o recurso.
Notifique.
(texto processado e revisto pelo relator, impresso em frentes e versos)
Porto, 20 de fevereiro de 2019
António Luís Carvalhão
Borges Martins
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[1] As transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada.
[2] Consultável no site da Assembleia da República.
[3] Consultável em www.dgsi.pt processo nº 20/12.2PTBJA.E1.
[4] Também consultável em www.dgsi.pt, processo nº 109/11.5GCSTB.E1.
[5] No Acórdão do TC nº 521/2018, de 17.10.2018 (consultável em www.tribunalconstitucional.pt processo 321/2018), decidiu-se não julgar inconstitucional o art.º 125º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal.
[6] Vd. o Sr. Desembargador Alberto Augusto Vicente Ruço, in “Prova e Formação da Convicção do Juiz”, Almedina/CJ, pág. 223, e Patrícia da Silva Pereira, “Prova Indiciária no Âmbito do Processo Penal”, Almedina, 2017, págs. 107ss.
[7] Consultável em www.dgsi.pt processo nº 417/11.5GBLLE.E1.S1.
[8] Naquele aresto do STJ é citado o Ac. do STJ de 12.09.2007, consultável em www.dgsi.pt proc. nº 07P4588.
[9] Igualmente citado naquele aresto do STJ, consultável em www.dgsi.pt Proc. nº 936/08.0 JAPRT.S1.
[10] Publicado no DR, Iª série, de 28.12.1995.
[11] Sobre este vício vd. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, “Recursos Penais”, 8ª ed. 2011, Rei dos Livros, págs. 74-76 (em especial o Ac. do STJ de 18.11.1998 citado).
[12] vd. Ac. do TRL de 18.07.2013, consultável no sítio da Procuradoria Geral Distrital de Lisboa em nota ao art.º 410º do Código de Processo Penal.