Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7185/17.5T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: REPRESENTAÇÃO
ABUSO
INEFICÁCIA NEGOCIAL
EXTENSÃO
ARRESTO PREDIAL
Nº do Documento: RP201906137185/17.5T8VNG.P1
Data do Acordão: 06/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO COMUM
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 177, FLS 106-121)
Área Temática: .
Sumário: I. A concessão de poderes representativos tem subjacente uma relação de confiança (fidúcia), mantendo-se ou reforçando-se as exigências de atuação do representante de acordo com a boa fé contratual, não significando que exista um mandato em branco ou arbitrário para realização de qualquer negócio e muito menos para prejudicar os interesses da pessoa representada.
II. Nos casos de ineficácia negocial por abuso de representação, os quais afectam os negócios ou os actos jurídicos subsequentes e subordinados, o que temos é uma ineficácia negocial sucessiva ou derivada em relação ao dono da coisa transmitida e não um negócio de compra e venda de coisa alheia em relação ao mesmo, quando haja alienação posterior desse bem.
III. A ineficácia negocial por abuso de representação é extensível ao subsequente arresto predial, o qual foi depois convertido em penhora, em virtude destes actos jurídicos estarem abrangidos pela ineficácia negocial da primeira compra e venda, tratando-se de uma ineficácia derivada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 7185/17.5T8VNG.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjuntos; Filipe Caroço; Judite Pires

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1.1 No processo n.º 7185/17.5T8V do Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia, J1, da Comarca do Porto, em que são:

Recorrentes/Réus (RR): B…; C…

Réus (RR): D…; E…; F…, Lda; G…, Lda.

Recorridos/Autores (AA): H…; I…

foi proferida sentença em 20/dez./2018 mediante a qual decidiu-se:
a) declarar que o Autor H… é dono e legítimo proprietário do terreno destinado a construção, sito no …, da freguesia …, em Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz rústica sob o artigo 3257.º e descrito na 2.ª Conservatória Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº2653/19980602;
b) condenar os Réus B… e mulher C…; Dr. D… e mulher E… e “G…, Lda.” a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio descrito em a);
c) ordenar o cancelamento dos registos de arresto (AP .. de 23/03/2007) e penhora (AP …. de 02/09/2010) efectuados a favor dos co-Réus B… e mulher C… sobre o prédio descrito em a).
1.2 Os AA. em 08/set./2017 demandaram os RR. invocando serem os proprietários do terreno destinado a construção melhor identificado no item 1.º da p.i., o qual está registado em nome dos primeiros, tendo posse do mesmo há mais de 20 anos, assim como que por contrato de 15/09/2005, assinado pelo A. e J…, aquele prometeu vender a este o referido prédio pelo preço de € 70.000,00, tendo recebido de sinal a quantia € 5.000,00, devendo o restante ser pago no acto de escritura, a realizar no prazo de 1 ano. Mais ficou consignado nesse documento que o A. autorizava o referido J… a iniciar a construção de uma moradia, obrigando-se ainda o primeiro a outorgar a referida escritura com o segundo ou com outro que designasse. O A. mediante solicitação do referido J…, sócio-gerente da R. F… Lda., que invocou a necessidade de uma garantia, outorgou uma procuração a favor do R. D…, advogado, a quem conferiu poderes para vender a quem pretendesse, pelo preço e condições que julgasse convenientes, na firme convicção de que a mesma só seria utilizada se por algum motivo o A. não pudesse cumprir o contrato promessa. Mais sustentou que por escritura celebrada em 04/04/2006, outorgada pelo R. D… e por J… na qualidade de sócio da R. F…, aquele vendeu a esta o referido prédio pelo preço de € 3.500,00, não tendo o A. sido informado da utilização dessa procuração, nem recebido qualquer quantia declarada na escritura. Posteriormente, em 10/10/2006 teve conhecimento da referida compra e venda, bem como que por escritura de 12/04/2007 a R. F… declarou vender à R. G…, Lda., representada pela sócia E…, esposa do R. D…, o mesmo prédio pelo preço de € 60.000,00, tendo o essencial dos factos anteriormente descritos ficado provados noutra ação ordinária, em que as partes eram as mesmas, com excepção dos 1.º RR.. Neste processo foi proferida sentença que julgou ineficaz aquela primeira escritura de compra e venda, bem como nula a segunda escritura de compra e venda, sendo canceladas as inscrições daí advenientes, ficando repristinada a titularidade do prédio em nome do A. e reportado à data do registo de 02/06/1998. Por último, sustentaram que sobre o referido prédio está registado a favor dos RR. B… e C… um arresto, o qual foi convertido em penhora, para garantia de € 35.000,00 da dívida da R. F… àqueles, estando a respectiva ação executiva em curso, não tendo tal arresto sido cancelado em virtude do seu registo ser de 23/03/2007 e o registo desta última ação de 18/07/2008, terminando com a formulação do seguinte pedido:
i) Declarar-se que o A. é dono e legítimo proprietário do prédio identificado no artº 1º, com todas as menções dele constantes;
ii) Serem consequentemente condenados todos os RR. a reconhecerem este direito de propriedade, e ainda
iii) ordenar-se o cancelamento de todos os registos, com data posterior àquela a partir da qual o A. dispõe a seu favor do registo da propriedade, que ainda se mostrem em vigor e em oposição ao direito reconhecido, designadamente os referidos no artº 31, bem como os decorrentes de qualquer transmissão futura à qual seja alheio o A.;
Subsidiariamente, e apenas quanto aos 1.os RR,
iv) para a eventualidade de não proceder qua tale o pedido referido em II, serem os mesmos condenados a reconhecer a invalidade das aquisições referidas nos artº 15 e 24, com os fundamentos alegados nos artº 5 a 24 da p.i.
1.3 Os RR. B… e C… contestaram em 16/out./2017, excepcionando a ilegitimidade passiva dos RR., mediante preterição de L…, que tem um arresto a seu favor registado em 02/01/2012) e a Autoridade Tributária e Aduaneira, em virtude de estar registado a favor da mesma uma penhora desde 19/06/2014, ambos sobre o referido prédio e impugnando a versão dos AA. que contraria a sua versão dos acontecimentos, sustentando essencialmente que o referido contrato promessa correspondia a uma parceria de investimento entre o A. e o referido J…, sendo válidas todas as escrituras subsequentes, sendo o R. D… sempre o advogado do A., estando todos eles ao corrente dos negócios e diligências encetadas por uns e outros. Mais invocou que o A. só tomou a iniciativa de revogar a procuração depois de desinteligências com o referido J…, sendo a outra ação invocada um subterfúgio para o A. em conluio com os demais RR. dessa mesmo ação subtraírem o prédio à justiça, não estando em causa a validade da procuração, mas o incumprimento do contrato de promessa, tendo o A. deixado rolar para receber de um lado e do outro, não sendo os AA. os proprietários do prédio em causa, concluindo no sentido da improcedência da ação.
1.4 Por despacho proferido em 23/out./2017 e mediante desistência dos AA. foi julgada extinta a instância relativamente à R. F…, Lda., mostrando-se registada a respectiva dissolução e encerramento da liquidação desde 21/10/2014.
1.5 Os RR. D… e E… contestaram em 04/dez./2017, invocando as seguintes excepções: i) caso julgado relativamente ao referenciado processo 5789/08.6TBVNG em que foram demandados todos os RR., com excepção de B… e C…, pelo que a presente ação só tem sentido relativamente a estes últimos RR. de modo que deixe de valer o direito real de garantia a favor dos mesmos; ii) ilegitimidade da R. E… uma vez que está casada em regime de separação de bens com o R. D…. Mediante impugnação, depois de aceitarem os factos que já resultam provados daquela outra ação, impugnam os demais, suscitando ainda a condenação do A. como litigante de má fé, terminando pedindo a procedência das invocadas excepções e caso estas não procedam o respeito pelo sentenciado naquela outra ação.
1.6 Na Audiência Prévia realizada em 19/abr./2018 foi proferido despacho onde se decidiu que:
“Em face do exposto, julgo procedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva deduzida pelos co-Réus B… e mulher e convido os Autores a, no prazo de 10 dias, fazerem intervir nos autos, do lado passivo, os referidos L… e Autoridade Tributária e Aduaneira.”
Foi ainda proferido despacho a julgar improcedente a invocada excepção do caso julgado.
1.7 Por despacho de 03/mai./2018 e por estarem extintos os mencionados ónus a favor de L…, bem como da Autoridade Tributária e Aduaneira considerou-se sanada a ilegitimidade afirmada no despacho proferido no âmbito da audiência prévia.
2. Os RR. B… e C… insurgiram-se contra a referida sentença, interpondo recurso em 12/fev./2019 pretendendo a sua revogação, assim como a sua absolvição, apresentando as seguintes conclusões:
1. Os RR., ora recorrentes, não se conformam com a, aliás, douta sentença proferida nestes autos pretendendo abordar, neste recurso de apelação, as seguintes questões:
A - A questão da ilegitimidade passiva, derivada da desistência da instância, requerida pelos AA., em 16 de Outubro de 2017;
B - Impugnação do julgamento da matéria de facto, com base na prova produzida em audiência de julgamento, concretamente concatenada com a motivação reportada a decisão proferida no proc. nº 5789/08.6TBVNG; e
C - A inexistência de abuso de representação em relação à procuração utilizada na escritura de 04/04/2006;
2. A presente acção foi proposta contra os RR. B… e esposa, ora recorrentes, e ainda contra Dr. D… e esposa E…; F…, Lda., sociedade comercial, e G…, Lda., tendo-se constatado, no decurso do processo que a 3ª R. F…, Lda., tinha sido dissolvida e liquidada;
3. A Ré F…, Lda. é parte essencial da relação jurídica controvertida e a sua intervenção é absolutamente necessária, sob pena de ilegitimidade passiva, nos termos do disposto no artigo 33, nº 1 e 2 do C.P.C., e consequente absolvição da instância de todos os demandados nos termos do disposto nessa norma, conjugada com o disposto no artigo 278, nº 1 alínea d) do C.P.C., o que resulta da desistência da instância apresentada pelo A. em relação à dita Ré;
4. Mesmo dissolvida e liquidada, deve ser chamada a intervir representada pelo liquidatário, o que não aconteceu e implica a absolvição da instância nos termos da conclusão anterior;
5. Na fundamentação da convicção da Meritíssima Juiz “a quo”, esta, quer relativamente aos factos considerados provados, quer relativamente àqueles que considerou não provados, considerou e valorizou elementos documentais, tais como: - teor da certidão judicial respeitante ao processo nº 5798/08.6TBVNG,e - teor da sentença proferida no âmbito do processo 4602/14.0TBVNG; e “em conjugação com tais elementos documentais”, os atrás citados e outros, considerou ainda o Tribunal os depoimentos das testemunhas que aí se referem;
6. Os RR., ora recorrentes consideram incorrectamente julgados os concretos pontos da matéria de facto:
A – Dos considerados provados:
“3 – Por si e seus anteriores possuidores, já mais de 5, 10 e 20 anos, de forma contínua, de boa-fé e sem oposição, que o Autor usufrui e é o único beneficiário das sua utilidades e rendimentos, designadamente pondo-o à venda, dispondo dele e vedando-o para preservar o seu domínio.”
“8 – Após a celebração do contrato promessa, o J… passou a dizer ao Autor que ia investir bastante dinheiro na moradia e que era necessária uma garantia do Autor para a eventualidade de lhe acontecer alguma coisa, designadamente a morte do Autor, o que nesse caso o J… ou a sua sociedade ficariam prejudicados.”
“9 – Por ao Autor interessar que o dito promitente comprador iniciasse rápido a moradia e a terminasse depressa a fim de receber o preço acordado, acedeu a passar uma procuração ao 2º Réu Dr. D…, advogado conhecido e amigo do J…, a quem conferia poderes para vender o prédio descrito em 1. a quem entendesse e pelo preço e condições que julgasse convenientes, designadamente à 3ª Ré “F…, Lda.”
“11 – O Autor só acedeu a passar a procuração por lhe ter sido criada a firme convicção, quer pelo J…, quer pelo 2º Réu, de que a mesma só iria ser utilizada se o Autor não pudesse, por algum motivo, cumprir o contrato promessa;”
“12 - Ficou acordado entre o Autor, J… e o 2º Réu que a procuração só seria usada se sucedesse aquele imprevisto;”
“17 – O Autor, caso tivesse sido previamente informado de tal venda, nunca aceitaria, designadamente quanto ao preço da mesma;”
“20 – E assim, em 10-10-2006, aconselhado pela advogada, foi ao Cartório Notarial da Notária Drª M… revogar, a partir dessa data, a procuração aludida em 9.;”;
B – Dos considerados não provados:
“a) Entre o Autor e o gerente da sociedade “F…, Lda.”, J…, existissem negócios e investimentos
b) No âmbito do contrato promessa referido em 4., o Autor tivesse logo dado posse efectiva do prédio descrito em 1. Ao J…;
c) Nesse seguimento, o J… tenha limpado e preparado o terreno para o licenciamento camarário e a construção para posteriormente revender;
d) O Autor, desde o contrato promessa referido em 4., não tivesse praticado quaisquer actos de posse sobre o prédio descrito em 1., nem tivesse pago quaisquer impostos, taxas, licenças de construção ou encargos semelhantes relativos ao dito prédio; e) o contrato promessa referido em 4. se tivesse tratado de uma parceria de investimento entre o Autor e o J… com outrem a quem este viesse a ceder a sua posição contratual;
f) A sociedade Ré “F…, Lda.” tivesse tido a posse efectiva do prédio;
i) O Autor, o 2º Réu e o gerente da Ré “F…, Lda.” estivessem ao corrente de todos os negócios e diligências encetadas por uns e por outros;
k) O Autor só tivesse tomado a iniciativa de revogar a procuração depois de desinteligências e acções do J…;”
7. A decisão constante do processo 5798/08.6TBVNG não fez caso julgado relativamente aos RR. B… e esposa, uma vez que estes não foram nela demandados e aí não tiveram oportunidade de exercer o contraditório e a defesa dos seus direitos;
8. A matéria considerada provada na acção 5789/08.6TBVNG bem como na acção 4602/14.0TBVNG, por remissão para aquela, não pode ser veiculada para os presentes autos como matéria de facto assente, nem as certidões das decisões proferidas nesses processos, podem ou devem ser fundamento para as considerar elemento de prova dos factos que nesta se consideram provados, nomeadamente os que constam dos itens 27 e 28, bem como dos factos dados como provados, cuja impugnação se pretende por via do presente recurso; tais factos só podem ser considerados provados com base no depoimento das testemunhas, no depoimento e declarações de parte dos intervenientes processuais e não com base em decisão proferida noutro processo onde os recorrentes não foram demandados;
9. O tribunal considerou provado que o A., por si e seus anteriores possuidores, há mais de 5, 10 e 20 anos, de forma contínua, de boa-fé e sem oposição, que usufrui e é o único beneficiário das sua utilidades e rendimentos, designadamente pondo-o à venda, dispondo dele e vedando-o para preservar o seu domínio;
10. Resulta do contrato promessa de 15/09/2005 que o A. deu posse efectiva do terreno (lote) ao J…, autorizando-o a preparar todos os actos relativos ao licenciamento da construção da moradia e a construção da mesma, e reconhecendo, desde logo, que o segundo outorgante como legítimo dono e possuidor da construção a realizar;
11. Do depoimento de parte do A. H… resulta que foi colocado aviso da obra da N…, colocada a placa (não por ele) (5.55/5.57 da gravação respectiva); que ficou tudo a monte desde o contrato até à decisão do processo e que não fez nada no terreno, nem pagou impostos (37.30/37.42; 36.37/36.42) (e não estranhou não pagar impostos?), a testemunha Arq. P… confirmou que, a respeito do terreno, quem tratava com ele era o J…;
12. Aliás, conforme resulta do doc. 4 da p.i. o A. H… somente em 04/11/2017 é que colocou lá a placa com os dizeres: “propriedade de H… ………”;
13. No mesmo sentido do depoimento do A. H…, também a esposa deste I…, afirmou que “o marido tem tratado do terreno depois de ele ter passado outra vez para o nome dele (3.39-3.60) esteve a vedá-lo e fez um muro (cfr. fot. doc. 4);
14. O depoimento da testemunha dos AA. O… confirma igualmente que a posse do terreno foi do J… ou da “F…, Lda.”, quando afirma que ele (sobrinho e A.) teve o terreno até um certo tempo e que “fez uma procuração do terreno” (3.45-4.00); o terreno esteve abandonado (6.45-6.52) e o “sobrinho depois de ganhar a acção é que limpou o terreno (7.00-7.08 e 8.00-8.05; 12.50-12.58), que se recorda de andar lá qualquer coisa a limpar o terreno (10.48-10.52);
15. Da conjugação dos concretos elementos de prova anteriormente referidos, este concreto ponto de facto da matéria dada como provada deve ser respondido no sentido de que o A. por si e seus ante-possuidores possuiu o prédio em causa, designadamente, pondo-o à venda, até 15 de Setembro de 2005; e que o murou e vedou apenas em Outubro ou Novembro de 2017, não tendo, por isso, a posse contínua que alegou;
16. Os concretos pontos da matéria de facto dos números 8, 9, 15 e 17, já identificados, da matéria de facto devem ser julgados de maneira diversa daquela que ocorreu;
17. O contrato promessa de 15/09/2005 refere que o A. marido era dono e legítimo proprietário do prédio rústico, inscrito na matriz sob o artigo matricial nº 2456 e registado sob o nº 43674, do livro B-112; que promete vendê-lo ao segundo pelo preço de 70.000€ (setenta mil euros) e na cláusula sétima o primeiro obriga-se a outorgar a escritura definitiva de compra e venda da moradia a construir no prédio designado na cláusula primeira, com o segundo outorgante ou com quem este previamente designar; ou seja promete vender um rústico e fazer escritura de um urbano que não é seu;
18. O segundo outorgante J… era sócio e gerente da “F…, Lda.”, sendo esta a sociedade, dedicada à construção e venda de imóveis, quem iria vender a moradia, não já o terreno rústico, e, nessa altura, dividiriam o produto desse investimento, entre esses intervenientes: o J… ou a sociedade F…, Lda., recebendo o A. marido a contraprestação do terreno com que entrou para o negócio;
19. O contrato promessa em causa espelhava uma parceria de investimento, conforme confessa o A. H…: “negócio a meias” em “investimento conjunto” (7.58/8.12) entrava com o terreno e, construída a moradia recebia 65.000€; entrava no negócio (4.48/5.00) “cedia o terreno, era como sócios; depois ele vendia e pagava a minha parte (5.20/5.43);
20. Note-se que o lote de terreno tinha 619m2, o que equivale a um valor por m2 de 113/114€/m2 (70.000€ : 619), valor m2 superior ao dobro do corrente na altura do contrato promessa, conforme aliás o A. marido confessou no inicio do seu depoimento do dia 16/10/2018, da parte de tarde: “o terreno (lote) tinha 619m2 e valia entre 40.000/45.000€”;
21. Como a construção era destinada a ser efectivada pela sociedade F…, Lda., o A. marido, por essa única razão e não quaisquer outras, outorgou a procuração de 16/03/2006, para que o seu mandatário procedesse à venda do lote de terreno em causa a essa mesma sociedade;
22. O acto que competia ao procurador praticar era necessário para a F…, Lda. promover a construção e posterior venda da moradia, daí também a razão de ser das condições constantes dos poderes da mesma, e de que o mandato é conferido isento de prestação de contas, conforme, aliás, o Dr. D…, afirmou: “O F… mandatou-me com mandato estrito para se fazer a escritura do terreno para a sociedade” (3.25/3.40); tinha poderes para vender nas condições da procuração (4.10 da gravação);
23. O A. H…, confessa igualmente que o Dr. D… lhe passou o doc. (procuração) e que viu que estava tudo bem; que ele podia vender aquele terreno para a H…, Lda. (14.20/14.40), que “não correu bem porque não foi feita a moradia e não foi concretizado o negócio (34.38-34.45), pormenorizando “eu sei o que é que assinei, porque li (40.55/41.20);
24. Confirmou ainda que houve acordo entre ele e o Dr. D… para a passagem do terreno para a G…, sociedade da esposa do Dr. D… (40.40/40.50 da gravação) que “era tipo venda de terreno” (40.55/41.20) “quem me dera que me desse os 47.500€” e que ficou combinado foi retirar o imóvel à F…, Lda. e passar para a G… (23.00/23.40); que teve “várias reuniões com o Dr. D… (17.00/17.20), e que, nessa altura, até pensou “já estou safo” (21.50 da mesma gravação); ficou acordado que o Dr. D… ficaria com o terreno por 47.500€ (26.30/26.45 e 27.10/27.20);
25. São igualmente da maior relevância para a apreciação concreta dos pontos cuja impugnação se pretende, as afirmações da A. I…, que, no seu depoimento, e a propósito da combinação que seu marido, o A. H… fez com o Dr. D…, “como se tinha envolvido ia entrar no negócio” (7.00/7.20); que se ia resolver e até o terreno passa para ele (24.34) (Dr. D…) ficaram com esperança de que as coisas se resolveriam com o consentimento do Sr. H… (24.50/24.54);
26. Aliás, o facto de o A. H… e o procurador terem combinado que o terreno passava da F…, Lda. para a G…, Lda., confirma que o procurador não abusou da representação, pois que se tivesse havido abuso de representação, o A. não consentiria que o lote passasse da F…, Lda. para a G… mas exigiria que passasse da F… para o seu próprio nome.
27. Da análise dos depoimentos, nos concretos aspectos referentes aos pontos em causa, conjugados com o teor expresso da procuração conhecida e aceite pelo A. H… conclui-se que esses pontos concretos devem considerar-se validamente impugnados, devendo os mesmos ser considerados provados no sentido que a seguir se indica:
8 – A procuração outorgada pelo A. a favor do Dr. D… destinou-se a ser usada para, em cumprimento estrito do mandato nela contida dar poderes ao procurador para que este transmitisse a propriedade do prédio a F…, Lda., de que o J… era gerente, para assim concretizar a parceria/investimento do A.;
9 – O procurador Dr. D… usou a procuração para transmitir a F…, Lda. o prédio em causa, o que ele fez, pelo preço e condições que achou convenientes e, por isso, isento de prestar contas do mandato;
15 – O 2º Réu não entregou ao A. qualquer quantia, uma vez que se tratou de uma transmissão para F…, Lda., isenta de prestação de contas por força do outorgado na procuração de que o A. H… tinha conhecimento e aceitou;
17 – O A., mesmo que não tenha tido conhecimento dessa venda, sabia o fim a que se destinava a procuração e sabia que só quando fosse vendida a moradia é que receberia o resto da quantia ajustada no contrato promessa de compra e venda que nada mais era do que um acordo de investimento em que ele entrava com o terreno e o J… ou a sociedade F…, Lda., com os custos da construção;
28. Os concretos pontos da matéria de facto constantes dos itens 11 e 12 da, aliás, douta sentença recorrida estão incorrectamente julgados, devendo ser julgados não provados;
29. Na acção 5789/08.6TBVNG, o A. marido tinha alegado e ficou, - no entender dos recorrentes - erradamente dado como provado que: “1.7. Após a celebração do contrato acima referido, o mencionado J… começou a interpelar o Autor, convencendo-o que, uma vez que iria investir dinheiro seu na construção da moradia, tinha de ter garantias de que o contrato promessa iria ser cumprido e convencendo-o ainda que se acontecesse alguma coisa, como por exemplo a morte do Autor, ele ficaria desprotegido (artº 6º da petição, quesitos 2º e 3º).”;
30. Dos depoimentos de parte da A. esposa I… (“a procuração era para ser usada em caso de morte dele” (6.50/7.00) e da testemunha O… “a procuração era para ser usada no caso de o sobrinho falecer” (8.50/8.52 da gravação do seu depoimento), extrai-se a conclusão de que foram no mesmo sentido dos que foram prestados no proc. 5789/08.6TBVNG, e ainda se extrai esta outra a conclusão a de que o único imprevisto apontado era a morte, e nenhum outro imprevisto ou impossibilidade foi mencionado como justificativo da necessidade de o A. H… passar procuração do Dr. D…;
31. O único imprevisto mencionado – e dado erradamente como provado no processo 5789/08.6TBVNG - era o da morte, sendo insustentáveis as declarações da A. esposa e da testemunha, pela simples razão de que, com a morte do mandante, caducaria a procuração, bem ficando claro e inequívoco que a verdadeira razão de outorga da procuração, nos precisos termos em que o foi, era para ser usada em vida e de molde a dar sequência ao projecto de investimento que envolveu o A. marido, o J… e mais tarde a sociedade F… de que este era sócio e gerente; e o procurador, ao usá-la, nada mais fez do que dar cumprimento do mandato que lhe havia conferido;
32. Os concretos pontos da matéria de facto dos itens 11 e 12 devem ser julgados não provados, face à conjugação do teor dos documentos, das alegações dos AA. nesta acção e do A. marido, na acção 5789/08.6TBVNG, o que resulta inequivocamente do teor da procuração e dos depoimentos indicados, devendo os pontos concretos dos itens 11 e 12 ser julgados não provados;
33. Os concretos pontos da matéria de facto dos itens 20 e 21 da sentença recorrida estão, na opinião dos recorrentes, incorrectamente julgados;
34. A depoente I… afirma que o marido, tal como ela já afirmara também, foi falar com o arquitecto P… – o que este também confirmou – e daí seguiu para a revogação (33.00/34.00); que foi à conservatória ver o registo do lote;
35. A revogação da procuração aconteceu no dia 10 de Outubro de 2006 e, por conseguinte, o A. tomou conhecimento da venda em data muito anterior à da revogação, porque foi antecedida de informação do arquitecto P…, de deslocações do A. H… à conservatória, dos contactos com a advogada Srª Drª Q…, por isso, com esses concretos meios de prova, devem os pontos concretos (itens 21 e 22) ser julgados como não provados;
36. Os recorrentes consideram incorrectamente julgados os factos das alíneas a), b), c), d), e), f), i), e k), dos factos considerados não provados;
37. Quanto às alíneas a) e e) reafirma-se o anteriormente afirmado nestas alegações, a respeito da impugnação do julgamento dos concretos pontos da matéria de facto constantes dos itens 8, 9, 15 e 17 da – aliás, douta sentença recorrida;
38. Relegam-se, para os devidos e legais efeitos, e invocam-se os concretos meios de prova referidos a tal respeito; por isso com base, nos documentos e depoimentos aí relatados, deve a matéria destes pontos concretos ser julgada provada e a resposta aos mesmos ser no sentido de provado que “Entre o A. e o gerente da sociedade F…, Lda., J…, existiram contactos tendo em vista negócios e investimentos e que o contrato promessa de 15 de Setembro de 2005, não é um mero contrato promessa, mas um contrato de investimento em que o A. marido entrava com o terreno (“cedia o terreno”) e, aquando da venda da moradia, recebia os 65.000€ que, com os 5.000€, já recebidos, constituíam a sua parte no investimento”;
39. Os concretos pontos da matéria de facto das alíneas b), c), d), e) e f) estão interligados e todos eles se prendem com a existência de posse efectiva por parte do A. marido;
40. Pelas razões e pelos concretos meios de prova alegados, invocados e analisados já nestas alegações a respeito do item nº 2 da sentença recorrida, devem os mesmos ser julgados provados, e serem decididos de molde a considerar provado que:
para a alínea b): “No âmbito do contrato promessa referido em 4.. o A. deu posse efectiva do prédio descrito em 1. ao J…”;
para a alínea c): “Nesse seguimento, o J… procedeu à limpeza do terreno, mandou preparar projecto para a moradia que estava autorizado a implantar no lote, tendo em vista o licenciamento desta e chegou a colocar lá um aviso da N… para esse mesmo efeito”;
para a alínea d): “O A., por si e seus antepossuidores, possuiu o prédio em causa, designadamente pondo-o à venda até 15 de Setembro de 2005; e que o murou e vedou apenas em Outubro ou Novembro de 2017, não tendo, por isso, a posse contínua que alegou”. para a alínea f): “A sociedade F…, Lda., teve a posse efectiva do prédio, somente a partir da escritura de 04/04/2006”;
para a alínea i): O A., o 2º R., e o gerente da sociedade F…, Lda. estavam ao corrente dos negócios e diligências encetadas por uns e outros”;
para a alínea k): “O A. só tomou a iniciativa de revogar a procuração depois de, não conseguindo, contactar com o J…, se dirigir ao arquitecto P…, que ele também conhecia, e este o aconselhar a consultar uma advogada”;
41. A procuração foi outorgada não para suprir qualquer imprevisto, como o imprevisto da morte do A., mas para transmitir à F…, Lda., o lote em causa de molde a que esta sociedade do J… procedesse à construção da moradia e posterior venda pelos intervenientes, cabendo ao A. H… a quantia de 65.000€;
42. O procurador Dr. D… actuou de acordo com os desígnios pré determinados de viabilizar a construção de uma moradia, através da sociedade de construções do J…, F…, Lda., à semelhança do que aconteceu, nas reuniões entre o procurador, o Dr. D… e o A. H…, em que combinaram que o lote de terreno passava para a sociedade G…, Lda. sendo o esquema de investimento exactamente o mesmo que foi ajustado entre o A. e o J…; reafirma-se, nesta conclusão o teor da conclusão 26 destas alegações;
43. O valor real do prédio (lote com 619m2) era muito inferior a 70.000€;
44. O procurador Dr. D… agiu em conformidade com os poderes que a procuração lhe conferia, exercendo o mandato constante da mesma, nos precisos termos que a mesma contém e, em conformidade com os desígnios que presidiram ao negócio de investimento entre o A. marido e o referido J…, ou seja todos estes intervenientes (A. H…, J…, F…, Lda. e procurador) estavam ao corrente dos desígnios que presidiram à celebração do denominado contrato promessa de compra e venda de 15/09/2015 e às diligências necessárias para a concretização da construção da moradia e posterior venda, e por isso, não se pode concluir, como aconteceu na sentence recorrida que o procurador actuou com abuso de representação;
45. Ficou demonstrado pela análise dos documentos, conjugados com a prova testemunhal e a confissão do A., e demais provas dos autos que o procurador actuou nos limites dos poderes que lhe competiam, exercendo o mandato estrito que lhe foi conferido e, tendo presentes os desígnios das partes envolvidas, nomeadamente do A. H… que o que pretendia era que a moradia fosse rapidamente construída;
46. Assim, o primeiro negócio celebrado entre o A. H… e a Ré F…, Lda. não é ineficaz mas validamente celebrado, e, sendo o registo arresto, convertido em penhora, anterior à venda da F…, Lda. À G…, Lda., deve o mesmo prevalecer;
47. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 258º do Código Civil, e 260º (a contrario) do mesmo diploma, devendo ser revogada.
2. Os AA. contra-alegaram em 11/mar./2019, pugnando pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. As conclusões dos RR. (46) pela sua quantidade, prolixidade e confusão, não permitem de modo algum uma análise linear, pelo que dentro do possível vamos tentar seriá-las de forma a possibilitar uma resposta adequada.
2. Nas conclusões 2ª a 4ª pugnam os recorrentes pela necessidade de estar presente na
acção a 3ª R. F…, Lda , por segundo elas estar a R dissolvida e em liquidação. Todavia, os RR. não atentaram na certidão junta com o douto despacho de 14-09-2017, segundo a qual a dita R. está extinta e não em liquidação. Portanto já não tem liquidatários que a representem e mesmo que se estivesse perante um litisconsórcio (o que não está assente em parte alguma), a sentença produzida não deixa de ter o seu efeito normal (artº 33 nº 3 cpc)
3. Na conclusão 6ª a 40ª os RR. consideram que estão incorrectamente julgados os prontos de facto da matéria provada e não provada, que aí elencam, já referidos em b, b-1 e b- 2 das suas alegações, que se referem aos factos provados nº 3, 8, 9, 11, 12, 15, 17, 20 e 21; e quanto matéria não provada das alª a), b), c), d), e), f), i), k) sobre a pretendida alteração, damos aqui por reproduzida a argumentação expendida no item 16 das nossas alegações,
4. Convém desde já deixar registado que contrariamente aos que os RR. afirmam nas conclusões 7 e 8, o que resultou da acção 5789/08.6TBVNG não foi importado de forma aleatória para a presente acção; os aludidos factos nº 27 e 28, anulação das vendas e cancelamentos no registo, são um facto que se impõe nestes processo, porque o conteúdo das certidões dele emanadas reflectem o que foi sentenciado (com trânsito) e lavrado no registo.
5. Na parte conclusiva nº 9 a 15, sobre a posse do lote de terreno, partem os RR. de premissas erradas designadamente o que afirmam na conclusão nº 10, pois que contrariamente ao que afirmam, nenhuma posse foi dada com o contrato promessa. O A. também não transmitiu qualquer posse formal ou efectiva à sociedade F…, Lda, pois a venda feita foi declarada ineficaz, o que significa que o A. nada tem a ver com ela e por isso ela não lhe pode ser oposta as considerações que fazem reflectem necessariamente o erro de que partem.
6. O A. não celebrou com os RR. qualquer acordo de investimento (mas um simples contrato promessa), para com isso darem consistência à versão de que foi para dar execução a esse acordo que o A. passou uma procuração ao 2º R. Dr. D…. Isso nem o próprio R. Dr. D… o afirma na sua contestação.
7. Não se verificando de modo algum quaisquer fundamentos de facto da sua versão – posse dada pelo A. do lote de terreno a F…, Lda., celebração de um acordo de investimento para pagamento do preço do terreno, outorga da procuração para executar tal acordo – e sendo até um absurdo o que os RR. alegam, por contrariarem todas as regras de experiência, presunções judiciais, não há fundamentos de facto nem meios de prova para alteração da matéria de facto peticionada pelos RR.
8. De facto, os meios de prova que invocam para tal fim são praticamente de índole testemunhal, e mesmo esta desenquadrada do contexto ou fundo factual em que se desenrolaram. Ora, o tribunal na sua motivação considerou uma grande quantidade de provas documentais e testemunhos, elencada na motivação e cuja apreciação crítica, conjugando-os de forma exaustiva e consciente
9. A apreciação das provas e a sua análise crítica deve ser feita globalmente, e essa acha-se feita sem qualquer dúvida na douta sentença
10. Pelo exposto, decidindo como decidiu, o tribunal fez uma correcta apreciação dos factos e subsunção jurídica dos mesmos

3. Admitido o recurso, foi o mesmo remetido a esta Relação onde foi autuado em 03/abr./2019, sendo proferido despacho liminar e cumpridos os vistos legais.
4. Questão prévia da admissibilidade do recurso respeitante à ilegitimidade passiva em virtude da desistência da instância relativamente à R. F…
O NCPC estabelece no seu artigo 627.º que “As decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recurso”, acrescentando-se no artigo 632.º, n.º 2 que “Não pode recorrer quem tiver aceitado a decisão depois de proferida”, explicitando-se no n.º 3 que “A aceitação da decisão pode ser expressa ou tácita; a aceitação tácita é a que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer”, e essa “prática” tanto decorre de um comportamento activo, como omissivo. Mais à frente no artigo 644.º ao indicarem-se as decisões judiciais de que cabe apelação autónoma, tanto no seu n.º 1, como no n.º 2, precisa-se no n.º 3 que “As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1”. Por sua vez e em conformidade com o disposto no artigo 615.º, n.º 4, existindo nulidade da sentença e havendo possibilidade de recurso, aquele vício deve ser suscitado em sede de impugnação recursiva. As demais nulidades, tal como decorre do artigo 196.º, não sendo de conhecimento oficioso, devem ser reclamadas pelo interessado perante o tribunal que as praticou, sob pena de considerarem-se sanadas.
Aquando da questão suscitada pelos AA. em virtude da R. F…, Lda. encontrar-se liquidada antes da propositura desta ação – muito embora tal só tenha sido do conhecimento daqueles no âmbito deste processo –, que levaram os primeiros a desistir da instância em relação a essa sociedade, os RR. recorrentes, mediante requerimento de 30/10/2017, vieram sustentar que “Nos presente autos, está em causa a arguição de simulação em que a Ré F…, Lda. é alegadamente interveniente na simulação. Sendo necessária a sua intervenção sob pena de ilegitimidade (art. 33, nº 1 e 2 do C.P.C.).”. Tal requerimento foi formulado posteriormente à decisão que homologou a desistência da instância, porquanto esta foi proferida em 23/10/2017, não tendo desde então os recorrentes suscitado a eventual omissão do conhecimento dessa questão perante o tribunal recorrido. E poderiam ter provocado essa questão, designadamente no decurso da Audiência Prévia realizada posteriormente, mais precisamente em 19/04/2018, onde conheceu-se de uma questão de ilegitimidade passiva suscitada pelos RR. aqui recorrentes.
Isto significa que neste segmento recursivo respeitante à ilegitimidade passiva em virtude da desistência da instância relativamente à R. F…, os RR. não recorrem de nenhuma decisão judicial, como de resto os mesmos reconhecem, mas suscitam pela primeira vez e de um modo implícito a omissão de pronúncia respeitante a um requerimento formulado pelos mesmos. Mas esta Relação enquanto instância de recurso apenas cabe conhecer da impugnação de decisões judiciais, aceitando-se, porém, alargar o seu conhecimento das nulidades quando estas sejam da própria sentença ou então quando as mesmas estejam cobertas pelo despacho recorrido. Também nenhuma destas situações aqui verifica-se.
Nesta conformidade e não estando em causa a impugnação de qualquer decisão judicial, esta Relação não irá conhecer deste segmento recursivo.
*
5. Não existem outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do recurso.
*
O objecto deste recurso incide no reexame da matéria de facto (a) e no abuso de representação quanto à procuração utilizada na escritura de 04/04/2006 (b).
*
* *
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A sentença recorrida
“Realizada a prova e com interesse para a decisão da causa, o Tribunal considera provados os seguintes factos:
1 – Encontra-se registado em nome do Autor marido pela AP nº .. de 1998/06/02, o terreno destinado a construção, sito no …, da freguesia …, inscrito na matriz rústica sob o artº 3257, o qual está descrito na 2ª Conservatória Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº 2653/19980602 (freguesia …);
2 – Tal prédio adveio à titularidade do Autor marido por doação de sua tia S…, celebrada no Cartório Notarial de Espinho em 07-11-1997;
3 – Por si e seus anteriores possuidores, há mais de 5, 10 e 20 anos, de forma contínua, de boa-fé e sem oposição, que o Autor usufrui e é o único beneficiário das suas utilidades e rendimentos, designadamente pondo-o à venda, dispondo dele e vedando-o para preservar o seu domínio;
4 – Por contrato promessa de 15-09-2005, assinado pelo Autor e por J…, o Autor prometeu vender e o J… adquirir o prédio referido em 1. pelo preço de € 70.000,00, tendo recebido de sinal a quantia de € 5.000,00 e tendo ficado acordado que a restante parte do preço seria paga no acto da escritura;
5 – Mais ficou nesse documento convencionado que o Autor autorizava o dito J… a iniciar a construção de uma moradia, obrigando-se aquele a outorgar a escritura de venda com o dito J… ou com outro que designasse;
6 – Mais ficou convencionado que a escritura definitiva era outorgada após a conclusão da moradia, cujo prazo se previa de um ano;
7 – O referido J… era sócio gerente da 3ª Ré “F…, Lda.”;
8 – Após a celebração do contrato promessa, o J… passou a dizer ao Autor que ia investir bastante dinheiro na moradia e que era necessária uma garantia do Autor para a eventualidade de lhe acontecer alguma coisa, designadamente a morte do Autor, e que nesse caso o J… ou a sua sociedade ficariam prejudicados;
9 – Por ao Autor interessar que o dito promitente comprador iniciasse rápido a moradia e a terminasse depressa a fim de receber o preço acordado, acedeu a passar uma procuração ao 2º Réu Dr. D…, advogado conhecido e amigo do J…, a quem conferia poderes para vender o prédio descrito em 1. a quem entendesse e pelo preço e condições que julgasse convenientes, designadamente à 3ª Ré “F…, Lda.”;
10 – Para lavrar a procuração, o J… pediu ao Autor que fosse ao escritório do seu advogado, 2º Réu;
11 – O Autor só acedeu a passar a procuração por lhe ter sido criada a firme convicção, quer pelo J…, quer pelo 2º Réu, de que a mesma só seria utilizada se o Autor não pudesse, por algum motivo, cumprir o contrato promessa;
12 – Ficou acordado entre o Autor, J… e o 2º Réu que a procuração só seria usada se sucedesse aquele imprevisto;
13 – Por escritura celebrada em 4-04-2006, outorgada pelo 2º Réu, na qualidade de procurador do Autor, e pelo J… na qualidade de sócio gerente da 3ª Ré, cada um declarou, na qualidade em que intervinha, que vendia e comprava o referido prédio pelo preço de € 3.500,00;
14 – O 2º Réu não informou o Autor da utilização da procuração nem antes nem depois do referido em 13.;
15 – O 2º Réu não entregou ao Autor qualquer quantia declarada naquela escritura;
16 – A 3ª Ré tinha perfeito conhecimento dos factos antecedentes;
17 – O Autor, caso tivesse sido previamente informado de tal venda, nunca a aceitaria, designadamente quanto ao preço da mesma;
18 – O que era do conhecimento dos intervenientes na escritura;
19 – Vendo o Autor que a construção da moradia não tinha sido sequer iniciada em Outubro de 2006, e estranhando esse facto e o silêncio do 2º Réu e gerente da 3ª Ré, ficou inquieto e recorreu aos serviços de uma advogada;
20 – E assim, em 10-10-2006, aconselhado pela advogada, foi ao Cartório Notarial da Notária Dra. M… revogar, a partir dessa data, a procuração aludida em 9.;
21 – Foi por essa altura que tomou conhecimento da venda referida em 13.;
22 – Por escritura de 12-04-2007, a 3ª Ré declarou vender à 4ª Ré “G…, Lda.”, representada pela sócia-gerente, E…, esposa do 2º Réu, o prédio descrito em 1., pelo preço de € 60.000,00, mais declarando ter recebido o respectivo preço;
23 – Os 2ºs Réus Dr. D… e E… estão casados entre si no regime de separação de bens desde 02-09-2006;
24 – Sobre o prédio referido em 1. está registado a favor dos 1ºs Réus B… e mulher um arresto pela inscrição F1, AP ../230307, convertido em penhora pela AP …. de 02/09/2010, para garantia da quantia de € 35.000,00;
25 – Os factos constantes dos precedentes pontos 1. a 22. foram alegados e dados como provados na sentença da acção de processo ordinário, com o nº 5789/08.6TBVNG, da ex-1ª Vara de Competência Mista de Vila Nova de Gaia, em que foram intervenientes os aqui Autores e aqui Réus, com excepção dos 1ºs Réus;
26 – Nessa acção era pedida a declaração judicial de invalidade das aquisições feitas pelas aqui 3ª e 4ª Rés “F…, Lda.” e “G…, Lda.” e o cancelamento dos respectivos registos de aquisição a favor daquelas Rés;
27 – A sentença proferida nessa acção julgou ineficaz a venda do prédio feita pelo Réu D…, em nome do Autor, à 3ª Ré “F…, Lda.”, bem como nula a venda celebrada entre a 3ª Ré “F…, Lda.” e a 4ª Ré “G…, Lda.” e ordenou o cancelamento dos respectivos registos de aquisição a favor daquelas Rés;
28 – Nessa decorrência, foram definitivamente canceladas no registo as inscrições respeitantes a tais vendas (AP .. de 05/04/2006 e AP .. de 17-04/2007), ficando repristinada a titularidade do prédio em nome do Autor e reportada à data do registo (02-06-1998);
29 – Enquanto o prédio mencionado em 1. esteve na titularidade registral da 3ª Ré “F…, Lda.”, os 1ºs Réus B… e mulher obtiveram um registo de arresto (AP .. de 23/03/2007) para garantia de dívida dessa 3ª Ré (na quantia de € 35.000,00), convertido em penhora pela AP …. de 02/09/2010, no âmbito da acção executiva, processo nº 10307/09.6TBVNG, Inst. Central, 1ª Secção de Execução – J7;
30 – Execução essa em que são partes, como exequentes, os 1ºs Réus, e executada a 3ª Ré;
31 – Não obstante o cancelamento aludido em 28., o arresto não chegou a ser cancelado visto o respectivo registo ser de 23/03/2007 e o registo da acção nº5789/08.6TBVNG ser de 18/07/2008 e não estarem demandados nessa acção os aqui 1ºs Réus;
32 – O Autor nada deve aos 1ºs Réus, seja por dívida própria, seja por garantia prestada;
33 – O Autor instaurou uma anterior acção contra os 1ºs Réus (proc. 4602/14.0TBVNG, Inst. Central, 3ª Secção cível, J1), cuja sentença, transitada em julgado, declarou que a acção devia ser promovida contra todos os Réus;
34 – Os Autores são casados entre si no regime da comunhão de bens adquiridos;
35 – A procuração aludida em 9. foi outorgada por instrumento público de autenticação e dela consta expressamente que o outorgante leu, assinou e que o conteúdo exprime a sua vontade, mais constando que o mandatário ficava isento de prestar contas relativamente ao mandato constante da mesma;
36 – Consta da cláusula 7ª do referido contrato promessa que “O Primeiro Outorgante obriga-se a outorgar a escritura definitiva de compra e venda da moradia a construir no prédio designado na cláusula primeira e objecto do presente contrato promessa, com o Segundo Outorgante ou com quem este previamente designar.”;
37 – No âmbito do contrato promessa aludido em 4., o Autor reconheceu o aí segundo outorgante como legítimo dono e possuidor da construção a realizar no terreno;
38 – Por documento escrito datado de 14/03/2006, designado “Contrato de Cessão da Posição Contratual”, em que foram intervenientes J…, como primeiro outorgante, T… e mulher U…, como segundos outorgantes, e “F…, Lda.”, como terceira outorgante, foi declarado, para além do mais, que, por contrato promessa celebrado em 17 de Setembro de 2005, o primeiro outorgante prometeu vender aos segundos outorgantes, e estes prometeram comprar-lhe, o prédio descrito em 1., cedendo o primeiro outorgante à terceira outorgante a posição que detinha naquele contrato promessa, com todos os seus direitos e obrigações, sendo o preço da cessão de € 70.000,00, consentindo os segundos outorgantes nessa cessão da posição contratual;
39 – A sociedade Ré “F…, Lda.” inscreveu o prédio em seu nome na matriz e no registo predial;
40 – Tendo a referida sociedade celebrado contratos de investimento com os Réus B… e mulher e com a filha destes, V…;
41 – Chegou a acontecer reunião em que estavam presentes o 1º Réu, o mandatário deste, o Autor, o Dr. D…, bem como o J…;
42 – A procuração mencionada em 9. não era irrevogável nem foi conferida no interesse do mandatário;
43 – A sociedade Ré “J…, Lda.” não cumpriu os acordos de investimento nem com os 1ºs Réus nem com a filha destes;
44 - A construção da moradia aludida no contrato promessa referido em 4. não chegou a efectuar-se;
45 – A procuração mencionada em 9. foi objecto de termo de autenticação notarial, tendo sido lido e explicado o seu conteúdo ao aqui Autor;
46 – Na altura do registo da transmissão do prédio descrito em 1. da Ré “F…, Lda.” para a Ré “G…, Lda.” já estava registado o arresto para garantia do pagamento do débito da 3ª Ré aos 1ºs Réus, pela apresentação nº.. de 2007/03/23;
47 – A presente acção mostra-se registada sobre o prédio aludido em 1. através da AP. … de 12/09/2017.
*
Com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos e, designadamente, que:
a) Entre o Autor e o gerente da sociedade “F…, Lda.”, J…, existissem negócios e investimentos;
b) No âmbito do contrato promessa referido em 4., o Autor tivesse logo dado posse efectiva do prédio descrito em 1. ao J…;
c) Nesse seguimento, o J… tenha limpado e preparado o terreno para o licenciamento camarário e a construção para posteriormente revender;
d) O Autor, desde o contrato promessa referido em 4., não tivesse praticado quaisquer actos de posse sobre o prédio descrito em 1., nem tivesse pago quaisquer impostos, taxas, licenças de construção ou encargos semelhantes relativos ao dito prédio;
e) O contrato promessa referido em 4. se tivesse tratado de uma parceria de investimento entre o Autor e o J… com outrem a quem este viesse a ceder a sua posição contratual;
f) A sociedade Ré “F…, Lda.” tivesse tido a posse efectiva do prédio;
g) Os contratos de investimento aludidos em 40. tivessem sido feitos tendo em vista o cumprimento do acordado com o Autor;
h) O Autor tivesse conhecimento desses acordos de investimento e tivesse acompanhado o desenrolar dos negócios e dos investimentos;
i) O Autor, o 2º Réu e o gerente da Ré “F…, Lda.” estivessem ao corrente de todos os negócios e diligências encetadas por uns e por outros;
j) O 2º Réu tivesse sido sempre o advogado do Autor;
k) O Autor só tivesse tomado a iniciativa de revogar a procuração depois de desinteligências e acções do J…;
l) O Autor tenha proposto a acção referida em 25. de combinação com os demais intervenientes desse processo;
m) A referida acção tivesse sido o instrumento pelo qual o Autor, com a colaboração ou inércia dos Réus, subtraírem o prédio à venda que estava requerida na execução 10.307/09.6TBVNG – do extinto Juízo de Execução de V.N. de Gaia.
*
MOTIVAÇÃO
O Tribunal fundou a sua convicção, quanto à factualidade considerada provada, na análise conjugada de toda a prova produzida, valorada à luz das regras de normalidade e de experiência comum.
Assim, consideraram-se os diversos elementos documentais juntos aos autos, a saber:
- teor da certidão do registo predial respeitante ao prédio em causa nos autos, junta aos autos a fls. 8 verso a 12 e 111 a 114;
- teor da certidão matricial respeitante ao prédio em causa nos autos, junta aos autos a fls. 12 verso;
- teor da escritura pública de doação respeitante ao prédio em causa nos autos, junta aos autos a fls. 13 verso a 14 verso;
- teor da fotografia respeitante ao prédio em questão nos autos, junta aos autos a fls. 17, onde se mostra colocada uma placa com o nome e contacto telefónico do aqui Autor;
- teor do contrato promessa de compra e venda celebrado entre o aqui Autor marido e J…, junto aos autos a fls. 68 a 69;
- teor da escritura pública de compra e venda respeitante ao prédio em causa nos autos, celebrada entre o Réu Dr. D…, em representação do Autor marido, e J…, como representante da Ré “F…, Lda.”, junta aos autos a fls. 18 verso a 19 verso;
- teor da Procuração outorgada pelo aqui Autor marido a favor do Réu Dr. D…, junta aos autos a fls. 62 a 62 verso;
- teor do instrumento notarial de revogação daquela Procuração, junto aos autos a fls. 20;
- teor da certidão judicial respeitante ao processo nº5798/08.6TBVNG, junta aos autos a fls. 20 verso a 30 e 56 a 73;
- teor da sentença proferida no âmbito do processo nº4602/14.0TBVNG, junta aos autos a fls. 30 verso a 32 verso, e acórdão do Tribunal da Relação do Porto que sobre a mesma recaiu, junto a fls. 33 a 38;
- teor do documento designado “Acordo de Investimento” estabelecido entre a Ré “F…, Lda.” e V…, junto aos autos a fls. 69 verso a 70;
- teor do contrato de cessão da posição contratual celebrado entre J…, T… e mulher e “F…, Lda.”, junto aos autos a fls. 70 verso a 71;
- teor do assento de casamento dos Réus Dr. D… e mulher, junto aos autos a fls. 88;
- teor do requerimento inicial do procedimento cautelar de arresto instaurado pelo aqui Réu B… contra a aqui Ré “F…, Lda.”, junto aos autos a fls. 141 a 142;
- teor da sentença proferida no âmbito da acção de processo comum nº 3199/07.1TBVNG, que correu termos pela 1ª Vara Mista de Vila Nova de Gaia, instaurada pelo aqui Réu B… contra a aqui Ré “F…, Lda.”, junta aos autos a fls. 143 a 145;
- teor da petição inicial e sentença da acção de processo comum nº3423/07.0TBVNG, que correu termos pela 2ª Vara Mista de Vila Nova de Gaia, instaurada por V… contra a aqui Ré “F…, Lda.”, juntas aos autos a fls. 145 verso a 148 verso.
Da análise conjugada destes elementos documentais é possível extrair, designadamente, a aquisição por parte do Autor marido do imóvel em questão nos autos e o registo do mesmo em seu nome junto da Conservatória do Registo Predial. Decorre igualmente dos aludidos documentos, nomeadamente da certidão do Registo Predial, o cancelamento dos registos de aquisição do terreno a favor das Rés sociedades “F…, Lda.” e “G…, Lda.”, no seguimento da sentença proferida no âmbito da acção n.º 5789/08.6TBVNG, bem como o registo do arresto do imóvel (e posterior conversão em penhora) a favor dos aqui co-Réus B… e mulher.
Em conjugação com tais elementos documentais, considerou ainda o Tribunal os depoimentos das testemunhas P…, Arquitecto, o qual conheceu os Autores por intermédio de J… para proceder à elaboração do projecto para construção de moradia no terreno em questão nos autos; W…, Professor, colega e amigo do Autor desde 2000; X…, tia do Autor marido; V…, filha dos co-Réus B… e mulher; Y… e Z…, clientes do Réu B… há vários anos.
A testemunha P… relatou em audiência de julgamento as circunstâncias que conheceu os aqui Autores, tendo referido que, a determinada altura, o Autor marido o abordou perguntando-lhe pelo J… e dizendo-lhe que estava preocupado e receoso porque lhe tinha passado uma procuração respeitante ao terreno e não o conseguia contactar. Tendo-lhe a testemunha transmitido que o J… lhe devia dinheiro (não lhe pagava pontualmente os serviços prestados), aconselhou o Autor a procurar a ajuda de uma advogada, que lhe indicou (Dra. Q…), para tentar esclarecer a situação do terreno. Também referiu que o Autor é uma pessoa simples, honesta e um pouco manipulável.
Também a testemunha W… referiu que o Autor lhe falou de um negócio de um terreno que possuía nos … e que, nesse âmbito, havia passado uma procuração, tendo depois verificado (após consulta com uma advogada e verificação na Conservatória do Registo Predial) que havia sido “enganado” pois que a procuração tinha sido usada de forma indevida (tinham-se “apropriado” do terreno, o que ele desconhecia); situação que o deixou muito nervoso, agastado e transtornado. Confirmou ainda que o Autor é pessoa ingénua, confiando na boa-fé das pessoas.
Ainda em relação às circunstâncias da outorga da Procuração (e sua revogação) e dos subsequentes negócios de alienação do terreno, o Tribunal valorou especialmente os depoimentos e declarações de parte dos aqui Autores H… e mulher I…, tendo o Autor marido relatado pormenorizadamente as circunstâncias da negociação que estabeleceu com o J… (construtor e sócio-gerente da Ré “F…, Lda.”); os termos do contrato promessa junto aos autos e as circunstâncias em que o mesmo foi celebrado; o circunstancialismo em que foi emitida a Procuração junta aos autos, tendo sido absolutamente peremptório em afirmar que foi o J… quem propôs a outorga da mesma, dizendo-lhe que era para ficar garantido no caso de o Autor morrer. Relatou que, nesse seguimento, foram ao escritório do aqui Réu Dr. D…, o qual minutou a Procuração (conforme confirmado pelo próprio em depoimento de parte), que o Autor assinou, tendo sido depois autenticado notarialmente. Esclareceu ainda as circunstâncias em que procedeu à revogação da Procuração, em termos essencialmente coincidentes com o relatado pela testemunha P…, e relatou as reuniões que foram realizadas no escritório do Dr. D… tendo em vista resolver a questão da venda do terreno à sociedade “F…, Lda.”. Foi também absolutamente categórico em afirmar que, já depois da revogação da Procuração mas antes da realização do arresto, transmitiu ao Réu B… todos estes factos (foi à oficina do Réu B… cerca de 5 vezes antes da realização do arresto e sempre lhe disse que o terreno lhe pertencia). Mais referiu que nunca aceitaria vender o terreno pelo preço de € 3.500,00, o que era do conhecimento do Réu Dr. D… e do J…, os quais nunca o informaram da realização da venda à Ré “F…, Lda.”. Também referiu que sempre tratou do sobredito terreno (só não conseguiu proceder ao pagamento dos respectivos impostos durante o período em que o mesmo esteve registado em nome das Rés sociedades), sendo que em 2006 foi lá colocada uma placa da N… enquanto decorria o projecto de construção depoimento da Autora I… foi de molde a corroborar inteiramente esta versão dos factos, tendo a mesma relatado pormenorizadamente as deslocações do Autor (que ela acompanhou algumas vezes) ao escritório do Réu Dr. D… e à oficina do Réu B… para resolver o assunto da venda do terreno. Foi também categórica em afirmar que o Autor sempre lhe transmitiu que aquilo que havia combinado com o J… e com o Dr. D… foi que a Procuração só seria utilizada no caso de o Autor não poder cumprir o contrato promessa. Também confirmou que é o Autor quem trata do terreno (mandou construir um muro e vedou-o) e quem paga os respectivos impostos. As testemunhas Y… e Z… confirmaram, por sua vez, terem visto o Autor na oficina do Réu B….
Os Autores prestaram os respectivos depoimentos de forma que se nos afigurou absolutamente espontânea, convicta, segura e fundamentada, sendo, outrossim, consentâneos com os elementos documentais constantes dos autos (a cronologia e circunstâncias dos acontecimentos relatadas pelos mesmos coincide inteiramente com o teor dos contratos, escrituras, procuração e sua revogação, juntos aos autos), pelo que se nos afiguraram totalmente credíveis.
No que respeita à posse do Autor sobre o aludido terreno, para além do referido a esse propósito pelos Autores e já acima mencionado, relevou o depoimento da testemunha X…, a qual reside muito perto do terreno em questão nos autos e afirmou, de forma categórica, que foi sempre o Autor quem, com a ajuda de familiares, tratou daquele terreno, tendo inclusivamente mandado construir um muro e vedado o terreno. Mencionou também que naquele terreno estava prevista a construção de uma moradia, tendo estado lá colocado para esse efeito um placard da N… em nome do Autor. Mais referiu que nunca viu no terreno o Dr. D… ou algum responsável de qualquer sociedade a praticar quaisquer actos.
Por sua vez, a testemunha V… e o Réu B… relataram em audiência de julgamento as circunstâncias em que investiram dinheiro na moradia projectada construir no terreno em questão, tendo a testemunha V… confirmado o teor do “Acordo de Investimento” junto aos autos e a sua assinatura aposta no mesmo, e o Réu B… confirmado que o Autor foi várias vezes à sua oficina para saber o ponto da situação da construção da moradia, antes e depois da realização do arresto, sendo que a mesma nunca chegou a ser construída.
No que respeita aos factos considerados não provados, estribou-se o Tribunal na circunstância de sobre os mesmos não ter sido produzido prova bastante capaz de convencer o Tribunal da sua veracidade.
Efectivamente, quanto à invocada posse da Ré “F…, Lda.” sobre o imóvel em questão, nenhuma das testemunhas ouvidas em julgamento aludiu a qualquer acto de posse daquela Ré sobre o terreno e os elementos documentais constantes dos autos não são, por si só, susceptíveis de os confirmar. Na verdade, a mera circunstância de o Autor ter autorizado o legal representante da Ré “F…, Lda.”, J…, a iniciar a construção da moradia no terreno (cfr. cláusula 5ª do contrato promessa), não é, quanto a nós, suficiente para se poder afirmar que aquela Ré passou a exercer actos de posse sobre o aludido terreno, posto que nenhum acto material de posse foi apurado nesse sentido e a moradia não chegou a ser construída (como alegado pelos próprios Réus B… e mulher).
Quanto à alegação dos Réus B… e mulher no sentido de que o Réu Dr. D… era advogado do Autor, este negou veementemente essa circunstância em sede de depoimento e declarações de parte.
Sobre a demais factualidade considerada não provada, não foi produzida qualquer prova.”
*
2. Fundamentos do recurso
a) Reexame da matéria de facto
O Novo Código de Processo Civil (NCPC) estabelece no seu artigo 640.º, n.º 1 que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”. Acrescenta-se no seu n.º 2 que “No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. Nesta conformidade e para se proceder ao reexame da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente: (i) indicar os factos impugnados; (ii) a prova de que se pretende fazer valer; (iii) identificar o vício do julgamento de facto, o qual se encontra expresso na motivação probatória. Nesta última vertente assume particular relevância afastar a prova ou o sentido conferido pelo tribunal recorrido, demonstrando que o julgamento dos factos foi errado, devendo o mesmo ser substituído por outros juízos, alicerçados pela prova indicada pelo recorrente.
Assim, tal reexame passa, em primeiro lugar, pela reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente (recurso de apelação limitada). Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia, possibilitando-se o seu conhecimento pela Relação, que formará a sua própria convicção sobre a factualidade impugnada (Acs. STJ de 04/mai./2010, Cons. Paulo Sá; 14/fev./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt). Porém, fica sempre em aberto, quando tal for admissível, a possibilidade do tribunal de recurso, designadamente por sua iniciativa e perante o mesmo, renovar ou produzir novos meios de prova (662.º, n.º 2, al. a) e b) NCPC), alargando estes para o reexame da factualidade impugnada (recurso de apelação ampliada). Mas em ambas as situações, sob pena de excesso de pronúncia e de nulidade do acórdão (666.º, 615.º, n.º 1, al. d) parte final), o tribunal de recurso continua a estar vinculado ao ónus de alegação das partes (5.º) e ao ónus de alegação recursiva (640.º) – de acordo com a primeira consideram-se como não escritos o excesso de factos que venham a ser fixados, face à segunda o tribunal superior não conhece de questões não suscitadas, salvo se for de conhecimento oficioso (Ac. STJ de 11/dez./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt).
*
Na apreciação do suscitado reexame da matéria de facto iremos destrinçar entre matéria de facto provada e aquelas outra não provada. Assim e começando pela primeira, iremos transcrever os factos provados em causa e a correspondente prova de que os RR. recorrentes pretendem fazer-se valer e se a mesma tem a virtualidade de conduzir ao resultado pretendido pelos mesmos.
*
“3 – Por si e seus anteriores possuidores, já mais de 5, 10 e 20 anos, de forma contínua, de boa-fé e sem oposição, que o Autor usufrui e é o único beneficiário das sua utilidades e rendimentos, designadamente pondo-o à venda, dispondo dele e vedando-o para preservar o seu domínio.”
Os recorrentes impugnam esta matéria a partir essencialmente das suas conclusões 10) a 15), partindo do contrato-promessa celebrado em 15/09/2005. Mas o que menciona-se nesse contrato-promessa, tal como resulta do item 5 dos factos provados, é que “... o Autor autorizava o dito j… a iniciar a construção de uma moradia, obrigando-se aquele a outorgar a escritura de venda com o dito J… ou com outro que designasse”. Isto significa que era o A. por si ou através de outros, no caso o referido J…, que mantinha o domínio daquele terreno e nada impede que aquele retire as utilidades que entenda do mesmo, designadamente cedendo-o a outrem. E também não obstava a esse domínio que o A. autorizasse a realização de todo o processo administrativo conducente à construção de uma moradia naquele local, com tudo o que isso implicava. E vão nesse sentido as demais conclusões dos RR. recorrentes mencionadas em 11, 12, respeitante aos depoimentos de parte dos AA., bem como das testemunha P…, arquitecto, e O…, devendo atender-se a todo os depoimentos destas testemunhas e não apenas aos extractos reproduzidos nas alegações de recurso. E mesmo ponderando esses extractos nada invalida que se dê tal factualidade como provada. É certo que seria certamente mais correcto afirmar-se no item 3.º dos factos provados que “Por si ou através de outros para o efeito expressamente autorizados e seus anteriores possuidores ...”. Mas não é nesse sentido que segue a impugnação do RR. Recorrentes.
No entanto, haverá que reformular os factos provados do item 3.º, passando a constar o seguinte:
“3 – Por si ou através de outros para o efeito expressamente autorizados e seus anteriores possuidores, já mais de 5, 10 e 20 anos, de forma contínua, de boa-fé e sem oposição, que o Autor usufrui e é o único beneficiário das sua utilidades e rendimentos, designadamente pondo-o à venda, dispondo dele e vedando-o para preservar o seu domínio.”
*
“8 – Após a celebração do contrato promessa, o J… passou a dizer ao Autor que ia investir bastante dinheiro na moradia e que era necessária uma garantia do Autor para a eventualidade de lhe acontecer alguma coisa, designadamente a morte do Autor, o que nesse caso o J… ou a sua sociedade ficariam prejudicados.”
“9 – Por ao Autor interessar que o dito promitente comprador iniciasse rápido a moradia e a terminasse depressa a fim de receber o preço acordado, acedeu a passar uma procuração ao 2º Réu Dr. D…, advogado conhecido e amigo do J…, a quem conferia poderes para vender o prédio descrito em 1. a quem entendesse e pelo preço e condições que julgasse convenientes, designadamente à 3ª Ré “F…, Lda.”
15 – O 2.º Réu não entregou ao Autor qualquer quantia declarada naquela escritura;
17 – O Autor, caso tivesse sido previamente informado de tal venda, nunca a aceitaria, designadamente quanto ao preço da mesma.
20 – E assim, em 10-10-2006, aconselhado pela advogada, foi ao Cartório Notarial da Notária Drª M… revogar, a partir dessa data, a procuração aludida em 9.”.
Os RR. recorrentes suscitam o reexame desta factualidade a partir essencialmente das suas conclusões 17 a 26, tendo na sua base o contrato promessa de 15/09/2005 sustentando que tratar-se-ia de uma parceria de investimento, celebrada entre o A. e o referido J…, que seria o sócio-gerente da referida sociedade F…. No entanto e apesar de transparecer do depoimento de parte dessa testemunha que o referido contrato-promessa seria a antecâmara de outros negócios, não temos qualquer confissão do A. no sentido de existir uma parceria de investimento. Desde logo porque o preço final prometido de € 70.000,00, não espelha qualquer parceria, dizendo respeito ao terreno e nada mais – seria certamente distinto se englobasse a construção de um prédio urbano, sendo essa “venda global” que justificaria um preço final que comportasse ambos. A isto acresce que sendo as datas desfasadas do correspondente contrato-promessa, que é de 15/09/2005 (17.º factos provados), e da procuração a favor do R. D…, que é de 16/03/2006 (21.º factos provados) sendo este último uma pessoa distinta daquela que outorgou o contrato-promessa, estamos perante razões e declarações negociais distintas que levaram à outorga igualmente diferenciadas desses documentos. Aliás, a existir esse acordo de investimento, as datas de outorga destes dois últimos documentos seriam contemporâneos e não desfasadas no tempo. Por último, mas não tanto decisivo, será de considerar que quando ocorreu esse “acordo de investimento”, o mesmo foi reduzido a escrito por parte da sociedade “F…”, como sucedeu entre esta última e V… – veja-se o contrato de 17/04/2016. Estes elementos objectivos de prova afastam-nos da versão dos RR. e aproximam-nos da versão dos AA., a qual mereceu adesão por parte do tribunal recorrido. E tanto é assim que os AA. não receberam qualquer quantia declarada na referida escritura de compra e venda (15.º factos provados), sendo de presumir, como faz esta Relação e ao abrigo do artigo 351.º do Código Civil, que a partir daquela factualidade e com toda a probabilidade segura, o A. nunca teria aceite tal venda, pelo que de um preço final de € 70.000,00 apenas recebeu aquele sinal de € 5.000,00 – naquele artigo 351.º preceitua-se que “As presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal”. E para uma maior exigência dos factos conducentes a esta presunção judicial temos vindo a considerar, como sucedeu no Ac. TRP de 25/10/2018, acedido em www.dgsi.pt, subscrito pelo Relator e 1.º Adjunto, que “As presunções judiciais são admissíveis quando partem de um facto indiciário (i), que é certo e está demonstrado, para um facto consequência (ii), distinto daquele outro mas estando com o mesmo conexionado, existindo entre ambos uma estreita relação de proximidade (iii), utilizando-se para o efeito raciocínios lógicos, naturais ou extraídos da regra da experiência (iv), mormente aqueles que têm por base elementos objectivos, os quais devem estar devidamente motivados na convicção probatória (v)”.
Mais será de referir, como transparece do depoimento de parte dos AA. que os outros eventuais negócios a sucederem-se ao contrato de promessa e a outorga da procuração ao R. D…, tem essencialmente em vista a resolução do contrato prometido que tardava a acontecer, designadamente não se tinha iniciado a construção da moradia tal como pretendia o J…. E só por essa razão surgiu a eventualidade da procuração outorgada ao R. D…, pelo que os itens 8.º e 9.º devem traduzir esta realidade.
No que concerne ao item 20.º o A. não convoca qualquer prova a partir da qual se possa concluir que existiu um erro de julgamento por parte do tribunal recorrido, limitando-se a tecer considerações.
Nesta conformidade, relativamente aos factos agora em apreço e que foram impugnados pelos RR. com vista ao seu reexame, concluímos que apenas os itens 8.º e 9.º deve passar a constar o seguinte:
“8 – Após a celebração do contrato promessa, o J… passou a ter problemas financeiros com o início da construção da moradia.”
“9 – Por ao Autor interessar que o dito promitente comprador ou outrem iniciasse rápido a moradia e a terminasse depressa, a fim de receber o preço acordado, acedeu a passar uma procuração ao 2.º Réu Dr. D…, advogado conhecido e amigo do J…, a quem conferia poderes para vender o prédio descrito em 1. a quem entendesse e pelo preço e condições que julgasse convenientes, designadamente à 3ª Ré “F…, Lda.”
*
“11 – O Autor só acedeu a passar a procuração por lhe ter sido criada a firme convicção, quer pelo J…, quer pelo 2º Réu, de que a mesma só seria utilizada se o Autor não pudesse, por algum motivo, cumprir o contrato promessa;
12 – Ficou acordado entre o Autor, J… e o 2º Réu que a procuração só seria usada se sucedesse aquele imprevisto;”
Os RR. recorrentes pretendem que esta factualidade seja dada como não provada, partindo para o efeito do consta na ação 5789/08.6TBVNG e dos depoimentos de parte dos AA. e da testemunha X…. Só que o depoimento destas vai no sentido de que ficou provado.
Mas o que resulta dos depoimentos de parte dos AA., assim como do R. D… e ainda da testemunha X… é que a outorga da procuração pelo A. marido àquele R. seria para a concretização do contrato prometido, nos termos constantes do contrato promessa, mas agora surgindo como comprador a R. G…, sociedade da esposa do R. D… – e daí a procuração ser a favor deste último. Aliás a expressão do A. H… é muito clara, quando de modo espontâneo, afirma “já estou safo”, quando pensou que a outorga desse procuração resolveria o impasse até então existente. A versão de que essa procuração surgiu para o caso de morte do A. H… não tem qualquer credibilidade para esta Relação, porquanto, a ser assim, então a mesma tinha surgido logo aquando da celebração do contrato promessa e favor do outro outorgante do mesmo e não de um terceiro.
Deste modo os itens 11 e 12 dos factos provados, passam a ter a seguinte redação:

“11 – O Autor só acedeu a passar a procuração por lhe ter sido criada a firme convicção, quer pelo J…, quer pelo 2º Réu, de que a mesma só seria utilizada para a celebração do que tinha sido delineado no anterior contrato promessa e nos mesmos termos aí constantes”
12 – Ficou acordado entre o Autor, J… e o 2º Réu que a procuração só seria usada exclusivamente nesses mesmos termos;”
*
“20 – E assim, em 10-10-2006, aconselhado pela advogada, foi ao Cartório Notarial da Notária Dra. M… revogar, a partir dessa data, a procuração aludida em 9.;
21 – Foi por essa altura que tomou conhecimento da venda referida em 13.”.
Os RR. recorrentes impugnam esta factualidade, com base essencialmente nas suas conclusões 34 e 35, as quais remetem para o depoimento de parte da A. I…. Ora e uma vez que é “certo” o que consta no item 20, porquanto o documento revogatório dessa procuração tem a data de 10/10/2006, o que se diz no item 21 é que “Foi por essa altura” que tomaram conhecimento da escritura de compra e venda celebrada em 04/04/2006 (13 factos provados). A referencia a “Foi por essa altura” não significa que foi nesse dia 10/10/2006 mas nessa ocasião, ou seja entre abril e outubro desse ano de 2006 ou mais precisamente próximo do mês de outubro de 2006, que até podia ser em julho, agosto, setembro de 2006. O depoimento de parte invocado não tem a virtualidade de infirmar, antes pelo contrário, o que ficou provado.
Nesta conformidade, improcede nesta parte a impugnação da matéria de facto.
*
Os RR. recorrente consideram que existe erro de julgamento quanto aos factos não provados mediante as alíneas a), b), c), d), e), f), i), e k) tendo por base as suas conclusões 37 a 39 repristinando a versão do acordo de investimento, para aí o essencial da sua impugnação. Como essa versão já mereceu a devida ponderação e o exame crítico desta Relação, também nada temos a adiantar para além do que já anteriormente mencionamos. Daí que também nesta parte improcede a impugnação da matéria de facto.
*
Em suma, no reexame da matéria de facto suscitada pelos RR. recorrentes, esta apenas merece parcial procedência. Porém, a factualidade provada diverge, ainda que ligeiramente, do que consta na ação com o n.º 5789/08.6TBVNG, da ex-1ª Vara de Competência Mista de Vila Nova de Gaia, em que foram intervenientes os aqui Autores e aqui Réus, com excepção dos 1ºs Réus. Nesta conformidade a redação do item 25 deverá ser reformulada, passando a constar nos itens a seguir indicados o seguinte:
“3 – Por si ou através de outros para o efeito expressamente autorizados e seus anteriores possuidores, já mais de 5, 10 e 20 anos, de forma contínua, de boa-fé e sem oposição, que o Autor usufrui e é o único beneficiário das sua utilidades e rendimentos, designadamente pondo-o à venda, dispondo dele e vedando-o para preservar o seu domínio.”
“8 – Após a celebração do contrato promessa, o J… passou a ter problemas financeiros com o início da construção da moradia.”
“9 – Por ao Autor interessar que o dito promitente comprador ou outrem iniciasse rápido a moradia e a terminasse depressa, a fim de receber o preço acordado, acedeu a passar uma procuração ao 2.º Réu Dr. D…, advogado conhecido e amigo do J…, a quem conferia poderes para vender o prédio descrito em 1. a quem entendesse e pelo preço e condições que julgasse convenientes, designadamente à 3ª Ré “F…, Lda.”
“11 – O Autor só acedeu a passar a procuração por lhe ter sido criada a firme convicção, quer pelo J…, quer pelo 2º Réu, de que a mesma só seria utilizada para a celebração do que tinha sido delineado no anterior contrato promessa e nos mesmos termos aí constantes”
“12 – Ficou acordado entre o Autor, J… e o 2º Réu que a procuração só seria usada exclusivamente nesses mesmos termos”;
“25 – Na ação com o nº 5789/08.6TBVNG, da ex-1ª Vara de Competência Mista de Vila Nova de Gaia, foram intervenientes os aqui Autores e aqui Réus, com excepção dos 1ºs Réus;”
*
b) Abuso de representação quanto à procuração utilizada na escritura de 04/04/2006
O Código Civil ao disciplinar a representação estabeleceu como sua regra geral, através do artigo 258.º, que “O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último”. Por sua vez e no regime da representação voluntária, enunciou a noção legal de procuração no seu artigo 262.º n.º 1 referindo que “Diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribuiu a outrem, voluntariamente, poderes de representação”, acrescentando-se no seu n.º 2 que “Salvo disposição em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar”. Mais estipula-se no artigo 265.º, n.º 1 do Código Civil que “A procuração extingue-se quando o procurador a ela renuncia, ou quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base, excepto se outra for, neste caso, a vontade do representado”. No que concerne aos efeitos da representação sem poderes, regula-se no artigo 268.º do Código Civil, consagrando-se no seu n.º 1 que “O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”. Esta ineficácia negocial é extensível, de acordo com o artigo 269.º do Código Civil, aos casos de abuso de representação, “se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso”.
A jurisprudência tem assinalado a propósito do abuso de representação que “Existe abuso de poderes, ..., quando o representante, embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado.” (Ac. STJ de 13/fev./2003, Cons. Araújo de Barros; Ac. STJ de 26/abr./2005, Cons. Fernandes Magalhães, acessíveis em www.dgsi.pt, assim como os demais a seguir indicados). Assim, esse desvio terá de ser frontalmente contrário às diretivas ou instruções da representação, estejam estas expressa ou implicitamente declaradas, acabando por realizar-se o negócio por representação contra a vontade do representado. Por outro lado, não se deve descurar que a concessão de poderes representativos tem subjacente uma relação de confiança (fidúcia), mantendo-se ou reforçando-se as exigências de atuação do representante de acordo com a boa fé contratual (762.º, n.º 1 do Código Civil), não significando que exista um mandato em branco ou arbitrário para realização de qualquer negócio e muito menos para prejudicar os interesses da pessoa representada (Ac. STJ de 25/jun./2013, Cons. Fonseca Ramos).
Por sua vez, a ineficácia negocial por abuso de representação não se confunde nem origina a venda de coisa alheia relativamente ao dono da coisa, prevista no artigo 892.º do Código Civil, porquanto esta apenas conduz à nulidade entre alienante e adquirente, tendo inclusivamente pressupostos distintos, incidindo essencialmente na falta de plenos poderes para vender – de acordo com este último normativo “É nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso”, sendo nosso o negrito. A propósito a jurisprudência tem considerado, como sucedeu com o Ac. STJ de 30/jun./2009 (Cons. Hélder Roque) que “I - A venda pelo co-herdeiro de bens pertencentes à herança, sem determinação de parte ou direito, constitui venda de coisa alheia”, explicitando que “II - A nulidade que resulta da venda de coisa alheia apenas se aplica na relação entre alienante e adquirente, e não no que se reporta ao dono daquela, perante o qual a mesma é ineficaz, ou seja, insusceptível de produzir efeitos sobre o seu património”. Nestes casos de ineficácia negocial por abuso de representação, os quais afectam os negócios ou os actos jurídicos subsequentes e subordinados, o que temos é uma ineficácia negocial sucessiva ou derivada em relação ao dono da coisa transmitida e não um negócio de compra e venda de coisa alheia em relação ao mesmo, quando haja alienação posterior desse bem.
*
Atendendo à reformulação dos factos provados, ainda que se mantenham o essencial dos mesmos, iremos reproduzir os factos provados essenciais para a resolução desta controvérsia, que são o seguintes
4 – Por contrato promessa de 15-09-2005, assinado pelo Autor e por J…, o Autor prometeu vender e o J… adquirir o prédio referido em 1. pelo preço de € 70.000,00, tendo recebido de sinal a quantia de € 5.000,00 e tendo ficado acordado que a restante parte do preço seria paga no acto da escritura;
5 – Mais ficou nesse documento convencionado que o Autor autorizava o dito J… a iniciar a construção de uma moradia, obrigando-se aquele a outorgar a escritura de venda com o dito J… ou com outro que designasse;
6 – Mais ficou convencionado que a escritura definitiva era outorgada após a conclusão da moradia, cujo prazo se previa de um ano;
7 – O referido J… era sócio gerente da 3ª Ré “F…, Lda.”;
8 – Após a celebração do contrato promessa, o J… passou a ter problemas financeiros com o início da construção da moradia.
9 – Por ao Autor interessar que o dito promitente comprador ou outrem iniciasse rápido a moradia e a terminasse depressa, a fim de receber o preço acordado, acedeu a passar uma procuração ao 2.º Réu Dr. D…, advogado conhecido e amigo do J…, a quem conferia poderes para vender o prédio descrito em 1. a quem entendesse e pelo preço e condições que julgasse convenientes, designadamente à 3ª Ré “F…, Lda.
10 – Para lavrar a procuração, o J… pediu ao Autor que fosse ao escritório do seu advogado, 2º Réu;
11 – O Autor só acedeu a passar a procuração por lhe ter sido criada a firme convicção, quer pelo J…, quer pelo 2º Réu, de que a mesma só seria utilizada para a celebração do que tinha sido delineado no anterior contrato promessa e nos mesmos termos aí constantes”
12 – Ficou acordado entre o Autor, J… e o 2º Réu que a procuração só seria usada exclusivamente nesses mesmos termos;
13 – Por escritura celebrada em 4-04-2006, outorgada pelo 2º Réu, na qualidade de procurador do Autor, e pelo J… na qualidade de sócio gerente da 3ª Ré, cada um declarou, na qualidade em que intervinha, que vendia e comprava o referido prédio pelo preço de € 3.500,00;
14 – O 2º Réu não informou o Autor da utilização da procuração nem antes nem depois do referido em 13.;
15 – O 2º Réu não entregou ao Autor qualquer quantia declarada naquela escritura;
16 – A 3ª Ré tinha perfeito conhecimento dos factos antecedentes;
17 – O Autor, caso tivesse sido previamente informado de tal venda, nunca a aceitaria, designadamente quanto ao preço da mesma;
18 – O que era do conhecimento dos intervenientes na escritura;
..........
*
Como se pode constatar dos factos provados anteriormente elencados, aquando da celebração da escritura pública de 04/04/2006, em que o R. D… intervém na qualidade de procurador do A., como vendedor, e a R. F…, como compradora, fixando o preço de € 3.500,00, ocorreu um manifesto abuso de representação por parte daquele, desde logo na fixação deste preço. E isto porque tal preço fica muito aquém do preço prometido no contrato promessa anteriormente celebrado entre o A. e o referido J…, que agora intervinha em representação daquela sociedade F…, que era de € 70.000. Aliás e como se pode constatar este preço final de € 3.500,00 é até inferior ao valor do sinal desse mesmo contrato-promessa que foi de € 5.000,00, o que até poderia conduzir que o A. tivesse que repor a quantia de € 1.500,00. Tudo isto permite concluir que existe, como já referimos, um manifesto abuso de representação, que tem como consequência a ineficácia negocial desse contrato de compra e venda, como dos subsequentes, em conformidade com o disposto no artigo 269.º do Código Civil.
Esta ineficácia contratual é extensível ao arresto que incide sobre este prédio dos AA., o qual foi convertido em penhora a favor dos RR. B… e mulher para garantia da dívida existente pela R. F… em relação àqueles RR. pelo valor de € 35.000,00, conforme resulta dos itens 24.º, 29.º e 30.º dos factos provados. E isto porque se trata de um acto jurídico abrangido pela ineficácia negocial da primeira compra e venda, tratando-se de uma ineficácia derivada.
*
Não havendo provimento do recurso quanto ao cerne do mesmo, as suas custas ficam a cargo do RR. recorrentes. – 527.º, n.º 1 e 2 NCPC.
*
No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
…………………………………
…………………………………
…………………………………
*
* *
III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, delibera-se negar provimento ao recurso interposto pelos RR. B… e C… e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida, salvo quanto à modificação dos itens 3.º, 8.º, 9.º, 11.º, 12.º e 25.º dos factos provados, tal como foi anteriormente referenciado no reexame dos factos.

Custas deste recurso pelos RR. recorrentes.
Notifique.

Porto, 13 de junho de 2019
Joaquim Correia Gomes
Filipe Caroço
Judite Pires