Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1222/20.3T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP202205231222/20.3T8PVZ.P1
Data do Acordão: 05/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Devendo o dano biológico ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica do lesado, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho.
II - Nos casos em que não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que, só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.
III - Revela-se excessivo o montante de € 40.000,00 fixado a título de danos não patrimoniais quando o lesado apenas foi sujeito a tratamentos de fisioterapia e outros tratamentos fisiátricos, teve um quantum doloris de grau 5 numa escala de 1 a 7, dano estético de grau 3 também numa escala de 1 a 7, apresenta queixas de disestesias, perdeu o interesse pelo convívio e as limitações e dores fazem-no sentir-se deprimido e revoltado, razão pela qual esse montante indemnizatório deve antes ser fixado em € 30.000,00.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1222/20.3T8PVZ.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim-J5
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., ..., Fafe veio propor a presente acção declarativa de condenação contra X...-Companhia de Seguros, S.A., com sede na Av. ..., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global líquida de € 108.550, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal desde a citação e até integral pagamento.
Alega, em síntese, que no dia 17 de Maio de 2018, pelas 5h34, o veículo matrícula ..-UD-.., com seguro na Ré, onde seguia como único passageiro, despistou-se ao km 21,090 da autoestrada ..., na saída para Santo Tirso, considerando o sentido Porto–Vila Nova de Famalicão–Braga, em virtude de o seu condutor ter perdido o controlo do mesmo por não ter reduzido atempadamente a velocidade de modo a descrever a curva com segurança.
Refere que, à data, exercia a profissão de motorista, auferindo € 870, acrescido de subsídio de alimentação de € 2,40 por dia; devido ao acidente, perdeu a consciência, tendo sofrido traumatismo crânio-encefálico e torácico, assim como fraturas de vértebras, de arcos costais e da clavícula esquerda; esteve internado até 20 de Junho, imobilizado e dependente de terceiros, após a alta foi-lhe imposto repouso absoluto e uso de colar cervical e colete quando pretendesse levantar-se, foi acompanhado em consultas e submeteu-se a tratamento fisiátrico, padecendo de sequelas; sofreu dores e incómodos com os tratamentos e deslocações, esteve limitado na vida familiar e impedido do convívio com ami-gos, sente dores a carregar e descarregar veículos e a conduzir, tendo ficado com diversas cicatrizes; entende que ficou a padecer de 12 pontos no que toca ao dano biológico pretendendo ser compensado em € 70.000, refere que a Ré lhe deve € 1.050 a título de ITP entre 26 de Fevereiro e 8 de Abril de 2019 e reclama a título de danos não patrimoniais € 7.500 e € 30.000.
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A Ré contestou contrapondo que o demandante esteve com ITA desde 17 de Maio de 2018 a 25 de Fevereiro de 2019 e daí até 8 de Abril do mesmo ano com ITP de 50%; tendo alta na última data, ficou com sequelas pelas quais foi fixado o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 9 pontos, bem como quantum doloris de 5/7 e dano estético de 3/7; referiu que o demandante pôde começar a trabalhar a partir de 26 de Fevereiro de 2019 com a referida ITP.
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Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que se pronunciou pela validade e regularidade dos pressupostos processuais.
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Identificado o litígio, foram enunciados os temas da prova, sem reclamação.
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Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo.
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A final foi proferida decisão que julgou parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, condenou a Ré X...-Companhia de Seguros, S.A. a pagar ao Autor AA:
a) a quantia de € 23.500 a título de dano biológico, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde 11 de Dezembro de 2020, até integral e efetivo cumprimento;
b) a quantia de € 40.000, a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a presente data, até integral e efetivo cumprimento.
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Não se conformando com o assim decidido veio Ré interpor o presente recurso, rematando com as seguintes conclusões:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir:
a)- saber se o montante fixado a título de danos não patrimoniais é, ou não, excessivo;
b)- saber se o montante indemnizatório fixado pelo tribunal recorrido a título de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica sofrido pelo Autor, se encontra, ou não, correctamente fixado.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que o tribunal de 1ª instância deu como provada:
1. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ... A..., Ld.ª transferiu para a Ré a responsabilidade pelos danos causados a terceiro pelo veículo marca Citröen modelo ..., matrícula ..-UD-.. [alínea A) do despacho em referência e documento de fls. 40].
2. O Autor nasceu a .../.../1963 [alínea B) do despacho em referência e documento de fls. 13 vº].
3. No dia 17 de Maio de 2018, pelas 5h34, o veículo identificado em 1) circulava na autoestrada ..., ao km 21,090 no sentido Porto/Vila Nova de Famalicão/Braga [alínea C) do despacho em referência].
4. O UD pertencia a A..., Ld.ª [alínea D) do despacho em referência].
5. No momento referido em 3) o UD era conduzido por BB ao serviço e por conta A..., Ld.ª [alínea E) do despacho em referência].
6. O local referido em 3) configura uma curva à esquerda para os veículos que pretendam manter-se a circular na ... e saída à direita para Santo Tirso, atento o sentido do UD, com inclinação acentuada [alínea F) do despacho em referência].
7. No momento referido em 3) o piso encontrava-se limpo, seco e em bom estado de conservação [alínea G) do despacho em referência].
8. O condutor do UD não diminuiu a velocidade de modo a descrever a curva [alínea H) do despacho em referência].
9. O UD circulava na faixa da direita, na saída para Santo Tirso, indo colidir no BPD– baia direcional para balizamento de pontos de convergência [alínea I) do despacho em referência].
10. Após, transpôs as guardas metálicas e acabou por capotar, imobilizando-se com as rodas viradas para cima [alínea J) do despacho em referência].
11. O Autor seguia como passageiro do UD viajando no banco ao lado do condutor [alínea K) do despacho em referência].
12. Após o acidente, o Autor ficou inconsciente, tendo recuperado a consciência no Hospital ..., no Porto [alínea L) do despacho em referência].
13. Aí foi submetido a vários exames complementares de diagnóstico como TAC cerebrais, à face, à coluna cervical, ao tórax e realizou diversas análises clínicas [resposta ao artigo 22º da petição inicial].
14. Devido ao acidente, o Autor sofreu lesões na vertente posterior do 2º ao 5º arco costais à direita, do 1º ao 5º arcos costais à esquerda, na clavícula esquerda, fratura em C1 e C2, fratura do corpo de D4 e da apófise transversa de D1 e TCE com hemorragia subaracnoideia, com perda de consciência [alínea M) do despacho em referência].
15. A fratura do corpo de D4 foi cominutiva e envolveu a apófise transversa direita com hematoma para-vertebral com 9 mm de espessura [resposta ao artigo 21º da petição inicial].
16. A fratura de C1 e C2 aludida em 14) referia-se ao maciço articular esquerdo, apresentando desalinhamento dos bordos ósseos e pequeno fragmento ósseo desviado medialmente [resposta ao artigo 21º da petição inicial].
17. No momento da admissão Hospital ... a hemorragia referida em 14), era aguda mas não necessitou de cuidados por neurocirurgia [resposta ao artigo 21º da petição inicial].
18. O Autor efetuou tratamento conservador com colar cervical e colete de Jewet [alínea N) do despacho em referência].
19. Durante o internamento no Hospital ..., o Autor foi medicado com anti-inflamatórios e analgésicos, designadamente, morfina administrada a 17, 19 e 31 de Maio [resposta ao artigo 23º da petição inicial].
20. No período de internamento no Hospital ... o Autor mantinha-se no leito em repouso onde lhe era dado banho e recebia auxílio para a realização das suas necessidades fisiológicas, salvo a 30 de Maio e 4 de Junho datas em que prestou autocuidados de banho, arranjo, higiene pessoal e de vestuário [resposta ao artigo 27º da petição inicial].
21. Em 5 de Junho de 2018 foi transferido para o Hospital 1... onde se manteve internado até 20 de Junho seguinte [resposta aos artigos 24º, 26º, 46º da petição inicial].
22. Nessa unidade de saúde foi decidido manter o tratamento conservador, o uso de colar cervical e mobilização em bloco [resposta ao artigo 25º da petição inicial].
23. No segundo momento referido em 21) o Autor teve alta orientado para a consulta externa de ortopedia do mesmo hospital para daí a cerca de 4 semanas [resposta ao artigo 30º da petição inicial].
24. Teve indicação para fazer repouso no leito e evitar esforços, usar colar cervical e colete quando se levantasse até ao momento referido em 23) [resposta ao artigo 31º da petição inicial].
25. Foi-lhe prescrita medicação analgésica para toma em SOS [resposta ao artigo 32º da petição inicial].
26. No âmbito da consulta externa, no dia 14/08/2018 o Autor realizou um exame médico onde se confirma uma “depressão das plataformas vertebrais de D4, com traços de fractura, a que se associa áreas de esclerose reactiva no contexto de fracturas em fase subaguda. Condiciona discreto recuo da vertente inferior do muro posterior, sem aparente compromisso sobre as estruturas nervosas endocanalares. Coexiste traço de fractura na apófise transversa direita de D4, nos arcos costais bilaterais de D4, apófise transversa direita de D3 e eventualmente de D1. Aparente traço de fractura recente na vertente anterior da plataforma vertebral superior de D3 [alínea O) do despacho em referência].
27. A par da consulta externa de ortopedia, o Autor começou a ser seguido pelos serviços clínicos da Ré, na O... [alínea P) do despacho em referência].
28. Por indicação destes serviços, o Autor realizou várias consultas de ortopedia e tratamento fisiátrico, na Clínica ... [alínea Q) do despacho em referência].
29. Ao nível da ortopedia, o Autor teve de se deslocar à T..., no Porto [alínea R) do despacho em referência].
30. As deslocações referidas em 29) tiveram lugar a 9 de Julho, 13 de Agosto, 10 de Setembro, 8 e 22 de Outubro, 10 de Dezembro de 2018, 25 de Fevereiro e 8 de Abril de 2019 [resposta ao artigo 36º da petição inicial].
31. O Autor realizou tratamento fisiátrico nos períodos de 9 a 31 de Outubro, 2, 5 a 9, 12 a 16, 19 a 23, 26 a 30 de Novembro, 3, 7, 12 a 14, 17 a 21, 24, 26 a 28, 31 de Dezembro de 2018, 2 a 4, 7 a 10, 22, 25, 28 a 31 de Janeiro, 1, 4 a 8, 11 a 15, 18 a 21 de Fevereiro de 2019 [resposta ao artigo 37º da petição inicial].
32. O tratamento referido em 31) consistia em estimulação elétrica de pontos motores, fortalecimento muscular, imersão com aplicação em parafango, massagem manual e técnicas de cinesiterapia [resposta ao artigo 38º da petição inicial].
33. Apesar dos tratamentos fisiátricos, em 4 de Janeiro de 2019 o Autor apresentava alguma rigidez cervical, fazendo rotações limitadas por dor, rigidez na flexão lombar limitada por dor e dor à palpação PV lombares [resposta ao artigo 39º da petição inicial].
34. Após a alta hospitalar e até 30 de Julho de 2018, o Autor necessitou do auxílio da esposa para tomar banho, vestir-se, calçar-se, bem como para colocar o colete e o colar cervical [resposta ao artigo 50º da petição inicial].
35. No período de internamento o Autor esteve impedido de conviver com os amigos e familiares [resposta ao artigo 51º da petição inicial].
36. Após a alta hospitalar e até 21 de Fevereiro de 2019, o Autor mantinha uma rotina centrada na frequência de consultas e tratamentos de fisioterapia [resposta ao artigo 52º da petição inicial].
37. As circunstâncias referidas em 36) limitavam a disponibilidade do Autor para o convívio com amigos e familiares [resposta ao artigo 51º da petição inicial].
38. As deslocações e viagens ao Porto e a Fafe causavam ao Autor incómodos, mau estar físico e dores [resposta ao artigo 41º da petição inicial].
39. Em resultado do acidente o Autor esteve totalmente impedido de trabalhar entre a data do acidente e 25 de Fevereiro de 2019 e ITP de 50% entre 26 de Fevereiro e 8 de Abril de 2019 [resposta aos artigos 47º da petição inicial e 10º da contestação].
40. No período referido em 39) o Autor viu a sua autonomia limitada no que diz respeito à sua vida familiar e social [resposta ao artigo 46º da petição inicial].
41. A Ré entendeu dar a alta dos seus serviços ao Autor em 8 de Abril de 2019, fixando em 9 pontos o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, o quantum doloris em 5/7 e o dano estético em 3/7 [alínea S) do despacho em referência].
42. Apesar da consolidação das lesões em 8 de Abril de 2019, o Autor ficou a padecer das seguintes sequelas:
a) rigidez global da coluna cervical com “estalidos” à mobilização, pior nas rotações e inclinações;
b) dor à palpação das apófises espinhosas cervicais;
c) dorsalgias residuais com dor à palpação dos músculos para-vertebrais dorso-lombares e apófises espinhosas dorsais;
d) toracalgia residual;
e) limitação da mobilidade/rigidez muito ligeira do ombro direito;
f) cicatriz em “V” invertido na região frontal, à direita da linha média com dois componentes de 7 cm e 6 cm, respetivamente;
g) cicatriz de 4 cm na região supra-clavicular [resposta aos artigos 53º, 59º, 60º da petição inicial].
43. As sequelas identificadas em 42) a) a e) correspondem a défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 11 pontos (Md 803-4 pontos, Md0903-4 pontos, Mf 1202-1 ponto e Mf 1401-2 pontos), compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual mas a implicar esforços suplementares [resposta aos artigos 61º, 63º, 64º da petição inicial, 11º da contestação].
44. Devido às sequelas o Autor queixa-se de dificuldades acrescidas ao levantar pesos e ao fazer esforços com os membros superiores levantados ao nível dos ombros [resposta ao artigo 54º da petição inicial].
45. Também se queixa de dores no tórax quando carrega pesos ou cargas, o mesmo sucedendo no ombro direito bem como quando faz esforços braçais [resposta ao artigo 56º da petição inicial].
46. O Autor sente dificuldades na condução prolongada e nas cargas e descargas de viaturas por cervicalgias nos movimentos de rotação do pescoço e dorsalgias, recorrendo à ajuda de colegas para movimentar cargas mais pesadas [resposta aos artigos 55º, 56º 57º, 63º da petição inicial].
47. As cicatrizes referidas em 42) f) e g) correspondem a dano estético de grau 3 numa escala de 1 a 7 [resposta aos artigos 77º da petição inicial, 12º da contestação].
48. O Autor queixa-se de disestesias na zona das cicatrizes [resposta ao artigo 53º da petição inicial].
49. As lesões e os tratamentos causaram ao Autor dores de grau 5 numa escala de 1 a 7 [resposta aos artigos 40º, 48º, 76º da petição inicial, 12º da contestação].
50. Na data referida em 3) o Autor exercia a profissão de motorista na sociedade C..., Ld.ª auferindo uma retribuição mensal de € 870, acrescida de € 2,40/dia de subsídio de alimentação, descontando € 10,60% de imposto e 11% para a Segurança Social [resposta ao artigo 17º da petição inicial].
51. Antes do acidente o Autor era alegre e divertido e gostava de conviver com os amigos e familiares [resposta aos artigos 18º, 19º, 68º, 69º, 70º, 71º, 72º da petição inicial].
52. Após o acidente, devido às dores, o Autor perdeu o interesse pelo convívio [resposta ao artigo 73º da petição inicial].
53. As limitações e dores fazem o Autor sentir-se deprimido e revoltado [resposta ao artigo 74º da petição inicial].
54. Em 9 de Abril de 2019 a Ré propôs ao Autor uma indemnização no valor global de € 14.173,40, sendo:
- € 7.797,33 de dano biológico;
- € 1.800,27 de quantum doloris;
- € 2.700 de dano estético;
- € 1.350 referente a internamento;
- € 525 por ITP de 50% de 26 de Fevereiro a 8 de Abril de 2019 [resposta ao artigo 45º da pe-tição inicial].
55. No período entre 17 de Maio de 2018 e 8 de Abril de 2019 o Autor recebeu da Segurança Social o montante de € 10.000 a título de subsídio de doença e da entidade patronal € 588,88 nos meses de Fevereiro e Maio de 2019 [resposta ao artigo 67º da petição inicial].
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Factos não provados
Não se provou que:
a) antes do acidente o Autor era uma pessoa saudável;
b) o Autor também precisava que o auxiliassem na sua alimentação;
c) a situação referida em 42) e 43) irá agravar-se necessariamente com o avançar da idade do Autor.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que vem colocada no recurso prende-se com:
b)- saber se o montante fixado a título de danos não patrimoniais é, ou não, excessivo.
Na decisão recorrida fixou-se a este título o montante de € 40.000,00.
Com este montante não concorda a Ré apelante, alegando que o referido valor se devia situar nos € 23.500,00.
Quid iuris?
Os danos não patrimoniais são indemnizáveis, quando pela sua gravidade, merecerem a tutela do direito, conforme o artigo 496.º, nº 1, do C. Civil, consequência do princípio da tutela geral da personalidade previsto no artigo 70.º do mesmo diploma legal.
A gravidade mede-se por um padrão objectivo, conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias concretas; por outro lado, aprecia-se em função da tutela do direito. Neste caso o dano é de tal modo grave que justifica a concessão da indemnização pecuniária aos lesados.
Existem danos não patrimoniais sempre que é ofendido objectivamente um bem imaterial, cujo valor é insusceptível de ser avaliado pecuniariamente. Nestes casos, a indemnização visa proporcionar ao lesado “uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível) que lhe permita obter prazeres ou distracções-porventura de ordem espiritual-que, de algum modo, atenuem a sua dor”.[1]
E, o montante da indemnização, nos termos dos artigos 496.º, nº 3 e 494.º do Código Civil, será fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante às demais circunstâncias que contribuam para uma solução equitativa, bem como aos critérios geralmente adoptados pela jurisprudência e às flutuações do valor da moeda.[2]
No caso que nos ocupa, o dano violado foi a integridade física do Autor, que viu o acidente causar-lhe danos corporais que deixaram sequelas.
Assim, releva no prisma–danos não patrimoniais–a seguinte factualidade:
“- Após o acidente, o Autor sofreu perda de consciência, que recuperou no Hospital ... no Porto para onde foi transportado;
- submetido a exames complementares de diagnóstico como TAC cerebrais, à face, à coluna cervical, ao tórax e análises clínicas, com apuramento das lesões resultantes o sinistro, ficou internado tendo os médicos optado por tratamento conservador com colar cervical e colete de Jewet, complementado com mediação anti-inflamatória e analgésica, designadamente, morfina, administrada a 17, 19 e 31 de Maio.
- Entre a data da admissão e 5 de Junho seguinte, o demandante mantinha-se no leito, em repouso, sendo aí providenciado banho e auxílio para a realização das suas necessidades fisiológicas, salvo a 30 de Maio e 4 de Junho, datas em que foi capaz de assumir os cuidados de banho, arranjo, higiene pessoal e de vestuário.
- Durante cerca de seis semanas após a alta hospitalar, o demandante necessitou do auxílio da esposa para tomar banho, vestir-se, calçar-se, bem como para colocar o colete e o colar cervical
- Frequentou a consulta externa de ortopedia passando, também, a ser acompanhado pelos serviços clínicos da Ré, na O..., com consultas de ortopedia no Porto nos dias 9 de Julho, 13 de Agosto, 10 de Setembro, 8 e 22 de Outubro, 10 de Dezembro de 2018, 25 de Fevereiro e 8 de Abril de 2019 e tratamentos de fisiatria em Fafe, traduzidos na combinação das técnicas de estimulação elétrica de pontos motores, fortalecimento muscular, imersão com aplicação em parafango, massagem manual e cinesiterapia, num total de 72 sessões, com frequência diária interrompida nos dias feriados e de fim de semana, concretizadas no período entre 29 de Outubro de 2018 e 21 de Fevereiro de 2019.
- As lesões e os tratamentos foram causa de sofrimento considerável já que se traduziram em quantum doloris de grau 5 numa escala de 1 a 7, além de que, a nível de sequelas, resultaram cicatrizes, uma em “V” invertido na região frontal, à direita da linha média com dois componentes de 7 cm e 6 cm, respetivamente e outra de 4 cm na região supra-clavicular, correspondentes a dano estético de grau 3 numa escala de 1 a 7 e queixas de disestesias.
- A recuperação do Autor permitiu que, a partir de 26 de Fevereiro de 2019, tivesse ficado com incapacidade temporária parcial a 50% e que regressasse ao exercício da atividade profissional até à data da alta e de consolidação das lesões, com sequelas, a 8 de Abril do mesmo ano.
- Tais sequelas, são vividas como limitações dadas as queixas de:
- dificuldades acrescidas ao levantar pesos e ao fazer esforços com os membros superiores le-vantados ao nível dos ombros;
- dores no tórax quando carrega pesos ou cargas;
- dores no ombro direito quando carrega pesos ou cargas e faz esforços braçais;
- dificuldades na condução prolongada;
- dificuldades nas cargas e descargas de viaturas por cervicalgias nos movimentos de rotação do pescoço e dorsalgias, que determinaram que passasse a recorrer à ajuda dos Colegas para movimentar cargas mais pesadas.
- Após o acidente, o Autor, que era pessoa alegre, divertida e gostava de conviver com familiares e amigos, perdeu o interesse pela socialização devido às dores, as quais, bem como as limitações, fazem com que se senta deprimido e revoltado”.
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Importa por outro lado sopesar que o acidente foi causado por culpa exclusiva do condutor do veículo de matrícula ..-UD-.. que não adequou a velocidade do mesmo as características da via.
Realçando a componente punitiva da compensação por danos não patrimoniais pronunciam-se no seu ensino os tratadistas.
Assim, Menezes Cordeiro[3] ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”.
Galvão Telles[4] sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima–na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”.
Menezes Leitão[5] realça a índole ressarcitória/punitiva, da reparação por danos morais quando escreve: “assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, de forma a desagravá-la do comportamento do lesante”.
Pinto Monteiro[6], de igual modo, sustenta que, a obrigação de indemnizar é “uma sanção pelo dano provocado”, um “castigo”, uma “pena para o lesante”.
Por outro lado, ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “factie specie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.
Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para o raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto, sendo que, nesta ponderação de valores, tem-se defendido que os montantes não poderão ser tão escassos que sejam objectivamente irrelevantes, nem tão elevados que ultrapassem as disponibilidades razoáveis do obrigado ou possam significar objectivamente um enriquecimento injustificado.[7]
Assim, e a título meramente exemplificativo, constata-se o seguinte:
Acórdãos do STJ:[8]
- No acórdão de 15/01/2004 em que foi atribuída a verba de 10.951,92 € relativamente a uma lesada de 24 anos de idade, que ficou a padecer de uma IPP de 10%, a qual ficou portadora de várias cicatrizes, uma delas com 22 cm, na coxa, no sobrolho, no rosto, zona ilíaca, joelho direito, tendo sofrido enormes dores e três intervenções cirúrgicas.
- No acórdão de 16/09/2008, tendo-se provado que o autor sofreu dilaceramento do fígado com hemorragia interna, tendo sido operado, sofreu dores de grau elevado inchaço na perna e sequelas no fígado que lhe dificultam as tarefas e acarretam uma IPP de 10%, afigurou-se adequado o valor de 5.000,00 € atinente à indemnização por danos não patrimoniais.
- No acórdão de 19/02/2015, (proc. n.º 99/12.7TCGMR.G1.S1), considerou-se “adequada a quantia de € 20 000 arbitrada a título de danos não patrimoniais tendo em atenção que (i) à data do acidente o autor tinha 43 anos de idade; (ii) em consequência do acidente sofreu traumatismo do ombro direito, com fractura do colo do úmero, fractura do troquiter, traumatismo do punho direito, com fractura do escafóide, traumatismo do ombro esquerdo, com contusão, (iii) foi submetido a exames radiológicos e sujeito a imobilização do ombro com “velpeau”; (iv) foi seguido pelos Serviços Clínicos em Braga e submetido a uma intervenção cirúrgica ao escafóide; (v) foi submetido a tratamento fisiátrico; (vi) mantém material de osteossíntese no osso escafóide; (vii) teve de permanecer em repouso; (viii) ficou com cicatriz com 5 cms, vertical, na face anterior do punho; (ix) teve dores no momento do acidente e no decurso do tratamento; e (x) as sequelas de que ficou a padecer continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodos e mal-estar que o vão acompanhar toda a vida e que se acentuam com as mudanças do tempo, sendo de quantificar o quantum doloris em grau 4 numa escala de 1 a 7”.
- No acórdão de 24-03-2015, Revista n.º 1425/12.4TJVNF.G1.S1 - 6.ª Secção, em que o autor tinha 22 anos e ficou com uma incapacidade permanente geral de 9 pontos, foi-lhe atribuída uma indemnização pelo dano não patrimonial de 25.000,00 €.
- No acórdão de 04-06-2015 (Revista n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1 - 7.ª Secção), foi atribuída indemnização pelo dano não patrimonial de 40.000,00 € à autora, com 17 anos à data do acidente e à qual foi atribuída défice funcional permanente de 16,9 pontos, quantum doloris de 6 pontos, tendo recebido tratamentos médicos, intervenções, internamentos e períodos que se lhe seguiram que se prolongaram no tempo, tendo a lesada apenas tido alta mais de 4 anos depois do acidente.
- No acórdão de 12-01-2017 (Revista n.º 3323/13.5TJVNF.G1.S1 - 7.ª Secção), no qual a autora tinha 60 anos à data do sinistro e foi atribuído défice funcional de 10 pontos, considerou-se “ajustada a condenação da ré no pagamento da quantia de € 15.7000 (tal como foi decidida pelas instâncias) a título de compensação pelos danos não patrimoniais por ela sofridos”.
- No acórdão de 14-12-2017 (proc. 589/13.4TBFLG.P1S1), atribui-se indemnização de 30.000,00 € ao lesado, com 34 anos à data do sinistro, dano estético de 3 pontos, quantum doloris de 5 pontos, repercussão nas atividades desportivas e de lazer de 3 pontos, foi sujeito a diversas intervenções cirúrgicas, tendo-lhe sido atribuído défice funcional permanente de 20 pontos e que “aquando do internamento, se encontrava manietado de pernas e mãos, nasceu o seu filho, sem que lhe pudesse pegar ao colo”.
- No acórdão de 19-10-2021, (proc. 2601/19.4T8BRG.G1.S1) atribui-se a indemnização de 45.000 € ao lesado, com 44 anos à data do sinistro, que ficou 2 anos de baixa médica, sofreu quantum doloris de 5 pontos “que ao nível do pé/tornozelo direito se manterão para o resto da vida”, dano estético de 3 pontos e défice funcional permanente de 15 pontos, não mais deixando de claudicar.
Acresce que, nos acórdãos citados pelo tribunal recorrido para, em contraposição ao presente caso, justificar o montante de € 40.000,00, qualquer um dos lesados aí referidos foi submetido a diversas intervenções cirúrgicas (no caso concreto do acórdão de o Acórdão da Relação de Guimarães de 25 de Outubro de 2018, o sinistrado de 23 anos foi sujeito a sete intervenções).
Ora, no caso presente o autor foi submetido apenas a exames de fisioterapia e outros tratamentos fisiátricos.
Como assim, sopesando o quadro factual supra exposto e tendo em atenção as lesões sofridas pelo Autor recorrido, aos tratamentos necessários a que teve de submeter-se, à duração destes, às dores, classificadas no grau 5 (numa escala de 1 a 7), ao dano estético classificado no grau 3 (numa escala de 1 a 7), às queixas de disestesias, à circunstância de, antes do acidente ser uma pessoa alegre e divertido que gostava de conviver, ter perdido o interesse pela socialização devido às dores as quais, bem como as limitações, fazem com que se senta deprimido e revoltado, entendemos que a compensação por esta categoria de danos fixada pelo tribunal recorrido se revela um pouco excessiva, considerando-se mais justo e equilibrado fixar a esse nível o montante indemnizatório de € 30.000,00 (trinta mil euros) nos termos do artigo 566.º, nº 3 do Cód. Civil.
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Procedem, desta forma, em parte as conclusões 6ª e 7ª formuladas pela recorrente.
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A segunda questão colocada no recurso prende-se com:
a)- saber se o montante indemnizatório fixado pelo tribunal recorrido a título de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica sofrido pelo Autor se revela igualmente desproporcionado.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se entendeu que sendo o Autor portador de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 11 pontos, valorou tal dano como dano patrimonial futuro tendo fixado em € 23.500,00 o respectivo montante indemnizatório.
Deste entendimento dissente Ré alega que o referido montante devia ser fixado em € 15.000,00.
Que dizer?
No segmento indemnizatório aqui em apreciação movemo-nos no âmbito do que a jurisprudência e a doutrina têm apelidado de dano biológico ou fisiológico, que constitui, no fundo, um dano à saúde, violador da integridade física e do bem-estar físico, psíquico e social.
A jurisprudência, de forma maioritária, tem vindo a considerar este dano biológico como sendo de cariz patrimonial e, por isso, indemnizável nos termos do artigo 564.º, nº 2 do Cód. Civil.
Tem-se afirmado que a afectação da pessoa do ponto de vista funcional, porque determinante de consequências negativas ao nível da sua actividade geral, justifica a sua indemnização no âmbito do dano patrimonial.
Em abono deste entendimento, a tónica é posta nas energias e nos esforços suplementares que uma limitação funcional geral implicará para o exercício das actividades profissionais do lesado, destacando-se que uma incapacidade permanente parcial, sem qualquer reflexo negativo na actividade profissional do lesado e no seu efectivo ganho, “se repercutirá, residualmente, em diminuição da condição e capacidade física e correspondente necessidade de um esforço suplementar para obtenção do mesmo resultado”.[9]
Porém, outros entendem, como por exemplo no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/10/2009[10], que também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.
Escreveu-se o seguinte neste aresto:
Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso com o decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos (…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.
“E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.
“Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta direta–ou indiretamente–no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente, numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.
“Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.
“A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão origina, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
“E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial.”[11]
Sustentam outros ainda que o dano corporal ou dano à saúde deve ser reconhecido como dano autónomo, verdadeiro “tertium genus” de natureza específica, com um lugar próprio que não se esgota nem é assimilado pela dicotomia clássica entre o que é patrimonial e o que não é patrimonial, impondo-se como uma realidade digna de reparação autónoma.
Entendimento este a que não são alheias as grandes dificuldades e delicadíssimos problemas suscitados pela determinação e avaliação das consequências pecuniárias e não pecuniárias do dano corporal no quadro da distinção dano patrimonial/dano não patrimonial.
Concretamente, quanto à indemnização de perdas patrimoniais futuras, a título de lucros cessantes, lembra-se que o lesado terá que provar a subsistência de sequelas permanentes que se repercutem negativamente sobre a sua capacidade de trabalho, destacando-se que a avaliação e reparação das chamadas pequenas invalidades permanentes se deve confinar à área do chamado dano corporal ou dano à saúde.[12]
Como quer que seja, independentemente da sua integração jurídica nas categorias do dano patrimonial ou do dano não patrimonial-ou eventualmente como tertium genus, como dano de natureza autónoma e específica, por envolver prioritariamente uma afetação da saúde e plena integridade física do lesado-, o certo é que a perda genérica de potencialidades laborais e funcionais do lesado constitui inequivocamente um dano ressarcível, englobando-se as sequelas patrimoniais da lesão sofrida seguramente no domínio dos lucros cessantes, ressarcíveis através da aplicação da denominada teoria da diferença.
Ora, a posição maioritária, que também sufragamos, vem considerando que este dano deve ser calculado como se de um dano patrimonial futuro se tratasse: há uma perda de utilidade proporcionada pelo bem corpo, nisso constituindo o prejuízo a indemnizar, irrelevando para este efeito o facto de as lesões sofridas pelo demandante não terem implicado, de forma imediata, a perda de rendimento.
Neste conspecto, a casuística que sufraga tal posição vem recorrentemente enfatizando que a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento do trabalho, releva para efeitos indemnizatórios– como dano biológico/patrimonial-porque é determinante de consequências negativas ao nível da atividade geral do lesado e, especificamente da sua atividade laboral, designadamente num jovem, condicionando as suas hipóteses de emprego, diminuindo as alternativas possíveis ou oferecendo menores possibilidades de progressão na carreira, bem como uma redução de futuras oportunidades no mercado de trabalho, face aos esforços suplementares necessários para a execução do seu trabalho.
Evidentemente que casos há em que as lesões físicas não causam nenhum acréscimo, para o lesado, de esforço na actividade profissional que ele exerce. Uma ligeira desvalorização no plano físico, mesmo que relacionada com a mobilidade, não tem para um lesado que desenvolve uma actividade profissional sedentária e marcada pelo esforço intelectual, qualquer repercussão nesta.
Por isso, em certas situações justifica-se que, apesar da comprovada desvalorização do lesado no plano físico em consequência do acidente, o dano correspondente seja ressarcido apenas no plano não patrimonial, por este não se repercutir, directa ou indirectamente, na sua situação profissional, tanto em termos de remuneração como de carreira.
Assentando na qualificação do aludido dano como dano patrimonial futuro, debrucemo-nos agora sobre as particularidades do caso concreto no concernente à determinação do respetivo quantum indemnizatório.
Como deflui do regime vertido nos artigo 564.º e 566.º, nº 3 do CCivil, o princípio geral a presidir à tarefa de determinação desse quantum deve assentar em critérios de equidade, sendo tal noção absolutamente indispensável para que a justiça do caso concreto funcione, devendo, assim, ser rejeitados puros critérios de legalidade estrita.
No entanto, a equidade não corresponde a arbitrariedade. Por isso, de há longo tempo, a jurisprudência, num esforço de clarificação na matéria, tem procurado definir critérios de apreciação e de cálculo do dano em causa, assentando fundamentalmente nos seguintes parâmetros-força:
1ª) A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendi­mento que a vítima não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida;
2ª) No cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equidade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso nor­mal das coisas, é razoável;
3ª) As tabelas financeiras por vezes utilizadas para apurar a indemnização têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade;
4ª) Deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que per­mitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros; logo, haverá que considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia;
5ª) E deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida ativa da vítima, a esperança média de vida, uma vez que, como é óbvio, as necessidades básicas do lesado não cessam no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma (em Portugal, no momento presente, a esperança média de vida dos homens já se aproxima dos 78 anos, e tem tendência para aumentar).[13]
Acolhendo tais directrizes e regressando ao caso dos autos, importa, desde logo, respigar o seguinte quadro factual:
“- O Autor tinha 55 anos à data do acidente;
- As lesões sofridas decorrentes do acidente acarretam para o autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 11 pontos, sendo tais sequelas compatíveis com a actividade habitual, mas implicar esforços suplementares” (cfr. pontos 2. e 43. da resenha dos factos provados).
Importa enfatizar que a propósito do factor rendimento, alguma jurisprudência[14] vem considerando que nos casos, como o presente, em que não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.
Em busca do tratamento paritário, no cálculo que efetue, o julgador terá que partir de uma base uniforme que possa utilizar em todos os casos, para depois temperar o resultado final com elementos do caso que eventualmente aconselhem uma correção, com base na equidade.[15]
Com efeito, a integridade psicofísica é igual para todos (artigos 25.º, nº 1, da CRPortuguesa e 70.º, nº1, do Código Civil) de modo que, no cálculo da indemnização, não deve ser relevada a situação económica do lesado sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, nº 1 e nº 2 da Constituição.
O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, e quando não interfere na capacidade de ganho, determinando a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as actividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral, é igualmente grave para quem exerce um profissão remunerada com € 5.000,00 ou com € 500,00 sendo a dimensão do direito à saúde que está em causa e que é, tal como o direito à vida, igual para qualquer ser humano.
Fazer interferir o valor do salário de cada um ou o do salário mínimo nacional quando o lesado não exerce ou não tem profissão, pode até, a nosso ver gerar situações injustas.
A Portaria 377/2008 de 26 de Maio faz consignar o montante da remuneração mínima mensal garantida como valor para efetuar o cálculo do dano biológico.
Ora, considerando que o legislador faz interferir o salário como elemento fundamental para o cálculo da indemnização, temos então como mais correto que se pondere, para o efeito, o valor do salário médio nacional e não a remuneração mínima mensal garantida.
A informação estatística da base de dados da Pordata, em Portugal, in www.pordata.pt indica que o ordenado médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no ano de 2017 (não há valores para os anos posteriores) foi de € 943,00.
Este valor é então um dos elementos a ponderar para o cálculo da indemnização do dano biológico, havendo também que considerar a idade do lesado, que era no caso de 35 anos à data do acidente e o grau de desvalorização ou incapacidade que é de 3 pontos.
Como assim, tendo por referência um rendimento anual de € 13.202,00 (€ 943,00 x 14) a indemnização a arbitrar deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável da vida do lesado, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa), com uma dedução que razoavelmente se pode estimar em 1/4, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital.[16]
De acordo com os enunciados fatores, considerando que o autor ficou afetado de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 11 pontos, temos que a perda patrimonial anual corresponde a € 1.452,22,06 [(€ 943.000,00 x 14) x 11%], o que permitiria alcançar, ao fim de 33 anos de vida (considerando-se, neste ponto, que à data do acidente o autor contava 55 anos de idade e que a sua esperança média de vida se situa nos 78 anos de idade), o montante de € 47.923,26, apurando-se um valor de € 35.942,45 após se operar o apontado desconto de ¼.
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Daqui se conclui que o valor fixado pelo tribunal, sob este conspecto, fica aquém do referido valor.
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Improcedem, assim, as conclusões 9ª a 18ª formuladas pela recorrente.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta pela Ré parcialmente procedente em razão de que se altera para € 30.000,00 (trinta mil euros) a indemnização atribuída ao Autor a título de danos não patrimoniais e que na decisão recorrida havia sido fixada em € 40.000,00 (quarenta mil euros).
No mais, mantém-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação por Autor e Ré na proporção do decaimento (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 23 de Maio de 2022.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
______________
[1] Cfr. Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1972, pág. 375.
[2] Cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra, 1991, págs. 484 e 485.
[3] In Direito das Obrigações, 2° vol. pag. 288.
[4] In Direito das Obrigações, pág. 387.
[5] In Direito das Obrigações, vol. I, 299.
[6] In “Sobre a Reparação dos Danos Morais”, RPDC, n° l, 1° ano, Setembro, 1992, p. 21.
[7] Ac. STJ 28.11.2013, Proc. 177/11.0TBPCR.S1, Ac. STJ 07.05.2014, Proc. 436/11.1TBRGR.L1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt
[8] Todos eles publicados em www.dgsi.pt.
[9] Cfr. Ac. STJ de 20.1.2010, p. 203/99.9TBVRL.P1.S1 e Ac. STJ de 11.12.2012, p. 269/06.7 GARMR, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. proc. nº 560/09.0YFLSB, disponível in www.dgsi.pt.
[11] Cfr. também Ac. STJ de 20.1.2010, p. 203/99.9 TBVRL e Ac. Rel. Porto de 20.3.2012, p. 571/10.3 TBLSD.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[12] Cfr. João António Álvaro Dias, “Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios”, Almedina, 2001, Cap. II, secção I.
[13] Segundo as Tábuas de Mortalidade relativas ao triénio 2014-2016, a esperança de vida à nascença em Portugal foi estimada em 77,61 anos para os homens e de 83,33 anos para as mulheres.
[14] Entre outros, Ac. do STJ de e acórdão do STJ de 26.01.2012 (processo nº 220/2001.L1.S1), onde expressamente se enfatiza que o desenvolvimento da noção do dano biológico em Itália partia, entre outros, do pressuposto da “irrelevância do rendimento do lesado como finalidade da liquidação do ressarcimento, Ac. de Coimbra de 04/06/2013, da Relação de Lisboa de 22/11/2016 (processo nº 1550/13.4TBOER.L1-7), de 25/02/2021 852/17.5T8AGH.L1 e 24/10/2019 processo nº 3570/17.0T8LSB.L1-2 e da Relação do Porto, de 19/03/2018 processo nº 1500/14.0T2AVR.P1.
[15] Cfr. Rita Mota Soares, O dano biológico quando da afetação funcional não resulte perda da capacidade de ganho– o princípio da igualdade, Revista Julgar, nº 33, p. 126.
[16] Tem sido esta a solução preconizada, designadamente, pelo Conselheiro Sousa Dinis em trabalho publicado na CJ, Acórdãos do STJ, ano V, tomo 2º, págs. 15 e seguintes.